O Heráclito de Erixímaco no Banquete 186e4-187c4: uma medicina heraclitiana

The Heraclitus of Eryximachus at the Symposium 186e4-187c4: a Heraclitean medicine

Rogério G. de Campos

Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

E-mail: rogedecampos@gmail.com

 

Resumo

O médico Erixímaco, representado por Platão no Banquete, faz uma menção à filosofia de Heráclito, destacando uma hipótese do que Heráclito talvez desejasse dizer quando opõe concordância e discordância. O emaranhado de problemas que dessa citação emergem não se presta a respostas definitivas, entretanto aqui aproximaremos alguns elementos colhidos no tratado hipocrático Da dieta (De victu) 4-6 e do pseudo-hipocrático Do nutriente (De alimento) que sugerem uma linha interpretativa plausível para essa menção sobre Heráclito e esse heraclitismo aplicado à medicina.

Palavras-chave: Erixímaco, Hipócrates, Banquete, Da dieta e Do nutriente.

Abstract

The physician Eryximachus, represented by Plato in the Symposium, mentions the philosophy of Heraclitus, highlighting a hypothesis of what Heraclitus meant when he opposes agreement and disagreement. The tangle of problems that emerge from this quote does not lend itself to definitive answers, however, here we will approach some elements collected in the Hippocratic treatise On Regime (De victu) 4-6, and in the pseudo-Hippocratic treatise De alimento that suggest a plausible interpretative line for this mention of Heraclitus and this Heraclitism applied to medicine.

Keywords: Eryximachus, Hippocrates, Symposium, De victu and De alimento.

 

Introdução

 

Ao realizar recenseamento acerca do discurso de Erixímaco no Banquete, Ivana Costa (2016, pp. 148-154) evidencia a mudança de paradigmas em torno da interpretação desse trecho, começando dos intérpretes que o consideraram durante muito tempo um discurso sem importância, algumas vezes um discurso pedante, em direção aos intérpretes mais recentes, a partir de Edelstein (1945), que passaram a observar e estudar a especificidade e a relevância do discurso de Erixímaco.[1] Segundo Costa, ele não seria exatamente um elogio ao amor, mas à medicina, motivo pelo qual para entendê-lo a autora realiza correspondências com outros trechos da obra de Platão, com alguns fragmentos de Alcméon de Crotona e de Heráclito de Éfeso, destacando elementos outros da filosofia pré-socrática, além de elementos da medicina de Hipócrates. Deixando de lado as possíveis categorizações que o discurso de Erixímaco possa receber, concordamos com Costa (2016, p.148) quando diz que o discurso de Erixímaco ainda necessita de estudo, motivo pelo qual destacaremos aqui um tema pontual dentro desse escopo. Trataremos aqui apenas da passagem em que Erixímaco interpreta a filosofia de Heráclito (Smp. 186e4-187c4) com o objetivo de compreender o que seria essa medicina heraclitiana a que Erixímaco se refere na apresentação geral da sua medicina cósmica. Para tanto, consideraremos um trecho do tratado hipocrático Da dieta (De victu) 4-6, pois ele nos parece relevante ao ilustrar elementos de uma similar medicina cósmica, bem como o tratado helenístico pseudo-hipocrático Do nutriente (De alimento), lugar em que uma enunciação heraclitiana se revela na explicação do processo da assimilação dos nutrientes. Esses dois textos serão nossos guias rumo à filosofia heraclitiana que Erixímaco parece referir no Banquete 186e4-187c4, pois ambos revelam indícios conceituais e lexicais de uma medicina identificada como uma determinada maneira de entender Heráclito.[2]

Há uma necessidade filosófica nessa aproximação com a documentação hipocrática, visto que Platão nunca esteve distante da medicina, um dos grandes parâmetros epistêmicos de uma arte acabada em seu tempo. Filosofia e medicina jamais estiveram compartimentadas ou isoladas, de modo que, como afirma Bartos (2015, pp. 9-10), é necessário um trabalho de reaproximação entre os textos da tradição médica e os da tradição filosófica. Nosso exercício tem esse sentido, de realizar estudo comparativo entre textos e campos semânticos afins, ainda que tenham sido submetidos a um relativo distanciamento historiográfico.

Platão nesse trecho parece ter embate explícito com a tradição médica da qual ele em grande medida faz parte, tentando assimilar a filosofia dos contrários e qualificá-la para uma aplicação mais específica e eficaz. Ao lado da medicina, outro paradigma importantíssimo de que Platão se vale é o da astronomia, disciplina que, segundo Simplício, ele teria sido um entusiasta e propositor de soluções, tal como a prescrição para que os matemáticos salvassem os fenômenos (sôizein tà phainómena, Simp. in Cael.7.492) frente ao problema da retrogradação planetária. Eudoxo, seu sobrinho, teria sido o primeiro a propor uma resposta a esse problema através do modelo das esferas homocêntricas com epiciclos, seguido de Calipo e de Aristóteles (Simp. in Cael.7.492-93).

Embora a ligação entre a astronomia e a medicina sejam ancestrais, nesse caso parece que uma das principais questões de Erixímaco estaria na dicotomia natural que se manifesta por meio de dois Eros. Sua medicina cósmica segue atrelada a essa divisão, assim como a física de Platão toda, determinada pela divisão cósmica entre as esferas entrelaçadas do mesmo e do outro, tal qual se vê no Timeu (Tim. 36c).[3] Como podemos observar, a dicotomia não seria exatamente o grande problema de Platão, mas sim a participação entre o imaterial e o material, ou seja, a intersecção dessas esferas que no caso do Timeu ocorre através do demiurgo. Só assim se pode explicar de modo coerente como acontecem as mesclas entre a matéria e as formas, por isso Eros também é tão importante na topografia do Banquete, por ter essa capacidade de mescla, uma imagem arquetípica da fusão entre elementos ou forças díspares (Smp. 178b).   

Enquanto a astronomia tem esse papel de vanguarda especulativa e de ciência ao mesmo tempo teórica e aplicada, a medicina, por outro lado, parece ser um paradigma mais assentado com o qual e contra o qual Platão trabalha no caso de Erixímaco. A filosofia médica que aplicava os contrários como conceitos fundamentais, apesar de magnífica invenção, quando transposta para o campo da dialética promovia situações paradoxais, embaraçosas e insolúveis. Platão parece estar em busca de uma epistemologia que possa ser mais abrangente e complexa, capaz de avançar em campos ainda desconhecidos.

Platão estaria expondo o avesso do bordado nesse trecho em que Erixímaco interpreta Heráclito, ou seja, evidenciando o quanto a filosofia dos contrários, esse modo específico de entender as coisas, proporcionava uma gama de imprecisões que deveriam ser superadas por uma dialética mais bem adaptada às questões naturais. Sua tarefa teria sido, então, a de propor um desenvolvimento acerca do que e de como esses saberes se constituíram historicamente, apontando e sugerindo, a partir deles, uma nova etapa dessa ciência aplicada.

 

1 A hipótese de Erixímaco: uma medicina heraclitiana.

 

A interpretação de Erixímaco se alicerça no que Heráclito “talvez desejasse dizer” (ἴσως τόδε ἐβούλετο λέγειν), mas não naquilo que efetivamente disse, o que mostra que a filosofia de Heráclito, para ser aplicada à medicina, sofre necessariamente uma modificação ou adaptação, contexto em que Platão dá voz ao médico Erixímaco como intérprete desses saberes. Esse heraclitismo adaptado apresenta contrários que não mais se relacionam concomitantemente, como se lê em muitas das citações remanescentes de Heráclito, em que a tensão entre contrários é uma imagem vigorosa, mas agora, por outro lado, os contrários aparecem se alternando, conformando ciclos de oscilações periódicas. Tais oscilações também aparecem em Heráclito, evidentemente, uma vez que para ele o cosmo é um fogo sempre vivo “acendendo em medidas, apagando em medidas” (DK 22B30 = LM D 86)[4], mas nesse contexto médico parece que essas oscilações passam a ser ainda mais importantes.

