UMA LEITURA WEILIANA DE DOM CASMURRO: O CIÚME COMO MAL RADICAL[1]

A weilian reading by Dom Casmurro: jealousy as radical evil

Daniel Benevides Soares

E-mail: benevides.soares@gmail.com

Universidade Federal do Ceará – UFC

Evanildo Costeski

E-mail: evanildoc@uol.com.br

Universidade Federal do Ceará – UFC

 

RESUMO

Propõe-se investigar se o conceito weiliano de mal radical basta para compreender o comportamento moral de Bento Santiago descrito no romance Dom Casmurro. É necessário para tanto traçar em linhas gerais a análise feita por Eric Weil do mal radical kantiano, o que é proposto na primeira seção do artigo. Feito isso, o conceito kantiano é comparado com o mal radical conforme aparece na obra weiliana, o que marca a particularidade da versão encontrada no pensamento de Eric Weil da inspiração do mal radical kantiano; esse é o tema da segunda seção. Finalmente, o mal radical weiliano – entendido como violência passional – é aplicado ao agir de Bento Santiago para então analisar sua adequação e suficiência para a compreensão do comportamento do memorialista machadiano, o que é feito na terceira seção do artigo. Essa análise permite responder se o conceito basta para dar conta da violência moral do caso estudado.

PALAVRAS-CHAVE: Mal radical. Violência passional. Eric Weil. Dom Casmurro.

ABSTRACT

The paper seeks to investigate whether the Weilian concept of radical evil is enough to understand the moral behavior of Bento Santiago described in the novel Dom Casmurro by Machado de Assis. It is necessary, therefore, to outline Eric Weil's analysis of the Kantian radical evil, which is proposed in the first section of this paper. The second section compares the Kantian concept with radical evil as it appears in Weil's work, which marks the particularity of the version found in Eric Weil's thought of the inspiration of Kantian radical evil. In the third section of the paper, Weil’s radical evil – understood as passionate violence – is applied to Bento Santiago’s actions and then analyzes its suitability and sufficiency for understanding the Machadian memorialist’s behavior. The conclusion of the paper aims to answer if the concept is enough to account for the moral violence of the case studied.

KEYWORDS: Radical evil. Passional violence. Eric Weil. Dom Casmurro.

 

Introdução.

 

O artigo tem como objetivo analisar se o conceito de mal radical weiliano é adequado e suficiente para dar conta do comportamento de Bento Santiago em Dom Casmurro, obra de Machado de Assis. Para tanto, o artigo propõe conceituar o mal radical weiliano e em seguida aplicá-lo ao comportamento do narrador verificando-se  as seguintes hipóteses: a) o conceito é adequado e suficiente;  b) o conceito é adequado mas não é suficiente; c) o conceito não é adequado. A solução desse trilema ensejará ou não a abertura para uma investigação que, em termos weilianos, vá além do seu conceito de mal radical para a compreensão do comportamento do marido de Capitu, o Dom Casmurro da rua do Engenho Novo, saído – ou descoberto – do Bentinho de Matacavalos.

 

I. Análise weiliana do mal radical kantiano.

 

Em qual sentido o mal radical pode ser considerado radical para o filósofo de Königsberg? Considerar o mal como radical em Kant passa por não perder de vista que, ainda que exista no ser humano uma disposição para o bem, esta coexiste com uma propensão para o mal (KANT, 2008, p. 49 - 51). A disposição é um fundamento primeiro universal para a adoção de máximas morais relacionado com o uso da liberdade. Já a propensão é a predisposição para uma fruição: ela se torna inclinação quando o indivíduo prova de algum objeto. Essa propensão é contingente para a humanidade em geral, portanto, podendo não ser inata (KANT, 2008, p. 31 - 34).  Assim, há no ser humano um fundamento subjetivo para a adoção de máximas morais de acordo com a liberdade, que antecede o uso dessa liberdade na experiência, sendo, portanto, inato: nascido com o ser humano e não sendo adquirida no tempo (KANT, 2008, p. 26 - 28). Se a disposição pode ser, nesses termos, considerada inata e não a propensão, como falar em um mal radicado na natureza humana? Para Kant, a resposta é a seguinte: tão logo se observe o ser humano, detecta-se, mesmo nos melhores exemplares da espécie, um fundamento para a doção de máximas más (uma concupiscência), que, se não pode ser deduzida do gênero humano, a experiência com os seres humanos permite considerar como algo subjetivamente necessário (KANT, 2008, p. 38). Feito esse esboço da radicalidade do mal para o filósofo de Königsberg, passemos ao conceito conforme se apresenta no pensamento weiliano.

Ao definir o mal radical no quarto ensaio dos Problemas kantianos, Weil  afirma que se trata de um inimigo localizado no interior do ser humano, um princípio mau que leva o indivíduo a deflacionar a sinceridade em favor da mentira. Weil também o trata como uma luta travada no interior da individualidade empírica. Segundo Weil, em se tratando do mal radical, estamos diante de uma malignidade e de uma insinceridade (2012 A, p. 163 – 167). Essa malignidade está radicalmente instalada em uma vontade humana que, mesmo assim, é livre (WEIL, 2012 A, p. 140 – 141). Kant considera que a malignidade do coração humano se manifesta em uma cegueira voluntária que consiste em ignorar que determinados atos dados em conformidade com a lei moral não geraram conseqüências más apenas por ventura ou sorte, ou mesmo por impotência, temperamento e outras circunstâncias que poderiam consistir em tentações, mas que foram fortuitamente afastadas do indivíduo, o que lhe concede a ilusão de mérito (2008, p. 44). Curioso observar que em Dom Casmurro Santiago reconhece que a virtude não é apenas presente do céu, mas uma conduta virtuosa pode ocorrer como obra da timidez ou do acaso, como numa circunstância em que a primeira refreia a ação do adultério ou o segundo lhe retira o ensejo[2]. Como exemplo, é possível citar o capítulo XLI. Durante conversa com dona Glória para fugir ao seminário, Bentinho utiliza como recurso para sua recusa as alegadas saudades da mãe, quando a verdadeira razão era Capitu (OC I, p. 949). Em seguida, afirma: “Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração” (OC I, p. 949). Essa passagem já permite traçar um paralelo entre a ação de Santiago e o mal radical, mas será a conduta do memorialista adequada e suficientemente descrita pelo mal radical? Tornemos à exposição weiliana do conceito.

A malignidade do coração humano é uma culpa congênita, quando a fragilidade e a insinceridade fazem com que o indivíduo minta para si mesmo sobre os móveis de sua ação. A malignidade resulta na perversão, mas é importante determinar o sentido de perversão empregado por Weil: a natureza humana é pervertida, não perversa; uma natureza pervertida implica no embate entre razão pura e vontade impura, enquanto uma natureza perversa significaria uma vontade puramente má, treva pura[3] (WEIL, 2012 A, p. 153). Como então, Weil compreende essa distinção? A chave está na localização do mal radical nas disposições naturais do ser humano.

