Agamben contra Agamben: por uma revisão do conceito de vida nua

Agamben versus Agamben: for a review of the bare life concept

Daniel Arruda Nascimento[1]

Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de

Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.

E-mail: danielarrudanascimento@id.uff.br

 

Resumo

Intenciona o presente artigo revisar em perspectiva o conceito de vida nua, tomando como fonte primeira o livro que o traz como protagonista, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, sem negligenciar outras aparições conceituais relevantes no conjunto da obra, especialmente em L’uso dei corpi. Longe de pretender requentar a apresentação do conceito ou tentar expressá-lo de modo mais inteligível, queremos desfazer uma confusão interpretativa provocada pelo próprio texto de Giorgio Agamben, no original italiano, que algumas vezes distingue claramente vida nua de vida natural ou zoé, outras vezes as equiparam equivocadamente. Deixaremos nas linhas que se seguem que o texto do filósofo romano venha em auxílio e contra o seu próprio texto, para demonstrar que vida nua difere de existência biológica. Preparamos assim a investigação proposta em um projeto de pesquisa que foi denominado por mim de Por uma vida nua, no qual se objetiva encontrar o outro lado da vida nua, elaborar um conjunto de reflexões que anele pela defesa de alternativas éticas e políticas que levem em consideração a nudez tal como pode ser filosoficamente e positivamente compreendida.

Palavras-chave: Giorgio Agamben, vida nua, vida natural.

Abstract

The present article intends to review the concept of bare life in perspective, taking as its primary source the book that features him as the protagonist, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, without neglecting other relevant conceptual appearances in the whole of the work, especially in L'uso dei corpi. Far from intending to revive the presentation of the concept or try to express it in a more intelligible way, we want to dissolve an interpretative confusion caused by Giorgio Agamben's own text, in the original Italian, which sometimes clearly distinguishes bare life from natural life or zoé, at other times wrongly equated them. In the following lines, we will allow the text of the Roman philosopher to come to the aid and against his own text, to demonstrate that bare life differs from biological existence. Thus, we aim to prepare the investigation proposed in a research project that I called For a bare life, in which the objective is to find the other side of bare life and to elaborate a set of reflections that yearn for the defense of ethical and political alternatives that considers nudity as it can be philosophically and positively understood.

Keywords: Giorgio Agamben, bare life, natural life.

 

Como é sabido, Giorgio Agamben inicia o livro que será a peça inaugural do projeto filosófico que o trouxe para o centro do debate internacional sobre as crises do Estado Democrático de Direito com uma revisão do conceito de vida. Interessa-o sobretudo a vida humana e os modos que nos permitem compreendê-la. Buscando entre os gregos clássicos, especialmente em Aristóteles, a fonte para o estabelecimento dos significados iniciais, o filósofo italiano distingue na aurora de Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita os conceitos de zoé e bíos, definindo o primeiro como a vida compreendida no seu aspecto natural ou biológico, a simples vida, o simples fato de viver, algo que é em si um bem a ser conservado e algo que todos os seres viventes possuem em comum, para distingui-lo do segundo, anunciado como a vida qualificada com algum predicado específico, um modo particular de vida, a vida que se apreende sob as exigências do convívio público entre os seres humanos, sob as exigências da ética e da política. Mesmo o uso de expressões que se tornaram muito conhecidas e repetidas à exaustão tais como politikòn zôon, que traduz a noção de animal político, nas quais os termos parecem se confundir, pode ser explicado em razão de aplicações idiomáticas irregulares ou da ênfase que se queira atribuir à frase (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 03-05). A partir de então, com as inspirações promovidas por Michel Foucault e Hannah Arendt, mas também para além dessas inspirações, a vida natural será examinada como o objeto da biopolítica, o cerne dos mecanismos e cálculos do poder estatal, e como o elemento que ocupa progressivamente o espaço político moderno, culminando na vitória do animal laborans, do aspecto metabólico da vida humana e na decadência da ação política.

A tese é forte e polêmica. De acordo com as análises do filósofo romano, a prometida liberação da vida natural do homem pelas democracias modernas implicou necessariamente em uma captura desta mesma vida, por trás da atribuição de direitos e liberdades formais aos cidadãos e aos sujeitos de direitos está um processo simultâneo concreto que leva à aniquilação essa mesma vida natural, até chegar à figura extrema da vida biológica abandonada nos campos de concentração e extermínio (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 13-14), mas também às vidas contemporâneas abandonadas em campos periféricos, campos depauperados, campos migratórios, campos onde seus habitantes são submetidos a todo tipo de violência. Não esqueçamos que o nascimento com vida constitui o fundamento último da cidadania (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 138 e 139-142). Temos então a inscrição da vida natural do ser vivente na esfera do direito, ou como diria Carl Schmitt, autor com o qual Agamben dialoga frequentemente, “a estruturação normal das relações de vida” (AGAMBEN, 1995, p. 31). Sob o patrocínio da instituição do poder soberano e da biopolítica, assim como fato e direito, zoé e bíos entram em uma zona de indiferenciação tendo como resultado a configuração do espaço da vida nua (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 11-12). Uma vida natural que havia se mostrado impolítica na sua origem beira o significado de vida nua, a substituição histórica e no texto do filósofo vai se impor (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 144-145). Na sequência das páginas que constituem a terceira parte da obra e para compor o cenário no qual a biopolítica se converte em tanatopolítica, “eventos fundamentais da história política da modernidade”, ou situações limites de confronto de vida e morte, serão escalados para endossar a tese de que o espaço da vida nua é igualmente o espaço de retorno de uma vida considerada como simples vida, mera vida simples existência, em toda a sua contingência e fragilidade: o refugiado, o doente terminal em estado de eutanásia, as cobaias humanas, o doente terminal em estado de coma, bem como os hebreus, a classe pobre e as populações do terceiro mundo (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 135, 145, 153-154, 171, 178, 201). Todavia, nesse registro, a vida já não será mais zoé, será outra coisa, será vida nua.

