Por uma crítica do juízo: nomadismo, anarquia e catástrofe em Diferença e repetição

For a critique of judgment: nomadism, anarchy and catastrophe in difference and repetition

Dr. Leandro Lelis Matos

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

E-mail: leandrolelism@gmail.com

 

Resumo

O objetivo deste artigo é debater como desenvolve o seu conceito de diferença, na obra Diferença e Repetição, propondo reverter a submissão da diferença à identidade na analogia do juízo, que possui duas funções: distribuir os seres e os sujeitos e hierarquizá-los de acordo com as regras do fundamento. Na modernidade, a filosofia de Kant consolidou um pensamento que utilizou as metáforas jurídicas para instituir um “tribunal da razão”, mas revelou o sedentarismo do pensamento distribuído e hierarquizado de acordo com a legitimidade conferida pelo fundamento, relegando a diferença ao segundo plano em relação à identidade do conceito. A intenção de Deleuze é pensar a diferença em si mesma, para tanto, o filósofo confrontou as posições de sedentarismo e hierarquia do pensamento da representação, em nome de um modo de se dispor anárquico e nômade, ou seja, abolindo a noção de hierarquia e reformulado a perspectiva do limite. A hipótese a ser investigada é a seguinte: em que medida o conceito de diferença em si mesma, de acordo com o seu aspecto catastrófico que provoca um abismamento no solo do fundamento, reverte a sua posição ante à analogia do juízo e oferece um novo modo de pensar criticamente, conferindo novas características ao domínio da ontologia.

Palavras-chave: Deleuze; diferença, juízo; ontologia;

Abstract

The aims this paper is to discuss how he develops his concept of difference, in the work Difference and repetition, proposing to reverse the submission of difference to identity in the analogy of judgment, which has two functions: to distribute beings and subjects and to rank them accordingly with the ground rules. In modernity, Kant’s philosophy consolidated a thought that used legal metaphors to institute a "Tribunal of Reason", but revealed the sedentary lifestyle of distributed and hierarchical thought according to the legitimacy conferred by the foundation, relegating difference to the background in relation to the identity of the concept. Therefore, the philosopher confronted the positions of sedentarism and hierarchy of the thought of representation, in the name of an anarchic and nomadic way of disposing of oneself, that is, abolishing the notion of hierarchy and reformulating the perspective of the limit. The hypothesis to be investigated is the following: to what extent the concept of difference in itself, according to its catastrophic aspect that causes an abyss in the ground of the foundation, reverses its position before the analogy of judgment and offers a new way to think critically, giving new characteristics to the domain of ontology.

Keywords: Deleuze, difference, judgment, ontology.

 

Introdução: combater o sistema do juízo

 

A filosofia de Deleuze tem como principal inimigo a ser combatido o pensamento da representação, o qual uma das principais manifestações se dá por meio do “sistema do juízo”. Esse sistema foi responsável por erigir uma imagem do pensamento, que distribui e hierarquiza os seres de acordo com a legitimidade conferida pelo fundamento. Deleuze desenvolve o conceito de Diferença, para produzir um pensamento sem depender das condições da representação, confrontando a determinação oriunda do fundamento e o puro indeterminado, que nada diferencia e tudo iguala. Subverter essas doutrinas da representação objetiva, portanto, ultrapassar o fundamento e alcançar um momento no qual ele é desabilitado. Esse processo confronta o “sistema do juízo” e a sua atuação no conceito, propondo como saída a reunião inédita dos campos aparentemente distintos, o ontológico e o transcendental.

Em seu artigo Para dar um fim ao juízo, que foi publicado na coletânea Crítica e clínica (2008), Deleuze anuncia que da tragédia grega à filosofia contemporânea uma doutrina do juízo se desenvolve pelo pensamento da representação. O juízo emerge da estrutura do tribunal, que nesse momento Deleuze compreende ter uma origem anterior ao platonismo e se mantém reproduzida em Kant, o fundador do tribunal subjetivo. Kant utilizou sem reservas o expediente da metáfora jurídica em seu pensamento, como os termos lei, juiz, juízo, faculdade de julgar, caracterizando-o como um “legislador da razão humana” (Cf. FIGUEIREDO, 2015, pp. 284-285). Juntamente como Platão, Kant ocupa um lugar de protagonismo na filosofia da representação, que edificou numa imagem pré-filosófica e natural, garantindo uma afinidade do pensamento com o verdadeiro. O kantismo erigiu o fundamento no domínio do transcendental, objetivando determinar o conhecimento a partir da quid juris? Deleuze aproxima os dois filósofos ao considerar que ambos instituíram o pensamento como judicativo a partir do tribunal seletivo, além de ter distribuído e hierarquizado o solo tomando conta de tudo o que existia nele.

Em Diferença e repetição, Deleuze havia se debruçado sobre a questão do juízo ao afirmar que, na modernidade, a representação abrigou a “ilusão transcendental”, denunciada como uma “imagem” assumida pelo pensamento. Nessa imagem, o pensamento está recoberto por postulados que o separam da sua atividade e da sua origem, cabendo ao “sujeito pensante idêntico” assumir o posto de “princípio de identidade para o conceito em geral” (DELEUZE, 2018, p. 353). Isso porque, o sujeito pensante atribui ao conceito “seus concomitantes subjetivos, memória, recognição, consciência de si” (DELEUZE, 2018, p. 353). Contudo, Deleuze chamou a atenção para o que ele considera fundamental nessa reprodução estrutural: “Mas é a visão moral do mundo que assim se prolonga e se representa nesta identidade subjetiva afirmada como senso comum (cogitatio natura universalis)” (DELEUZE, 2018, p. 353). O pensamento atribui a si uma imagem moral, responsável pelo convencimento acerca da sua naturalidade e universalidade. A moral exortou a todos a aceitarem que “o pensamento tem uma boa natureza, o pensador, uma boa vontade, e só o Bem pode fundar a suposta afinidade do pensamento com o Verdadeiro” (DELEUZE, 2018, p. 182). Instituída essa relação, o pensamento foi assumido como recognição e assegurado por um acordo entre as faculdades. Esse acordo ofereceu ao pensamento as suas questões de fato e de direito. Dessa maneira, Deleuze assume a tarefa de discutir a questão da imagem do pensamento no domínio do direito para investigar em que medida essa imagem não é a própria traição da “essência do pensamento como pensamento puro” (DELEUZE, 2018, p. 184). Valer de direito corresponde à fidelidade da imagem ao pensamento puro, o que pressupõe “uma determinada repartição do empírico e do transcendental” (DELEUZE, 2018, p. 184). Portanto, a importância do julgamento não é julgar o pensamento em si, mas “essa repartição, esse modelo transcendental implicado na imagem” (DELEUZE, 2018, p. 184).

Em relação à filosofia Crítica, Deleuze destaca que os domínios da moral, da fé, do conhecimento e da reflexão, não são colocados em questão por Kant, pois tudo isso corresponde a “interesses naturais da razão”. Kant questiona o uso das faculdades, que é legitimado ou não de acordo com o interesse em cada domínio. As faculdades da razão, da sensibilidade, do entendimento e da imaginação se diferem por natureza, mas se relacionam de modo harmonioso compondo acordos, os quais são dominados por uma faculdade a depender do interesse. Para Deleuze, a Crítica comporta um “tribunal de juiz de paz, um cartório de registros [...]”, no qual a “morte de Deus” e a cisão do Eu são apenas momentos a serem superados, no interesse especulativo, mas que ressurgem com toda força no interesse prático ou interesse moral (DELEUZE, 2018, p. 189). Kant não foi capaz de fundar a verdadeira crítica, então quem a teria inaugurado? Até Diferença e repetição, Deleuze via Nietzsche como o verdadeiro fundador da crítica, com os seus conceitos de sentido e de valor, mas em “Para dar um fim ao juízo”, ele credita o protagonismo a Espinosa, seguido por Nietzsche, Artaud, Kafka e Lawrence. “Os quatro tiveram de padecer pessoalmente, singularmente, do juízo. Conheceram esse ponto em que a acusação, a deliberação, o veredito se confundem ao infinito” (DELEUZE, 2008, p. 143). Se Nietzsche não é mais o primeiro pensador crítico, Deleuze valoriza aqui a sua contribuição por ter trazido à luz a condição do juízo.