São três as disposições constituintes da possibilidade da natureza humana – formam, portanto, seu conceito. As primeiras são aquelas que dizem respeito à animalidade do ser humano enquanto ser vivo[4]. Quando desviadas da sua finalidade, dão origem à bestialidade[5]. As segundas são as disposições da humanidade concernentes ao ser humano enquanto ser, ao mesmo tempo, vivo e razoável[6]. Quando desviadas, tais disposições são responsáveis pelos vícios da sociedade, a exemplo do ciúme, da inveja e da ingratidão[7]. A terceira disposição é aquela respeitante à personalidade como ser razoável e pensante. É essa disposição que, quando desviada, pode comprometer as inferiores, de modo que é o seu erro que constitui o mal moral[8]  (WEIL, 2012 A, p. 150). Essas disposições são irredutíveis e indestrutíveis. Cada uma delas contribui para a constituição da malignidade do coração humano, pois sua fraqueza o faz ceder às inclinações e sua insinceridade faz com que ele acredite seguir uma conduta por respeito à lei moral quando na verdade segue as máximas do amor de si (WEIL, 2012 A, p. 150).

Importa observar ainda que as inclinações em si mesmas são neutras.  Desse modo, a análise weiliana das disposições permite concluir que as inclinações sensíveis, ou seja, a animalidade imperdível do ser humano, não constituem propriamente uma falta – a falta será não lhes opor resistência. Mais do que isso. As inclinações exercem na leitura de Weil um papel importante para a constituição da moral, pois elas fornecem o fundo subjetivo para que a vontade possa submeter as inclinações. Esse fundo subjetivo é um ato de liberdade (WEIL, 2012 A, p. 152 - 153). Desponta aqui o papel exercido pelo mal radical na fundamentação da moral kantiana, de acordo com a análise de Weil

Na sua exposição do mal radical kantiano, Weil distingue entre fundamento e antropologia moral, entre o princípio da moral e a moral concreta, entre a possibilidade transcendental da moral e a moral empírica. O mal radical diz respeito à segunda das opções mencionadas. Deste modo, ele não destoa do sistema kantiano, mas é seu complemento (2012 A, p. 151). Weil também diferencia o aspecto ontológico e o fenomenológico do mal radical. O primeiro é o fundo que admite a acolhida de máximas más na ação moral. Esse aspecto representa o mistério do mal radical[9]. Isso porque esse fundo é escolha intemporal. É esse fundo como falha ontológica que permite a observação daquilo que se mostra como fenômeno, ou seja, as faltas morais ocorridas no tempo. Esse fundo implica a existência da liberdade; assim, para Weil, o aspecto fenomênico do mal radical só se compreende em contraste com esse fundo. Há, portanto, uma união complementar entre ontológico e fenomênico[10] – o que possibilita o que se compreende no nível da moral. Isso porque é essa união entre ontológico e fenomenológico que torna compreensível a vida moral (WEIL, 2012 A, p. 154 - 155).

Nesse ponto da exposição já reunimos elementos para registrar que essa interpretação de Weil é exatamente isso: uma interpretação. Trata-se, de acordo com Weil, de uma ideia que domina o pensamento kantiano, embora as fórmulas empregadas pelo autor da Lógica da filosofia não sejam, conforme ele mesmo assinala, propriamente kantianas (2012 A, p. 160). Weil também recorre a Hegel no seu tratamento do mal radical kantiano, ao considerar que o que é mal para Kant, Hegel denomina como paixão, sendo esta o motor que fornece à história um recurso, a história moral sendo história do mal. É no contexto desse paralelo que Weil utiliza o termo violência na sua exposição do mal radical kantiano: a civilização sendo o desenvolvimento das lutas da violência (2012 A, p. 161 - 162). O termo aparece novamente quando Weil aponta que a justificativa para a comunidade humana é o progressivo desaparecimento da violência (2012 A, p. 164). A essa menção à violência, ajuntamos que o mal radical enquanto tomado no plano ontológico, como falha, não é o resultado da ação de um sedutor[11],  o próprio indivíduo sendo o responsável por se deixar seduzir, de modo que as inclinações não empatam a felicidade, mas são as condições para a vida moral livre (WEIL, 2012 A, p. 156 – 158).

A interpretação de Weil insere o mal radical no bojo do sistema kantiano, pressupondo o imperativo categórico[12] que põe as tentações não como coerções, mas como ensejos para a vontade se afirmar como livre. O mal radical, portanto, é tomado como uma luta, luta essa que confere sentido à existência humana (WEIL, 2012 A, p. 148 – 150). O mal radical é o inimigo localizado no próprio ser humano, contra o qual é possível afirmar o sentido para a vida moral do ser finito e razoável (WEIL, 2012 A, p. 166 – 167).

A partir dessa breve jornada expositiva podemos confirmar, portanto, a hipótese de que a leitura weiliana do mal radical kantiano não é simples reprodução; Weil faz sua leitura ao mesmo tempo em que insere o conceito tanto no quadro mais amplo da filosofia moral do filósofo de Königsberg, quanto no horizonte dos seus temas filosóficos particulares, como atesta a preocupação com o sentido. Diante disso, a pergunta que surge é: o mal radical, então, ao ser tratado por Weil no seu sistema, obedece a configuração traçada nos Problemas kantianos, ou o conceito kantiano pode ser comparado com um mal radical propriamente weiliano, em relação ao qual o conceito kantiano interpretado no ensaio dos Problemas kantianos pode lhe fazer tanto semelhança quanto diferença? Nossa hipótese interpretativa é que o conceito weiliano tanto apresenta inspiração – portanto, ligação – quanto diferenças – portanto, delimitações - em relação ao mal radical kantiano. Vamos marcar as ligações e particularidades com base em alguns exemplos extraídos das obras weilianas e, partindo daí, poderemos definir a situação do mal radical weiliano em relação ao trilema proposto no início do artigo para o comportamento do Casmurro machadiano.

 

II. O mal radical weiliano.

 

Na sua Lógica da filosofia, Weil fala de uma violência exterior e uma violência interior, a primeira, sendo aquela que o ser humano sofre da natureza[13] e a segunda aquela que vem das suas paixões (2012 B, p. 73). Vejamos em quais termos, por meio de dois exemplos já presentes na Lógica, Weil trata dessa violência oriunda das paixões.

 

A paixão não terá ganhado terreno dentro dele, insidiosamente? Não terá ele sido minado do interior antes de se encontrar face a face com a violência exterior? Assim como os outros temem o que lhes acontece do exterior, não deve ele temer o que o ameaça do interior? Estará ele alguma vez razoavelmente seguro de sua razão? (WEIL, 2012 B, p. 35).

 

Tomemos mais detidamente os termos desse excerto. Weil fala de uma violência passional capaz de avançar sobre o homem por meio de enganos e logros. Essa descrição é coerente com a deflação da máxima moral pelo amor de si vista no mal radical kantiano, conforme o próprio Weil o apresenta nos Problemas kantianos. Weil ainda questiona se aquilo que mina interiormente o homem, não o deixa inseguro quanto à possibilidade de agir orientado pela razão. E aqui surge o elemento do mal radical que faz com que nem mesmo o mais santo dos seres humanos esteja seguro se sua ação foi ou não moral.