Ocorre que o objetivo do livro aqui estudado não é o desenvolvimento de uma reflexão extensiva sobre a captura biopolítica da vida humana, mas a exposição filosófica do termo vida nua na sua relação com o poder soberano. A distinção entre zoé e vida nua, entretanto, que deveria ficar clara desde o início, sofre com o embaraço provocado pelo próprio texto de Agamben que, contra a precisão que pretendia impor, confunde por uma série de vezes os conceitos. Tão relevante quanto a passagem introdutória pelo conceito de zoé para que se chegue à vida nua é a distinção operativa entre uma e outra, em benefício de um maior entendimento do que significa vida nua. Ela não é a existência biológica. Temos notado como o embaraço é reproduzido pelos seus leitores e intérpretes, que além de impactados pela força argumentativa do texto e pela intensa mobilização de imagens que reluzem na neblina da condição política do homem contemporâneo, resvalam nas bordas de ambos os conceitos sem a firmeza que se intenciona obter. Vejamos a seguir.

A vida nua é o resultado de uma relação de exceção com o poder soberano, o resultado de uma inclusão exclusiva e o que resta da exposição à possibilidade de morte. Não designa simplesmente uma vida excluída, encerra uma inclusão que exprime uma exclusão, em um jogo duplo que não se reconhece como tal. Originalmente marginal em relação ao ordenamento jurídico-político, o seu espaço vem coincidir progressivamente com o espaço político à disposição dos cidadãos. Quando a exceção se apresenta como a estrutura originária da soberania e a exceção soberana se torna a regra, a vida nua passa a ser a condição humana no mundo político (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 11-12)[2]. Trata-se, contudo, de modo de dizer para mostrar algum movimento didático: não designa uma realidade posterior, apenas contemporaneamente conhecida, está na origem, é irmã gêmea do poder soberano. Nas palavras do filósofo italiano, a soberania “é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão” (AGAMBEN, 1995, p. 34) e podemos denominar de bando o decurso de colocar em risco a vida na sua consideração pelo direito, o abandono da vida, a potência e a relação de exceção que definem o paradoxo da soberania. Com o recurso de uma imagem literária da contemporaneidade, na sequência dos capítulos, a vida nua será comparada à vida de Josef K. ou àquela que se vive na aldeia ao pé do castelo, ambas narradas por Franz Kafka. Certo dia, um dia qualquer como qualquer outro, Josef K. que vivia em “um Estado de Direito onde reinava a paz por toda parte e todas as leis estavam em vigor” é detido sob circunstâncias suspeitas (KAFKA, 2005, p. 10, ligeiramente modificado). Detido em seu quarto de dormir por dois guardas portadores da devida autoridade adequada ao cargo, ele é informado que deve se sentir devedor e agradecido pelas cordialidades que lhe são feitas, sem saber no entanto qual a razão da detenção, que lei se aplica ao seu caso, que legitimidade têm os senhores para estar ali, o que diz o processo que corre contra si, qual a magnitude das ameaças diretas ou veladas que lhe são feitas. Esse seria o primeiro ato de uma ambiência em que tribunais se assemelham a cortiços labirínticos e tumultuados, cheios de pessoas desconhecidas que distraem ou atrapalham a passagem. Em cada uma das páginas da história de Josef K. resta clara a sua pequenez diante de algo que lhe é incomensurável e sobre o qual não possui qualquer domínio, resta clara a sua impotência e o seu abandono, embora não desista nunca e guarde em si alguma confiança. O estado do protagonista, recebendo como notícia um processo, é o estado de uma captura irremediável, uma inclusão que ao mesmo tempo exclui. Com elementos que atestam que a justiça que investe contra Josef K. não é uma justiça comum, Kafka quer questionar se a justiça que consideramos comum não seria também incomum. Se, tal como repete o advogado escolhido, é preciso ser um iniciado para se compreender as coisas da justiça, também aos que pretendem operá-la a justiça é inacessível, pois “a hierarquia e os escalões do tribunal são infinitos e, mesmo para o iniciado, insondáveis” (KAFKA, 2005, p. 120). Em outra história, o que vive na aldeia ao pé do castelo chama-se K. A sua chegada ao albergue da aldeia é bastante normal, ainda que o protagonista agrimensor perceba que há ali muita desinformação, alguma hostilidade contra si e a promessa de encontrar gente poderosa com a qual não poderá lidar. O castelo não se destaca na paisagem como um castelo, antes se assemelha a uma construção bem ordinária e familiar. Os caminhos para acessá-lo, contudo, são extensos e sem fim, “pois a rua em que estava [o personagem], a principal da aldeia, não levava à encosta do castelo, apenas para perto dela, e depois, como que de propósito, fazia uma curva e, embora não se afastasse do castelo, também não se aproximava dele” (KAFKA, 2000, p. 22). Durante toda a trama, K. rondará o castelo sem conseguir penetrá-lo, como se um poder extraordinário o atraísse e repelisse ao mesmo tempo mantendo-o em uma órbita paralisante. Cada passo de aproximação é um passo de afastamento. Trata-se de outro herói abandonado. Pequenas vitórias, como ser capaz de ainda menino escalar o muro da igreja local para fixar uma singela bandeira, o acompanharão durante toda a vida, mas será difícil a ele obter mais do que isso (cf. KAFKA, 2000, pp. 49-50). No geral, subordinação e insegurança impedirão decisões substanciais de K., ele se moverá de concessão em concessão. Mais uma vez, os direitos do protagonista, mas também dos camponeses e outros habitantes da aldeia, se dissolverão em funções administrativas. Essa vida literária que se vive ao pé do castelo, para Agamben e para Kafka, não é outra que a vida do cidadão comum que subsiste perante os poderes constituídos comuns das democracias contemporâneas.