O juízo foi possível, nasceu da consciência de uma “dívida infinita” com o divino. Em uma via de mão dupla, o homem recorre ao juízo, seja para julgar, seja para ser julgado, sob a condição de sua existência estar submetida à dívida. Deleuze recapitula a trama da dívida infinita desvendada por Nietzsche a partir da perspectiva da cultura como ponto de vista histórico. A essência da cultura é compreendida como uma atividade genérica pré-histórica que percorre um longo caminho chegando ao indivíduo em suas práticas pós-históricas, conciliando-se com a prevalência das forças reativas sobre as forças ativas. Para Nietzsche, o homem é constituído por uma atividade genérica a qual o faz responsável pelas suas forças reativas, que se relacionam com outras forças reativas, originando a “responsabilidade-dívida” (DELEUZE, 2018a, p. 176). As forças reativas arrogam para a si o compromisso com as novas forças, mas estas se veem como juízas das primeiras. A relação das forças reativas se desenvolve em coexistência com uma metamorfose da dívida, que passa a ser com esferas reativas, a saber, a divindade, a sociedade e o Estado. As forças reativas protagonistas das relações impedem o estabelecimento de um caráter ativo da dívida, assim o homem assume uma dívida “inesgotável, impagável” (DELEUZE, 2018a, p. 181), da qual não pode se liberar por suas forças ativas. A noção cristã de redenção seria uma possível saída do dispêndio inexaurível, mas, ela somente o aprofunda. O poder de redimir o homem do irredimível pertence a Deus, o credor sacrificando-se com amor “pela culpa dos homens”, mas seu gesto não vai nessa direção. Nietzsche exclama sua desconfiança: “o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor ao seu devedor...!” (NIETZSCHE, 2015, pp. 74-75). Deus paga a si mesmo aquilo que o homem lhe deve.

De acordo com a lógica da subordinação, “o infinito da dívida e a imortalidade da existência” se intercambiam para compor a doutrina do juízo, que sequestra nossa existência através de uma dívida eterna, e a ela o devedor precisa sobreviver. Portanto, o cristianismo inventou um “Poder de julgar” e, descreve Deleuze citando Lawrence: “é, ao mesmo tempo, que o destino do homem é ‘diferido’ e o juízo se converte numa última instância” (DELEUZE, 2008, pp. 143-144). Diferir aqui é levar ao infinito, assim o juízo assemelha-se à “psicologia do sacerdote”, aquela figura que combate o “sofrimento mesmo, o desprazer do sofredor” (NIETZSCHE, 2015, p.110), e não a sua causa.

Deleuze percebe que a condição do juízo é a de ser levado ao infinito, e aqui encontramos o eco da representação infinita que se introduz na diferença. O juízo “recebe sua condição de uma relação suposta entre a existência e o infinito na ordem do tempo” (DELEUZE, 2008, p. 144). Quem se submete a essa relação, recebe em troca o poder do juízo para julgar ou ser julgado. O tribunal é a forma até do juízo do conhecimento, até ele guarda aquela forma “moral e teológica primeira”, uma vez que a existência de qualquer ente depende da relação com o infinito, isto é, depende do acordo com uma ordem do tempo. Assim, tudo que é existente tem uma dívida com Deus. O juízo é sempre um juízo de Deus.

O sistema do juízo instaurou o suplício infinito de uma dívida do homem com o divino. Essa dívida remonta à tragédia grega e alcança seu pináculo no cristianismo. No primeiro momento, os Deuses abandonaram o papel de testemunhas privilegiadas das relações entre os homens e paulatinamente infiltraram-se entre eles até ambos ascenderem ao mesmo tempo à prática do julgamento. A astúcia dos deuses foi instituir uma terra e agraciar os homens com lotes, em outras palavras, a ação do fundamento foi atribuir a terra (ou “lotes”, como os designa Deleuze, que são valores ou sentidos) e sobre ela distribuir os seres. “A qual forma meu lote me destina? Mas também: será que meu lote corresponde à forma que eu almejo?” (DELEUZE, 2008, p. 146). Essas são as perguntas que os seres humanos fazem, desfrutando o prazer de serem juízes e réus, ao mesmo tempo. Daí resulta o fundamento da doutrina do juízo: “a existência recortada em lotes, os afectos distribuídos em lotes são referidos a formas superiores”? (DELEUZE, 2008, p. 146). No entanto, essa doutrina procede de maneira peculiar ao intervir no mundo à maneira de um “juízo equivocado”, que vai à loucura. A loucura ocorre na medida em que o homem se engana com relação ao seu lote e quando Deus, na forma do seu juízo, determina um lote distinto àquele expectado pelo homem. Juízo equivocado do homem e juízo formal de Deus compuseram as necessidades da doutrina do julgamento em seu início.

Mais perigoso ainda, o cristianismo superou a partilha de lotes abolindo-os juntamente com as formas. Com isso, o homem deu a si mesmo o seu lote de acordo com o seu próprio juízo e a forma infinita passou a ser composta pelo juízo de Deus: “No limite, lotear-se a si mesmo e punir-se a si mesmo tornaram-se as características do novo juízo ou do trágico moderno. Há somente juízo, e todo juízo incide sobre um juízo” (DELEUZE, 2008, p. 146). O cristianismo fez com que os homens saíssem da condição de “devedores dos deuses pelas formas ou fins” e se transformassem em “devedores infinitos de um deus único”. Assim, no juízo de experiência ou no juízo de conhecimento, “a doutrina do juízo derrubou e substituiu o sistema dos afectos” (DELEUZE, 2008, p. 147).

Deleuze segue a pista preparada por Nietzsche no que diz respeito à relação credor-devedor, constatando que a dívida teve seu início não com a troca, mas com a promessa, uma atitude pactual instituída primeiramente entre os homens, apenas em seguida entre o homem e a divindade. O pacto estabelecido entre os homens era pautado por uma relação entre forças de uma parte a outra ocasionando uma mudança de estado, denominada por Nietzsche de afecto. Nessa relação órfã de juízo e de deus, Nietzsche captou a presença de uma justiça contrária ao juízo, na qual a dívida era marcada nos corpos. As marcas impressas nos corpos davam a mensura de quanto e o que era devido. À vista disso o direito não era estanque e movimentava-se entre aqueles que cobravam o sangue: “São signos terríveis que laboram os corpos e os colorem, traços e pigmentos, revelando em plena carne o que cada um deve e o que lhe é devido: todo um sistema da crueldade, cujo eco se ouve na filosofia de Anaximandro e na tragédia de Ésquilo” (DELEUZE, 2008, p. 145). A dívida foi transferida para o transcendente, e a doutrina do juízo deixou de exibir a dívida nos corpos e a registrou em um “livro autônomo”. A partir desse processo, o acesso ao débito infinito foi vetado, pois o livro apela para o eterno e desapossa o homem dele mesmo. Enquanto o sistema “enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o afetam” expressando relações finitas entre os corpos, “a doutrina da dívida infinita determina as relações da alma imortal com os juízos” (DELEUZE, 2008, p. 145).

Deleuze está ciente de que não basta remontar a um pré ou a um antejudicativo para sair desse sistema o qual tudo abarca e todas as coisas pretende julgar. Então, é preciso constituir um sistema da crueldade, que originalmente foi despossado. “Por toda parte o sistema da crueldade opõe-se à doutrina do juízo” (DELEUZE, 2008, p. 145). Talvez, isso só seja possível, com uma radicalização, com o desmoronamento do solo do fundamento, “um deslizamento de terreno, uma perda de horizonte” (DELEUZE, 2008, p. 144). Os principais personagens desse enredo possuem seus equivalentes em Diferença e repetição: o sistema dos afetos é um sistema da diferença; o desmoronamento é o abismamento que o sem-fundo provoca no solo do fundamento. Mas para que esse sistema da crueldade seja restituído, a diferença precisou liberar-se da analogia do juízo e reverter a sua posição de submissão em relação à analogia no conceito.