A interpretação de que os contrários se alternam periodicamente, embora também pareça familiar ao conjunto de fragmentos conhecidos de Heráclito, talvez esteja próxima da imagem do primeiro fragmento de Anaximandro, lugar em que se descreve a existência de ciclos alternados de geração e destruição do cosmo “segundo a ordem do tempo” (DK 12B fr.1 = LM D 6). Em que pese tais recepções, as quais atravessam caminhos textuais muitas vezes tortuosos, como explica Mansfeld (2009), o fato é que Erixímaco atribui a Heráclito tal filosofia, que observa os contrários com foco nas oscilações periódicas, especialmente nas suas manifestações extremas. Esse heraclitismo das oscilações periódicas nos aparece como menos enfático com relação à tensão entre opostos concomitantes e mais atento à observação, catalogação e compreensão dos ciclos em seus diferentes momentos, especialmente manifestos em suas formas mais extremas. Vejamos como no Banquete Erixímaco descreve a suposta filosofia de Heráclito:

 

Tal como digo, toda a medicina é governada por esse deus (i.e. Eros), assim como a ginástica e a agricultura. A música, por pouco que lhe preste atenção o intelecto, é da mesma maneira, como Heráclito talvez desejasse dizer, mas que em suas palavras mesmas não foram belas, ao afirmar que o um “em sua própria discordância, consigo mesmo concorda”, “como harmonia de arco e lira”. É muita falta de razão dizer que harmonia discorda ou provém da discordância. Mas talvez ele desejasse dizer isso: que de uma discordância anterior (próteron) entre o agudo e o grave, posteriormente (hústeron) surgiria uma concordância pela arte da música. Pois sem dúvida a harmonia não seria proveniente da discordância do grave e do agudo. Harmonia é sinfonia, e sinfonia é concórdia de algo – impossível a concórdia ser proveniente da discordância, enquanto há discordância. O que discorda e não concorda é impossível de harmonizar – assim como o ritmo provém do rápido e do lento, provém da diferença anterior (próteron), tornando-se concordante posteriormente (hústeron). Em todos esses casos é a música, assim como na medicina, que estabelece concórdia, produzindo amor (érôta) e concórdia [daqueles] entre si. (Banquete 186e4-187c4) [5]

τε οὖν ἰατρική, ὥσπερ λέγω, πᾶσα διὰ τοῦ θεοῦ τούτου κυβερνᾶται, ὡσαύτως δὲ καὶ γυμναστικὴ καὶ γεωργία· μουσικὴ δὲ καὶ παντὶ κατάδηλος τῷ καὶ σμικρὸν προσέχοντι τὸν νοῦν ὅτι κατὰ ταὐτὰ ἔχει τούτοις, ὥσπερ ἴσως καὶ Ἡράκλειτος βούλεται λέγειν, ἐπεὶ τοῖς γε ῥήμασιν οὐ καλῶς λέγει. τὸ ἓν γάρ φησι διαφερόμενον αὐτὸ αὑτῷ συμφέρεσθαι,” “ὥσπερ ἁρμονίαν τόξου τε καὶ λύρας.” ἔστι δὲ πολλὴ ἀλογία ἁρμονίαν φάναι διαφέρεσθαι ἐκ διαφερομένων ἔτι εἶναι. ἀλλὰ ἴσως τόδε ἐβούλετο λέγειν, ὅτι ἐκ διαφερομένων πρότερον τοῦ ὀξέος καὶ βαρέος, ἔπειτα ὕστερον ὁμολογησάντων γέγονεν ὑπὸ τῆς μουσικῆς τέχνης. οὐ γὰρ δήπου ἐκ διαφερομένων γε ἔτι τοῦ ὀξέος καὶ βαρέος ἁρμονία ἂν εἴη· γὰρ ἁρμονία συμφωνία ἐστίν, συμφωνία δὲ ὁμολογία τιςὁμολογίαν δὲ ἐκ διαφερομένων, ἕως ἂν διαφέρωνται, ἀδύνατον εἶναι· διαφερόμενον δὲ αὖ καὶ μὴ ὁμολογοῦν ἀδύνατον ἁρμόσαιὥσπερ γε καὶ ῥυθμὸς ἐκ τοῦ ταχέος καὶ βραδέος, ἐκ διενηνεγμένων πρότερον, ὕστερον δὲ ὁμολογησάντων γέγονε. τὴν δὲ ὁμολογίαν πᾶσι τούτοις, ὥσπερ ἐκεῖ ἰατρική, ἐνταῦθα μουσικὴ ἐντίθησιν, ἔρωτα καὶ ὁμόνοιαν ἀλλήλων ἐμποιήσασα·

 

Evidentemente, não há apenas uma imagem da medicina nos diálogos de Platão, técnica que compõe um quadro complexo e que é um grande paradigma com o qual Platão debate e de onde colhe explicitamente a lógica, os elementos e a estrutura da sua própria dialética. Vemos aspectos dessas medicinas com alguma nitidez no Fedro (Phdr. 269b; 276e), além de algumas concepções políticas ligadas à medicina na República (R. 531e-535b; 539a-d). Esse dado importa na economia geral dessa análise, no sentido de reconhecer que a palavra de Erixímaco representa uma dessas maneiras de pensar que advém literalmente da medicina interpretada por Platão.

A intervenção de Erixímaco no Banquete é uma das imagens ligadas à medicina, mas o que nos ocupa nela é o sentido específico da menção à filosofia heraclitiana, não apenas porque foi um tema pouco estudado, mas sobretudo porque ainda não está claro a que medicina afinal se refere Erixímaco, nem em que medida se pode aproximá-la à filosofia de Heráclito.[6] Nossa interpretação retém os tratados Da dieta (De victu) 4-6 e o pseudo-hipocrático Do nutriente em torno da medicina heraclitiana interpretada por Erixímaco, realizando algumas aproximações conceituais em função da passagem platônica.

A ligação entre Heráclito e esses textos não é exatamente nova. Diels (1903 reimp. 1989) já havia atentado para esse aspecto quando em sua famosa compilação acerca dos pré-socráticos criou uma seção posterior à seção B dos fragmentos de Heráclito, a seção C, lugar em que inseriu aquilo que entendeu por “imitação” (DK 22C 1-2). Nessa seção, Diels reproduz um trecho Da dieta (De victu 5-24)[7] e alguns dos aforismos extraídos d’O nutriente (De alimento),[8] ambas as obras segundo sua visão seriam portadoras em algum aspecto, ainda que por mimese, da filosofia de Heráclito (DK 22C, 1-2 = De victu 5-24, De alimento IX 98 ff. Littré). Apesar da proximidade identificada por Diels, a imagem ou os contornos de uma medicina heraclitiana permanecem vagas, especialmente porque os fragmentos remanescentes de Heráclito nos mostram perspectivas negativas acerca da medicina aplicada, sendo Heráclito mesmo avesso às práticas médicas de seu tempo (DK 22B 58, 111 = LM D 57, 56).

A imagem da medicina heraclitiana depende evidentemente desses textos já apontados por Diels, mas não apenas deles, pois outras partes desses textos serão importantes nessa nossa leitura. Alguns parâmetros estruturais e alusões à filosofia de Heráclito ainda devem ser esclarecidos através de trechos adicionais dessas mesmas obras apontadas por Diels. O conjunto de aforismos que compõe o Do nutriente (De alimento) apresenta indicações e proposições médicas que consideraremos fundamentais nesse estudo. As matrizes do hipocratismo e do heraclitismo se mesclam nesse conjunto de aforismos gerando uma espécie de ressonância. Acreditamos que o conjunto de aforismos que incluiremos nesse estudo possa ilustrar com maior nitidez o que Erixímaco talvez quisesse dizer a respeito daquela “medicina heraclitiana”.

Procuraremos evidenciar a ressonância existente entre (i) a interpretação de Erixímaco, (ii) o trecho de Da dieta 4-6 e (iii) alguns outros aforismos Do nutriente (Do alimento), mais especificamente os aforismos 3, 4, 5, 6, 7, 18 e 48, além dos apontados por Diels, circunscrevendo o que seria essa “medicina heraclitiana” ou esse modo de entender Heráclito junto à prática médica. Veremos em que medida a hipótese de Erixímaco a respeito de Heráclito corresponde a uma medicina presente no tratado hipocrático Da dieta (De victu 4-6) e a algumas outras enunciações específicas do pseudo-hipocrático Do nutriente (De alimento).

 

2 Medicina heraclitiana em Da dieta 4-6

 

Hipócrates no seu Da dieta (De victu = Vict.)[9] usa um modo de exposição que remete à filosofia de Heráclito, embora isso seja bastante específico e nada sistemático. Em Da dieta 4 encontramos a manifestação enunciativa de uma espécie de teoria dos contrários (enantíos) que poderia ser relacionada a Heráclito. Hipócrates explica que embora o fogo seja quente e seco, a água fria e úmida, existe ainda assim uma umidade no seco e vice-versa (Vict. 5). Os contrários, nessa perspectiva médica, são interpenetráveis e coabitam os mesmos seres, tal como a tradicional unidade entre contrários que conhecemos em Heráclito.

O médico, por seu turno, deve ter atenção a essa natureza, bem como à oscilação e mudanças eventuais nos equilíbrios. Essa existência mútua entre contrários acomoda também a imagem do trajeto da luz para o Hades, indicando perecimento, assim como o trajeto contrário, do Hades para luz, indica surgimento. Hipócrates realmente apresenta uma formulação muito próxima às famosas formulações heraclitianas quando, por exemplo, diz: “Luz para Zeus, sombra para Hades, luz para Hades, sombra para Zeus” (Φάος Ζηνὶ, σκότος Ἅιδῃ, φάος Ἅιδῃ, σκότος Ζηνὶ, Vict. 5).[10] Entretanto, antes de acatar imediatamente essa evidente proximidade, é preciso ponderar que também Parmênides, em seu proêmio, relata um trajeto da noite para a luz que funciona como metáfora do processo de conhecimento (DK 18B1 = LM D 4), não sendo essa, portanto, uma imagem exclusiva relacionada a Heráclito, embora a forma enunciativa o seja.