Vida nua é o resultado do bando, a força simultaneamente atrativa e repulsiva que vincula ambos os polos da relação de exceção soberana, a vida nua e o poder, a relação que indica a relação política originária (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 122-123). Historicamente, assim como o estado de natureza representa o princípio interno e o limite que habita o estado civil de ordem e de paz social, ainda que sob o estandarte da exceção, a vida nua é o pressuposto sempre presente e operante da soberania (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 117-121). Sendo constitutiva da estrutura de exceção, contudo, nada exprime com maior evidência a condição de vida nua do que as circunstâncias nas quais a violência soberana pode se descarregar livremente. Tendo como horizonte a biopolítica, essa violência será traduzida em manipulação da vida eleita que merece ser promovida e abandono ou extermínio da vida indesejável ou simplesmente descartável (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 126-127). Ao politizar a vida humana, o que faz a biopolítica moderna é transformar a política no espaço da vida nua, antes mesmo dos regimes totalitários que assolaram o globo terrestre durante o decorrer do século vinte (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 131-133). O nosso mundo é aquele em que zonas de indeterminação entre a vida, a morte e a sobrevida seguem se ampliando e multiplicando. Por motivos triviais, como na contabilidade do número de mortos nas estradas em um final de semana de consumo turístico ou nos desastres ambientais previsíveis de deslizamentos de encostas e inundações, bem como por motivos programados de protecionismo ou racismo, tais como na formação de campos de retenção de migrantes ou em campanhas bélicas ou de inconfessados genocídios. Intencionando ilimitar a hipótese da vida nua, para incluir nela todo o gênero humano, o filósofo italiano terminará o seu livro chave para se compreender o conceito afirmando que “até mesmo o conceito de ‘corpo’, como aqueles de sexo e sexualidade, já está desde sempre preso em um dispositivo, ou melhor, é desde sempre corpo biopolítico e vida nua, e nada, nele ou na economia de seu prazer, parece oferecer-nos um terreno firme contra as pretensões do poder soberano” (AGAMBEN, 1995, p. 209).

Agamben denomina de vida nua o conteúdo primeiro do poder soberano, sendo igualmente a cifra exordial para o princípio da sacralidade da vida humana. Se na cultura em que estamos inseridos é absolutamente fácil defender publicamente que a vida humana é um bem em si, tem um fundamento divino e deve ser preservada, não deve ser indiferente a qualquer interlocutor a dificuldade de se encontrar uma justificativa sólida para a assertiva, especialmente após o inebriante século dezoito, quando a partir de então não se podia mais contar com valores religiosos universais. A vida humana é sagrada por que foi criada por Deus? Por que foi determinada pela evolução natural? Não, não. Na gênese de constituição do poder soberano, a vida que resta na ponta contrária está exposta a um poder de vida e morte. Ela encontra-se devotada a um poder maior, consagrada em alguma medida, devendo ser por esta razão considerada sacra. Consoante o texto do filósofo italiano, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nessa esfera”. Sendo assim, como consequência, “a sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao invés disso, na origem justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono” (AGAMBEN, 1995, pp. 92-93, sem os grifos do original). Todo discurso que hoje elogia a sacralidade da vida, mesmo que destituído de qualquer verniz religioso e com as melhores intenções, portaria involuntariamente esse sentido paradoxal e subjacente.