 

Analogia do juízo: distribuição sedentária e hierarquia

 

David Lapoujade ressalta que julgar significa “distribuir o Ser em função de categorias, gêneros, espécies, gradações teológicas, hierarquias morais ou epistemológicas” (LAPOUJADE, 2015, p. 13). Tudo o que é formado, organizado, corresponde ao juízo de Deus. Logo, o fim do juízo significa acabar com o fundamento que o legitima. Entende-se o porquê das alianças de Deleuze com os autores que confrontaram o “sistema do juízo”.

Ao levantar a questão do fundamento, Deleuze mostra como ultrapassar a identidade até chegar a um momento no qual não mais se identifica. A diferença é restaurada no pensamento quando ela deixa de ser representada “sob a identidade do conceito e do sujeito pensante” (DELEUZE, 2018, p. 354). Chegar ao sem-fundo é encontrar como último estágio a diferença em si mesma, como Maïmon fez ao reduzir o dado até um sem-fundo infinitesimal no qual ele não pode ser mais dado a partir de um sujeito constituinte. O que emerge desse sem-fundo são as diferenças mínimas que são afirmadas autonomamente e se liberam das profundezas do Ser. Deleuze não se interessa pelo indiferenciado, portanto, o sem-fundo é o que sobe à superfície para distinguir-se do Ser. A diferença não para de diferenciar, ela é o princípio das relações diferenciais, e isso é alcançado em uma dimensão pré-individual ausente de diferenças genéricas, específicas ou individuais. É até esse ponto que Deleuze leva a razão suficiente, a um nível pré-individual para fazer ver como os indivíduos são constituídos. Para Deleuze, não é interessante remeter o ser a fatores individuantes se esses só mostrarem indivíduos já formados, preservando no particular o que está em conformidade com o geral (forma e matéria) (DELEUZE, 2018, p. 65). Essa é perspectiva da analogia.

No plano do conhecimento, a ruptura com o fundamento implica na liberação da diferença da analogia do juízo. Mesmo na metafísica e no transcendental, a identidade do conceito ainda não instaura uma “regra de determinação concreta”, já que ela é somente uma “identidade do conceito indeterminado, Ser ou Eu sou (este Eu sou do qual Kant dizia ser ele a percepção ou o sentimento de uma existência independente de toda determinação)” (DELEUZE, 2018, p. 357). Isso se cumpre se os conceitos últimos ou os predicados originários forem definidos como determináveis. Como os conceitos e os predicados possuem uma relação originária interna com o ser, eles se apresentam como análogos com relação ao Ser. De acordo com essa relação, os conceitos e os predicados recebem a “identidade de um senso comum distributivo e de um bom senso ordinal” (DELEUZE, 2018, p. 357).

A intenção da representação é mais do que “fundar-se na identidade de um conceito determinado” (DELEUZE, 2018, p. 346), ela almeja representar a própria identidade sempre que possível em certos conceitos determináveis. Aristóteles foi o responsável pela organização do mundo da representação e consequentemente, pela submissão da diferença à analogia do conceito de Ser. O conceito de Ser foi marcado por dois aspectos principais: o de distribuir um sentido comum e o de possuir um sentido primeiro na escala hierárquica[1]. Genérica ou categorial, a diferença é a mesma, porque ainda perdura um “conceito idêntico ou comum” de Ser. Também como o gênero referente às espécies, o ser não é coletivo e não possui conteúdo em si. Pelo contrário, ele é distributivo e hierárquico, e seu conteúdo está de acordo com os termos (categorias) “formalmente diferentes dos quais é predicado” (DELEUZE, 2018, p. 62). Ao invés de uma relação de igualdade, a relação dos termos com o ser se dá de modo hierarquizado e interiorizado, como no caso da categoria substância que se situa no primeiro lugar na participação do ser. As duas características do ser, distribuição do sentido comum e hierarquia de um sentido primeiro, impedem que o ser se apresente como um gênero ante as “espécies unívocas”. Conquanto, a distribuição e a hierarquia não cessam de trazer inovações, elas também evidenciam uma relação de extrema proximidade entre a equivocidade e a analogia[2]. Portanto, Deleuze define que a “equivocidade do ser é inteiramente particular: trata-se de uma analogia” (DELEUZE, 2018, pp. 62-63), o que ressalta uma equivocidade pros en e que faz desembocar as duas características do ser, a distribuição e a hierarquia, no problema do juízo[3].

A analogia apresenta as relações em termos de igualdade. No estado de ato, as coisas se distinguem entre si, mas analogamente são iguais por terem a mesma relação com seus termos no estado de potência. A analogia é de proporção, ou seja, é tomado um termo para atribuir sentido e valor, portanto, juízo, aos outros termos na relação. O valor e o sentido dos termos se dão de acordo com a participação proporcional do termo definido como referência. Na analogia, o termo de referência está fora da relação entre os termos os quais receberão o seu sentido, por isso, ele possui um sentido superior aos outros. Apesar de os princípios das coisas serem distintos, eles são análogos, na medida em que as relações são as mesmas. De acordo com a analogia é definido o grau de participação de um termo no sentido primeiro. A analogia diz respeito ao “análogo da identidade no juízo” e é também a “essência do juízo”. No entanto, a analogia do juízo é “o análogo da identidade do conceito” (DELEUZE, 2018, p. 60). A diferença se mantém inscrita na identidade do conceito indeterminado em geral por meio da diferença específica, ou na “quase-identidade dos conceitos determináveis mais gerais” (DELEUZE, 2018, p. 60), através da diferença genérica (distribuição e hierarquia), isto é, por meio da analogia do juízo.

De acordo com o que determina o fundamento, o juízo avalia as pretensões dos seres e designa a cada faculdade o seu domínio. Dotado de uma garra dupla fincada na metafísica, no céu ideal, e no transcendental, no sujeito kantiano, o juízo é “a instância capaz de proporcionar o conceito aos termos ou aos sujeitos dos quais é ele afirmado” (DELEUZE, 2018, p. 59). O juízo atua sempre de modo duplo por meio da distribuição e da hierarquia: “a distribuição, que ele assegura com a partilha do conceito, e a hierarquização, que ele assegura pela medida dos sujeitos” (DELEUZE, 2018, p. 59). Cada uma das funções corresponde a uma faculdade: a distribuição equivale à faculdade do senso comum; a hierarquização equivale à faculdade do bom senso. O bom senso não se separa do senso comum, eles são as duas pinças do juízo. Operando nesses dois polos, a intenção do juízo é “bem partilhar”.

No senso comum, a distribuição partilha um lote estabelecendo determinações estáveis e proporcionais conforme os territórios delimitados na representação. Garantindo o privilégio legítimo de uma forma de identidade, o juízo no senso comum é responsável pela distinção das partes. Com isso, o juízo subsidia um sentido partilhado entre os seres, proporcionando-lhes uma semelhança. Por sua vez, o bom senso corresponde à hierarquia que regula os seres de acordo com suas gradações de aproximação ou distanciamento de um princípio. O sucesso dessas operações está condicionado a um princípio que as assegure não haver ruptura dos limites, desproporção entre as partes ou insubordinação, isto é, uma ordenação pronta para determinar o direito e o distribuir (Cf. LAPOUJADE, 2015, p. 58). O senso comum e o bom senso compõem a “justiça” como valor do juízo e, assim, “toda filosofia das categorias toma o juízo como modelo – conforme se vê em Kant e até mesmo em Hegel” (DELEUZE, 2018, p. 60).