Aumento e diminuição são também conceitos importantes aplicados aos corpos e em destaque no trecho de Hipócrates, pois todo o fluxo corpóreo depende da observação dessas transformações constantes da natureza que, todavia, mantém sua unidade. Ele retoma essa dicotomia entre aumento e diminuição mantendo sempre o par de opostos em destaque. A atenção à transformação dos corpos faz com que parâmetros como aumento e diminuição relativas configurem ferramentas conceituais para diagnósticos (Vict. 4). Os contrários são princípios aplicados à observação medicinal dos corpos em transformação, assim como serão também, em um largo passo à frente, as similitudes (Vict. 27).

O termo destruição é descrito como oscilação mútua entre opostos no cosmo, não havendo resíduos dessa transmutação, em imagem que realmente faz pensar na medicina cósmica de Erixímaco, quando expõe dois Eros e seus efeitos contrários, os quais pelas estações do ano manifestam harmonia entre quente e frio, seco e úmido, ou manifestam hýbris e causam ampla destruição e injustiça (Smp. 188a). Em Hipócrates também o fogo e a água são elementos primordiais, sendo que um consome o outro e vice-versa, embora haja uma oscilação de forças e fluxos pelos quais fica claro que eles mantêm sua unidade substancial. Para Hipócrates, o fogo é quente e seco, enquanto a água é fria e úmida (Vict. 3-4). O tema da destruição indica que nem aumento nem diminuição verdadeiras existem, pois seriam elas apenas fenomênicas, noção que sugere um cosmo fechado e único (Vict. 4). A unidade substancial seria o fundamento das concepções posteriores, uma medicina cósmica, tal qual a de Erixímaco, que procura considerar o todo e as partes, além de mediar o macro com o microcósmico dentro de uma terapêutica e de uma dietética.[11]

O parágrafo quinto da obra de Hipócrates traz em seu início o que talvez seja a versão mais antiga da via (ou caminho) de Heráclito, mesmo sem mencioná-lo explicitamente, quando descreve as coisas divinas e humanas, as quais todas, literalmente, confluem e “são transformadas de cima a baixo” (ἄνω καὶ κάτω ἀμειβόμενα, Vict. 5).[12] Dia e noite encabeçam contrários, como água e fogo, e o sol e a lua, referidos em suas diferentes velocidades, enquanto o campo dos astros e seus movimentos propriamente ditos entram em cena depois dessa indicação enfática do jogo cósmico dos contrários. Hipócrates caracteriza brevemente nesse passo o conhecimento astrológico (ou astronômico) como importante sem, todavia, se aprofundar nesse campo (Vict. 5). De modo análogo, Erixímaco diz que tal conhecimento astronômico está na base da percepção das manifestações contrárias daqueles dois Eros distintos, indicando a superioridade daquele que traz a harmonia, pela proteção e cura (Smp. 188c). Aqui poderíamos observar uma espécie de contrassenso em Erixímaco, pelo juízo moral que faz enaltecendo um Eros apenas, quando na verdade seria esperado que ambos fossem manifestações naturais equivalentes, ainda que por vezes seus efeitos fossem nocivos, pois estariam ligados aos ciclos naturais, não podendo exatamente serem detratados nesses termos por um médico. Essa visão revelaria uma espécie de incompreensão fundamental acerca daquilo que ele mesmo deveria ser mestre. Nesse caso, Erixímaco em vez de expor uma medicina cósmica cuja unidade seria mais plausível do que os dois Eros distintos, como já havia feito anteriormente Pausânias, deveria ter superado essa concepção dicotômica, visto ela ser limitada ao retrato das manifestações divergentes do que seriam os dois Eros cósmicos. Nessa linha, em que um Eros promove a harmonia e o outro a desarmonia, seria possível entender que na verdade essa interpretação estaria mais próxima ao pattern da cosmologia de Empédocles, em que forças contrárias, como Philoteti e Neikos, regeriam o cosmo (LM D 56-65), embora essa aproximação não seja das mais precisas.

Em De Victu, a necessidade (anágkên) e o destino (moiren) se organizam em um cosmo cuja transformação se traduz nas oscilações cósmicas entre extremos, por aumento e/ou diminuição fenomênicas, evidências do uso instrumental de alguns parâmetros astronómicos na ciência médica (Vict. 5), assim como em Ares, Águas e Lugares é bastante conhecida a necessidade de o médico conhecer as estações do ano e seus efeitos nos corpos (Hp. Aër, 1; Cairus & Ribeiro Jr, 2013, p.94). 

As similitudes (ou princípios similares) são ressaltados por Hipócrates em De victu como elementos complementares de análise quando diz: “o parecido vai junto ao parecido, enquanto o destoante polemiza e luta, promovendo alteração recíproca” (Vict. 6, 20-1). Esse princípio de semelhança parece dialogar com as sementes ou homeomerias de Anaxágoras, aquele que propôs também um vórtex inicial em que as coisas todas reunidas haviam se associado pela afinidade (Simp. de caelo 295; in phys. 26, 31 – 27, 28).[13] Cairus & Alsina (2007, pp.226-230) em artigo específico acerca do Da dieta, também explicitam essas marcas da filosofia anaxagórica em De victu 1.4, apontando para as dicotomias entre phýsis e nómos, bem como para a dicotomia fundamental entre o humano e o divino.

A imagem dos madeireiros que ao cortar madeira multiplicam suas partes, diminuindo-lhes em seu tamanho inicial (Vict. 6), exemplifica a divisão ao infinito, com um sabor que faz lembrar, por outro lado, Zenão de Eléia (DK 19 B1-3 = LM D 5,7 e 11). Ao mesmo tempo, esse hipocratismo trabalha com os quatro elementos da natureza e suas transformações, as quais se relacionam com humores predominantes nos corpos particulares. A tradução espanhola nesse passo é bastante precisa: “Hacen lo mismo, disminuyendo aumentan”.[14] A tradução francesa resolve a sentença de modo semelhante: “Ils font la même chose; en diminuant, ils augmentent”.[15] Em português poderíamos traduzir o trabalho dos madeireiros da seguinte forma: “eles fazem o mesmo, ao realizarem diminuição, promovem o aumento” (τὸ δ' αὐτὸ τοῦτο ποιέουσι, μεῖον δὲ ποιέοντες πλεῖον ποιέουσι, Vict. 6,5; 16).[16] Paradoxo igualmente saboroso em Heráclito, entre outros, seria o das crianças ao redor de Homero matando piolhos: “os que vemos e pegamos, esses os deixamos, enquanto os que não vemos nem pegamos, esses trazemos conosco” (DK 22 B 56 = LM D 22).[17] A citação legada por Clemente de Alexandria oferece uma imagem similar quando diz: “pois ouro os que procuram cavam muita terra e o encontram pouco” (DK B 22 = LM D 39).[18]

O trecho concentra um aparato conceitual acerca dessa “medicina heraclitiana” que aplica formulações contraditórias para explicitar sutilezas da fisiologia, ou seja, que faz uso de formas enunciativas heraclitianas ao descrever fenômenos físicos. Heráclito diz: “os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos” (ὀφθαλμοὶ γὰρ τῶν ὤτων ἀκριβέστεροι μάρτυρες, DK 22 B101a = LM D 32), explicando uma hierarquia entre os sentidos, enquanto Hipócrates não apenas desacredita do visível, mas também ironiza, ao estilo de Heráclito, a incapacidade intelectual da maioria: “acreditam mais no que veem do que no conhecimento, e nem mesmo são capazes de julgar acerca do visível” (ὀφθαλμοῖσι γὰρ πιστεύουσι μᾶλλον ἢ γνώμῃ, οὐχ ἱκανοῖς ἐοῦσιν οὐδὲ περὶ τῶν ὁρεομένων κρῖναι, Vict. 4.15). A acidez de Hipócrates reaviva em seu contexto a força da crítica heraclitiana ao conhecimento, ainda que agora ela apareça atrelada à ciência médica, contexto em que deve ter algo de permanente, mantendo alguma fixidez que garanta sua base epistêmica, algo que não se encontra, pelo menos não nesses termos, nas citações remanescentes de Heráclito.

 

3 Medicina heraclitiana em Do nutriente

 

Do nutriente (De alimento) não é considerado um texto autêntico de Hipócrates, nem seu estilo nem a datação aproximada permitiria cogitar alguma autenticidade, como acontece com outros tantos textos do corpo hipocrático. Ao recensear a questão da datação desse conjunto de aforismos, Joly (1972, pp.132-137) mostra que é mais seguro pensar que ele seja helenístico e tenha surgido entre o terceiro e o segundo século, com marcas tanto do estoicismo como da escola pneumática. Joly acredita que o tipo de heraclitismo que nele se vê é menos profundo do que o encontrado em Da dieta, tratado considerado autêntico e cujo ecletismo, além das possíveis relações com Platão e Heródico, permite localizá-lo entre o fim do quarto século e 350 a.C. (Joly, 1984, pp.44-49; Bartos, 2015, p.4).