No segundo exemplo, Weil afirma que o indivíduo moral se orienta de acordo com um discurso cujas condições de sua ação – ou seja, seu conteúdo – não dependem dele, porém, sua forma sim. Essa forma, a regra que ele prescreve para si, é sua na medida em que essa regra admite como critério apenas o acordo do ser humano consigo mesmo na razão. Essa regra se propõe excluir a violência de suas ações. E nesse ponto da exposição Weil ajunta que, no que pese essa regra, o indivíduo nunca estará seguro de haver excluído a violência dos seus atos (2012 B, p. 73). A semelhança com o mal radical kantiano se faz notar. Avançando ainda nessa passagem da obra weiliana, encontraremos mais pedras de toque quando, após Weil aludir à esperança que o indivíduo moral pode ter no contentamento na eternidade, o autor afirma ainda que esse indivíduo só pode estar seguro dessa satisfação cada vez que resistiu ao que nele existe de violência. O indivíduo moral sabe que deve agir de tal maneira que o princípio dos seus atos possa fundar um sistema de regras não violento (2012 B, p. 73). O arremate dessa exposição marca ainda mais a semelhança:

 

É irrelevante saber se, na realidade, ele é sempre capaz de se conformar a esse imperativo, visto que ele devia sempre se conformar a ele, assim como é irrelevante saber se o ato conforme à regra alcançará o fim visado, visto que isso depende do dado e não da decisão. Antes de qualquer reflexão sobre os atos, está claro que um fim que não é universal ou universalizável em nome de um princípio constitui um contrassenso para a liberdade humana que só se sabe liberdade na medida em que ela quer submeter o dado, instaurar, no lugar do reino da necessidade e das causas, o dos fins e da razão consciente de si mesma (WEIL, 2012 B p. 73; grifo do autor).

 

Weil fala aqui de uma violência da natureza. É determinante, portanto, apresentar o que ele entende por natureza, nesse contexto.  Weil usa o termo natureza para caracterizar tanto a violência exterior quanto a interior. Assim, há uma natureza que, em relação ao ser humano, o circunda e uma natureza que o preenche, compondo o seu ser na sua extensão. Quanto a essa natureza que o preenche, é importante salientar que, para Weil, o ser humano pode observar essa natureza e sobre ela falar positivamente (2012 B, p. 73 – 74). Essa violência da natureza que o preenche – oposta àquela que o circunda -, é a da paixão, que deve receber leis universais dadas livremente pela razão. Temos aqui o caso do mal radical em sua vertente weiliana, que, ao mesmo tempo em que dialoga, também se distingue da sua inspiração kantiana[14]. O elemento que opera a dupla lógica – uma dialógica do conceito de mal em Weil – é o seu conceito de violência. Ele marca tanto a apropriação que Weil faz do mal radical kantiano – sua leitura presente no ensaio dos Problemas kantiano não é simples apresentação, portanto, conforme adiantamos – quanto erige sua assinatura de pensamento. O mal radical é violência passional. E a violência aparece tanto como vereda – o que preserva a comunicação - quanto como fronteira – o que erige a distinção – em relação ao mal radical kantiano. Recolhemos alguns exemplos nesse sentido da Filosofia política e da Filosofia moral. Comecemos pela Filosofia política.

Na sua Filosofia política, Weil alude a uma violência interior que o indivíduo, “enquanto ser razoável, sofre por parte do seu ser empírico: o homem sofre de si mesmo (passio, páthos, Leidenschaft)” (2011 A, p. 59; grifo do autor). Essa violência é denominada por Weil como paixão (2011 A, p. 59). Antes disso, porém, Weil utiliza explicitamente o termo mal radical para fazer referência à violência interior, que o indivíduo sofre dos seus próprios impulsos (2011 A, p. 28). O momento em que usa a expressão é o seguinte:

 

Os impulsos agentes, ocultos à reflexão moral, são do domínio do que não é universal, têm a origem no mal radical: o princípio moral é aplicado ao outro desse princípio, a uma matéria que ele não pode compreender, muito menos produzir. E como a subjetividade empírica tem origem nessa matéria, o homem que quer ser moral nunca estará seguro da moralidade dos seus atos positivos. É certo que ele evitará o ato imoral. Mas como saberá que o ato realizado em conformidade com a moral procedeu, quanto à sua inspiração, de uma máxima moral? Como saberá se agiu por respeito à lei, e não por medo das conseqüências, por cálculo interessado, seguindo a sua natureza empírica? Ele pode querer o bem, mas nunca saberá se sua vontade foi boa (WEIL, 2011 A, p. 28, grifo do autor).

 

Nesse trecho, o mal radical revela a clara inspiração kantiana: ele é incerteza. O indivíduo nunca está seguro se a ação concreta vem de um impulso moral ou se tem apenas sua aparência. O cálculo interessado e a natureza empírica falseiam a vontade, o que faz do mal radical mentira. Para além disso, porém, há no excerto em análise a menção a uma dinâmica propriamente weiliana: a razão e o seu outro, ou seja, a violência. Weil agrupa de um lado impulsos agentes que não são da ordem do universal, a uma matéria que origina a subjetividade empírica. Trata-se do mal radical como violência. Isso porque, em oposição a esse outro, tem-se a reflexão moral, o universal, o princípio moral e que é irredutível a essa alteridade radical que é a violência. Importante ressaltar que algumas linhas antes do trecho que reproduzimos acima, Weil pondera que o princípio moral prescreve que uma ação apenas é moral se procede exclusivamente de uma regra universalizável, de modo que ser moral é agir apenas pela razão e por respeito à lei moral (2011 A, p. 28). Temos então o par weiliano razão[15] e violência[16], o que faz do mal radical contido no pensamento do autor algo próprio, ainda que tenha inspiração kantiana; quando o apresenta nas suas obras, Weil se apropria do conceito. Passemos agora ao texto da Filosofia moral weiliana para assinalar mais acentuadamente as particularidades do mal radical quando tratado no sistema do autor.

Na sua Filosofia moral, Weil alude a impulsos psíquicos, tendências animais e necessidades vitais que a moral tradicional teve que encadear para possibilitar a coexistência e colaboração entre os homens (2011 B, p. 37 – 38). Esse é o traço da insociável sociabilidade. Até aqui, a vereda com o conceito kantiano é aberta e repisada.

Weil também fala da animalidade presente no ser humano, que tenta negar esse se na sua moralidade, sendo essa própria animalidade negada em favor da concretização de um sentido humano dessa existência animal (2011 B, p. 41). Esse é o traço da preocupação com o sentido. A interpretação do conceito kantiano começa a despontar. Sigamos ainda nessa linha.

Na sua Filosofia moral, Weil remete a Kant e ao reconhecimento feito pelo filósofo de Königsberg de que o desejo natural do homem o faz aspirar à satisfação do seu ser empírico. Essa aspiração não constitui o fundamento da moral, mas ela também não é incompatível com a esperança de que a vontade humana, não sendo eficaz, possa ser tornada eficiente pelo apaziguamento operado por Deus em consonância com seu mérito (2011 B, p. 44). “Kant jamais deixou de insistir no fato de que essa esperança recebe sua legitimidade da moral, que, contudo, ela não poderia fundar: o fundamento da moral é a consciência imediata da lei e do dever que essa lei estabelece” (WEIL, 2011 B, p. 45).

Weil utiliza o termo vontade razoável para designar o ato livre de acordo com o qual o ser humano não se submete ao que condiciona interior e exteriormente o animal. O critério que guia a escolha humana é dado pela própria vontade razoável, é ela quem o fornece para si mesma[17] (2011 B, p. 62 – 63).

Na sua Filosofia moral o autor também situa a animalidade como um fundo contra o qual a moral se destaca, o que assinala a importância desse fundo para a realização do empreendimento moral (2011 B, p. 65). “Sem tentações, o homem não seria moral, ele não seria homem, e é nas necessidades e nos desejos imediatos, na animalidade que o homem se eleva acima de si” (WEIL, 2011 B, p. 65).

