O ateu asceta e o padre hedonista: entre Malebranche e Schopenhauer
The ascetic atheist and the hedonistic priest: between Malebranche and Schopenhauer
Francisco Verardi Bocca
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
E-mail: francisco.bocca@pucpr.br
Jeferson da Costa Vaz
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e
Università degli studi di Ferrara (UniFE)
E-mail: jeferson.2004_@outlook.com
Resumo
Este artigo tem como objetivo propor uma investigação sobre o conceito de Vontade a partir de Malebranche (1638-1715) e Schopenhauer (1788-1860). Partimos do pressuposto de que, guardadas as devidas proporções, existem elementos que nos permitem afirmar certa semelhança entre ambos. Respeitando as particularidades de cada um, também nos dedicamos em apontá-las sumariamente. Para tanto, dividimos este artigo em três partes. A primeira apresenta aspectos gerais do conceito de Vontade proposto por Malebranche. A segunda debate o conceito de Vontade de vida de Schopenhauer. Na terceira apresentamos uma discussão sobre os caminhos distintos que eles tomaram a partir de um ponto de partida comum: a noção de vontade cega. A partir desta investigação, sustentamos nosso argumento acerca das semelhanças e confluências que, entretanto, não diminuem a especificidade de cada autor, especialmente quanto aos resultados; o cristão pendendo para o hedonismo, enquanto o ateu se inclinou ao ascetismo.
Palavras-chave: Malebranche. Schopenhauer. Vontade. Hedonismo. Ascetismo.
Abstract
This article aims to propose an investigation into the concept of Will from Malebranche (1638-1715) and Schopenhauer (1788-1860). We start from the assumption that, keeping the due proportions, there are elements that allow us to affirm a certain similarity between the two. Respecting the particularities of each one, we are also dedicated to briefly pointing them out. To this end, we have divided this article into three parts. The first presents general aspects of the concept of Will proposed by Malebranche. The second discusses Schopenhauer's Will to Life concept. In the third, we present a discussion of the different paths they took from a common starting point: the notion of blind will. From this investigation, we support our argument about the similarities and confluences that, however, do not diminish the specificity of each author, especially regarding the results; the Christian leaning toward hedonism, while the atheist leaning toward asceticism.
Keywords: Malebranche. Schopenhauer. Will. Hedonism. Asceticism.
Neste artigo investigamos o conceito de Vontade nas filosofias de Nicolas Malebranche (1638-1715) e de Arthur Schopenhauer (1788-1860), nos guiando pela detecção de pontos de convergência entre ambas, embora resguardando as devidas particularidades de cada autor, decorrentes dos diferentes contextos aos quais estiveram inseridos.
Nossa hipótese é a de que as duas noções de vontade compreendem que a manifestação desta conduz o sujeito a adotar um comportamento titubeante que hesita entre o império de uma vontade metafísica que lhe impulsiona a desejar e uma vontade com implicações imanentes que se faz sentir no próprio sujeito enquanto uma “potência cega”. Trata-se, nos dois casos, de uma vontade descomprometida com algum objeto preciso. Sendo assim, a cada sujeito cabe constantemente transladar de um objeto para outro, usufruindo de um gozo em decorrência da forma cega na qual a vontade se faz sentir nele. Esta convergência, no entanto, demanda uma investigação acerca das consequências possíveis admitidas por cada um dos filósofos.
Para isso, dividimos nossa investigação em três partes. A primeira delas se dedica a compreender em Malebranche seu conceito de Vontade, tendo como parâmetro principal a obra De la Recherché de la verité (1674). Depois disso, realizamos o mesmo em relação ao conceito de Vontade em Schopenhauer, tomando como base alguns excertos da obra O mundo como vontade e representação (1819), além de os Complementos (1844). O cotejo das semelhanças no permitiu identificar e destacar o modo pelo qual nossos autores se dissociaram; o cristão pendendo para o hedonismo, enquanto o ateu se inclinando ao ascetismo.
Por vontade, Malebranche compreendeu um movimento impresso no espírito em direção ao bem e à verdade. Movimento que induz o mesmo para a vida feliz, ou menos infeliz. Este movimento tem Deus como princípio causal. Nesta perspectiva, a vontade seria o querer de Deus que causa no ser humano uma excitação e o inclina para o bem e a verdade, atributos do mesmo Deus. Assim, não seria incorreto afirmar que este movimento tem como finalidade o próprio Deus, pois, como disse Malebranche, “a sua vontade não é mais do que o amor que Ele tem a si próprio” (MALEBRANCHE, 1999, p. 41).
Trata-se, no entanto, de uma impressão oriunda de uma instância que transcende a capacidade humana de compreensão, logo, quando esta vontade se manifesta no sujeito, este se encontra impossibilitado de compreender[1] com exatidão sua causa e, neste caso, sua finalidade. É por este motivo que o espírito não consegue saciá-la de forma integral, pois, uma vez que é oculta a causa – levando em consideração as vias sensíveis com a qual o sujeito experencia o mundo –, misterioso também é seu objeto. Assim, o ser humano se encontra em situação de insaciabilidade da vontade própria, pois a Vontade está para além do que o entendimento possa lhe representar e, a partir desta, saciar sua vontade.