Deleuze pensa as atividades da distribuição e da hierarquia como uma questão agrária, na qual fixa limites e proporções como se fossem um latifúndio, cujos limites encontram-se na representação. O juízo é, assim, estruturado como uma faculdade de partilha, dispondo os seres em seu espaço de direito e medindo-os conforme os limites de cada um e os graus de proximidade ou distância do fundamento. Contudo, na analogia, o ser também é comum, porém isso não o define como gênero.

Para reverter essa realidade segmentada e hierárquica imposta pelo juízo, não basta superar a analogia, é preciso alcançar uma distinção que se dá no domínio da ontologia, abdicando de uma ontologia no sentido de uma primazia do ser, em favor de uma ontologia do devir, ou teoria da individuação, cumprindo o propósito de afirmar uma existência em devir.

 

Nomadismo e anarquia

 

Deleuze pretende fazer ver as ações do princípio de constituição dos indivíduos, os processos temporários de constituição e desfazimento dos indivíduos. Por isso que a matéria do Ser não é indeterminada, mas é composta por esses fatores diferenciados. Os fatores individuantes não são indivíduos já constituídos, mas o que age nos indivíduos como “princípio transcendental”. Esse princípio é “plástico, anárquico e nômade contemporâneo do processo de individuação, e que não é menos capaz de dissolver e destruir os indivíduos quanto de constituí-los temporariamente” (DELEUZE, 2018, p. 65). Donde a importância de um plano para o ser, capaz de fazer ver o mais nítido possível esses processos temporários de passagem de um indivíduo a outro. O plano é capaz de mostrar “como a individuação precede de direito a forma e a matéria, a espécie e as partes, e qualquer outro elemento dos indivíduos já constituídos” (DELEUZE, 2018, p. 57). Essa é a tarefa da univocidade do ser, fazer com que o ser se reporte sem mediações à diferença, exigindo a exibição de como no próprio ser a diferença individuante é anterior às outras diferenças, genéricas, individuais e específicas.

Com a univocidade o sentido deve ser ontologicamente o mesmo para os “modos individuantes, para designantes ou expressantes numericamente distintos” (DELEUZE, 2018, p. 62). Além de se dizer num único sentido, o ser precisa se dizer num único sentido de “todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas” (DELEUZE, 2018, p. 62)[4]. Embora o ser seja o mesmo para todas as modalidades, elas não compartilham, umas com as outras, do mesmo sentido. Aceitando que o ser unívoco se reporte a diferenças individuantes, Deleuze recusa a existência de uma mesma essência das diferenças, diferenças essas que não modificam a essência do ser. O autor oferece uma imagem ilustrativa desse momento da univocidade. Existe um único branco, essencialmente o mesmo, mas há distinções entre os brancos de acordo com os graus de intensidade à qual cada um deles se refere. Então, a diferença de intensidade faz com que o ser possua uma única voz para todos os modos, faz com que o ser se diga “da própria diferença” (DELEUZE, 2018, p. 63).

A crítica do juízo como crítica do fundamento aponta para uma nova terra, sem uma cota legal, para outro tipo de distribuição a partir da potência. Os seres são liberados da organização. Para que isso ocorra, Deleuze defende que a diferença não se dê de maneira apaziguadora e se autonomize, já que “designa catástrofes” e procede por rupturas e falhas. A diferença dá um testemunho de um sem-fundo que age sob a analogia, e a faz desabar. Nesse sentido, Deleuze elabora duas “críticas do juízo”.

A primeira crítica do juízo incide sobre o seu caráter distributivo. Em vez de uma distribuição sedentária, Deleuze defende uma distribuição nômade do ser e no próprio ser. Nela o ser se torna capaz de preencher a maior quantidade de espaço e de abdicar das regras judicativas à medida que recusa encarar as coisas sob o ângulo da proporção territorial sedentária, que se efetiva pelo juízo e é certificada de acordo com o direito atribuído pelo fundamento. As posses e os limites são ultrapassados e todos os seres, ou pessoas, se espalham ocupando tanto espaço quanto são capazes. Alcançando essa distribuição, o ser e as coisas passam a se repartirem na univocidade. O nomos sedentário dá lugar a um nomadismo que desarticula as regras de distribuição dos espaços e até mesmo da própria vida. “Preencher um espaço, partilhar-se nele, é muito diferente de partilhar o espaço” (DELEUZE, 2018, p. 63). Se a distribuição sedentária é fruto de um juízo divino, a distribuição nomádica possui características demoníacas, pois é próprio dos demônios “operar nos intervalos entre os campos de ação dos deuses, como saltar por cima das barreiras ou das cercas confundindo as propriedades” (DELEUZE, 2018, pp. 63-64). Esses saltos introduzem as “catástrofes” nas “estruturas sedentárias da representação” (DELEUZE, 2018, p. 64).

A segunda crítica é desferida contra a hierarquia do juízo. Ora, a hierarquia propiciada pelo juízo graduava os seres levando em conta os limites e o espaço entre eles relativos ao fundamento, a essa hierarquia Deleuze contrapõe uma anarquia coroada. Para tanto, o filósofo recorre à noção nietzschiana de vontade de potência como critério seletivo. Na anarquia coroada, os seres e as coisas passam a ser selecionados pelo grau de potência, redefinindo assim a noção de limite, compreendido agora como aquilo que “se desenvolve e desenvolve a sua potência”. Aqui, a violação das normas de medida (hybris) deixa de ser censurada e a desproporção incorpora-se ao ser, no qual o menor e o maior coexistem[5]. Ontologicamente, isso também vale para a substância, para a qualidade e para a quantidade, e a palavra “igual” adquire nova acepção, distinta daquela que significava “substancialmente equivalente”. Agora, “o ser igual está imediatamente presente em todas as coisas, sem intermediário nem mediação” (Cf. DELEUZE, 2018, p. 68).

Nessa nova relação, o que mais importa a Deleuze é como as coisas se mantêm “desigualmente nesse igual”, participando do ser sem distinguir gradações. Elas não se relacionam mais analogamente, participam do ser “desigualmente em igualdade”, abolindo a hierarquia. A distribuição dos seres é nômade e não mais, sedentária, e a hierarquia é derrotada pela anarquia coroada, e essas são as duas características para desabilitar o juízo: a distribuição nômade e a anarquia coroada. São elas que confrontam o ser análogo afirmado pela mediação e pela generalidade, distribuído e hierarquizado. Desse combate, o ser que sai “vitorioso” é aquele que alcançar dizer-se num único sentido, o da Diferença.

François Zourabichvili sugere que os leitores de Deleuze estejam dispostos a enfrentar a pergunta “como esse pensador pode conjugar dois modos de aproximação à primeira vista incompatíveis: transcendental e ontológico” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 28)?[6] O interesse de Deleuze não é pela ontologia em si mesma, e sim pelo “momento da sua história, no qual surgiu a tese da univocidade, assim como a posteridade clandestina desta, bem além da Idade Média” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 29)[7]. O objetivo de Deleuze é encontrar uma lógica do sentido, a fim de alterar a lógica metafísica tradicional vigente “do ser e do saber” para uma inédita “lógica da relação” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 30), ou “lógica do devir”.

Opondo-se a algumas interpretações que defendem a manutenção do termo “ontologia” em Deleuze, obviamente sem reportá-lo à carga conceitual da ontologia tradicional, para Zourabichvili, não existe uma “ontologia de Deleuze”. Não há ontologia nem no “sentido vulgar de um discurso metafísico que nos diria o que é a realidade em última instância” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 26), pois Deleuze pensa essa questão em termos de fluxos e linhas, em vez de substâncias e pessoas, muito menos em um “sentido mais profundo de um primado do ser sobre o conhecimento” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 26), como defenderam Merleau-Ponty e Heidegger, “em que o sujeito aparece a si já precedido por uma instância que abre a possibilidade desse aparecer” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 26). Zourabichvili reforça que, contra a primeira vertente, Deleuze mantém uma postura “crítica”, no sentido kantiano, não abrindo mão de questionar as condições da experiência. Na verdade, a interpretação de Lapoujade, que se inspira, por sua vez, provavelmente, também em Zourabichvili, apontou que a crítica de Deleuze vai muito além do próprio Kant, em direção a Nietzsche e a Bergson. Já contra a segunda vertente, o autor defende que “a irrupção do sujeito na experiência não se inscreve em termos obrigatoriamente ontológicos”, pois “o ser é uma categoria que não resiste a essa irrupção” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 26).