Nesse conjunto de aforismos de que é composto o Do nutriente, encontra-se realmente uma espécie de medicina identificada à filosofia de Heráclito, mais em sua forma do que em seu conteúdo. Para além da filosofia mesma de Heráclito, que seria algo difícil de definir, pois são múltiplas as suas intepretações,[19] é preciso verificar primeiramente que tais ligações acontecem sobretudo através das formas de enunciação. Como dissemos, ampliamos o escopo indicado por Diels (Hp. alim.1, 2, 8, 9, 12, 14, 15, 17, 19, 21, 23, 24, 40, 42, 45), agregando outros aforismos que nos ajudam acessar aquela supramencionada perspectiva de Erixímaco acerca de Heráclito (Hp. alim. 3, 4, 5, 6, 7, 18 e 48).

Platão, ao jogar com os dessemelhantes na formulação da suposta harmonia a que se refere, além de resgatar um aspecto da filosofia de Heráclito, expõe as características inerentes aos procedimentos médicos das escolas de Cós e de Cnido, especialmente no que defenderam em seus princípios fundamentais, o trabalho médico por semelhanças e/ou por dessemelhanças. Resumidamente, usar semelhanças e/ou dessemelhanças como princípios de aplicação médica equivale a dizer que ou usavam predominantemente fármacos e alimentos semelhantes e/ou dessemelhantes à condição corpórea almejada pelo artífice, notadamente os pares quente e/ou frio, úmido e/ou seco etc. (Jouanna, 1992, pp. 255-263; Cairus e Ribeiro Jr, 2013, p.92).

Um dos casos emblemáticos da aplicação das semelhanças foi o de Heródico de Mégara, médico cujo autor hipocrático faz menção em Epidemias 6,3, afirmando que Heródico teria aplicado princípios semelhantes em pacientes febris, agravando o quadro de alguns deles por elevar ainda mais a temperatura de seus corpos. Heródico combatia a febre com fogo, um princípio semelhante, buscando, contudo, seu efeito contrário ao cabo do processo. A ideia que perpassa essa prática era a de elevar a temperatura geral de um corpo, imaginando promover e estimular seu subsequente resfriamento, entretanto, como diz o autor hipocrático: “Heródico matava os febris com longas caminhadas, muitas disputas (esforços), banhos vaporosos, coisas más, pois o estado febril se opõe às disputas (esforços)” (Hp. Epid. 6,3,18).[20]

Dentro da medicina hipocrática e heraclitiana encontrada em Do nutriente, os nomes não são tão importantes quanto as potencialidades (ou princípios), que devem ser aplicadas de acordo com os critérios da arte da medicina, de onde deriva uma espécie de medida que o artífice deve conhecer. Ao expor tal contexto médico através de Erixímaco, Platão não deixa de mostrar que são esses os mesmos problemas que ele próprio enfrentava em sua filosofia, ao sugerir a existência de ideias separadas. Em outras palavras, a mesma limitação formal e conceitual herdada da medicina dos contrários, que se encontra em De Victu 4-6, afeta o cerne da sua filosofia. Afinal, como poderiam ser aplicados com precisão conceitos como dessemelhantes e/ou semelhantes? Não apenas pela falta de referências a partir das quais poder-se-ia dizer que algo é semelhante ou dessemelhante, mas sobretudo por haver sempre em cada um deles o seu contrário, que se manifesta mais cedo ou mais tarde, visto que esses conceitos são aplicados e não podem manter quaisquer traços de permanência. Para além da questão axiomática com a qual Platão sempre teve um grande cuidado, Erixímaco evidencia a herança médica de que Platão é devedor e que pretende aprimorar.

O conjunto de aforismos presentes no pseudo-hipocrático Do nutriente traz um tipo de concepção médica marcada pelos jogos entre contrários que mimetizam algumas famosas frases de Heráclito, sem que, entretanto, guardem efetivamente aspectos de sua filosofia, mesmo porque uma filosofia não pode ser definida de modo unívoco, em se tratando de Heráclito essas possibilidades de classificação são ainda mais complexas.[21] Mesmo assim, é possível pensar que suas estruturas enunciativas sejam consideraras heraclitianas, por usarem muitas vezes similares jogos de opostos combinados em função da descrição de algum processo de assimilação. Do ponto de vista técnico, Do nutriente é apenas uma sequência aforismática que procura instaurar um nexo entre os nutrientes e suas potencialidades aplicadas aos corpos.

Do nutriente fornece informação variada a respeito dos trajetos dos nutrientes, que podem ser de duas qualidades específicas, os alimentos e o ar. Os aforismos acerca do nutriente e da nutrição apresentam um cenário que permite uma aproximação com a concepção médica de que faz menção Erixímaco (Smp.186e4-187c4), malgrado a datação tardia d’O nutriente (aprox. 300-200 a.C.). Não mais valem, é verdade, os contrários em confronto, mas sim as oscilações periódicas, que passam a ser mais importantes nesse pensamento médico aplicado, especialmente porque o que está em equilíbrio não é tão perceptível quanto o que está em desequilíbrio. Como diz Erixímaco, é preciso transformar o que é excesso (hýbris) em harmonia e cura, ou seja, é preciso amenizar a manifestação excessiva daquele Eros nocivo. Nesse ponto, em que vemos que o equilíbrio está mais próximo de uma manifestação saudável, enquanto o desequilíbrio de uma manifestação nociva, é importante resgatar a medicina pitagórica de Alcméon de Crotona. Nessa fisiologia, partindo dos quatro elementos, havia exatamente essa identificação do predomínio de um só (monarkían) elemento com uma condição nociva, um desequilíbrio portanto entre os elementos, enquanto o equilíbrio (isonomían) era considerado uma condição saudável (DK 24 B 4), para além da metáfora que se estende evidentemente ao campo da política.[22] Entretanto, como mostra Pinheiro (2022, pp.5-9), em Medicina antiga, Hipócrates teria rechaçado tanto a simplicidade desse modo de pensar, a partir do que ele chama de postulados, em uma atitude de distanciamento com relação ao pensamento filosófico.

Depois de um bloco inicial dedicado ao nutriente e à absorção (Hp. alim. 1-8), o autor hipocrático helenístico passa a usar frases que poderiam ser descritas como imitações de Heráclito, tal como Diels já indicara. O autor hipocrático continua tratando do mesmo assunto, ou seja, da nutrição e do nutriente, mas faz isso através de um discurso cheio de contraposições que remetem às formas heraclitianas de enunciação.

Como dissemos anteriormente, a filosofia de Heráclito em si mesma jamais explicou qualquer tipo de medicina. Ao contrário, Heráclito critica de modo contundente a medicina de seu tempo sem maiores detalhes (DK 22 B 58, 111 = LM D 57, 56). Suas explicações sobre a sabedoria da alma seca (DK 22 B 36; 77a = LM D100-101) não constituem exatamente um problema medicinal, mas uma reflexão fisiológica genérica sem qualquer indicação imediata aplicada à medicina. As formas de contraposição que levam à unidade (DK 22 B 123c = LM D 35), com afirmações e negações de uma mesma coisa, passam a ser mais frequentes a partir do aforismo 10.

O caráter aforismático e híbrido d’O nutriente emula tanto os aforismos hipocráticos como as fórmulas antitéticas de Heráclito. Suas fórmulas se tornam bem menos enigmáticas que as de Heráclito, pois estão atreladas às potencialidades (ou princípios) dos nutrientes e aos diversos usos médicos que eles podem ter, entre outras informações fisiológicas. Além disso, nesse emaranhado surgem alguns parâmetros, como a categoria relacional pròs tí (Hp. alim. 19; 44), “em relação a algo”, que modula diferentes maneiras de aplicação dos nutrientes, como suas potencialidades, suas quantidades, as diferentes partes do corpo em que incidem e, por vezes, os lugares em que se alojam. Essa categoria relacional pròs tí, “em relação a algo”, sugere que os aforismos tenham sido redigidos necessariamente depois de Aristóteles. Inverossímil seria cogitar que ele fosse anterior a Aristóteles, como explica Joly (1972, p.131-135).

Potencialidades contrárias de um mesmo princípio ou nutriente ficam explicitas através do “jogo heraclitiano” que o autor propõe, destacando um saber que jamais é absoluto e cuja aplicação depende sempre do senso de oportunidade, ou seja, do kairós, uma sabedoria inerente à técnica médica. O tratado descreve o nutriente e suas contraposições, revelando os paradoxos naturais das potencialidades dos nutrientes, quando estão ou não ativos, quando estão ou não em processo de absorção. Os aforismos tratam dos processos temporais ligados à absorção dos nutrientes e seus princípios ao longo de intervalos, e talvez essa seja uma característica básica dessa medicina heraclitiana, de estar mais atenta às oscilações periódicas e manifestações de condições extremas do que às contraposições mesmas, que poderiam estar não evidentes em estados de equilíbrio. Se não há algum desequilíbrio evidente no corpo, dos excrementos provenientes do corpo, dos processos de absorção dos nutrientes, como o artífice poderia, afinal, encontrar indícios das enfermidades?