Deste modo, Deus, segundo Malebranche, sem representação, estaria ausente em relação ao que cada homem possa olhar[2]. A consequência disso é que, impelido por uma vontade que transcende ao campo de seu entendimento, o sujeito, sem ter uma experiência concreta da origem dela, busca satisfazê-la num objeto que possa ser representado. Isto se configura numa expressão de vontade, porém, uma vontade que não é causa, mas ocasião para a manifestação da vontade divina[3]. Neste caso, o ser humano não é causa do seu querer, mas ao querer algo, ele busca tranquilizar-se de um estado de excitação causado por Deus na manifestação de sua Vontade Geral, já que, como diz Riley, “[...] os homens são somente a causa ocasional de suas próprias atividades, enquanto Deus é a única verdade, ou eficácia, ou causa geral" (RILEY, 1986, p. 100). A vontade do sujeito, portanto, é consequência da Vontade metafísica que o estimula.
Como a genuína causa da vontade não é o objeto representado, mas somente a ocasião para o sujeito (ou sujeitado) de vontade; quando este se propõe a colocar um freio nela, seu cessar se dá somente de maneira efêmera por efeito do gozo obtido com um bem particular. O sujeito experimenta um deleite ocasional, pelo fato de que o objeto para o qual ele se inclina é mera ocasião para acalmar seu estado de excitação. Tal estado recebeu o nome de inquietude[4]. Então, direcionando-se para o que lhe é representado em forma de ideia, que se apresenta como um possível lenitivo para o estímulo causado pela Vontade Geral, o ser humano se encontra diante de algo que lhe oferta apenas um efeito paliativo. O espírito se sente incitado a buscar encerrar sua vontade em algo de natureza oposta à própria vontade, que ocasiona uma satisfação temporária.
Assim, fica nítido que a vontade se manifesta de maneira distinta em duas instâncias, a saber: a humana e a divina. Para explicar o modo pelo qual esta faculdade opera em ambas as esferas, Malebranche se valeu do paralelismo entre o que se passa na matéria e o que se passa na alma. Ele explicou:
Do mesmo modo que o autor da natureza é a causa universal de todos os movimentos que se encontram na matéria, é também ele a causa geral de todas as inclinações naturais que se encontram nos espíritos; e do mesmo modo que todos os movimentos se fazem em linha reta, se não encontram algumas causas externas e particulares que os determinem e mudem em linhas curvas por suas oposições, assim também todas as inclinações que temos de Deus são retas e não poderiam ter outro fim senão a posse do bem e da verdade, se não houvesse uma causa externa que determinasse a impressão da natureza em direção a maus fins. Ora, é essa causa externa que é a causa de todos os nossos males e corrompe todas as nossas inclinações. (MALEBRANCHE, 2004, p. 67)
Assim, Malebranche nos indica que na natureza as coisas seguem seu curso conforme a impressão de Deus, e se há, na mesma natureza, algo que sirva de empecilho para este curso, o desvio que dele resulta seria o menor possível. Por outras palavras, se existe um obstáculo para algo que é movido pela impressão da vontade divina, segue-se que o intercepta o menos possível, a exemplo do curso de um rio em face de uma rocha.
No que tange ao espírito, o procedimento se dá de forma análoga ao que ocorre com a matéria. Ou seja, há a condição de jugo em relação à vontade divina, visto que esta atua também sobre as almas. O espírito também é impelido pelo autor da natureza, porém, o desvio do itinerário posto pela Vontade não ocorre de maneira acordada com a natureza. Nesta, como dito acima, o desvio é mínimo. Já o ser humano, por sua vez, é dotado da liberdade, o que permite a indiferença ante a vontade de Deus, bem como o direcionamento voluntário para outras rotas que não o reto curso proposto por Ele. Por isso, disse Malebranche (2004, p. 67-68):
[...] é preciso saber que há uma diferença muito considerável entre a impressão e o movimento que o autor da natureza produz na matéria e a impressão ou movimento em direção ao bem em geral, que o mesmo autor da natureza imprime sem cessar no espírito. Pois a matéria é inteiramente sem ação, não tem nenhuma força para parar seu movimento, nem para determiná-lo e desviá-lo para um lado mais do que para outro. Seu movimento, como acabo de dizer, faz-se sempre em linha reta e, quando é impedido de continuar dessa maneira, descreve a maior linha circular possível e, por consequência, a mais próxima da linha reta, porque é Deus que lhe imprime seu movimento e regra sua determinação. Mas não se passa o mesmo com a vontade; [pode-se dizer, em um sentido, que] ela é agente e tem, em si mesma, a força para determinar diversamente a inclinação ou a impressão que Deus lhe dá, pois, ainda que não possa parar essa impressão, ela pode, em um sentido, desviá-la para o lado que lhe agrada e causar, assim, todo o desregramento que existe em suas inclinações e todas as misérias que são consequências necessárias e certas do pecado.