Em Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, a exposição inaugural que explica algumas citações anteriores descontextualizadas de vida nua (tais como no sétimo excurso de Il linguaggio e la morte, nos capítulos quinze e dezenove de La comunità che viene, no primeiro capítulo de Mezzi senza fine, que coleta textos antes publicados na revista francesa Multitudes) e abre a área de pesquisa no qual se desenvolverá o projeto filosófico homônimo de vinte anos de duração, não são poucas as vezes em que vida nua é definida como um produto da operação do poder soberano. Além de algumas passagens aqui já citadas que sustentam essa ideia, trazem-na de maneira inequívoca outros trechos que por sua relevância relacionamos a seguir.

 

Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário (AGAMBEN, 1995, p. 98, grifado no original).

 

Mais originário que o vínculo da norma positiva ou do pacto social é o vínculo soberano, que é, porém, na verdade somente uma dissolução; e aquilo que esta dissolução implica e produz – a vida nua, que habita a terra de ninguém entre a casa e a cidade – é, do ponto de vista da soberania, o elemento político originário (AGAMBEN, 1995, p. 101, grifos meus).

 

A vida nua, em que eles [os confinados nos campos de concentração históricos, mas também outros que se encontram em situações limites] foram transformados, não é um fato extrapolítico natural, que o direito deve limitar-se a verificar e reconhecer [...]. Não se compreende a especificidade do conceito nacional-socialista de raça – e, juntamente, a peculiar vagueza e inconsistência que o caracterizam – se esquece-se que o corpo biopolítico, que constitui o novo sujeito político fundamental, não é uma quaestio facti (como, por exemplo, a identificação de um certo corpo biológico) nem uma quaestio iuris (a identificação de uma certa norma a ser aplicada), mas a aposta de uma decisão política soberana (AGAMBEN, 1995, pp. 191-192, grifos meus).

 

A prestação fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé e bíos (AGAMBEN, 1995, p. 202, grifos meus).

 

Em entrevista à tradutora argentina Flavia Costa, no momento em que relançava o livro dez anos depois da primeira publicação em 1995, Giorgio Agamben assim se expressa quando perguntado sobre o plano da sua obra, suas influências, seu método, alguns conceitos que já se apresentavam como seminais e a musculatura da máquina biopolítica: “aquilo que chamo vida nua é uma produção específica do poder e não um dado natural [...] nem sequer a criança é vida nua” (AGAMBEN; COSTA, 2006). Ou seja, aquilo que podemos reconhecer como vida natural e zoé não designa a vida nua, esta última passa a ser uma realidade consistente apenas quando considerada a gênese do poder soberano. Contudo, diversas são as passagens no livro em que alguma confusão acontece, ou o emprego de um termo no lugar do outro pode provocar alguma confusão. Vejamos a seguir algumas dessas passagens. Logo na introdução do livro, até mesmo em virtude do aporte referencial que o filósofo pretende evocar, há duas passagens nas quais teria sido melhor o emprego da palavra vida no lugar de vida nua.

 

A morte impediu a Foucault desenvolver todas as implicações do conceito de biopolítica e mostrar em que sentido ele teria aprofundado ulteriormente a sua investigação; mas, em todo caso, o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico.

 

[...] E somente uma reflexão que, acolhendo a sugestão de Foucault e Benjamin, interrogue tematicamente a relação entre vida nua e política que governa secretamente as ideologias da modernidade aparentemente mais distantes entre si, poderá fazer sair o político de seu ocultamento e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento à sua vocação prática (AGAMBEN, 1995, pp. 06-07, grifos do original).

 

Em ambos os casos, o filósofo se refere à vida comum dos homens, à vida natural, e não à vida nua. Na sequência, o problema volta a se repetir em “a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário do poder soberano”, “retornar à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua”, “o sentido da definição aristotélica da pólis como oposição entre viver (zên) e viver bem (eu zên) [...] uma implicação do primeiro no segundo, da vida nua na vida politicamente qualificada”, “a política ocidental se constitui primeiramente através de uma exclusão (que é, na mesma medida, uma implicação) da vida nua” e “uma exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis, quase como se a política fosse o lugar em que o viver deve se transformar em viver bem e aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua” (AGAMBEN, 1995, pp. 09-10). Também nesses casos, a fim de evitar a confusão, teria sido melhor o emprego da palavra vida no lugar de vida nua, na medida em que o que se pretende referir é a vida representada pelo termo zoé e não aquela vida que já passou pelo crivo soberano e já compreende uma realidade desprotegida exposta ao poder de morte. Testemunha-o a frase terminativa que se tornou sintomática para os seus intérpretes, presente poucos parágrafos depois, na qual fulgura a relação indecisa entre as democracias modernas e a vida humana, a liberdade e a felicidade dos homens.

 

Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as tribulações da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, no momento mesmo no qual parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido o seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja liberação e felicidade havia dedicado todos seus esforços (AGAMBEN, 1995, p. 13).