Weil considera que a universalidade é, ao mesmo tempo, fundamento da filosofia e regra moral. Assim, a máxima que “seja a do ser particular, do desejo, do interesse individual” não deve ser admitida, assim como toda máxima que trate o ser finito e razoável (ser humano) como objeto ou a máxima que não possa se tornar máxima de todo ser razoável (2011 B, p. 71). Até aqui, Weil vai com Kant. O tom propriamente weiliano no tratamento do problema do mal radical aparece na continuação da última condição negativa para a máxima moral apresentada pelo autor da Filosofia moral, ou seja, não será moral aquela máxima “que não possa se tornar a máxima de todo homem sem que a violência e a luta dos interesses pessoais destruam a comunidade” (2011 B, p. 71). O mal radical é violência, ou melhor, a violência nas relações humanas é o mal[18] (WEIL, 2011 B, p. 221). Weil trata do mal aqui enquanto mal moral.

O quadro mais amplo da violência, portanto, é o que distingue o mal radical weiliano do kantiano, apesar das semelhanças. O mal radical kantiano – e seus conceitos satélites – desconsideram a possibilidade de o homem querer fazer o mal. Ora, o mal radical weiliano também  corresponde à violência das paixões, mas o seu tratamento aponta também para os seus limites desse conceito para dar conta de todas as possibilidades do comportamento humano e, partindo deles, abre a vereda para o recurso a outras formas de violência para a compreensão dessa possibilidade humana irredutível: a violência. É significativo que o apontamento de tais faces do Proteus[19] weiliano apareçam na Filosofia moral, como se esboçando esses (des)caminhos variados da violência e, ainda que fazendo constantes menções a Kant,  Weil estabelecesse uma assinatura para o seu próprio pensamento. Pinçamos aqui apenas dois exemplos para fundamentar essa hipótese.

 O primeiro deles, de acordo com Weil, fecha o círculo ao repetir o que fora apontado no início da Filosofia moral: só é possível falar de moral com quem já optou por ela[20]. Aqueles que escolhem a violência são divididos por Weil em dois tipos. No primeiro grupo estão aqueles que enxergam como sentido para a existência o desencadeamento da violência (2011 B, p. 223). Além destes, há os que consideram como única resposta para a questão da moral a saciedade do seu desejo de potência (2011 B, 223). Os primeiros abrangem os que aceitam imolar o filho por suas convicções, como é o caso de Abrão. Surdos ao apelo do universal moral, desencadeiam uma violência soberana do arbítrio (2011 B, p. 223). O segundo grupo é composto por aqueles que “recusam a discussão, o argumento, a não violência, e diante deles, o discurso e os que aderem a seu princípio acham-se reduzidos à violência e a seus meios, para defender o que, desse ponto de vista, constitui uma escolha igualmente arbitrária, a saber, o discurso coerente e a coesão social” (2011 B, p. 223).

O segundo exemplo que selecionamos marca o indivíduo imerso no tédio. O sentido é pensado como um problema moral, problema que pressiona a reflexão com tanto mais força quanto menos os indivíduos sentem na sua existência empírica os perigos exteriores e o cerco da necessidade[21] (2011 B, p. 274).

 

A liberdade, que, filosoficamente falando, é o primeiro fundamento da moral e da humanidade do homem, mostra-se então sob as espécies do vazio e do insensato, como questão que pergunta o que o homem pode e deve fazer de sua vida. Para o indivíduo libertado, mas que ainda não sabe e ainda não quer ser livre e responsável por si mesmo e diante de si mesmo, o desaparecimento da necessidade e do medo não é uma fonte de alegrias, ao contrário; ele conhecia alegrias enquanto toda saciedade era um feliz acontecimento e a espera, mantendo-o na expectativa, o distraía de si mesmo; na medida em que não tem mais preocupações, ele só conhece gozos cada vez mais enfadonhos (WEIL, 2011B, p. 274).

 

Essa situação põe o indivíduo diante do problema denominado por Weil de inventividade moral: uma “universalidade, mediatizada por uma moral histórica e pelos deveres impostos ao indivíduo empírico, deixa o homem livre para inventar, dar um sentido à existência, tornar-se criador, como se diz com uma expressão perigosa” (2011 B, p. 275, grifo nosso). Aqui, no trecho destacado, abre-se a vereda para a criação da pura violência, a violência do tédio. Isso porque, se a inventividade moral encerra a possibilidade da invenção de um mundo mais justo informado pelo critério da universalidade, ela pode se perverter “para se tornar ação de pura eficácia e, no limite, de simples violência” (WEIL, 2011 B, p. 275), ou, unindo os dois termos da citação, pura violência.

Os dois exemplos são casos-limite da violência do mal radical: não se trata do resultado de impulsos agentes ocultos à reflexão moral, mas sim negações deliberadas dessa reflexão.

 

III. Estudo de caso.

 

Há vários sentimentos de Santiago que servem à análise pelo conceito de mal radical, como episódios de inveja e luxúria (OC I, p. 1022 – 1023), todos elementos dos vícios da segunda disposição da natureza humana desviada pela terceira, conforme o mal radical kantiano. Um exemplo de vício da sociedade causado pela segunda disposição após esse desvio se dá quando Bentinho inveja a capacidade de Capitu de mentir para os pais, mantendo autocontrole em situações periclitantes, como quando é quase surpreendida ao beijar Bento (OC I, p. 946).  Apesar da variedade de sentimentos, tomemos como exemplo a ser tratado aqui, entretanto, por conta do espaço, apenas o ciúme.

Antes de prosseguirmos, vamos apenas assinalar dois elementos. O primeiro é a imaginação de Santiago, insuflada pelo seu ciúme. O segundo, os aspectos da própria consciência para os quais ele mesmo permanece inicialmente cego. No capítulo XL. Uma égua, Bentinho compara sua faculdade de imaginação, que sempre lhe acompanhara, com o mito das éguas iberas que concebiam pelo vento. A imaginação de Bentinho era feraz: ao menor vento, dava um potro, que logo se fazia cavalo (OC I, p. 948). Tal é o primeiro elemento. Passemos ao segundo. Quando Bentinho surpreende José Dias advertindo sua mãe, dona Glória, de que ele e Capitu poderiam estar de namoricos, o narrador de Dom Casmurro enfim se dá conta de sua paixão pela vizinha, o que marca uma primeira “revelação da consciência a si própria” (OC I, p. 917). Os dois elementos – da paixão que insufla os sentidos e a cegueira perante a própria consciência - são componentes da violência passional que consideramos na seção anterior. Dito isso, passemos à exposição dos ciúmes de Santiago para em seguida analisar se o mal radical é suficiente para compreender seu comportamento, respondendo assim ao trilema proposto inicialmente.

Bentinho define os próprios ciúmes como curtos, porém intensos. Estimulam uma imaginação sob o efeito da qual destrói tudo que o cerca, para pouco tempo depois buscar reconstruir (OC I, p. 1011). Essa definição nos permite situar o ciúme de Santiago como um acesso que nubla a razão momentaneamente, o que se coaduna com o mal radical weiliano. Santiago afirmava ter ciúmes do mar (OC I, p. 1010 – 1012), dos pares de Capitu nos bailes (OC I, p. 1009), dos defuntos (OC I, p. 1026 – 1027), de tudo, de qualquer um; jovem ou maduro lhe infundia desconfiança (OC I, p. 1017).