Do nutriente apresenta uma medicina que usa constantemente os contrários e os semelhantes como princípios aplicados, analogias através das quais o médico pode intervir nos processos em curso e alterá-los para a direção que lhe pareça mais conveniente. Seus juízos antagônicos e formulações antitéticas guardam importantes afinidades com os princípios cósmicos do Eros descrito por Erixímaco, uma vez que aquele fisiólogo já reconhecia as grandes transformações naturais que afetavam os corpos particulares através das oscilações cósmicas identificadas aos dois Eros. Quer sejam bem ou mal aplicados, existem benefícios ou malefícios possíveis de um mesmo nutriente ou fármaco para a saúde, indicando a preocupação com a posologia, parâmetro pelo qual o mesmo fármaco pode ser dito ora remédio, ora veneno, dependendo da ocasião e da quantidade.

O fármaco é também descrito em suas capacidades purgativas antagônicas, por vômito ou por diarreia, bem como quando não tem nenhuma dessas potencialidades, momento em que o léxico e estruturas antagônicas heraclitianas surgem com maior nitidez: “Fármaco que faz vomitar ou ter diarreia, ou nem vomitar nem ter diarreia” (Hp. alim. 18).[23] É clara a ressonância com o trecho supracitado de De victu 5, em que “as coisas divinas e humanas confluem e são transformadas de cima a baixo”, bem como com o fragmento de Heráclito que nos foi legado por Hipólito, que diz “o caminho que sobe e o que desce é uno e o mesmo” (DK 22 B 60 = LM D 51).[24] Embora na citação de Hipólito não haja qualquer referência a fármaco, a nutrientes, a vômicos ou diarreias, é preciso considerar que a datação que nos parece hoje mais plausível para Do Nutriente tornaria essa citação mais antiga do que a de Hipólito (sec. III d.C.). Se Diels porventura conhecesse como conhecemos hoje a datação aproximada d’O Nutriente, o fragmento do caminho que sobe e desce poderia nos ter sido legado dentro dessa perspectiva médica, referindo vômito, diarreia e também seu efeito neutro. Hipoteticamente, caso isso tivesse ocorrido, nossa percepção da filosofia de Heráclito talvez fosse bastante diferente, certamente mais próxima e atrelada ao pensamento médico. Como se vê em outros casos, a antiguidade e a qualidade da fonte combinadas estabelecem critérios de valor doxográfico, motivo pelo qual Diels provavelmente escolheu Hipólito e não a fonte pseudo-hipocrática como qualitativamente mais importante para explicitar o pensamento do filósofo pré-socrático.

Nesse mesmo sentido, outra citação não menos intrigante e que faz eco ao mesmo “caminho que sobe e desce” pode ser encontrada em Fílon de Alexandria, autor que em De aeternitate mundi diz que, dentro de uma determinada perspectiva, os elementos da natureza se transformam entre si uns nos outros, de modo que: “ao parecerem morrer, sempre estão prolongando sua imortalidade e seguem continuamente se transformando pelo mesmo caminho que sobe e desce” (θνῄσκειν δοκοῦντα ἀθανατίζεται δολιχεύοντα ἀεὶ καὶ τὴν αὐτὴν ὁδὸν ἄνω καὶ κάτω συνεχῶς ἀμείβοντα, Aet. 109).[25] Seguindo, hipoteticamente, o critério de antiguidade das fontes doxográficas e sabendo que a obra de Fílon (séc. I a.C. – I d.C.) tem datação mais segura, poderíamos supor que este seria outro fragmento mais antigo do que a citação de Hipólito e que trata do mesmo caminho que sobe e desce. Diels provavelmente o tenha também desconsiderado pela dúvida acerca da autenticidade dessa obra específica de Fílon, algo que poderia ter incidido na avaliação e no descarte de mais um fragmento de Heráclito, embora ele fosse mais um bom candidato e pudesse cumprir quase que o mesmo sentido da citação legada por Hipólito, embora repleto de materialidade.[26]

Pensando com ferramentas históricas e conceituais que nos são disponíveis hoje, poderíamos conhecer os mesmos caminhos de Heráclito atrelados aos elementos da natureza e em transformação mútua. Fílon nesse trecho apresenta argumentação que procura combater as concepções estoicas de que o cosmo pudesse sofrer destruições periódicas e, para tanto, resgata Heráclito em sua concepção de que há transformação interna entre alma, água e terra: “para as almas é morte tornar-se água, para a água tornar-se terra” (Aet.109-111). Essa é uma versão concisa do que se vê de forma estendida em Clemente de Alexandria (DK B 36 = LM D 100), lugar em que temos também o caminho contrário e complementar do ciclo da transformação: “e da terra surge água, da água surge alma”.[27] Uma das notas de Arnaldez que acompanha a tradução de Pouilloux (1969, p.151) para a obra de Fílon, acerca do mesmo trecho, afirma que a expressão “caminho que sobe e desce” seria comum entre os estoicos, afirmação que Arnaldez diz estar apoiada em Diógenes Laercio (D.L. VII, 142) e João Estobeu (Stob. Ecl. 1, 17, 3). No entanto, nenhuma dessas passagens sustenta essa afirmação, pois ambas falam das misturas entre elementos sem nenhuma referência explícita a “caminhos que sobem e descem”, tais como vimos efetivamente nas três citações anteriores.

Nessa pequena digressão em torno da doxografia conhecida e de uma não tão conhecida acerca do “caminho que sobe e desce”, procuramos evidenciar por um lado os possíveis critérios de exclusão dessa doxografia secundária, que poderia ter se tornado primária em outro contexto hermenêutico, e, por outro lado, como a ressonância entre esses textos pode gerar uma diferente interpretação partindo do caso d’O Nutriente (Hp. alim.18) em direção à visão de Erixímaco forjada por Platão.

Nessa espécie de resumo d’O nutriente todas as contraposições são naturais e constituem os fundamentos da observação e da prática médica. A ciência do nutriente e da nutrição orbita em torno do conhecimento das relações entre as partes e o todo do corpo, assim como das potencialidades dos nutrientes (fármacos) em cada ocasião, sempre de acordo com a expressão de seus extremos, meio pelo qual se pode detectar de modo fenomênico diferentes condições do corpo em sua interação com os fármacos.

 

4 Uma maneira médica de ler Heráclito

 

Vejamos agora como alguns aforismos d’O nutriente, aqueles que agregamos à listagem de Diels, fornecem ferramentas específicas para uma leitura da menção de Erixímaco a Heráclito no Banquete. Primeiramente, é preciso retomar como o problema se enuncia, pois, segundo Erixímaco, o dessemelhante, nesse quadro inicial, “deseja e ama o dessemelhante” (τὸ δὲ ἀνόμοιον ἀνομοίων ἐπιθυμεῖ καὶ ἐρᾷ, Smp. 186b5). Esse “deseja e ama” encontra formulação similar à frente, no interlúdio entre Sócrates e Agatão, antes do discurso de Diotima, em que também há uma auto-predicação de Eros, acompanhado do desejo (epithymía), quando Sócrates pergunta para Agatão se Eros efetivamente “deseja e ama”, enquanto “deseja e ama” (ἐπιθυμεῖ τε καὶ ἐρᾷ, εἶτα ἐπιθυμεῖ τε καὶ ἐρᾷ, Smp. 200a5). Além de estabelecer paralelo com o próprio Eros, esse desejar e amar concomitantes trazem o tema da auto-predicação, fazendo com que seja possível dizer que “o amor ama” ou algo desse tipo. Nesse caso, o amor (Eros) seria predicado de si mesmo. Esse tipo de proposição coloca em xeque a teoria da participação, visto sempre haver essa regressão ao infinito que impõe a necessidade de intermediários múltiplos entre os seres e as formas. O mesmo ocorre com o dessemelhante, que ama e deseja o dessemelhante (Smp. 186b5), mostrando que há uma analogia entre Eros e o dessemelhante no diálogo.

A interpretação prevalente da filosofia platônica depende especialmente da leitura do diálogo Parmênides, que leva em conta esses problemas que o próprio Platão reconheceu e procurou dar respostas, rearranjando alguns elementos, especialmente a partir do Sofista, evitando autopredicações, bem como regressões ao infinito. Segundo Gill (2011, pp.179-182), Platão teria introduzido as formas para explicar a presença concomitante de opostos, como semelhante e dessemelhante, pensando nos mesmos seres, mas tal uso produziu grande embaraço em outras aplicações, como no conceito de homem ou no de fogo, visto que em muitos casos tais opostos não poderiam ser entendidos concomitantemente sem que ficassem expostas as inconsistências lógicas e ontológicas derivadas das formas separadas.[28]

Voltando ao Banquete, a passagem de Erixímaco expõe as mesmas fragilidades e os limites das formas e da participação, pois nele encontramos as mesmas auto-predicações de Eros entre outras inconsistências similares. Para uma abordagem direta do trecho em estudo é preciso entender que o semelhante necessita de uma referência externa que o valide enquanto tal, ou seja, o semelhante ou a forma do semelhante se assemelha a coisas diversas, fazendo com que participe imediatamente da forma da dessemelhança ou pelo menos da forma da diferença.