 

Parece-me que o uso excessivo da expressão vida nua na introdução do livro gerou alguma precipitação involuntária. Apenas mais adiante na obra, especialmente na terceira parte, será possível perceber sem prejuízo a assimilação de uma noção pela outra. A constatação ocular da transformação da política no espaço da vida nua, bem como a “reivindicação da vida nua” tanto pelas democracias burguesas quanto pelos regimes totalitários que as suspenderam, acontece “apenas porque a vida biológica com as suas necessidades se tornara em todos os lugares o fato politicamente decisivo” (AGAMBEN, 1995, p. 134, grifado no original). A essa altura e majoritariamente a partir de então, a vida nua já possui os dois sentidos, o sentido de uma vida biológica e o sentido de expurgo original e contemporâneo do sistema jurídico-político. Conquanto, ao escrever sobre o instituto do Habeas corpus, Agamben volte a equivaler equivocadamente simples vida e “vida nua em seu anonimato”, restará claro que o refugiado constitui vida nua pelo rompimento da continuidade entre homem e cidadão e não por ser vida natural, assim como a vida sem valor daqueles sujeitos ao programa nacional-socialista de eutanásia constitui vida nua porque objeto de uma decisão soberana e os habitantes do campo de concentração, mormente na desfigura extrema do denominado muselmann, constituem vidas nuas porque não são mais vidas naturais, tocaram o fundo da existência pela violência que sofreram (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 137, 145, 153-155, 195 e 206-207). A vida, o dado biológico como tal, na dinâmica da biopolítica é simultaneamente fundamento da soberania e sujeito-objeto da política estatal a configurar a vida nua. Vida e política unidas na terra de ninguém da exceção soberana fazem surgir a vida nua, realidade que será extensiva virtualmente ou flagrantemente a todos os humanos (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 164-165)[3].

Recentemente, ao ser interpelado sobre o recorrente desafio de encontrar uma solução para as condições de apátrida e migrante, o filósofo romano voltou à carga para demarcar posição contra a tradicional ideia de transmissão de cidadania fundada nos critérios de ius sanguinis, o nascimento de genitores pertencentes a uma determinada cidadania nacional, e ius soli, o nascimento no território de uma determinada soberania nacional, reproduzindo ao final um sonoro verso do poeta italiano Francesco Nappo, la patria sarà quando tutti saremo stranieri (cf. AGAMBEN, 2017). Nenhuma novidade para quem acompanha os seus posicionamentos na arena política que se constrói diariamente ou para quem teve acesso ao Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita aqui estudado. A crítica da ideia de cidadania presente no livro e a discutida acepção dos direitos do homem como uma expressão da biopolítica possuem inobstante o mesmo problema já identificado. Três passagens demonstram que a linguagem utilizada chegou ao limite, com a admissão da expressão vida nua natural. A confusão é absolutamente clara: “as declarações dos direitos representam a figura originária da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como vida fruto da criação, a Deus [...]”, “[...] é justamente a vida nua natural, ou seja, o puro fato do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte e portadora do direito” e “o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez [...] o portador imediato da soberania” (AGAMBEN, 1995, pp. 140-141). Em ambas as passagens, vida natural, aquela que se obtém pelo nascimento com vida, é igualada à vida nua, com o agravante de ter sido incluído o predicado natural à vida nua. Surpreende ainda que a contradição retorne ao final do livro ao se observar que “o descolamento crescente entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nação é o fato novo da política do nosso tempo” (AGAMBEN, 1995, pp. 196-197). Como vimos, ombrear nascimento e vida nua não auxilia na compreensão do conceito.