Segundo esse intérprete, a filosofia de Deleuze é orientada unicamente pela “extinção do nome ‘ser’ e, portanto, da ontologia” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 26). Essa hipótese de leitura está sediada no programa de uma substituição do é pelo “e”, em outros termos, do ser pelo devir. De acordo com Zourabichvili, para levar a cabo seu projeto de substituição do ser pelo devir, Deleuze propõe um ser do devir, apelando para as duas noções-chave do pensamento de Nietzsche: o eterno retorno e a vontade de potência. Recusar a ontologia em nome do devir não é um mero jogo de palavras, uma simples mudança terminológica, mas um projeto de reversão da ontologia a partir das relações, em vez de seguir a tradição da Filosofia, na qual predominou a perspectiva do juízo instaurado pelo verbo ser.

 

A catástrofe da Diferença: Eterno retorno ontológico e ético

 

Repetindo e resumindo: a univocidade só interessa a Deleuze se ela fizer com que o ser se diga do devir, ou ainda, que a identidade se diga da multiplicidade, que o uno se diga do múltiplo, por meio de uma “subversão categorial mais geral” (DELEUZE, 2018, p. 68), exigência essa que o eterno retorno cumpre plenamente. O ser não remete mais à identidade, mas a um sem-fundo originário, à diferença de intensidade, e, portanto, não se diz do idêntico ou do mesmo, ele se diz do devir. Ao contrário do que foi consolidado pelo pensamento da representação, na subversão categorial deleuziana, a identidade e o uno aparecem como potências secundárias, que remetem respectivamente ao diferente e ao múltiplo originários. Ultrapassando o fundamento e o juízo, Deleuze faz do eterno retorno um momento decisivo no qual a identidade é destituída da posição de princípio.

 

Que a identidade não é princípio, que ela existe como princípio, mas como segundo princípio, como algo tornado princípio, que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que dá à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, em vez de mantê-la sob a dominação de um conceito geral posto como idêntico. Com o eterno retorno, Nietzsche não queria dizer outra coisa. O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o mundo da vontade de potência) em que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Revir (revenir) é o ser, mas somente o ser do devir (DELEUZE, 2018, p. 68).

 

A diferença desembarca da semelhança na superfície e encontra o seu ser na intensidade. A diferença em si mantém um elo profundo com a teoria da individuação, que assume o ser como devir, por meio de uma lógica que capta o que se transforma na passagem de uma intensidade a outra (DELEUZE, 2018, p. 398). Apesar de ser uma lógica, a teoria da individuação não se confunde com a ontologia tradicional, pois a questão mais importante nessa abordagem é a de descobrir um novo princípio – diferença de intensidade – para o próprio ser e para todos os entes. Um dos principais fios condutores da Filosofia da Diferença deleuziana segue a tese da univocidade do ser desde a Idade Média (Duns Scotus) até alcançar a sua “posteridade clandestina” como sugere Zourabichvili, culminando na abolição da “doutrina do ser” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 29). Esse ponto é a doutrina nietzscheana do eterno retorno. O ser que se diz num único sentido é o do eterno retorno, mas enquanto retorno do que se diz. Em um só tempo, o movimento do eterno retorno é “produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição” (DELEUZE, 2018, p. 69). Não sem razão, Diferença e repetição encerra-se com uma bela imagem explicativa da univocidade do ser, quando a “extrema ponta da diferença” é alcançada.

 

“Tudo é igual” e “Tudo retorna!” Mas Tudo é igual e Tudo retorna só podem ser ditos onde a extrema ponta da diferença é atingida. Uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas, um só clamor para todos os entes. Mas sob a condição de ter atingido, para cada ente, para cada gota e em cada via, o estado de excesso, isto é, a diferença que os desloca e os disfarça, e o faz retornar, girando sobre sua ponta móvel (DELEUZE, 2018, p. 398).

 

Mais do que uma noção puramente ontológica, o eterno retorno possui um aspecto ético, que explica o seu caráter duplamente seletivo de acordo com os critérios da vontade de potência. O pensamento do eterno retorno é antes de tudo uma prática, já que ele produz uma “seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno” (DELEUZE, 2018, p. 69). Mantida sob a perspectiva do sem-fundo, a diferença não dispõe da seleção, mas o eterno retorno dá um novo alento, uma nova perspectiva à diferença, movimentando-a. A repetição aparece como a própria “potência da diferença”, o círculo que acontece no fim da linha, na ponta extrema da diferença.

Enquanto o fundamento é o critério para selecionar os melhores participantes e o juízo avalia distribuindo as partes, o eterno retorno também seleciona, mas somente as formas extremas a partir de um movimento de repetição. No momento é importante compreender que o retorno afirma a repetição da diferença, não da semelhança. Dessa maneira, não é o ser que retorna, o retorno é o próprio ser, mas enquanto devir. O que retorna é o devir e, se houver alguma identificação, ela se dá num segundo plano, como uma “potência secundária”. A diferença não se dirá do idêntico, mas, ao contrário, é do diferente que se dirá o idêntico, e essa “identidade, produzida pela diferença é determinada como ‘repetição’”; assim, se há alguma repetição do mesmo no eterno retorno, ela é repetição do “mesmo a partir do diferente” (DELEUZE, 2018, p. 68).

Resumindo, há uma nítida distinção entre a ontologia tradicional baseada na representação e na analogia que implica na tese da equivocidade do ser e a tese da univocidade do ser, defendida por Deleuze, em especial na companhia de Nietzsche: a analogia defende que o ser se diz de vários sentidos, e se diz de algo precisamente “fixo e bem determinado”. Já a tese da univocidade assume que o ser se diz no mesmo sentido, mas a “univocidade deleuziana” exige que o ser se diga de “todas as maneiras” no mesmo sentido, como o Oceano que é o mesmo para todas as gotas. Contra os limites, portanto contra o juízo, o ser como devir ou diferença deixa de ser “fixo e determinado”, torna-se sempre móvel e em constante deslocamento: “o ser se diz daquilo que difere, da própria diferença, sempre móvel e deslocada no ser” (DELEUZE, 2018, pp. 397-398).

Notemos ainda que há uma redefinição da noção de “limite”, contra o limite imposto pelo juízo, no que diz respeito aos modos de distribuição. O limite na analogia está a léguas de distância da noção de limite na “univocidade deleuziana”. O limite sob o ponto de vista da analogia define um espaço extensivo que enumera e mede de acordo com critérios exteriores; já o limite sob o ponto de vista do ser unívoco corresponde a um espaço intensivo no qual a distribuição é impulsionada pela potência interna. A representação abriga a diferença genérica e a diferença específica sob o ponto de vista da analogia, enquanto a diferença individuante da univocidade pretende situar-se “fora da representação”, tendo de, a cada vez, criar, afirmar seus novos modos. Enquanto o juízo distribui o ser “nas categorias” e divide “um lote fixo aos entes” de acordo com a proximidade ou distância do fundamento; na univocidade, sem fundamento, o espaço do ser não é repartido para os entes, mas, são os “entes é que se repartem no espaço do ser unívoco aberto por todas as formas” (DELEUZE, 2018, p. 398). Apenas a univocidade comporta essa abertura.