Como visto, Malebranche sugeriu que do ato livre pode se resultar um desvio, visto que no uso da liberdade o ser humano pode se esquivar do percurso para o Bem. Entretanto, ele não intenta condenar a liberdade aconselhando que dela não façamos uso. Chama a atenção para o fato de que “[...] nossa vontade não tem o poder de não desejar ser feliz [...]” (MALEBRANCHE, 2004, p. 69). Desse modo, considerando que a vontade se inclina em direção à Felicidade, sendo esta inatingível na esfera terrena, convém à alma se desviar deste curso direcionado ao bem em geral, para algo que consegue olhar no campo de seu entendimento, sob a justificativa de isto lhe ocasiona um bem-estar, isto é, um efeito lenitivo ao seu estado de constante inquietude. Logo, toda ação voltada a um objeto particular tem esta máxima como princípio, de maneira que por ausência de alternativas o uso da liberdade e seu conseguinte desvio ocorrem, quando o sujeito vai ao encontro da matéria.
É neste sentido que Malebranche ponderou que “[...] a vontade é uma potência cega, que se direciona somente às coisas que o entendimento lhe representa” (MALEBRANCHE, 2004, p. 69), donde se infere que, por ser contraditório que a alma queira para si o constrangimento, sua vontade não pode querer o oposto da felicidade. Ao ser excitado por algo que transcende seu campo de percepção, resta para o espírito a opção de dirigir sua vontade para objetos que lhe são representados no entendimento.
Com isso, se Malebranche por um lado constatou que a liberdade é a causa de desvio dos homens em relação à impressão de Deus; por outro lado, reconheceu que compelido pelo movimento advindo da vontade do criador da natureza, o ser humano não pode evitar a busca da felicidade. Sobre isto, explicou Malebranche:
Ilustro, por meio de um exemplo, o que acabo de dizer da vontade e da liberdade. Uma pessoa representa para si mesma uma dignidade como um bem que ela pode esperar. Imediatamente, sua vontade quer esse bem, isto é, a impressão que o espírito recebe sem cessar, em direção ao bem indeterminado e universal, leva-o em direção a essa dignidade. Mas, como essa dignidade não é o bem universal e não é considerada, por uma visão clara e distinta do espírito, como o bem universal (pois o espírito não vê jamais claramente o que não é), a impressão que temos em direção ao bem universal não é inteiramente paralisada por esse bem particular. (MALEBRANCHE, 2004, p. 69)
Esta incapacidade mostra o motivo pelo qual a alma é constantemente tomada pelo estado de inquietude. Mas, além disso, este exemplo sugere a existência de um Bem maior para o qual se tende e que causa no ser humano a condição para consequentes atualizações de sua vontade. Isso coaduna com o conselho de Malebranche quando diz “Não se deve, nesta vida, esperar uma felicidade completa [...]” (MALEBRANCHE, 2004, p. 60), embora seja a felicidade um estímulo que acompanha a vida do ser humano.
Pressupondo que o ser humano é criatura, a vontade estará presente neste de maneira constante, não havendo, em última análise, ação que ele possa realizar para estagnar esta propensão. Em verdade, a vontade do espírito só pode dar um direcionamento à Vontade do bem universal com o propósito de esgotamento fugaz do estado de excitação no qual se encontra e cuja busca por encerrar não pode ser evitada. Dessa maneira, a vontade se relaciona com a liberdade, da seguinte maneira:
[...] por essa palavra VONTADE, ou capacidade que tem a alma de amar diferentes bens, pretendo designar a impressão ou o movimento natural que nos leva em direção ao bem indeterminado e em geral; e, por LIBERDADE, entendo somente a força que tem o espírito de desviar essa impressão em direção aos objetos que nos agradam e fazer, assim, com que nossas inclinações naturais terminem em algum objeto particular, os quais eram antes vagos e indeterminados em direção ao bem em geral ou universal, isto é, em direção a Deus, que é o único bem geral, porque ele é o único que encerra em si todos os bens. (MALEBRANCHE, 2004, p. 68 – ênfases da edição)
Sendo assim, podemos considerar a passividade como característica inerente da condição humana, pois, até para a execução de uma atividade “livre”, haveria a prerrogativa de estar sob o jugo da ação de Deus. Portanto, somos efeito de estímulos tanto da Vontade, como por ocasião de objetos particulares. As coisas que aparecem para o olhar (regarder), ou para os demais sentidos, podem vir a ser um bem para o qual o sujeito se inclina, se ele entender tal coisa desta maneira. Sobre isto, Malebranche expressou:
Os bêbados, talvez, não amariam tanto o vinho, se soubessem o que esse é e que o prazer que eles têm ao beber vem do todo-poderoso que lhes ordena a temperança, mas que eles injustamente fazem servir a sua intemperança. (MALEBRANCHE, 2004, p. 245).