Resumidamente, os dessemelhantes seriam, em alguma medida, semelhantes entre si, enquanto os semelhantes, dessemelhantes entre si, tornando toda e qualquer predicação entre formas e seres insustentável. Esse parece ser o impacto da teoria médica dos contrários na filosofia de Platão, visto que ele procura dar uma solução plausível para tais problemas.

Platão parece usar o exemplo de modo cirúrgico, quando diz: “impossível a concórdia ser proveniente da discordância, enquanto há discordância” (Smp. 186b5-7). Exatamente pelo fato de os dessemelhantes sempre estarem na eminência de assumir essa inconsistência, tornando falível a atribuição dessa qualidade ou, pelo menos, fazendo com que ela seja, em algum tempo, insustentável. Aí está a regressão ao infinito inerente à participação, principal problema da metafísica platônica, que encontra resolução provisória no Sofista, quando se apresentam os gêneros supremos como uma solução relativamente eficaz, mais especificamente no deslizamento do gênero do “diferente” para o gênero de “outro” (Soph. 255d-257b)[29], e no Timeu, quando a khôra perfaz o lugar anterior ao lugar e ao tempo (Tim. 52a-b), sendo o suporte metafísico em que se dá a mistura demiúrgica entre as esferas do mesmo e do outro.[30]

Platão cria no trecho de Erixímaco uma imagem engenhosa, sem deixar de expor, como vimos, as dificuldades da sua própria teoria da participação, que talvez possa ser entendida como uma herdeira da medicina dos contrários ou mesmo da medicina cósmica expressa em De victu 4-6. Platão atrela a Erixímaco uma medicina em que esses parâmetros cósmicos dos contrários estabelecem relações causais, não muito claras, entre o macrocosmo e o microcosmo, assim como entre as propriedades e potencialidades dos fármacos, dos nutrientes e dos corpos. Embora o trecho de Platão seja relativamente enigmático, algumas passagens do tratado pseudo-hipocrático Do nutriente, juntamente com De victu 4-6, ajudam a elaborar uma leitura do que Erixímaco parece querer dizer quando interpreta o que Heráclito talvez quisesse dizer.

Em Do nutriente há formulação que abarca tanto o semelhante como o dessemelhante de modo não excludente e não contraditório: “Sua potencialidade (i.e. do nutriente), desde o início, aumenta e fortalece o corpo, de modo semelhante e dessemelhante em cada um [desses corpos] e segundo cada natureza [do nutriente]” (Hp. alim. 2).[31] A aplicação de semelhantes e dessemelhantes, nesse passo, embora não pareça expor as regras do jogo, expõe parcialmente seu tabuleiro, lugar em que essa ciência nutricional se vale das enunciações ao estilo heraclitiano da coabitação entre contrários.

Se por um lado há o corpo, por outro há o nutriente, o qual, mesmo sendo algo externo, vai ao longo do processo sendo assimilado e se tornando parte integrante do corpo ou de algumas de suas partes, por isso é dessemelhante com relação ao corpo no início, mas vai se tornando semelhante gradativamente ao longo do processo, uma vez que vai sendo literalmente “assimilado” (Hp. alim. 6-7).[32] O próprio corpo pode ser entendido como portador de semelhança e dessemelhança com relação ao nutriente, bem como o nutriente pode ser entendido dentro desses mesmos parâmetros. A oscilação entre eles, bem como o conceito de potencialidades, permite que o autor hipocrático explique tais processos de assimilação.

Além dessa dupla de opostos, o médico helenístico mostra como o semelhante é aplicado, evidenciando a perspectiva comumente associada aos médicos de Cós. O princípio semelhante é designado como portador de potencialidade (dýnamin) que passa a predominar no corpo: “O semelhante leva à uma [natural] potencialidade, sempre acompanhada de uma força, a qual toma a iniciativa e predomina” (Hp. alim. 3).[33] Tais passagens sugerem uma medicina dos contrários que Platão, através de Erixímaco, parece referir, mas a abordagem médica de Erixímaco é explicitada através de um Heráclito modificado, adaptado às necessidades da medicina aplicada.

A relação entre Heráclito e a medicina jamais se explicita completamente e, apesar de a passagem do Banquete tornar a relação aparentemente ainda mais obscura, é possível vislumbrar alguma ressonância entre ela e esses parâmetros presentes em Da dieta 4-6 e em Do nutriente, uma medicina cósmica e nutricional expressa dentro de estruturas enunciativas aparentadas aos aforismos de Heráclito.

Essa leitura de Heráclito aplicada à medicina desconsidera que algo pode ser e não ser ao mesmo tempo, como aparentemente Heráclito teria dito, mas agora, para esse médico heraclitiano a contradição inicial ou as dissonâncias concomitantes se resolvem em consonâncias posteriores, seja na música, na agricultura, na ginástica ou na medicina: “de uma discordância anterior (próteron) entre o agudo e o grave, em seguida, posteriormente (hústeron), surgiria uma concordância” (Smp. 186a8-b2). Para que Heráclito seja aplicado a essa medicina ele passa por uma adaptação naquilo que é, em sua filosofia, sua característica maior, a manutenção entre esses opostos concomitantes, a tensão e o jogo entre contrários.

De algum modo é possível também entender que essa medicina heraclitiana seria um tipo de filosofia que perdeu seus princípios ativos, para fazer uma analogia com o nutriente e com o fármaco, pois já não lhes serve aquela força ou tensão original entre contrários concomitantes, mas apenas as harmonias e oscilações entre eles, as quais se resolvem dentro de intervalos em vista das assimilações, desejadas ou não, aplicadas à terapêutica. Não se trata mais de uma filosofia propriamente dita, mas do uso de um léxico e uma enunciação comum à filosofia de Heráclito, que agora simplesmente cumpriria um papel instrumental no campo da medicina, da nutrição, da música, da ginástica e da agricultura.

A arte médica descrita por Erixímaco atua onde justamente há essa oscilação entre contrários, sejam semelhantes ou dessemelhantes, que se harmonizam em momentos posteriores por intervenção da natureza ou dos artífices, sejam médicos, agricultores, ginastas ou músicos. Os contrários são princípios cósmicos da ação médica e aparecem com frequência na relação entre alimento e o corpo, igualmente na relação entre o corpo e outros fármacos, quer sejam ou não exatamente nutrientes.

Do nutriente torna algumas dessas relações um pouco mais claras, quando o autor trata da perda ou dos acréscimos das qualidades de um nutriente, pois eles podem evidentemente perder suas potencialidades ao longo do tempo ou até mesmo tê-las acrescidas, dentro de períodos determinados, de modo que o artífice deve conhecer tais durações inerentes aos nutrientes e aos outros fármacos aplicados. Quando se conhece tais durações e processos, se e quando ocorrem de modo mais rápido ou mais lento, certamente é possível intervir e manipular processos fisiológicos em vista da cura de doenças ou do bem-estar de um paciente. Dependendo do momento, da sua natureza e da sua aplicação, os mesmos nutrientes e potencialidades podem gerar efeitos contrários, como diz o médico: “a perda das qualidades [nutricionais] acontece quando estas são antecipadamente (protére) destruídas ou acrescidas, bem como quando são destruídas ou acrescidas posteriormente (hústére)” (Hp. alim. 4).[34] Notemos que é justamente essa sabedoria que Erixímaco atribui ao seu Heráclito hipotético: “O que discorda e não concorda é impossível de harmonizar – assim como o ritmo provém do rápido e do lento, provém da diferença anterior (próteron), tornando-se concordante posteriormente (hústeron)” (Smp. 187c1).

Erixímaco está se referindo às oscilações entre contrários, mas jamais aos contrários em concomitância, pois essa concepção médica de Erixímaco depende dessa interpretação cósmica em que os elementos oscilam naturalmente de um extremo a outro, sem enfatizar o papel da tensão entre contrários. Tal interpretação afasta a tradicional unidade entre os contrários heraclitiana cuja forma seria absoluta, indicando uma concepção que pode ser encontrada efetivamente em Hipócrates, quando diz que os contrários não agem sozinhos, sempre precisando de outros princípios que a eles se associem, outros fatores que lhes sejam concomitantes (Hp. VM 15-18).

A formulação em Do nutriente (Hp. alim. 4), como vimos, trata e enfatiza estados sucessivos que levam naturalmente aos seus contrários, da desarmonia para harmonia ou vice-versa. Todas as contrariedades agora, nessa concepção médica heraclitiana, segundo Erixímaco, passam a ser compreendidas segundo o padrão “anterior” e “posterior” (protère/ hustere), cujas variações devem ser catalisadas ou atrasadas pelos artífices em função da saúde dos corpos.