Há uma dissociação entre identidade e princípio no eterno retorno, destacando que seu movimento se realiza em torno do Diferente, jamais do Igual. A filosofia da representação foi erigida sobre a identidade e a circularidade, identidade da ideia e movimento circular do mito. No eterno retorno, o Idêntico não retorna, já que ele advém num mundo no qual as identidades primárias foram pulverizadas, ou seja, no mundo da vontade de potência (o princípio diferencial e genético). O eterno retorno é seletivo e não se desenrola na qualidade ou no extenso enquanto rivais da diferença, da dessemelhança e da desigualdade. A qualidade e o extenso apresentam a diferença anulada na superfície, por isso Deleuze recorre ao eterno retorno, que se diz da diferença de intensidade, e se diz de uma só vez.

Na “ontologia deleuziana”, se é que há ontologia, a substância é abolida e o Ser se transforma em puro devir: “apenas revém (revient), apenas está apto a revir, aquilo que devém, no sentido pleno da palavra. Apenas revêm a ação e a afirmação: o Ser pertence ao devir e só pertence a ele” (DELEUZE, 2016, p. 215). Pelo devir, Deleuze rompe com o Mesmo ou o Idêntico, e com o negativo. Se há um ser, é o do devir, a diferença como ser, constituída no ser do sensível. Deve-se ressaltar mais uma vez a mudança de perspectiva que Deleuze nos propõe e que apenas aparentemente é sutil: entre a diferença específica, derivada da genérica, que é representada e que se desenrola na qualidade e na extensão sensível, da diferença que é ontológica, pura intensidade, para além de toda e qualquer representação, uma catástrofe em torno da qual gira o eterno retorno, que é, por sua vez, uma “transmutação”, uma metamorfose. O eterno retorno é

 

[...] o instante ou a eternidade do devir, que elimina tudo aquilo que se lhe resiste. Ele resgata e, mais do que isso, cria o puro devir ativo e a afirmação pura. E o super-homem não tem outro conteúdo, é o produto comum da vontade de Potência e do Eterno Retorno, Dioniso e Ariadne. Eis porque Nietzsche diz que a vontade de Potência não consiste em querer, em cobiçar ou buscar, mas apenas em “dar”, em “criar”. E este livro se propõe, antes de tudo, a analisar aquilo que Nietzsche chama de Devir (DELEUZE, 2016, p. 215).

 

Em suma, o eterno retorno é seletivo, porque ele não faz retornar “o Todo, o Mesmo ou a identidade prévia em geral [...] nem mesmo o pequeno ou o grande como partes do todo ou como elementos do mesmo” (DELEUZE, 2018, p. 69). O que retorna são as “formas extremas”[8], excessivas, no sentido do máximo de potência e, portanto, o eterno retorno é expressão “do mundo teatral das metamorfoses e das máscaras da Vontade de potência” (DELEUZE, 2018, p. 69). Em vez da identidade, do igual, o retorno expressa o mesmo ser para tudo o que é desigual, é o “ser comum de todas as metamorfoses”, estabelecendo uma relação de diferença a partir da própria diferença.

Quando o eterno retorno é afirmado em toda a sua potência, não é possível estabelecer qualquer “fundação-fundamento”. Essa potência atua justamente de maneira inversa, destruindo o fundamento, enquanto aquela lógica que instaurava a diferença entre a coisa e os simulacros, como pretendeu a dialética platônica. Uma vez que o eterno retorno nos coloca diante da experiência da diferença como catástrofe, a relação fundação-fundamento é ultrapassada, em nome das imagens sem semelhanças, que confundem as cópias ao se instaurarem na superfície e possuírem seu direito de existir por si mesma.

 

Cada coisa, animal ou ser é levado ao estado de simulacro; então, o pensador do eterno retorno, que não se deixava certamente tirar da caverna, mas antes encontraria uma outra caverna mais adiante, sempre uma outra onde se esconder, pode legitimamente dizer que ele próprio é encarregado da forma superior de tudo o que é, como o poeta, “encarregado da humanidade, até mesmo dos animais”. Estas palavras ecoam nas cavernas superpostas. E essa crueldade que no início nos parecia construir o monstro, que parecia dever reparar e só poder ser apaziguada pela mediação representativa, parece-nos agora formar a Ideia, isto é, o conceito puro da diferença no platonismo subvertido: o mais inocente, o estado de inocência e seu eco (DELEUZE, 2018, p. 97).

 

Com relação ao aspecto ético, trata-se da seleção do querer ou do pensamento, que quer somente “aquilo cujo eterno retorno se quer ao mesmo tempo (eliminar todos os semi-quereres, tudo aquilo que só pode querer pensando ‘uma vez, nada além de uma vez...’)” (DELEUZE, 2016, p. 215). O alcance das formas extremas é possível com o eterno retorno porque elimina as formas médias e arranca “a forma superior de tudo o que é”, para falar como o próprio Nietzsche. O eterno retorno inova ao criar a fórmula “deve ser negado tudo o que pode ser negado”, uma vez que, ao afirmar, produz de acordo com o esquecimento ativo. Aqui, a reminiscência platônica não cumpre qualquer papel. Afirmar significa dizer “sim” do alto de sua potência; um dizer “sim” totalmente distinto do “sim” da meia vontade. Desfaz-se assim o caráter negativo ao qual a diferença tinha sido associada. Não mais vinculada à negação, assumir a diferença como afirmação significa torná-la múltipla. A perspectiva que compreendia a afirmação como indeterminada ou como uma determinação pertencente ao negativo, perdia de vista o caráter genético da afirmação. É apenas ilusoriamente que a negação se encontra na gênese da afirmação. Na verdade, o negativo vem depois da afirmação, porque a negação se revela como “a sombra de um elemento genético mais profundo – desta potência ou desta ‘vontade’ que engendra a afirmação e a diferença na afirmação” (DELEUZE, 2018, p. 85).

Deleuze impede que a diferença se abrigue em definições insuficientes, por exemplo, a de “bela alma”, que enxerga somente “diferenças, conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas” (DELEUZE, 2018, p. 14). A bela alma cumpre a função de um “juiz de paz” que em meio à batalha enxerga as diferenças como contradições capazes de serem mediadas, reconciliadas. Temendo afirmar a diferença, a bela alma busca sempre o lado da resolução dos problemas, fugindo das problematizações. É o pensamento conciliatório, apaziguador, incapaz de enfrentar o fato de que, mesmo sendo afirmativa, positiva, a diferença também implica em destruições, catástrofes. Apesar de reconhecer as diferenças, a bela alma é temerosa e, ao invés de encarar a necessidade daquelas destruições, ela pretende reconciliá-las, o que é o mesmo que abortá-las. A Filosofia revestiu o pensamento da representação com a pouca audácia.

Como alternativa da Filosofia ante a ameaça da diferença em si, Deleuze é partidário de uma maneira de “invocar destruições necessárias” que está a cargo do poeta, que defende “uma potência criadora, apta a subverter todas as ordens e todas as representações, para afirmar a Diferença no estado de revolução permanente do eterno retorno” (DELEUZE, 2018, p. 82). Claramente partidário dessa “destruição”, Nietzsche é o caso exemplar de quem passa por uma bela alma, mas no sentido não conciliador, não abre mão da crueldade, do prazer na destruição. Sem temer as catástrofes que a diferença provoca, abalando o solo do fundamento. Porque é transformadora e criativa, a diferença é sempre, ao mesmo tempo, catastrófica.

Assim, Deleuze encampa uma luta pela superfície objetivando romper com a lei moral que hierarquiza e seleciona para incorporar ou incluir os pretendentes no seu “mundo ideal”. Ora, se há um modo de existência que preza pela potência da diferença, ela é rebelde, insubmissa às regras ditadas pela moral ou pela ciência, passando a existir independente do modelo ideal fundado pela representação. Deleuze é partidário do sentido nietzscheano de afirmação e negação que é capaz de conceber a Diferença em primeiro plano, e não como se fosse o mal que só pode ser afirmado se assumir em um só lance um peso duplo: o do negado e da negação. O sentido dessa afirmação implica na independência da diferença em relação ao negativo, capaz de existir por si mesma. Distintamente do negativo, que é produto de uma afirmação demasiado pesada, a afirmação é leve. Aqui, afirmação e negação correspondem ao homem forte, o criador de novos valores, o homem de potência que atinge as formas extremas, desvencilhando-se das formas médias, já que manter-se nestas é resultado da pseudo-afirmação.