O erro, nesse sentido, residiria em amar demasiadamente algum objeto representado, ou seja, não se inclinar para ele com temperança. Neste contexto, Malebranche aconselhou o melhor uso da liberdade:
Ora, sua liberdade consiste em que, não estando plenamente convencido de que essa dignidade encerra todo o bem que esse espírito é capaz de amar, ele pode suspender o juízo e seu amor e, em seguida, [...] pode, pela união que tem com o ser universal ou com aquele que encerra todo bem, pensar em outras coisas e, por consequência, amar outros bens. (MALEBRANCHE, 2004, p. 70)
Dito isso, nota-se que para ele a vontade se trata de uma força motriz que atinge o homem sem se fazer perceber ao mesmo. Por esta ausência de meios para descobrir a fonte de sua vontade, o ser humano busca, então, saciá-la naquilo que lhe é representado. O que culmina em uma frustração, já que a vontade irá se renovar no sujeito, dada a potência da Vontade que tende ao bem universal. Esta frustração ocorre todas as vezes que o ser humano faz uso de sua liberdade para desviar a Vontade divina. Por conta disso, Malebranche propôs a busca de meios para que haja uma continência da vontade que permita ao sujeito agir com temperança em relação aos bens particulares com os quais possa vir a se relacionar, evitando constrangimentos e frustrações. De maneira sucinta, prescreveu um uso adequado da liberdade para mitigar o sofrimento na busca do prazer, isto é, na busca por ser feliz. Entretanto, não vemos, a princípio, uma recusa do prazer[5].
Crendo suficiente o que foi apresentado, passemos a Schopenhauer.
Não obstante seu ateísmo, ele não deixou de expressar sua admiração a filósofos como Mestre Eckart (1260-1328), Malebranche, Berkeley (1685-1753) e ainda outros. Considerando o que se declarou acerca de Malebranche, poderíamos dizer que, tal como Rousseau (1712-1778)[6], ele também teve inspiração em ideias malebrancheanas. Vejamos como Schopenhauer expressou esta inspiração:
Se por meio dessa consideração tornou-se clara a diferença entre a força natural e todos os seus fenômenos; e, ainda, se reconhecemos que aquela é a Vontade mesma num grau determinado de sua objetivação; que somente aos fenômenos convém a pluralidade mediante tempo e espaço e que a lei de causalidade nada é senão a determinação, nestes, da posição dos fenômenos isolados – então reconheceremos a verdade perfeita e o sentido profundo da doutrina de MALLEBRANCHE sobre as causas ocasionais, causes occasionelles. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 199-200)
Neste sentido, foi ele próprio quem nos autorizou a estabelecer relação entre sua doutrina e a de Malebranche, ao declarar, ainda em tom de admiração, que:
Vale a pena comparar a sua doutrina, tal qual exposta em Recherches de la vérité, sobretudo no terceiro capítulo da segunda parte do sexto livro, e nos éclairssements em apêndice a esse capítulo, com a minha presente exposição do tema e, assim, perceber a concordância perfeita das duas doutrinas, apesar da grande diferença no encadeamento do raciocínio. Sim, tenho de me surpreender com o fato de Malebranche, apesar das peias e do fardo de estar totalmente imerso em dogmas positivos impostos por seu tempo, ainda assim, ter encontrado de maneira tão feliz e correta a verdade, e ter sabido conciliá-la com aqueles dogmas, ao menos com a linguagem deles. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 200)
Apesar disso, em que sentido poderíamos pensar uma semelhança entre estas propostas? Em que medida Malebranche encontrou “de maneira tão feliz e correta a verdade” em sentido schopenhaueriano, mesmo que “imerso em dogmas”? Disse ele: “De fato, Malebranche tem razão. Toda causa na natureza é causa ocasional, apenas dá a oportunidade, a ocasião, para o fenômeno da Vontade una, indivisa, em-si de todas as coisas, e cuja objetivação grau por grau é todo este mundo visível” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 200).
Dessa maneira, esta verdade estaria relacionada com o fato de que o autor moderno já havia compreendido vontade como algo metafísico e presente no mundo e na vida de cada homem de forma análoga a um “baixo fundamental”[7] que continuamente reverbera seu som de maneira constante e indiferente ao modo diverso em que o arranjo se dispõe. Além disso, ele também propôs que a manifestação desta conduz o sujeito a adotar um comportamento titubeante que hesita entre o império de uma vontade metafísica que lhe aciona a desejar e uma vontade imanente que se faz sentir nele enquanto uma “potência cega”, ou seja, uma vontade descomprometida com qualquer objeto preciso.
Segundo Cacciola, “No Mundo como vontade e representação, o filósofo admite uma visão do mundo dúplice, por um lado centrada num sujeito do conhecimento e por outro num ímpeto cego, a vontade” (CACCIOLA, 2018, p. 09). É neste texto que, depois de ter estabelecido a primeira verdade de sua filosofia, Schopenhauer nos indicou uma segunda, dizendo que “[...] tal verdade, que tem de ser deveras séria e grave para cada um, quando não terrível, e que cada um justamente pode e tem de dizer, soa: ‘O mundo é minha vontade’” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45). Ao expressar uma relação conectiva entre o mundo e a vontade ele prescreveu a ideia de um mundo que se representa ao sujeito de forma volúvel por conta da forma na qual esta voluptuosidade é inerente àquele que se coloca diante do mundo representado.