Há uma notável publicação na qual Carlo Salzani procura demonstrar que, com o objetivo de cunhar o conceito de vida nua, a explícita derivação que Giorgio Agamben faz da frase de Walter Benjamin que contém a expressão bloße Leben em Zur Kritik der Gewalt de 1921 é problemática, uma vez que, embora o filósofo italiano apresente o conceito como o contíguo desdobramento da expressão do filósofo alemão em sua plena significância, ambas as expressões pertencem a contextos históricos, culturais e filosóficos diferentes e são forjadas por caminhos metodológicos bem assimétricos. Ainda que seja difícil apreender no texto de Benjamin o significado de bloße Leben, traduzido entre nós por mera vida, na interpretação realizada pelo professor da Universidade de Viena um significado possível, na esteira das reflexões estéticas antes levadas a termo pelo neokantiano Hermann Cohen, seria vertida da construída oposição teórica entre Naturwesen, bloße Leben, mera vida, e um modo de vida mais elevado que está além do mero fato de viver. O contrário de mero viver seria uma vida mais elevada, uma vida plenamente humana. E se “de maneira alguma o homem se reduz à mera vida” (BENJAMIN, 1996, p. 174), o vocabulário de bloße Leben deve então “cobrir o campo semântico ao qual Agamben se refere com o termo zoé – e não o do termo nuda vita” (SALZANI, 2015, pp. 101-102). Importa mais uma vez observar a ausência de equivalência entre zoé e vida nua. Tal como observamos mais acima, “a inclusão [da vida em uma ordem jurídica] ‘produz’ a nuda vita, que não é portanto simplesmente ‘mera’ vida, não é simples fato de viver, mas antes um produto, um resultado” (SALZANI, 2015, p. 116). Nesse diapasão, o filósofo italiano teria selecionado do texto do filósofo frankfurtiano a quem muito tem apreço uma expressão pouco explicada e atribuído a ela um sentido todo próprio, extrapolando os seus sentidos. No opúsculo crítico do poder e da violência, Walter Benjamin se volta para as funções do poder-violência na instituição do direito enquanto anela por outro poder que possa interromper o fluxo da violência que institui e mantém o direito, destruindo-o. “A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência”, por outro lado suscita-se “mais uma vez, a questão de um poder puro, imediato que possa impedir a marcha do poder mítico” (BENJAMIN, 1986, pp. 172-173). A mera vida aparecerá apenas na sua última página, com uma frase que parece se contrapor à justificação da matança revolucionária dos opressores, salientando-se que “é falsa e vil a afirmação de que a existência teria um valor mais alto que a existência justa, quando se toma ‘existência’ apenas no sentido de mera vida” (BENJAMIN, 1986, p. 174). Há em toda a argumentação a convicção de que a vida humana não pode coincidir com a existência biológica e que há uma errância na vida dos viventes que torna a vida humana mais justa. Como já observado, a mera vida não pode ser simplesmente traduzida por vida nua. Longe de promover um trabalho exegético, mas imbuído do espírito do texto consultado, a expressão mera vida será fonte de inspiração para Agamben, que a preencherá de sentido para compor a vida nua.

Em Precarius life: the powers of mourning and violence, coletânea de ensaios escritos após o dia 11 de setembro de 2001, que tributa o seu título em alguma medida à vida precária da vida nua, Judith Butler menciona diretamente as teses que debutam o projeto filosófico de Agamben. Aduzindo a uma distinção entre bare life e bíos politikon, na qual apenas o segundo termo está investido de sentido político e reflete por isso mesmo o ser político no contexto de uma comunidade política, a vida nua é relatada enquanto uma “vida concebida como um mínimo biológico, que se torna a condição para a qual todos somos reduzíveis, temos então que encontrar uma certa universalidade nessa condição” (BUTLER, 2004, p. 67, ligeiramente modificado). Vemos como a ambiguidade presente no texto do filósofo italiano aparece nessa única frase acima reproduzida: vida nua é equiparada à existência biológica mínima ao mesmo tempo em que é fruto de uma redução promovida pela política contemporânea. A vida biológica estará assim ao final do processo, em um sentido que tem maior proximidade como o sentido que Agamben tensiona em outro livro, L’aperto: l’uomo e l’animale de 2002, no qual o que está em jogo é o processo de animalização desencadeado pela máquina antropogênica no seu funcionamento moderno, tendo como resíduo a vida nua (cf. AGAMBEN, 2002, pp. 42-43)[4]. Com a citação direta das teses do filósofo italiano, a intenção da filósofa estadunidense é porém destacar que, tendo a vida nua revelado o atual arranjo político em que todos vivemos, “essa alegação tão genérica não nos informa como o poder funciona diferentemente para mirar e administrar certas populações, para desconstruir a humanidade de [determinados] sujeitos [...]; como soberania, entendida nesse caso como soberania estatal, trabalha diferenciando populações em bases étnicas e raciais” (BUTLER, 2004, p. 68). O incômodo teórico de Judith Butler diz respeito ao fato da universalização ou potencial universalização do conceito de vida nua para todo o mundo político humano. No ensaio anterior ao que aparece a citação de Agamben, a filósofa norte-americana afirma que o seu propósito é considerar a dimensão da vida política que infere exposição à violência e a nossa cumplicidade com isso, com a nossa vulnerabilidade para a perda e a tarefa de fazer o luto que se segue, mas com a finalidade última de encontrar nessas condições o suporte para a formação de comunidade. Mais importante, considerar criticamente quem no mundo de violência global conta efetivamente como ser humano, que vidas contam como vidas, o que faz uma vida lamentável ao lado de outras que não o são. De acordo com a autora, não é possível negligenciar que determinadas condições sob as quais determinados humanos vivem são mais vulneráveis e precárias do que outras (cf. BUTLER, 2004, pp. 19-20 e 30). Dito de maneira inversa, a filósofa quer entender por que determinadas vidas humanas não são consideradas vidas humanas.