A perspectiva temporal e do momento oportuno estão nas transformações pelas quais passam os nutrientes no corpo e o corpo por meio dos nutrientes: “o enfraquecimento [do nutriente] durante o tempo e depois de algum tempo é continuamente proveniente do exterior em vista de ser absorvido e, depois de muito tempo, tornar-se algo sólido em todos os membros” (Hp. alim. 5).[35]

Esses parâmetros das alterações das propriedades iniciais, algo fundamental nessa prática de aplicação dos nutrientes ao corpo, ficam evidentes em aforismos que tratam desses períodos pelos quais os nutrientes estão sujeitos à absorção e eventualmente enfraquecidos em suas potencialidades: “essa forma particular [do nutriente] faz crescer, na medida que transforma o princípio e o reestabelece. Nutre pelo cozimento interno, visto que a forma inicial (protéren) sofre alteração (exalláttei) e suas qualidades iniciais (protéras) enfraquecem (Hp. alim. 6).[36]

Do nutriente mantém o critério temporal como fundamento, pois o nutriente tem uma aplicação pontual e imediata, enquanto a nutrição seria uma tekhnê pensada em vista de um acompanhamento e de uma certa previsão: “O nutriente e o nutrido, nutriente em vista da necessidade pontual, assim como nutriente em vista do futuro” (Hp. alim.8).[37] Assim como o descobrimento das dietas se confunde com a própria descoberta da medicina (Hp. VM 3-7), a nutrição em Do nutriente revela uma capacidade de previsão, mostrando uma técnica relativamente assentada nesse período helenístico.

O caráter relacional, que aqui identificamos como herança das categorias aristotélicas, também está atrelado à essas diferentes temporalidades pelas quais se pode dizer que algo é de uma maneira ou outra, incidindo no conceito de fármaco dessa medicina heraclitiana, especialmente quando diz que “o melhor fármaco está no nutriente, o pior fármaco está no nutriente, pior e melhor em relação a algo (pròs tí)” (Hp. alim. 19).[38]

Quanto a categorias mais específicas das formulações heraclitianas, encontramos, por fim, no aforismo 48, um vocabulário também bastante marcado pelos termos musicais caros à interpretação de Erixímaco, mas agora aplicados à respiração, quando trata das sinfonias e dissonâncias da respiração: “A pulsação das veias e o sopro dos pulmões conforme a faixa etária, sinfônica e dissonante, indícios (semeia) de enfermidade e saúde, saúde mais que enfermidade, enfermidade mais que saúde. Respiração, pois, é também nutriente” (Hp. alim. 48).[39] Esse aforismo ressalta, portanto, o ar como um nutriente, juntamente com os alimentos, na categorização do médico helenístico.

 

5 Considerações finais

 

Constatamos nesse breve percurso que a filosofia de Heráclito, em sua leitura mais frequente, admite e enfatiza a unidade entre contrários, mas quando passa a ser aplicada à medicina, nos tratados hipocráticos referidos e no discurso de Erixímaco, acolhe inevitavelmente importantes adaptações.

Um indício dessas adaptações, ainda localizado na era clássica, está em De victu 4-6 de Hipócrates, lugar em que se pode entender pelo menos parcialmente a ambiência daquela medicina cósmica de que fala Erixímaco. O decalque que Erixímaco apresenta pode ser uma espécie de amálgama com outros elementos não apenas hipocráticos, mas também pitagóricos, empedocleanos, anaxagóricos (Joly, 1984, pp.25-34), embora a ressonância entre eles revele uma imagem menos nebulosa da “medicina heraclitiana”. De victu 4-6 fornece uma ambiência de discussão muito próxima a outros dos pré-socráticos, fazendo referência a algumas categorias, entre elas a aplicação dos contrários, identificada ao heraclitismo, e a dos semelhantes, identificada à escola médica de Cnido (Joly, 1984, pp.34-44).

Outro indício dessas adaptações, agora localizado na era helenística, encontramos em Do nutriente, conjunto de aforismos que indicam que: (i) a “medicina heraclitiana” é apenas uma combinação formal de modos de enunciação identificados a Heráclito, além disso que (ii) essas caracterizações ou descrições acerca dos nutrientes estão sempre aplicadas a momentos diferentes dos corpos e das potencialidades dos nutrientes, jamais sendo formulações fisiológicas genéricas.

Tanto os fármacos como os corpos estão em movimento, em transformação, de modo que o olhar do médico sempre está atento às essas mudanças, procurando administrar bem as terapias disponíveis. Nesse cenário, talvez possa haver algum heraclitismo de fundo, um retrato de um médico observador do fluxo da natureza, sendo ele mesmo um fisiólogo do movimento, embora também o seja muitas vezes do repouso, e mais ainda das manifestações extremas, como vimos.

A adaptação que a medicina de Erixímaco indica acerca da filosofia de Heráclito tem afinidades lexicais e conceituais com esses e outros aforismos adicionais vindos Do nutriente, mas o mais importante nesse trajeto talvez seja termos colocado em relevo, pelo menos em alguns de seus traços, a natureza desse heraclitismo, que tange sobretudo suas formas enunciativas. Embora seja evidente que alguns médicos possam ter se identificado em sua atividade com a fisiologia ou com os modos de enunciação provenientes de Heráclito, e que tenham afirmado e praticado algo baseado naqueles princípios, isso seria apenas uma maneira de entender Heráclito em ambiente específico. [40]

Nesse sentido, essa medicina heraclitiana talvez possa ser entendida como perceptível na época clássica, algo que se apropria e modifica a filosofia cósmica de Heráclito (Kirk, 1954, Kahn 1981), processo que se estendeu, como vimos, até o período helenístico. Certamente outras aproximações ainda podem ser detectadas nessa trilha, mas o que destacamos até aqui seriam contornos da maneira com que Platão faz de Erixímaco um intérprete da filosofia dos contrários de Heráclito, mostrando já um sentido bastante específico e adaptado à imagem estereotipada das necessidades médicas de seu tempo.

O Heráclito de Erixímaco em Platão não tem mais, portanto, aquele vigor de outrora, aquela tensão como a de arco e lira como fundamento. Esse heraclitismo aparece atrelado às teorias fisiológicas aplicadas à medicina, para as quais não interessa tanto o jogo de contrários em equilíbrio, mas sim a manifestação de seus extremos. Os contrários em equilíbrio desaparecem envoltos a um modelo de processos fisiológicos oscilatórios em que predominam uns depois de outros, quente e fio, seco e úmido, de modo consecutivo, motivo pelo qual suas descrições não se atém tanto aos equilíbrios entre forças opostas, mas aos estados extremos da oscilação entre contrários. Não é que a percepção dos equilíbrios não exista para essa medicina, nem que tais equilíbrios eventuais sejam por ela desprezados, mas fica claro que dentro desse parâmetro é a observação das oscilações fenomênicas predominantes em cada período que permite ao médico um juízo acerca dos tratamentos, dos nutrientes e/ou dos fármacos a serem usados, algo que os equilíbrios a princípio e imediatamente não fornecem.

São os estados agudos, por outro lado, as manifestações de sintomas estremos que evidenciam com maior facilidade as doenças, ainda que os estados e manifestações de equilíbrio também possam esconder estados enfermos, como acontece nos casos de doenças invisíveis, muito mais difíceis de serem investigadas (Hp. de Arte.10-11). Como os momentos de equilíbrio seriam neutros e mais parecidos com estados saudáveis, a tensão entre contrários praticamente desaparece dessa medicina aplicada, apesar de reivindicar Heráclito.

Portanto, esse Heráclito médico, que na realidade nunca existiu, não é evidentemente aquele filósofo que ouvia o lógos em meio à imensa variedade cósmica, de modo implacável e através de meios não muito evidentes, mas agora ele poderia ser nomeado apenas por médico heraclitiano, um fisiólogo atento às mudanças, alguém que reconhece o fluxo inevitável comparando o que era antes com o que acontece depois (he protère...he hustere), um artífice que identifica sobretudo estados extremos.

Uma tarefa possível nesse cenário seria a de restituirmos com justiça um lugar especial ao médico heraclitiano, quer ele se identifique ou não com o autor hipocrático, notadamente nas partes mais marcantes do Da dieta 4-6, quer ele se identifique ou não com o autor d’O Nutriente. Afinal de contas, esse médico heraclitiano retém talvez a mais poderosa ferramenta legada por Heráclito, a atenção filosófica ao fluxo da natureza e dos corpos nela inseridos, tornando-se um pensador que tem o movimento como fiel da balança ao detectar os estados extremos das manifestações fisiológicas com as quais trabalha.

Ao final do trajeto podemos dizer com propriedade que apesar de não haver uma medicina heraclitiana em sentido estrito, por não haver nada pontual e literal em Heráclito que pudesse sustentar isso, há, no entanto, uma medicina heraclitiana inspirada na observação do fluxo natural, uma espécie de medicina cósmica que aplica o jogo dos contrários heraclitianos na sua observação do cosmo e dos corpos. A ela parece referir-se Erixímaco quando adapta e reinterpreta as sentenças divergentes de Heráclito (DK 22 B 5, 10, 51 = LM D 50, 47, 49) naquele contexto do Banquete (186e4-187c4), ao descrever sucinta e enigmaticamente o que “talvez ele desejasse dizer”.