O mundo é movimento, é devir, pois está “alicerçado” numa metafísica que se manifesta constantemente num curso orientado de modo indeterminado. Como disse, “Pois, assim como toda manifestação de uma força da natureza tem uma causa, mas a força da natureza em si não tem nenhuma, também todo ato individual da vontade possui um motivo, mas a vontade em geral, nenhum” (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 516). Por conta desta indeterminação, tal como o autor da Recherché, ele se vale da ideia de vontade cega para descrever o desfecho desta metafísica cuja manifestação imanente desemboca numa ausência de orientação precisa. Não seria forçoso, neste sentido, depreender que este sistema nos autoriza a assimilar o sujeito schopenhaueriano comparável a uma marionete. O próprio autor estabelece esta analogia, muito embora o tenha feito negando a ideia de uma inteligência responsável pelos movimentos do boneco. Donde se segue, uma primeira distinção em relação a Malebranche, tendo em vista que ele optou por uma trajetória que o padre procurou se esquivar[8]. É distinto, porque, como disse Cacciola (2018, p. 11), “A vontade para Schopenhauer é cega, sem fundamento e sem finalidade, diferenciando-se do fenômeno”. Tal distinção é marcada por ausentar a causa de inteligência. Neste sentido, elucidou Schopenhauer (2014a, p. 515-516):
Por isso, eu disse que esses bonecos não são puxados a partir do exterior, mas que cada um deles sustenta em si o mecanismo de relógio em virtude do qual realiza os seus movimentos. Este é a vontade de viver, que se manifesta como um mecanismo propulsor incansável [unermüdliches Triebwerk], como um impulso irracional [unvernünftiger Trieb] que não tem a sua razão suficiente no mundo externo.
Vemos com isso uma descrição metafórica da situação humana no mundo caracterizada pela condição análoga à de marionetes que ficam à deriva no imenso mar da vontade que as conduz para onde bem entende. Basta, para compreender isso, enfatizar a ideia de que tal impulso é irracional. Todavia, até que ponto esta seria uma vontade privada de inteligência e teleologia, uma vez que suscita a vontade de viver? Não haveria nisso uma finalidade que, em semelhança com a proposta por Malebranche, buscaria promover a vida e o bem-estar? A cegueira imanente da vontade do sujeito não poderia se sustentar numa vontade metafísica que possui um alvo? No capítulo XXVIII dos Complementos ele sugeriu uma tendência a viver, ao afirmar que “[...] trata-se da vontade cega [blinde Wille], que aparece como um impulso à vida [Lebenstrieb], prazer de viver [Lebenslust], vitalidade [Lebensmuth]: e é a mesma coisa que faz a planta crescer” (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 516).
Com este paradoxo, vemos a distinção se converter em acordo entre eles, pois o filósofo do Oratório também se referiu à vontade como potência cega indeterminada que se manifesta promovendo uma tendência à vida, à autoconservação, ao prazer, à felicidade e, em suma, ao bem-estar. Entretanto, ele foi explícito ao denominar esta tendência como uma finalidade. Contudo, ambos filósofos adotam um discurso misterioso, proporcionando argumentos que se manifestam com tensão.
Em Schopenhauer podemos observar esta tensão com nitidez. O princípio da vontade seria indeterminado, mas o desfecho deste princípio se caracterizaria por possuir uma determinação específica: a vida. Malebranche, por sua vez, considera que “Deus te conduz sem cessar para o bem em geral; este movimento é por ele mesmo é indeterminado” (MALEBRANCHE, 1871, p. 74). Poderíamos arriscar dizer que, muito embora o baixo fundamental (Schopenhauer, 2014b) seja parâmetro para comparar as duas propostas, tal analogia não pode se estender para as construções dos argumentos, pois eles se apresentam com variações.
Entretanto, reiterando, não podemos negar a maneira em que estes pensamentos se encontram no tocante à cegueira da vontade quando ela se manifesta no corpo, ou seja, em seu registro imanente. Acerca deste desfecho no corpo, diz Schopenhauer (2005, p. 174):
Não só as ações do corpo, mas ele mesmo, como mostrado anteriormente, é no todo fenômeno da Vontade; noutros termos, Vontade objetivada, concreta. Portanto, tudo o que nele ocorre tem de ocorrer mediante Vontade, embora aqui a Vontade não seja conduzida por conhecimento, não seja determinada por motivos, mas atue cegamente segundo causas, nesse caso chamadas EXCITAÇÕES.
Na esfera mundana de fenômenos esta indeterminação é característica tanto do ponto de vista malebrancheano, como do ponto de vista de Schopenhauer. Entretanto, não é apenas com convergências que estas propostas se apresentam. Os posicionamentos tomados a partir destas perspectivas filosóficas se encaminham para lugares opostos. Como dissemos acima, o cristão, em certos aspectos, orienta sua argumentação para um hedonismo, enquanto o ateu se posicionou em favor do ascetismo. Vejamos como isso aconteceu.