Se Deleuze mobiliza as noções de vontade de potência e de eterno retorno como um círculo girando em torno da diferença posicionada no centro, é para mostrar que a identidade está fora dele, pois a diferença ocupa um centro descentrado e o círculo gira em torno do desigual, promovendo, assim, uma saída do par identidade e circularidade do mesmo. A diferença é a condição do ser que se diz do devir, como o ser unívoco se diz em um mesmo sentido, o do eterno retorno, o que retorna é aquilo do que o ser se diz, ou seja, a repetição. “A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição” (DELEUZE, 2018, p. 69). Isso rivaliza com o movimento cíclico da representação, o qual promove a circularidade a partir da identidade, e a seleção dos idênticos a partir do movimento circular.

 

Considerações finais

 

A discussão acerca de uma teoria da individuação remete ao problema da univocidade do ser, não no sentido de que Deleuze pretenda elaborar uma ontologia do ser unívoco, mas é neste momento que a discussão acerca da liberação da diferença das amarras da analogia do juízo é posta. Coube confrontar a sua submissão à analogia do juízo, pois é o juízo quem mantém a distribuição e a hierarquia dos seres e dos sujeitos. Dessa maneira, o conceito de diferença confrontar os critérios de seleção da diferença no nível do conceito.

Em Diferença e repetição, Deleuze realiza a crítica do fundamento, como a busca da legitimidade dos critérios pelos quais o fato ou as pretensões são ou não determinadas, ou seja, bem ou mal fundadas, para compreender como uma pretensão reivindica o seu direito sobre algo. Como defende Lapoujade, “a crítica do fundamento é indissociadamente uma crítica do juízo” (LAPOUJADE, 2015, p. 58). Dar um fim ao juízo equivale também a dar um fim ao fundamento. Julgar não significa fundar, julgar diz respeito à obediência dos seres que são julgados aos designíos do fundamento. Para Lapoujade, Deleuze não considera bem-sucedida uma crítica do juízo se o fundamento ainda se mantiver acima do ser e do pensamento, uma vez que o fundamento concede “a todo juízo um travo moral” (LAPOUJADE, 2015, p. 58) abarcando não só os juízos morais, como os juízos do conhecimento. Ao pretenderem fundar, Platão e Kant objetivaram julgar, e julgar de acordo com “um direito que procede da forma de identidade do fundamento” (LAPOUJADE, 20015, p. 58). Elucidando esse círculo vicioso no qual estão encerrados o fundamento e o juízo, a interpretação de Lapoujade assegura que, ainda que se julgue de acordo com o direito, “o direito só existe e tem sentido positivo por e para aquele que julga. O juízo é a ratio essendi do fundamento, enquanto o fundamento é a ratio cognoscendi do juízo” (LAPOUJADE, 20015, p. 58). Portanto, o juízo está a serviço do fundamento com o objetivo de manter os seres e o pensamento sob o seu domínio. Isso nos remeteu à fundação do sistema do juízo.

Ultrapassar o fundamento é fazer desabar o solo que ele sustenta. Se esse solo soçobra, então não há mais terra para o juízo distribuir os seres sobre ela e hierarquizá-los epistemológica ou moralmente. Mas Deleuze não pretende permanecer na profundidade. A superfície que abriga as novas distribuições, não é somente uma superfície sobre a qual os seres ou os sujeitos se dispõem de uma nova maneira. Só se dá um fim ao juízo se o solo do fundamento desmoronar-se por uma catástrofe. No entanto, o Ser também não pode ser tragado por esse abismo. O que a ação do sem-fundo sobre o fundamento promove é uma fratura no ser que cinde também o pensamento da identidade. Então, se não é mais possível um pensamento a partir da lógica da identidade, como expressá-lo?

Todo conceito precisa de uma lógica que o conecte com outros conceitos. Em Deleuze, a lógica é a expressão do ser do devir, portanto ontologia e lógica compõem o pensamento deleuziano da expressão. Essa ontologia é constituída por uma lógica do sentido, que é sempre paradoxal, um não-sentido, resultando na produção de “lógicas irracionais”, que não têm a ver com o ilógico, mas com o extrapolar os limites da razão (Cf. LAPOUJADE, 2015, p. 13). Nessa nova lógica, entre o sentido e o não-sentido passa o não-senso copresente a ambos, e um duplo sentido se produz na superfície. Cria-se uma “lógica da diferença” para que a diferença seja a própria articulação das relações com o diferente, operação impossível através da lógica da identidade e do seu procedimento recorrente, que é a analogia. Deleuze insiste que a diferença estabeleça as conexões de um conceito com outros, para atuar na fronteira entre a razão e a desrazão, valendo-se sem reservas da noção de devir para elaborar um pensamento, no qual o ser vai assumir-se, antes como verbo, do que como substantivo. Ser verbal indica sempre uma transformação, um movimento, que é também um limite, uma borda (DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 37).

Deleuze ultrapassa a distinção entre original e cópia, imagem e forma, e valoriza a distinção entre fundamento e sem-fundo. O pensamento da diferença busca produzir novas superfícies, e não permanecer na profundidade, mesmo que nela a diferença seja afirmada. Lógica do sentido distingue “três imagens de filósofos”: a primeira é a do filósofo platônico, que vive nas alturas, posição que é imediatamente recusada, enquanto a segunda imagem, a do filósofo pré-socrático, da profundidade, só é aceita para ser ultrapassada, como sugere Nietzsche[9]. O único motivo de aprofundar-se é chegar à superfície, da qual surge um terceiro tipo de filósofo, os cínicos e os estoicos, que reorientam o pensamento e o significado de pensar. Com eles, o pensamento se orienta lateralmente, nem para cima nem para baixo, ou seja, pela imanência: “Tudo o que acontece e tudo o que se diz acontece e se diz na superfície” (DELEUZE, 2007, p. 136).

A superfície não é uma espécie de dimensão a ser explorada, mas permanece desconhecida, até mesmo mais do que a altura e a profundidade. Em vez de “conversão platônica” ou “subversão pré-socrática”, a filosofia deleuziana procede por uma perversão, termo que pode melhor expor o “sistema de provocações deste novo tipo de filósofos, se é verdade que a perversão implica uma estranha arte das superfícies” (DELEUZE, 2007, p. 136). Não mais na altura, no interstício do universal e do particular, muito menos na profundidade, mas esse novo tipo de filósofo passa no liame entre a substância e os acidentes.

O novo pensamento pretende produzir uma superfície para o ser passar entre as duas outras dimensões. A dualidade altura e profundidade dá lugar a um combate obstinado da profundidade contra a superfície, que ameaça abismar o solo e tudo tragar. A disputa profundidade e superfície é abandonada por Deleuze poucos anos depois em O Anti-Édipo, que também pode ser lido como uma “lógica do desejo”. Em “Pensamento nômade” (1973), Deleuze declara: “A oposição superfície-profundidade não me preocupa mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre o corpo pleno, um corpo sem órgãos, e os fluxos que fluem” (DELEUZE, 2006, p. 329). A noção de profundidade ainda está próxima do fundamento, o que poderia levar a uma espécie de investida heideggeriana em busca da profundidade do ser enquanto abismo (Cf. LAPOUJADE, 2015, p. 36). Portanto, em vez de aprofundar no ser, a intenção é produzir uma superfície para nela expressar o sentido do ser, que não existe fora dele, mas dele difere: “O sentido é o que se forma e se desdobra na superfície” (DELEUZE, 2007, pp. 129-130). A nova expressão do ser demanda uma superfície autônoma que mantenha a diferença em seu estado.