 

Referências Bibliográficas

 

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RECIBIDO: 04/08/2022                                                                    RECEIVED: 04/08/2022

Aprovado: 25/08/2022                                                                            Approved: 25/08/2022



[1] Costa (2016, pp.148-149) indica que Bury (1909), Gildersleeve (1909), Hamilton (1951), Robin (1929), Sheffield (2006), Robin (1929) e Rutherford (1995) realizaram leitura depreciativa do discurso de Erixímaco, enquanto Edelstein (1945), Konstan & Young-Bruehl (1982) e McPherran (2006), ao contrário, observam elementos importantes na passagem.

[2] Agradeço aos queridos amigos e pesquisadores Abah Andrade, Gilfranco Lucena Santos e Matheus Pamplona pelas leituras e comentários que muito aprimoraram esse artigo.

[3] Ver também Mugler (1960).

[4] Nas menções à obra de Diels e Kranz (DK) inserimos seus correspondentes na edição de Laks e Most (LM).

[5] Nossa tradução e destaques. Também consultamos as traduções de Cavalcante (1972, p.26), Nunes (1973, p. 42 reimp. 2001), Torrano & Franco (2021, p.87) e a edição de Dover (1980).

[6] Ver Buarque (2015) acerca dos “heraclitismos” que possivelmente se depreendem do Crátilo.

[7] Ver Litreé VI 476ff. Usamos também a edição espanhola de Nava, Gual, Férez & Álvarez (2000) e a edição francesa de Joly (1967).

[8] Ver Litreé IX 98ff. Usamos também a edição francesa de Joly (1972).

[9] Ver edição e introdução Joly (1984), o estudo de Bartos (2015) acerca do tratado De victu e o artigo de Cairus & Alsina (2007).

[10] Todas as traduções de textos gregos para o português nesse artigo, quando não indicadas como traduções de outros, são de nossa autoria.

[11] Ver Joly (1984, p.26-46) acerca das possíveis ressonâncias entre alguns trechos do De victu e o Timeu de Platão, especialmente na relação que se estabelece em ambos entre o macrocosmo e o microcosmo.

[12] Ver DK 22 B60 = LM D 51.

[13] Most e Laks realizam correspondência entre De victu e alguns fragmentos de Anaxágoras em T9 (2016, vol. VI parte 1, pp. 320-331), especialmente entre Vict. 3-4 e os fragmentos D 27, 12, 15 e 9, bem como Vict. 7 e o fragmento D21.

[14] Trad. Nava, Gual, Férez & Álvarez, 2000.

[15] Trad. Joly, 2003, p.131.

[16] Ver em Most e Laks T9 (2016, vol. VI parte 1, pp. 320-331) as indicações entre De victu 3-11 e algumas referências a pensadores pré-socráticos, entre eles Anaxágoras, Empédocles, Filolau e Heráclito.

[17] ὅσα εἴδομεν καὶ ἐλάβομεν, ταῦτα ἀπολείπομεν, ὅσα δὲ οὔτε εἴδομεν οὔτ' ἐλάβομεν, ταῦτα φέρομεν. 

[18] Usei tradução de Cavalcante de Souza (1971, p.87).

[19] Ver Piccone, 2009.

[20] Ver Hippocrates, vol. VII (1994, pp.242-243): Ἡρόδικος τοὺς πυρεταίνοντας ἔκτεινε δρόμοισι, πάλῃσι πολλῇσι, πυρίῃσι, κακὸν, τὸ πυρετῶδες πολέμιον πάλῃσι

[21] Cf. Mouraviev (2009, pp. 34-61).

[22] Ver Joly (1984, pp.29-32) acerca das possíveis ligações de Alcméon com o De victu.

[23] Φαρμακείη ἄνω καὶ κάτω, καὶ οὔτε ἄνω οὔτε κάτω. Uma paráfrase possível, talvez mais próxima ao texto, seria: “Fármaco que faz subir e descer, e nem subir nem descer”.

[24] ὁδὸς ἄνω κάτω μία καὶ ὡυτή.

[25] Ver edições e traduções inglesa (1985), francesa (1969) e o estudo de Runia (1981).

[26] Fílon nesse passo está tratando de uma certa continuidade da substância e dos elementos cósmicos, tese com a qual concorda, pois defende a eternidade do cosmo, entretanto seus inimigos nesse tratado, os estoicos, reivindicam de Heráclito também a sua teoria da ekpyrōsis e da palingenesia, concepções chave no combate de Fílon ao estoicismo. Embora Fílon seja contrário à ideia de que haja uma efetiva destruição do cosmo, como defendiam os estoicos, ambos se dizem heraclitianos em suas posições.

[27] Na tradução de Laks & Most (2016, p.191): For souls it is death to become water, for water it is death to become earth; but out of earth, water comes to be, and out of water, soul. Na tradução de Diano (1989, p.27): Morte dele anime è diventare acqua, morte dell’acqua diventare terra: ed è dalla terra che si fa l’acqua e dell’acqua l’anima. Na tradução de Mouraviev (2009, p.44): “For death to souls to become water, (and to water death to become earth. From earth water is born, and from water Soul)”.

[28] A principal complicação dessa proposta de que havia formas separadas e alguma participação dos seres nas formas está justamente na separação entre ser e forma, que ocorre em diversos graus. Gill (2006, pp.182-190) descreve tais problemas como dilemas entre o todo e a parte e as regressões que incidem na grandeza e na semelhança

[29] Ver Cordero (2021, p.6-49)

[30] Ver em Parmênides as expressões hómoia kaì anómoia, que aparecem ligadas à filosofia de Zenão em alguns momentos (Parm. 127e2, 135e5, 139e6, 147c1, 148c1-2).

[31] Destaques nossos. Αὔξει δὲ καὶ ῥώννυσι καὶ σαρκοῖ καὶ ὁμοιοῖ καὶ ἀνομοιοῖ τὰ ἐν ἑκάστοισι κατὰ φύσιν τὴν ἑκάστου καὶ τὴν ἐξ ἀρχῆς δύναμιν.

[32] [6] E essa forma particular [do nutriente] faz crescer, na medida que transforma o princípio e o reestabelece. Nutre pelo cozimento interno, enquanto a [forma] e suas qualidades iniciais desaparecem. [7] A potencialidade do nutriente chega aos ossos e a todas as partes, aos nervos, às veias, às artérias, aos músculos, às membranas, à carne, à gordura, ao sangue, à fleuma, à medula, ao encéfalo, à coluna, ao intestino e, em todas as suas partes, evidentemente levando calor, ar e umidade (Hp. alim. 6-7).

[33] Ὁμοιοῖ δὲ ἐς [φύσιν καὶ] δύναμιν, ὁκόταν κρατέῃ μὲν ἐπεισιοῦσα, ἐπικρατέῃ δὲ προϋπάρχουσα.

[34] Γίνεται δὲ καὶ ἐξίτηλος, ὁτὲ μὲν προτέρη ἐν χρόνῳ ἀπολυθεῖσα ἐπιπροστεθεῖσα, ὁτὲ δὲ ὑστέρη ἐν χρόνῳ ἀπολυθεῖσα ἐπιπροστεθεῖσα.

[35] Ἀμαυροῖ δὲ ἑκατέρας ἐν χρόνῳ καὶ μετὰ χρόνον ἔξωθεν συνεχὴς ἐπεισκριθεῖσα καὶ ἐπὶ πολλὸν χρόνον στερεμνίως πᾶσι τοῖσι μέλεσι διαπλεκεῖσα.

[36] Καὶ τὴν μὲν ἰδίην ἰδέην ἐξεβλάστησε· μεταβάλλει τε τὴν ἀρχαίαν, καὶ καταφέρεται· τρέφει δὲ πεττομένη· τὴν δὲ προτέρην ἰδέην ἐξαλλάττει ἔστιν ὅτε καὶ τὰς προτέρας ἐξημαύρωσεν. Litreé (1841), entre os termos “προτέρην, ἔστιν”, considerava a inserção da frase ἰδέην ἐξαλλάττει, algo como a adição da seguinte frase: “altera sua forma”. Mas como a frase provém de uma interpolação, Joly (1972) decidiu desconsiderá-la, propiciando uma versão mais provável, além de mais fácil de traduzir e de compreender. Litreé, incluindo algumas paráfrases ao texto, explica que tais alterações dos princípios nutritivos, com o passar do tempo, com a sua transformação, enfraquecimento e desaparição, tornavam o nutriente impróprio para a nutrição (devient impropre à la nutrition).

[37] Τροφὴ δὲ τὸ τρέφον, τροφὴ δὲ τὸ οἷον, τροφὴ δὲ τὸ μέλλον.

[38] Ἐν τροφῇ φαρμακείη ἄριστον, ἐν τροφῇ φαρμακείη φλαῦρον, φλαῦρον καὶ ἄριστον πρὸς τί.

[39] Φλεβῶν διασφύξιες καὶ ἀναπνοὴ πνεύματος καθ' ἡλικίην, καὶ ξύμφωνα καὶ διάφωνα, καὶ νούσου καὶ ὑγιείης σημήϊα, καὶ ὑγιείης μᾶλλον νούσου, καὶ νούσου μᾶλλον ὑγιείης· τροφὴ γὰρ καὶ πνεῦμα.

 

[40] Ver Vieira (2013) acerca do fragmento DK 51 em sua análise do que designa por “bow composition”.