Afora o fato de que Malebranche foi muito popular, enquanto Schopenhauer não obteve igual reconhecimento, há outro fator relacionado com ambos os itinerários filosóficos que aponta para um desencontro entre estes filósofos, a saber: o rótulo que seus críticos mais próximos lhes empregaram. Lamy, representante da doutrina que sugeria um amor desinteressado por Deus conhecida como quietismo, acusou Malebranche de hedonismo[9], enquanto Nietzsche, seguidor de Schopenhauer, considerou a proposta de seu antecessor ligada com um asceticismo.
O asceticismo de Schopenhauer se justifica a partir de sua convicção de que o sofrimento é inerente à vida, ou seja, como diz Giacoia Jr (2016, p. 18), “[...] Schopenhauer se propõe a mergulhar o olhar nos abismos da existência humana: quanto mais fundo olhamos na vida, mais fundo enxergamos nela o sofrimento – pois viver é sofrer”. É por isso que, continuam Ribeiro e Silva (2010, p. 21), “O ascetismo aparece, portanto, como possibilidade definitiva de suprimir a dor, de cessar a vontade, de aniquilar o querer”. Neste sentido, a renúncia às paixões se trata de uma operação de desligamento em relação ao mundo. Por conta disso, o prazer deve ser evitado, isto é, para que numa ocasião de dor e sofrimento seja possível a resistência mediante a indiferença, já que a vontade atua cegamente e pode conduzir tanto ao prazer como ao seu oposto.
Esta condução desorientada legitima aquilo que ele chama de negação à Vontade de Vida, ou seja, renúncia à tendência que excita e conduz o corpo arbitrariamente para alguma orientação ao prazer. Seria uma resposta a esta Vontade com um caráter equivalente a ela, partir da indiferença. Na medida em que os estímulos se manifestam no sujeito de maneira indiferente ao seu interesse, é com o desinteresse que convém dar uma resposta a esta manifestação, como se não houvesse a necessidade de levá-la em conta. Embora, com isso, seja necessário sucumbir ao prazer, é por esta mesma via que o sujeito atenua os efeitos da dor, pois, como disse Schopenhauer (2005, p. 485):
Como ele mesmo nega a Vontade, que aparece em sua pessoa, não reagirá quando um outro fizer o mesmo, noutros termos, quando um outro praticar injustiça contra si. Nesse sentido, todo sofrimento exterior trazido por acaso ou maldade, cada injúria, cada ignomínia, cada dano são-lhe bem-vindos. Recebe-os alegremente como ocasião para dar a si mesmo a certeza de que não mais afirma a Vontade, mas alegremente toma partido de cada inimigo fenomênico da Vontade, inimigo esse que é sua própria pessoa. Por consequência, suporta os danos e sofrimentos com paciência inesgotável e ânimo brando. Paga o mal com o bem, sem ostentação.
A prerrogativa para a conduta asceta parece-nos semelhante aos pressupostos do estoicismo: suportar o sofrimento. É exatamente contra os ideais advindos do Pórtico que Malebranche se posicionou. Depois de tecer uma descrição acerca da conduta tomada por cristãos para “conservar a paz e a liberdade do espírito” (MALEBRANCHE, 1837, p. 166), ele fez o seguinte comentário no capítulo Des Passions acerca da proposta de austeridade no modo de vida:
Os estoicos, ao contrário, seguem as falsas ideias sobre a sua filosofia quimérica, imaginam ser sábios e felizes, e que só é preciso pensar a virtude e a independência para nos tornarmos virtuosos e independentes. O bom senso e a experiência nos asseguram que o melhor meio de não ser ferido pela dor de uma picada, é não se picar. Mas os estoicos dizem: pique-me e irei pela força do meu espírito e pelo socorro de minha filosofia me separar de meu corpo de tal maneira, que não me inquietarei com isso que se passa. (MALEBRANCHE, 1837, p. 166)
Seu argumento não é crítico somente pelo aspecto mais visível, relativo à inquietude. Na contracorrente deste discurso, ele propôs que a inquietude se manifestava no sujeito por consequência do desejo, irrefreável e de fruição impossível na esfera mundana, que este tem por gozar de Deus. No entanto, não caberia neste discurso a defesa de uma vida que se fecha voluntariamente ao desejo, ou à Vontade. Como disse Malebranche, “Portanto, é seguir a Deus, seguir os desejos de seu coração; e é obedecer a sua voz para nos rendermos a esse instinto da natureza, que nos leva a satisfazer nossos sentidos e nossas paixões” (MALEBRANCHE, 1837, p. 174). Em outras palavras, seguindo os desejos do coração, seguimos a Deus. De certa maneira, obedecemos à voz dele quando nos rendemos aos instintos que levam para a satisfação de nossos sentidos e paixões. Ele constata que “Há filósofos que tentam persuadir aos homens que o prazer não é um bem e que a dor não é um mal; que podemos ser felizes por meio das dores mais violentas e que podemos ser infelizes por meio de grandes prazeres” (MALEBRANCHE, 1837, p. 144). Porém, em outra direção, aconselhou que:
Nós podemos e nós devemos amar o que é capaz de nos fazer sentir prazer, admito. Mas é por esta razão que devemos amar somente Deus porque não há nada além de Deus que possa agir em nossa alma e porque os objetos sensíveis só podem mover os órgãos de nossos sentidos. (MALEBRANCHE, 1837, p. 175)
É pela razão de que determinado objeto causa prazer que ele deve ser amado, pois Deus é a causa de tal excitação no sujeito. Desse modo, o corpo do sujeito, assim como o objeto desejado, são apenas ocasiões para o gozo e o desfrute do desejo acionado por Deus. Portanto, não faria sentido a defesa de uma ascese, sobretudo em se tratando daquela compreendida por Schopenhauer quando descreveu:
Sob o termo, por mim já amiúde empregado, de ASCESE, entendo no seu sentido estrito essa quebra PROPOSITAL da Vontade pela recusa do agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da Vontade. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 496)
Além disso, para Schopenhauer a questão do asceticismo está relacionada com sua proposta ética, considerando sua afirmação de que “[...] da mesma fonte onde brota toda bondade, amor, virtude e nobreza de caráter, também nasce aquilo que denomino negação da Vontade de vida” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 480). Ele relacionou a capacidade de silenciar a Vontade de vida com a possibilidade de se portar de maneira benevolente com outros, ou seja, de se abrir para uma alteridade, pois o sujeito, continuou, “[...] compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau, mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos [...]” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481). Ao que parece, seu argumento converge para o fato de que a indiferença em relação à Vontade leva o sujeito para a possibilidade de empatia, de participação no sofrimento do outro. Se sustentando nisso, sugeriu a diferença entre as pessoas benevolentes e as pessoas más, ou incapazes de colocar freio na sua vontade. Como disse:
Vimos acima que a pessoa má, pela veemência de seu querer, padece sem cessar um corrosivo tormento interior e, ao fim, quando todos os objetos do querer se esgotam, sacia sua sede no espetáculo do tormento alheio. Ao contrário, a pessoa na qual surgiu a negação da Vontade de vida – por mais pobre, destituído de alegria e cheio de privação que seja o seu estado quando visto de fora, é, no entanto, cheia de alegria interior e verdadeira paz celestial. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 494)
O modo pelo qual esta questão moral foi tratada por ele, demanda um procedimento que, a princípio, não caberia no discurso de Malebranche, a saber: a renúncia ao amor-próprio. Este conceito é dotado de uma relação direta com a noção de felicidade de Malebranche. Segundo Priarolo (2015, p. 165), “Compreendemos, então, porque o amor-próprio, enquanto desejo de ser feliz, não pode ser contrário ao amor de Deus: um e outro são movimentos que têm a mesma direção, impelidos pelo mesmo motivo, o prazer do qual a causa última é o próprio Deus”. Por esse motivo a perspectiva de uma abdicação do amor voltado para si mesmo não seria possível, pois o moi-même seria uma ocasião para que se ame a Deus. Seria algo como um amor à obra de arte estendido, mesmo que indiretamente, ao artista.
Assim, mesmo que o filósofo ateu julgue como apropriada a comparação de sua filosofia à do cristão, vemos que não existem apenas semelhanças. Assim, podemos, sem problemas, afirmar agora que os discursos filosóficos dos autores tanto se encaminham para uma confluência como para uma abjunção. Convergem no tocante ao caráter cego da vontade quando se manifesta na imanência do mundo. Mas divergem no que diz respeito ao procedimento esperado do sujeito, diante desta vontade.
Schopenhauer apontou para a via do asceticismo, justificando este posicionamento no fato de que o sofrimento é inerente à vida. Malebranche, talvez devido à sua confiança na existência e na providência divina, apontou para um hedonismo que tem seu fundamento no fato de que é a Vontade de Deus que promove a inclinação aos prazeres, de modo que, por ausência de alternativas, convém ao sujeito submeter-se ao império da vontade e adotar um estilo de vida titubeante de usufruto dos prazeres mundanos, donde se segue a recusa da vida austera característica dos estoicos – salvo levando em conta a possibilidade de reconfigurar um estado adâmico, o que seria inviável por conta dos limites cognitivos do ser humano após a queda[10].
Por fim, para além das perspectivas religiosas, crença ou ateísmo, indicamos a maneira como cada qual compreendeu o eu. De um lado, vemos a afirmação de Schopenhauer acerca de uma “consciência pouco equipada” (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 222) e de outro a de Malebranche, do moi como ténèbresa. Mas isto é assunto para outra oportunidade.