No capítulo LXV, Bentinho cita três exemplos do autocontrole estratégico de Capitu (OC I, p. 974). Citemos agora três exemplos do mal radical em sua conduta, para compor um jogo de espelhos. São três dentes de ciúme que o mordem, conforme ele define (OC I, p. 982).

O primeiro dente se dá no capítulo LXII quando Bentinho, interno no seminário, recebe de José Dias a notícia de que Capitu está alegre e provavelmente a procura de novo namorado na vizinhança. Bentinho descreve o ciúme que irrompe como cruel e até então desconhecido. Imagina tomando satisfações com Capitu e se reconhece cego e surdo pelas imagens que criara. Depois, torna a si. O capítulo se chama Uma ponta de Iago[22] (OC I, p. 971 – 972).

O segundo dente do ciúme se dá quando um cavaleiro olha para Capitu pousada na janela e Bentinho imagina que ela sustenta e retribui o olhar. Ainda que conjecture que a malícia vista no olhar seja efeito da semente plantada por José Dias (o primeiro dente), ainda assim ele se tranca no quarto, chora e imagina rasgar com as unhas a garganta de Capitu (OC I, p. 982 – 983).

O terceiro dente do ciúme é a semelhança entre os dois Escobares: o filho e o amigo de Santiago. Encontrando essa semelhança nas feições de Ezequiel, Santiago assume o desejo de assassinar, ora de um golpe, ora vagarosamente – para dividir na morte o tempo de seu engano e agonia – mãe e filho (OC I, p. 1031); pensa também em matar-se (OC I, p. 1032 – 1034) e em matar Ezequiel (OC I, p. 1035).

Os três dentes constituem um crescendo em relação ao mal radical. Observe-se que a cegueira e os acessos da violência passional aumentam de intensidade e se tornam mais complexos de um evento para o outro. No terceiro, Santiago delibera matar-se; compra veneno; envenena seu café e após rejeitar a ideia torva de tomá-lo, pensa oferecê-lo a Ezequiel; no momento final, porém, desiste. O acesso dura mais e envolve tomadas e retomadas de decisões (OC I, p. 1034 – 1035). Os dois primeiros dentes se encaixam nos aspectos do mal radical. É o terceiro que abre o caminho para uma nova forma de violência que explicará a renitência de Casmurro – não mais Bento – na sua bruta aversão a Ezequiel e Capitu. O terceiro dente do ciúme, que Santiago define como paixão, evolui para aversão por Ezequiel, seu chamado mal secreto (OC I, p. 1032). Esse sentimento, contudo, se transforma. Note-se que a violência em Weil é um Proteu, muda de forma[23]. Aqui podemos marcar a transição – ou o descobrir-se – de Bentinho para Casmurro, pois Santiago, após altercação com Capitu em que revela a descrença na paternidade de Ezequiel, afirma nascer um homem novo depois de sofrer impressões novas e fortes[24] (OC I, p. 1037). Casmurro rememora os incidentes onde não pusera malícia, como evidências de que Escobar era seu comborço (OC I, p. 1037 – 1038). Casmurro exila Capitu na Suíça com Ezequiel e finge visitá-los para seus parentes, respondendo com secura as cartas que recebe (OC I, p. 1038). Ele chora com sinceridade a morte do agregado José Dias (OC I, p. 1040), mas narra com indiferença a morte de Capitu, trajando luto perfunctório. Quando recebe a visita do filho, deixa-o esperando e só se apressa para recebê-lo quando cuida ser adequado demonstrar pressa em fazê-lo pelo bem dos ritos sociais. Assume então ares de pai, mas não consegue deixar de ser metade Casmurro nas atitudes[25] (OC I, p. 1041). Ao pagar a viagem arqueológica no decurso da qual Ezequiel sucumbe, afirma que pagaria três vezes mais se antes da partida soubesse que não tornaria a vê-lo (OC I, p. 1042). Após receber a notícia da morte do filho, diz que jantou bem e foi ao teatro (OC I, p. 1043).

No capítulo LIX Convivas de boa memória (OC I, 967 – 968), Bentinho, após avisar ao leitor que completa pela imaginação as omissões que encontra nos livros que lê, o exorta a fazer o mesmo: “Assim preencho as lacunas alheias; assim também podes preencher as minhas” (OC I, p. 968). Façamos o mesmo em relação à compreensão do comportamento de Santiago pelo mal radical.

Santiago atesta que, ao rememorar as antigas dores do ciúme, as encontra tão depuradas com o tempo que se diluíram em prazer, de modo que ele sente volúpia ao se referir a tais aborrecimentos. Essa menção está em um curto capítulo chamado Prazer das dores velhas (OC I, p. 984). Notemos que esse comentário é o do narrador, portanto, após Bento ter se tornado Casmurro por atravessar todas as impressões que listamos acima. Ele encontra prazer em rememorar essas dores enquanto é exaurido pela monotonia, ou seja, pelo tédio. As referências que o narrador faz constantemente à própria obra (OC I, p. 986 – 987, p. 1003 e p. 1018 são alguns exemplos) o colocam como ciente da perspectiva final que adquire cronologicamente em relação ao desfecho da narrativa, mas que existe a priori antes da narração dos acontecimentos. A história começa com o Bentinho ouvindo a intriga do agregado José Dias, mas o livro se inicia com o batismo do narrador Casmurro. Assim, nossa hipótese é que o Casmurro narrador é a consciência final e cabalmente desperta, enquanto Bentinho é a faceta que vai acordando paulatinamente. Em termos da violência weiliana, podemos aproximar uma violência cega e inconsciente – mal radical – de Bentinho e uma violência com consciência de si – pura na forma do tédio – de Casmurro. Esse último aspecto, da violência com consciência de si, pode ser identificado com a crença de Casmurro no adultério de Capitu, de cuja precariedade ele é consciente; essa crença é o móvel da nova atitude do memorialista – bem como de suas conseqüências[26].

A procedência de Casmurro após o assalto da impressão sobre a paternidade de Ezequiel não é um acesso de paixão que nubla a razão. Pode até começar assim, mas evolui para uma violência continuada e deliberada que envolve tanto o cálculo quanto uma brutalidade consciente de si. Tendo raiz no ciúme, entretanto, excede a violência dessa paixão ao adquirir outra forma[27]. O mal radical, portanto, explica apenas de maneira parcial, não completa, o comportamento do memorialista do romance machadiano. Em outros termos: o mal radical permite compreender Bentinho, mas não Dom Casmurro. Santiago é santo mais Iago. A violência passional weiliana permite compreender o ciúme de Bentinho, mas para a deliberada e renitente atitude de Casmurro é necessário recorrer à outra forma de violência.

 

Considerações Finais.

 

Notamos antes de passar à solução do trilema que, com base nas duas primeiras seções da pesquisa, podemos concluir que a discussão do mal radical kantiano feita por Weil no quarto ensaio dos Problemas kantianos não é uma simples exposição, mas já uma apropriação, o que se confirma pelo tratamento do problema do sentido e sua relação com a violência presentes no ensaio. Isso, contudo, não impede Weil de desenvolver seu próprio conceito de mal radical, inspirado, mas ainda assim diverso em relação ao kantiano: seu mal radical é violência passional. A violência em Weil admite uma possibilidade que para Kant segue vetada: uma deliberada ação contra a razão. Assim, justifica-se que o trilema proposto no início da pesquisa deva ser considerado à luz do mal radical propriamente weiliano.