Por diversas vezes no interior do último livro do projeto filosófico proposto, no imenso L’uso dei corpi, publicado em 2014, teve Giorgio Agamben a oportunidade de revisitar o que havia antes registrado nos outros volumes da obra. Essa intenção é mesmo confessada em vários dos seus parágrafos. O tão aguardado livro, que deveria dar um desfecho à altura do projeto filosófico e às questões que o autor havia levantado e reafirmado ao longo de anos, questões essas que dariam uma nova direção ao pensamento político contemporâneo segundo o chamariz da orelha do volume, chegou em boa hora. Nele, a forma-de-vida, escrita assim de maneira hifenizada e conceituada genericamente como a vida que não pode ser separada de sua forma, se torna o novo protagonista, para substituir a vida nua. Os elementos argumentativos que compuseram a cristalização do conceito de vida nua, entretanto, estarão no conjunto textual. Para demonstrar a evolução de um conceito para outro, tomamos a liberdade de escalonar, mais uma vez, algumas passagens que são absolutamente fundamentais para o seu entendimento. Cito-as a seguir.

 

Como o ser, também “o viver se diz de muitos modos” [...] e também aqui um desses sentidos – a vida nutritiva ou vegetativa – vem separado dos outros e pressuposto a eles. Como havíamos mostrado alhures, a vida nutritiva se torna assim o que deve ser excluído da cidade – e, ao mesmo tempo, incluído nela – como o simples viver do viver politicamente qualificado (AGAMBEN, 2014, p. 173, trecho inteiramente grifado no original).

 

Decisivo, na nossa perspectiva, é que esta divisão da vida tenha como tal imediatamente um significado político. [...] Podemos a este ponto precisar ulteriormente a articulação entre simples vida e vida politicamente qualificada, zoé e bíos, que, em Homo sacer I, havíamos posto à base da política ocidental. Aquela que podemos agora chamar de máquina ontológico-biopolítica do Ocidente se funda sobre uma divisão da vida [...]. Isto significa que o conceito de vida não poderá ser verdadeiramente pensado até que não esteja desativada a máquina biopolítica que desde sempre a capturou no seu interior através de uma série de divisões e articulações. Até então, a vida nua pesará sobre a política ocidental como um obscuro e impenetrável resíduo sacral (AGAMBEN, 2014, pp. 257-259, grifos do original).

 

A vida feliz se apresenta como uma vida que não possui a sua forma como uma parte ou como uma qualidade, mas é esta forma, é integralmente transmutada nessa [...]. Nesta nova e extrema dimensão, a antiga oposição entre bíos e zoé perde definitivamente o seu sentido. [...] Há um bíos político naquele que não possui a sua zoé como uma parte, como algo separável (isto é, como vida nua), mas é a sua zoé, é integralmente forma-de-vida (AGAMBEN, 2014, pp. 279-280, grifos do original)[5].

 

Importará, agora, primeiramente, neutralizar o dispositivo bipolar zoé/bíos. Como toda vez que nos encontramos diante de uma máquina dupla, precisamos nos guardar tanto da tentação de jogar um polo contra o outro quanto daquela de pressionar simplesmente um sobre o outro em uma nova articulação. Trata-se, assim, de render inoperosos tanto o bíos quanto o zoé, para que a forma-de-vida possa aparecer como o tertium que se tornará pensável somente a partir desta inoperosidade, deste coincidir – ou seja, decair juntamente – de bíos e zoé. [...] Feliz é, de fato, apenas aquela vida em que a divisão desaparece” (AGAMBEN, 2014, pp. 287-288, grifos do original).

 

Notemos como será neste livro reforçado o argumento da subsistência de uma separação intestina na vida nua, entre vida e forma, justamente para tornar viável a contraposição à forma-de-vida, onde deverá ser possível eliminar tal separação. Toda a linha argumentativa é costurada nesse sentido, ainda que o elemento da separação não fosse certamente o mais acentuado na configuração inicial de vida nua, e ainda que a intocável configuração inicial de vida nua permanecesse lá. Penso que o filósofo italiano, ao final do seu projeto filosófico, tenha procurado observar por outro ângulo a vida nua, com o olhar que desenvolveu ao longo dos anos e do ponto de vista do conteúdo que reservou para L’uso dei corpi. Os quase vinte anos que separam o primeiro e o último volume da série, período em que esteve envolvido em extensos debates e foi convidado a explicitar publicamente muitas vezes as suas teses, fizeram a diferença. Em dois momentos do capítulo conclusivo do volume, com a sinceridade de um escritor que fecha um ciclo, ele parece querer desfazer interpretações equivocadas, talvez maculado por algumas críticas repetitivas que escutava em suas andanças e debates. São esses momentos especiais para os que acompanham com interesse a sua produção filosófica. Primeiramente, o filósofo italiano ressalta que a arqueologia da política que estava em questão na sua obra não tinha o objetivo de corrigir conceitos, mas de colocar em questão a estrutura política originária, que exigia-se pesquisar, ao mesmo tempo exposta e escondida aos nossos olhos de cidadãos comuns. Imagino que a ressalva esteja aí incluída em decorrência de ter na introdução de primeiro volume mencionado textualmente que a tese de Michel Foucault sobre o surgimento moderno da biopolítica deveria ser corrigida (cf. AGAMBEN, 1995, p. 12) e de ter ao longo do seu trabalho feito alguns usos arbitrários de referências consagradas e suas interpretações. Em um segundo momento, que nestas linhas assume maior relevância, demonstrando alguma preocupação com a recepção do conceito de vida nua, ele sublinha que “é importante não confundir a vida nua com a vida natural. Através da sua divisão e da sua captura no dispositivo da exceção, a vida assume a forma da vida nua” (AGAMBEN, 2014, p. 333, grifos meus). A vida nua não se identifica com zoé nem com bíos, embora se alimente da articulação entre uma e outra. A afirmação é clara e deveria ser definitiva.