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Recebido: 10/08/2022 Received: 10/08/2022
Aprovado: 18/09/2022 Approved: 18/09/2022
[1] Ao afirmarmos que o sujeito não compreende a causa, pretendemos dizer apenas que na sua condição terrena o ser humano não experencia Deus mediante as suas faculdades sensíveis. Ou seja, de maneira alguma pretendemos que o ser humano desconhece Deus, num sentido epistemológico, até porque tal afirmação acusaria inobservância ao Capítulo VII do livro Do Entendimento, no qual, discorrendo acerca dos quatro modos de conhecer, Malebranche afirmou que conhecemos Deus por si mesmo (2004). Enfim, buscamos apenas propor que, uma vez que Deus não se restringe a uma ideia, por não estar suficientemente equipado epistemologicamente para ter uma experiência sensível de Deus, o sujeito não consegue olhar para Deus.
[2] Aqui fazemos uso da noção malebrancheana de olhar, valendo do seu correspondente regarder do francês que se distingue, para ele, de voir. No capítulo Des Sens ele estabelece esta diferença. Por olhar (regarder) ele entende o uso dos olhos, a ação de abrir ou mirar os olhos. E por ver (voir) ele compreende a visão do espírito. Esta distinção fica nítida quando ele diz, a respeito da cor dos objetos: “Isso depende do conhecimento das idéias que afetam a alma e que iluminam, por assim dizer, os olhos do espírito, quando abrimos aqueles do corpo”. (MALEBRANCHE, 2004, p. 133).
[3] Malebranche, nas Meditations, esclarece que, “Portanto, a força que produz o movimento vem de Deus em consequência, todavia, de tua vontade por ela mesma ineficaz”. (MALEBRANCHE, 1871, p. 71) – Todas as traduções realizadas neste artigo são de responsabilidade dos autores.
[4] Para um estudo aprofundado acerca do conceito de inquietude e de sua importância no cenário da modernidade, consultar: MONZANI, L. R. Desejo e Prazer na idade moderna. 2ºed. Curitiba: Champagnat, 2011, p. 132-160.
[5] Algo interessante a respeito do prazer enquanto princípio motor da felicidade é que em seus textos Malebranche afirma que o prazer corpóreo não conduz o sujeito à uma felicidade sólida, que, de acordo com o parágrafo 4 a Méditation X, das Méditations Chrétiennes et Métaphysiques, está relacionada a “[...] algum prazer justo e racional [...]” (MALEBRANCHE, 2003, p. 14) que propicia uma alegria correspondente. Em referência ao prazer que conduz à uma felicidade sólida, ainda no parágrafo 4, ele completa: “Ora, quando essa alegria acompanha incessantemente os prazeres delicados, ela torna solidamente felizes aqueles que dela gozam.” (MALEBRANCHE, 2003, p. 14). Este prazer que se relaciona com a felicidade sólida se distingue, portanto, do “[...] prazer que torna feliz aquele que o goza, ao menos no momento em que goza [...]” (MALEBRANHCE, 1712, p. 157) mencionado no Traité de la nature et de la grâce e em outros textos. O que é válido ressaltar é que, independentemente do tipo de alegria e de felicidade que se goza, ambos estados têm como princípio motor a busca pelo prazer. Segue-se que a alma pode buscar uma felicidade sólida ou precária estimulada pelo prazer.
[6] Acerca desta influência, consultar: RILEY, P. The General Will Before Rousseau: The Transformation of the Divine Into the Cive. Princeton: Princeton University Press, 1986.
[7] Recorremos aqui ao recurso metafórico de Schopenhauer quando diz: “Portanto, é a vontade que propicia esta unidade e reúne todas essas representações e pensamentos juntos, acompanha-as, como se fosse um contínuo baixo fundamental” (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 223).
[8] Esta tentativa de se desvencilhar de tal comparação foi relatada por seu crítico Antoine Arnauld (1612-1694). Sobre isso, comenta Priarolo: “Na perspectiva de Arnauld, a filosofia de Malebranche parece, assim, conduzir para a visão de um homem-animal, ou antes, ainda pior, de um homem-marionete, pousando de objeto em objeto pela busca dos prazeres por um Deus indiferente que dispensa alegrias e dores segundo leis inacessíveis.”. (PRIAROLO, 2015, p. 150).
[9] Em torno disso, comentam Walsh e Lennon (2012, p. 86): “Para Lamy, a visão de prazer de Malebranche leva a uma forma de egoísmo hedonista que não apenas elimina o amor desinteressado, mas também nos rouba nossa liberdade.”.
[10] Malebranche não nega que um modo de vida ideal dependeria da recusa dos prazeres mundanos e a resistência à inquietude que excita o sujeito a querer os bens corpóreos. Ou seja, numa condição ideal, o ser humano se equivaleria ao primeiro homem, a Adão, que dispunha de faculdades cognitivas que permitiam o absoluto silenciamento do corpo e a dedicação exclusiva da atenção aos prazeres justos e racionais (2003). Porém, com a queda, o ser humano deixou de dispor destas faculdades e, por isso, vive em desordem sem poder resistir aos impulsos do corpo, pois “[...] a própria ordem quer a desordem para punir o pecador, não sendo justo que o pecador submeta o seu corpo.” (MALEBRANCHE, 2003, p. 61).