O trilema proposto no início da nossa exposição consistia nas seguintes alternativas: a) o mal radical weiliano é adequado e suficiente para compreender o comportamento de Santiago;  b) o mal radical weiliano é adequado mas não é suficiente para compreender o comportamento de Santiago; c) o mal radical weiliano não é adequado para compreender o comportamento de Santiago. Com base na definição do mal radical dada nos caixilhos da filosofia weiliana e aplicando-a aos três dentes de ciúme, temos que o conceito explica adequadamente essa paixão de Bentinho, porém, não dá conta da evolução desse sentimento quando ele se torna uma espécie de renitência e aversão. O conceito de mal radical conforme entendido por Weil conserva elementos da inspiração kantiana: ele é motivado pela concupiscência, é o assalto de uma paixão que nubla parcialmente a razão, o que faz com que paire um móvel sobre a convicção em relação à moralidade da ação. Essa forma de violência não acomoda uma persistência deliberada no emprego do seu mal. Por se tratar de uma paixão que nubla momentaneamente a razão, envolve arrependimento.  É o sentimento que impossibilita com que o melhor dos seres humanos descortine os móveis de suas ações, não comportando a possibilidade humana irredutível – embora, para Kant, impossibilitada à sua vontade – de uma violência que se quer enquanto tal, o que demanda uma espécie de fastio da razão, a partir daí, uma conduta violenta reiterada e deliberada.

 O mal radical, portanto, é adequado, mas não é suficiente para dar conta do comportamento moral de Santiago na medida em que ele compreende Bentinho, mas é insuficiente para levar a cabo uma apreensão sob o conceito das ações de Dom Casmurro, que se espraiam ao longo do tempo na forma de violenta renitência contra a Capitu e Ezequiel. Para uma compreensão plena, pede-se outra forma de violência que contenha os elementos de brutalidade deliberada e continuada e que leve em conta também um tédio que consome o indivíduo conduzindo-o a um sentimento mesmo de prazer para com a realização da própria violência em um ato de criação. O ato de criação, para Dom Casmurro, é a sua narrativa, que lhe permite repisar – e assim fruir – os eventos de sua separação da família. Podemos encerrar aqui espelhando o final do romance do Bruxo do Cosme Velho, quando o narrador convida à redação da História dos subúrbios (OC I, p. 1043), portanto, a uma obra[28], acenando com a possibilidade de outra forma da violência que permita compreender a cria do ciúme de Dom Casmurro. Julgamos que a categoria da obra weiliana oferece o tipo de violência que pode lançar luzes para uma compreensão cabal do comportamento moral de Bento Santiago, pois essa forma do Proteus weiliano contém o elemento do tipo de mal deliberado que a passionalidade radical não admite. Como Dom Casmurro demanda outra obra para mitigar o seu tédio, consideramos que a compreensão do seu comportamento pede que o Proteus de Eric Weil se apresente em outra forma.

 

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RECEBIDO: 14/07/2022                                           RECEIVED: 14/07/2022

 

APROVADO: 06/08/2022                                         APPROVED: 06/08/2022



[1] Esse artigo é resultado da pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pesquisador Voluntário do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Agradecemos muito especialmente à leitura gentil e atenta de José Raimundo Maia Neto, cuja interlocução contribuiu generosamente para a forma final desse artigo.

[2] As referências ao texto de Machado de Assis serão dadas pela abreviação das Obras Completas, seguida do número do volume e da página, no caso aqui referido: OC I, p. 1023.

[3] O coração humano tem uma perversidade, mas não é perverso; ele tem uma malignidade, mas não é maligno, pois isso implicaria uma disposição de ânimo em admitir como princípio subjetivo das máximas o mal enquanto mal, o que significaria uma máxima puramente má, portanto, diabólica, o que, segundo Kant, é impossível (2008, p. 43).

[4] Rawls considera que essas disposições dizem respeito a um amor de si puramente mecânico, que não requer o uso da razão e sim dos instintos e hábitos adquiridos (2005, p. 334). Podemos fazer uma aproximação entre os vícios dessa disposição e o primeiro estado da violência apresentado por Caillois como o estado natural, correspondente à agressividade espontânea concernente ao indivíduo vivo que sente medo, procura destruir o outro, o ser humano enquanto presa e predador (1984, p. 214).

[5] São os vícios da gula, da luxúria e da ausência de lei na relação com outros seres humanos (KANT, 2008, p. 32).

[6] Está relacionada, segundo Rawls com as faculdades da personalidade moral animada (2005, p. 334). Rawls utiliza nessa disposição a tradução de vernünftig por racional ao invés de razoável, por considerar que a susceptibilidade para agir segundo a razão prática pura só vem na terceira disposição (2005, p. 335 – 336; grifo do autor).

[7] Esses vícios requerem a participação da razão, pois pressupõem que o indivíduo se mede e compara com os outros, ocasionando a rivalidade e a inveja. Curioso notar que esses vícios no seu mais elevado grau de malignidade, por exemplo, na ingratidão, são chamados de vícios diabólicos. Esses vícios, contudo, permanecem sinal de malignidade, não de uma vontade puramente má, sendo apenas a ideia de um máximo mal que ultrapassa a humanidade (KANT, 2008, p. 33; grifo nosso). Rawls considera que esses vícios são o resultado inevitável do ambiente social produzido pelo amor-próprio, o que marca a influência de Rousseau (2005, p. 334). Esses vícios corresponderiam ao segundo estado da violência proposto por Caillois, aquele que pressupõe a moral, que contempla uma individualidade margeada pelas especificidades de cada época (1984, p. 214).

[8] Weil não menciona isso no seu tratamento do mal radical kantiano, mas o que torna essa disposição a responsável pelo mal é que, de acordo com Kant, como ela está relacionada com a personalidade como ser racional, ela torna o indivíduo imputável por suas ações, por ser a disposição para a susceptibilidade da referência pela lei moral como móvel por si só suficiente para o arbítrio (2008, p. 33 – 34). Rawls considera que é aqui que o indivíduo passa a ser visto não apenas como ser racional, mas razoável, capaz de entender e aplicar por meio do imperativo categórico uma ideia da razão prática pura (2005, p. 334 – 335).

[9] Conferir KANT, 2008, p. 37 – 38 e 49 – 50.

[10] Kant estabelece uma distinção entre ato inteligível que precede toda experiência e cuja raiz não pode ser descoberta e o ato sensível (2008, p. 45, nota 12).

[11] Kant rechaça a explicação do mal como herança, dada por enfermidade hereditária, por culpa hereditária ou por pecado original, cada uma das quais relacionada com uma escola superior (respectivamente: medicina, direito e teologia) que procura compreender a origem do mal (2008, p. 46, nota 13).

[12] A interpretação de Rawls do mal radical kantiano também segue essa linha. Conferir Rawls, 2005, p. 335 – 336.

[13] Essa violência da natureza exterior encontra seu sentido quando é interrogada, pois, em si mesma, essa violência é cega e não o possui (WEIL, 1970, p. 363 – 364).