Segundo Zourabichvili, Deleuze só reúne as duas pontas, do ontológico e do transcendental, invocando a categoria de imanência. É no momento da imanência que a experiência comum vai em direção às suas condições e transforma, por meio dessas condições, a experiência em transcendental, considerando que a sua condição não é o eu, e sim o acontecimento. Porém, a elevação ao transcendental tem como condição a “tomada de consistência de uma experiência ‘real’ – dependente, em outros termos, da alteração das condições sob as quais algo é reconhecido como possível (estilo deleuziano)” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 32). Reportando-se ao diferente, a diferença pode ser pensada em si mesma e, ao recusar todas as hierarquias, inclusive aquela primeira do original sobre a cópia, desvia-se do curso bussolado pelo fundamento metafísico instituído pelo platonismo e pelo kantismo. Contudo, Deleuze desloca a potência do sem-fundo para a superfície, embaralhando os territórios e as posições bem-organizadas.

 

Referências bibliográficas

 

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Recebido: 21/04/2022                                                                                                 Received: 21/04/2022

Aprovado: 30/08/2022                                                                                                      Approved: 30/08/2022

 



[1] Em Aristóteles, “todas as categorias se dizem em função do Ser; e a diferença se passa no ser entre a substância como sentido primeiro e as outras categorias que lhe são relacionadas como acidentes” (DELEUZE, 2007, pp. 7-8). O ser é dividido em categorias, dentre as quais a substância é a categoria mais importante, pois é a ela que todas as outras e todos os significados do Ser se referem. Para Aristóteles, o estudo da substância, a investigação do ser enquanto tal, constitui o princípio da sua metafísica, e comparadas com a substância, todas as outras categorias são inferiores. Por conseguinte, a substância é o sentido primordial do ser, e por mais que este se diga em muitos sentidos, todos os sentidos se referem a um princípio único chamado substância. Como afirma o próprio Aristóteles, “algumas coisas são ditas ser porque são substância, outras porque afecções da substância, outras porque são vias que levam à substância, ou porque são corrupções, ou privações, ou qualidades, ou causas produtoras ou geradoras tanto da substância como do que se refere à substância, ou porque negações de algumas destas, ou até mesmo da própria substância” (ARISTÓTELES, 2002, Livro IV, 2, p. 133). Isso constitui a metafísica como a ciência responsável pela investigação do que é primeiro no ser, a substância, cabendo, portanto, ao filósofo a tarefa de conhecer suas causas e seus princípios, logo se o ser se diz primeiro da substância, ela é a categoria que ocupa o primeiro lugar na hierarquia. Segundo Machado, afirmar que o ser é hierárquico se deve ao fato de que “a substância é o primeiro termo de uma série, isto é, de um conjunto onde há anterior e posterior, e do qual ela é o fundamento” (MACHADO, 2009, p. 55). Com efeito, se a substância é o sentido fundamental dentre os vários sentidos do ser, os outros são acidentais.

[2] No sentido matemático no qual foi empregada para significar igualdade de relações, a analogia equivale à proporção (a/b = x/y), sendo definida por uma “interioridade da relação”, nesse caso, a relação da categoria com o ser. Essa relação é interna a cada categoria, e cada categoria possuirá unidade de ser (Cf. DELEUZE, 2018, p. 59, nota 5).

[3] Segundo Machado, os termos “analogia” e “equivocidade”, assim como a “univocidade”, foram cunhados pela escolástica e se referiam às interpretações de Aristóteles. Machado esclarece que Santo Tomás não reconhecia univocidade nem equivocidade, mas somente a analogia do ser e, portanto, Deleuze concorda com a tese de que “a analogia é um conceito especificamente tomista, explicitamente formulado na Idade Média; por outro lado, ele não estabelece nenhuma diferença essencial, sob esse aspecto, entre os dois filósofos” (MACHADO, 2009, p. 54), pois seu interesse maior era na “continuidade entre eles”. Continuidade esta que admite um modo de partilha do ser referente à distribuição dos entes, o qual assume a substância como possuidora do sentido primeiro. Em Aristóteles, o ser possui seu sentido a partir da relação com as categorias, ou seja, é pelos sentidos que o ser se diz. Assim, o ser possui vários sentidos e estes sentidos desfrutam de uma unidade entre eles. Essa unidade é factível graças à “unidade do conceito de ser” não se apresentar de forma explícita e porque não é “separável dos sentidos irredutíveis que as categorias determinam”, pois se assim o fosse o ser seria unívoco. No entanto, os múltiplos sentidos da palavra “ser” são “equívocos pros en”, ou seja, são relativos a um sentido convergente, o que implica em uma “unidade distributiva, implícita e confusa, imperfeitamente determinada, em que cada sentido implica o ser e este não se confunde com nenhum deles” (MACHADO, 2009, p. 54). Isso leva Machado a concluir que “o ser é a unidade implícita de todos os sentidos, ele permanece presente em cada categoria, mas de modo obscuro” (MACHADO, 2009, p. 54).

[4] Deleuze mostra que Duns Scotus se volta contra a “eminência negativa dos neoplatônicos e a pseudoafirmação dos tomistas”, propondo a univocidade do ser: “o ser se diz no mesmo sentido de tudo o que é, infinito ou finito, ainda que não seja sob a mesma ‘modalidade’” (DELEUZE, 2017, p. 66). Embora o ser mude de modalidade, sua natureza é a mesma “[...] quando seu conceito é predicado do ser infinito e dos seres finitos” (DELEUZE, 2017, p. 66).

[5] Como no caso de Alice que “[...]se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se torna menor do que agora. Não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos” (DELEUZE, 2007, p.1).

[6] Em nota, Zourabichvili cita que Deleuze lança mão do conceito de “singularidades pré-individuais” em duas situações em Lógica do sentido: “como componente do novo conceito de campo transcendental (DELEUZE, 2007, 15ª série); depois, como categoria ontológica num texto sobre Klossowski (DELEUZE, 2007, apêndice III)” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 28).

[7] Indiquemos os principais pontos que Deleuze valoriza em Duns Scotus e em Espinosa: no primeiro, Duns Scotus: a) as formas do ser são indivisíveis e rejeitam toda e qualquer “pluralidade ontológica”; b) o ser se diz daquilo que é, partilhado de acordo com “diferenças individuantes essencialmente móveis” e atribui a cada individuação inúmeros significados modais. No segundo, Espinosa: c) a distinção real dos atributos é formal e não numérica, ou seja, os atributos são irredutíveis a gêneros ou categorias, pois são “formalmente distintos” e, ao mesmo tempo, “ontologicamente um”, o que quer dizer que a substância não se divide e que se exprime pelos atributos em um mesmo sentido; d) a distinção numérica entre “entes” é modal e não real, isto é, os modos são irredutíveis às espécies, já que eles se distribuem nos atributos “de acordo com diferenças individuantes que se exercem em intensidade como graus de potência que os referem imediatamente ao ser unívoco”; e) a distinção formal para um único “lance ontologicamente uno” (DELEUZE, 2018, pp. 396-397).

[8] O que se define aqui por extremo não corresponde à identidade entre os contrários, mas à univocidade do diferente. Se há uma forma superior, ela é “o eterno informal do próprio eterno retorno por meio das metamorfoses e das transformações”, desarticulando, assim, a ideia de que a forma superior seria a forma infinita (DELEUZE, 2018, p. 85).

[9] Não sair da caverna e ascender à purificação, mas nela se aprofundar até encontrar uma caverna atrás de outra, onde uma profundidade se encaixa na outra. Deleuze define a valorização nietzschiana dos pré-socráticos como “uma filosofia do futuro, com todas as forças de uma vida que é também um pensamento ou de uma linguagem que é também corpo” (DELEUZE, 2007, p. 132). Nietzsche sucede Hölderlin, que encontrou em Empédocles “a profundidade absoluta cavada nos corpos e no pensamento” (DELEUZE, 2007, p. 133).