[14] É essa dupla concepção de natureza apresentada por Weil que permite compreender por que o mal radical não corresponde simplesmente ao primeiro estado da violência proposto por Caillois; é uma natureza que o preenche, como a do animal que sente medo ao ser acossado pela natureza que o ameaça de fora, mas é violência que deve receber as leis universais da razão, portanto, pede a moral.

[15] Razão e violência são possibilidades humanas radicadas na liberdade, a violência sendo, é importante destacar, a possibilidade que se realiza primeiro, posteriormente sucedida pela razão, o que indica que a opção pela razão é livre, só podendo se justificar após a escolha. Enquanto ser natural, o ser humano nasce violento e seu percurso de retorno à violência pode sempre ser repisado. O retorno à violência do ser natural, essa animalidade inextirpável no ser humano, é da ordem das paixões, portanto, do mal radical. Ela não marca uma rejeição da razão com conhecimento de causa (PERINE, 1987, p. 174).

[16] Além dos estados da violência natural e passional, Caillois também fala de uma violência pura, do tédio e total, cometida com conhecimento de causa (1984, p. 214). Kirscher também oferece uma tipologia da violência em Weil. A primeira das formas é a violência exterior enfrentada pela comunidade. A segunda forma corresponde à perda do sagrado da comunidade pelo indivíduo. A terceira é a perda do sagrado da comunidade para a sociedade do trabalho que põe o indivíduo diante do tédio (1992, p. 126 – 131). Em Costeski há uma terceira tipologia da violência que acompanha o desenvolvimento das categorias weilianas na Lógica. As categorias antigas são incapazes de reconhecer a autonomia do outro da razão: a violência. Na categoria Deus a violência é o que está fora da doutrina divina. A violência sofre um processo de secularização nas categorias seguintes até se configurar como sentimento particular no Absoluto. Com a obra e o finito a violência é revolta, até ser compreendida pela ação. Finalmente, apenas com sentido e sabedoria a compreensão filosófica da violência atinge o pináculo (2009, p. 26 – 29). A menção a Hegel feita por Weil na sua análise do mal radical se justifica, portanto, pois o sentimento particular é compreendido como violência. Esse sentimento, no quadro em que Weil o insere, corresponde ao mal radical.

[17] Conferir a esse respeito também as análises de Perine, 2004, p. 46. Perine assinala que a herança kantiana de Weil mantém a consciência de que o ser humano é indivíduo, ou seja, ele não é essencialmente razão por albergar em si de maneira inextirpável a animalidade e a paixão, o que equivale a dizer que o ser humano é razoável (1987, p. 174).

[18] Para Weil a violência pode negar o discurso, o pensamento e a possibilidade da vida em comum (1970, p. 364). Esse é um traço da violência pura, o terceiro estado da violência apontado por Caillois, a violência pela violência opondo-se à existência em comum dos seres humanos (PERINE, 1987, p. 171). Apesar do aspecto eminentemente deletério para a vida em comum da violência pura, Canivez assinala que a violência da animalidade passional também pode ser um impeditivo para a vida em comum. É a partir daí que age a educação pela instrução, como um adestramento dessas paixões para o agir em conformidade com as regras da vida em comum (1999, p. 139).

[19] Weil utiliza a imagem de Proteus para definir a violência, que apresenta várias formas (2003, p. 9). Proteus era uma divindade marinha dotada tanto do poder da profecia quanto da metamorfose (VERNANT, 2000, p. 206). Segundo o mito, era filho de Oceano com sua irmã Tétis – filha por sua vez do Céu e da Terra -, tendo como irmãos os rios e como irmãs as ninfas e as fontes (COMMELIN, 2000, p. 110). Podemos já notar aqui que o aspecto instável da realidade em Dom Casmurro também é representado pelos “olhos de ressaca” de Capitu (MAIA NETO, 2007 B, p. 219 - 220), uma alusão ao mesmo poder de atração que a jovem compartilhava com as marés (OC I, p. 938 – 940).

[20] Curioso que Santiago também faz menção a esse encerramento de um círculo em sua narrativa, ou em unir as duas pontas da vida (OC I, p. 907).

[21] A necessidade Santiago de escrever o encaixa como figura desse segundo exemplo, pois o que o motiva é uma monotonia que acaba por exauri-lo (OC I, p. 907).

[22] Helen Caldwell considera que Machado introduziu o conflito entre Otelo e Iago em um único homem: Bento Sant-iago (2008, p. 155; grifo nosso).

[23] Segundo uma variante do seu mito, Proteus é filho do próprio Netuno, sendo o guardião dos seus rebanhos – peixes grandes e focas – e recebendo como recompensa pelos seus trabalhos o conhecimento do passado, do presente e do futuro. Proteus também se mostrava arredio a todos que desejassem consultá-lo e assim se beneficiar dos seus dons; sua recusa aos que vinham abordá-lo se dava assumindo toda espécie de formas, o que incluía a metamorfose em água (COMMELIN, 2000, p. 115 – 116). Maia Neto observa que Dom Casmurro utiliza como metáfora para descrever Capitu a metáfora do mar em movimento, tradicional metáfora cética que remonta à doutrina dos mares de Heráclito, presente também em céticos modernos como François de La Mothe Le Veyer (2016, p. 287). “Dom Casmurro intensifica esta imagem já que o mundo – representado por Capitu – parece para Bento não apenas como um mar em movimento, mas como um mar de ressaca” (MAIA NETO, 2016, p. 287).

[24] Weil aponta que as várias mutações a que a violência se presta se dão ao longo do tempo (2003, p. 9). Podemos considerar que essa passagem de tempo também diz respeito ao indivíduo, de modo que ao longo da vida, podem ser várias as formas de violência que acometem uma pessoa, o que pede o recurso a mais de um dos aspectos do Proteus para compreender o cambiante comportamento humano. Curioso observar que se Capitu pode exemplificar o aspecto cambiante da realidade, o casamento podendo ser lido como o epicentro dessa instabilidade (MAIA NETO, 2007 A, p. 40 – 41 e 46, 2007 B, p. 219 e 2021, p. 110 - 111), podemos localizar esse mesmo elemento – aspecto cambiante – na conduta de Santiago, em sua transição de Bento para Casmurro, bem como, em termos weilianos, na forma de violência que utilizamos para compreender o comportamento do memorialista. No capítulo em que tem um sonho com o bilhete de loteria, Bentinho relata o número 4004 (OC I, p. 972 – 973). Segundo Caldwell, esse número pode conter significados múltiplos, assim como algumas palavras na obra de Machado (2008, p. 142). Entre esses significados, o número pode representar a dualidade Bento/Casmurro (CALDWELL, 2008, p. 143). Para nosso propósito, o espelhamento dos números 4004 funciona como uma representação do duplo weiliano razão e violência, bem como da ironia machadiana. O narrador fala de fazer no Engenho Novo uma casa semelhante a de Matavalos para atar as duas pontas de sua vida e encerra a narrativa com a famosa interrogação se a Capitu da infância já continha a adulta, como a casca contém a fruta (OC I, p. 1043). Porém, a interrogação pode ser espelhada para o próprio narrador: a polpa que seria Casmurro já estava sob a casca de Bentinho? A transição, em termos weilianos, pode ser assinalada pela forma de violência que compreende o comportamento de cada uma das facetas desse duplo: de Bento a Casmurro.

[25] Maia Neto aponta que as memórias de Bento Santiago podem ser divididas em dois períodos. O primeiro é o período heróico da conquista da vitória sobre a promessa da mãe, que vai do capítulo XII Na varanda, até o capítulo CI, No céu. O segundo período vai do capítulo CII, De casada, até o capítulo o capítulo CXL, Volta da igreja. O primeiro período marca a fase da sua vida comparada ao céu e a segunda ao inferno (2021, p. 110). É notável que o tema céu e inferno e outra dualidade que permeia o romance, como demonstra a teoria da vida como uma ópera do tenor Marcolini, a poesia vinda de Deus e a música de Satanás (OC I, p. 913 – 915), bem como os elementos religiosos nos capítulos LIV O panegírico de Santa, CXLII Uma santa e o título do capítulo XCII O diabo não é tão feio como se pinta. Caldwell aponta que há um conflito entre Bento e Casmurro localizado em Santiago; há um fratricídio quando Casmurro assassina Bentinho por meio dos desejos de ciúme (2008, p. 151 – 153). Curioso que se Otelo mata Desdêmona na peça do Bardo, no romance do Bruxo o Iago assassina o Bento. Notemos também que John Gledson também define a personagem Bentinho/Bento/Casmurro como um monstro de três cabeças (2006, p. 335). Os monstros policéfalos e o mar são elementos constitutivos dos mitos relacionados com Oceano e Poseidon/Netuno. Tomemos o exemplo de Gerião, filho de uma filha de Oceano, Calírroe, e de um filho de Poseidon com a Medusa, Crisaor, nascido do pescoço decapitado da górgone. Gerião era dotado de três cabeças e três corpos unidos pela cintura, sendo alvo de um dos trabalhos de Hércules, a quem é pedido que lhe roube os rebanhos. O responsável pelos bois vermelhos de Gerião era Eurítion, dono do cão Ortos, este dotado de duas cabeças. Ora, Ortos também era filho de Calírroe e Crisaor e irmão de outras bestas policéfalas, como Cérbero, a Quimera, a Hidra de Lerna e Ladon, a serpente de cem cabeças e muitas vozes diferentes. Observe-se também que o reino de Gerião ficava situado na ilha de Erítia, circundada pelo próprio Oceano (Conferir MARCH, 2015, p. 205 – 206, 209 e COMMELIN, 2000, p. 291).

[26] A consciência da precariedade da própria crença no adultério presente em Casmurro é de tipo fideísta, o que marca a presença dos elementos céticos na obra machadiana. A afirmação fideísta de Casmurro é cética quanto a forma, não quanto ao conteúdo. O conteúdo são as suas paixões. É essa forma que conserva o sentido do termo fideísta (MAIA NETO, 2007 B, p. 220 - 221). “O termo busca indicar que se trata de uma afirmação consciente de sua falta de base epistêmica, não no momento em que Bento formou este juízo, mas no momento em que o reitera quando, já Casmurro, escreve as memórias. Bentinho forma o juízo como nós todos o formamos: não por razões filosóficas e bem pensadas, mas por circunstâncias fortuitas, pelo peso das paixões, crenças prévias igualmente gratuitas e outros fatores não epistêmicos” (MAIA NETO, 2007 B, p. 220). Para os propósitos da nossa hipótese de leitura, essas paixões enquanto os ciúmes de Bentinho começam como mal radical para desembocar em outra forma de violência com a persona de Dom Casmurro. Notemos também que a gratuidade das paixões de Bentinho o colocam no campo do mal radical, caso recordemos que o conceito é uma insegurança: sob a ação de diferentes elementos que são fortuitos, o indivíduo não teria certeza da moralidade de seu agir. A persona de Casmurro muda esse quadro, pois ela representa um comportamento por convicção voluntária, o que se coaduna com o aspecto formal do fideísmo visto em relação ao adultério suposto. Finalmente, observamos que Casmurro manifesta a impossibilidade de viver sem crenças, mantendo de maneira irreversível aquela que o motivou por longo tempo, de maneira semelhante a que Montaigne mantém sua crença católica (MAIA NETO, 2007 B, p. 220 – 221). Isso é importante pois no capítulo LXVIII Adiemos a virtude, Santiago cita Montaigne e seu propósito de escrever revelando não seus gestos, mas o que subjaz a eles, ou seja, sua essência. Santiago afirma fazer o mesmo, havendo apenas uma forma de escrever a própria essência, contando-a em sua totalidade, o bem e o mal (OC I, p. 978). Entre as várias influências filosóficas na obra machadiana, além de Spinoza e Schopenhauer, aparecem Pascal, La Rochefoucauld e Montaigne (JACKSON, 2009, p. 61 – 69). Uma edição em língua francesa dos Essais constava na biblioteca machadiana ocupando o número 500 no levantamento de Jean-Michel Massa. Todos os demais filósofos anteriormente citados também figuram na biblioteca de Machado, de acordo com o levantamento de Massa (2008, p. 35 -76).

[27]Gledson chama atenção para o fato de que a suspeita de que Ezequiel é filho de Escobar advém exatamente nove meses após a morte deste, numa referência embaralhada pela ordem dos capítulos, portanto a suspeita sendo filha do ciúme de Santiago (2006, p. 339). Essa informação do crítico pode ser traduzida na linguagem filosófica da qual nos servimos aqui: o mal radical – ciúme – gera como prole outra forma de violência, diferente daquela que lhe dá o nascimento.

[28] A categoria da obra descreve as possibilidades da violência pura, aquela que é conhecida deliberadamente, com conhecimento de causa. Entre as possibilidades, está uma violência que demanda a figura de um líder, como a perpetrada por Hitler, forma mais extrema, e aquela de indivíduos isolados ou pequenos grupos que agem motivados pelo sentimento de tédio (Conferir a esse respeito WEIL, 2012 B, p. 487 – 501, CAILLOIS, 1984, p. 214 - 216). O tédio diferencia mal radical da violência pura. Sichirollo menciona o tédio que pode aparecer no contexto do mal radical, quando as necessidades humanas estão satisfeitas pela criação das condições para uma vida sensata, o que pode causar uma revolta do indivíduo no uso da sua liberdade (1984, p. 263). Porém, essa revolta aqui pode ser aplicada aos desvios da segunda predisposição que geram os vícios da sociedade. Isso porque a possibilidade descrita na categoria da obra, recusa consciente da razão, é considerada inimaginável por Kant (AMODIO, 1984, p. 230). O mal radical, assim, enseja a aparição de uma forma de violência que desafia a filosofia: uma violência pura que é um fundo oposto ao discurso, um fato da desração (CAILLOIS, 1984, p. 222; grifo do autor). O próprio Weil menciona uma forma de violência que é uma brutalidade “pura” e que destrói a vida em comum por meio de atos e palavras. Essa violência pode ameaçar o devir da comunidade humana pela compenetração da sua parcela natural – seus sentimentos – e sua liberdade, negando o devir dessa comunidade, mas sem a destruir realmente, apenas considerando-a nula e vazia (1970, p. 366; grifo do autor).  Weil utiliza aspas para grafar o adjetivo pura ao nomear essa violência. Nossa hipótese é que essa violência é uma forma da violência pura que não visa destruir a comunidade humana para recriá-la como obra – no caso exemplificado por Hitler – sendo uma ameaça à vida em comum pelo uso da liberdade que recusa o universal em nome da pura realização de uma brutalidade, ou seja, da possibilidade que Kant julgava inimaginável.