Muito recentemente, Giorgio Agamben escreveu o controverso Quando la casa brucia porque ancorado em inflexível continuação à controversa defesa da vida que teve lugar durante a pandemia do novo coronavírus[6]. Se ele traz uma instigante percepção ulterior de que a vida biológica é uma abstração que se pretende governar e curar e a vida nua é o que resta quando a casa queima no incêndio do mundo humano, a vida nua é mais uma vez comparada à redução da vida humana à sua existência biológica e à condição de coisa (cf. AGAMBEN, 2020, pp. 14, 19 e 11, respectivamente). Gostaríamos de terminar essas linhas tendo estabelecido maior clareza sobre os conceitos mobilizados. Mais relevante do que obter essa clareza, todavia, seria nos livrar da vida nua ou dar a ela outro sentido que nos anime. Penso eu que não é missão impossível. Os incêndios podem ser terríveis, mas não esqueçamos que o fogo é um elemento natural criativo e, como tal, pode produzir vida.

 

Referências bibliográficas

 

AGAMBEN, G. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, Torino: Einaudi, 1995.

AGAMBEN, G. Il linguaggio e la morte: un seminario sul luogo della negatività, Torino: Einaudi, 1982.

AGAMBEN, G. La comunità che viene, Torino: Bollati Boringhieri, 2001.

AGAMBEN, G. Mezzi senza fine: note sulla politica, Torino: Bollati Boringhieri, 1996.

AGAMBEN, G. L’aperto: l’uomo e l’animale, Torino: Bollati Boringhieri, 2002.

AGAMBEN, G. L’uso dei corpi, Vicenza: Neri Pozza, 2014.

AGAMBEN, G. Quando la casa brucia, Macerata: Giometti & Antonello, 2020.

AGAMBEN, G. Perché non ho firmato l’appello sullo ius soli, Quodlibet, 18/10/2017. Disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-perch-on-ho-firmato-l-appello-sullo-ius-soli  Acesso em 09/08/2022.

AGAMBEN, G.; COSTA, F. Entrevista com Giorgio Agamben, tradução de Susana Scramim, Revista do Departamento de Psicologia da UFF, vol. 18, nº 01, Niterói, jan./jun. 2006.

BENJAMIN, W. Crítica da violência – crítica do poder in Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, tradução de Willi Bolle, São Paulo: Cultrix; Universidade de São Paulo, 1986.

BUTLER, J. Precarius life: the powers of mourning and violence, London/New York: Verso, 2004.

KAFKA, F. O processo, tradução de Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

KAFKA, F. O castelo, tradução de Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

NASCIMENTO, D. A. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben, São Paulo: LiberArs, 2012.

NASCIMENTO, D. A. Umbrais de Giorgio Agamben: para onde nos conduz o homo sacer?, São Paulo: LiberArs, 2014.

NASCIMENTO, D. A. Em torno de Giorgio Agamben: sobre a política que não se vê, São Paulo: LiberArs, 2018.

NASCIMENTO, D. A. O filósofo e a pandemia um ano depois: entre uma epidemia inventada e a controversa defesa da vida. (Des)troços: Revista de Pensamento Radical, v. 02, nº 01, Belo Horizonte: UFMG, jan./jun. 2021.

SALZANI, C. From Benjamin’s bloßes Leben to Agamben’s Nuda Vita: A Genealogy, in Towards the Critique of Violence: Walter Benjamin and Giorgio Agamben, Brendan Moran and Carlo Salzani (eds), London: Bloomsbury, 2015.

 

 

Recebido: 15/08/2022                                                                                                    Received: 15/08/2022

Aprovado: 16/09/2022                                                                                                      Approved: 16/09/2022

 



[1] O presente texto é o primeiro fruto do desenvolvimento do Projeto de Pesquisa do Pós-Doutorado Por uma vida nua: releituras de Giorgio Agamben (2022-2023), em curso junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a supervisão do professor Andityas Soares de Moura Costa Matos.

[2] No livro, a vida nua define preliminarmente a condição do protagonista homo sacer, um condenado do direito romano arcaico (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 11-12). Depois de alguns anos revisitando o projeto filosófico de Giorgio Agamben, estou convencido de que a figura do homo sacer, embora atribua uma insígnia inconfundível ao projeto, seria inteiramente dispensável na linha de argumentação adotada pelo autor. Compreendo-o deste modo, mesmo sabendo que o homo sacer é apresentado textualmente como o correspondente originário da vida nua, da vida presa no bando soberano (cf. pp. 92-93). Pinçada de um período histórico clássico, a figura do homo sacer não é certamente tão relevante à defesa das teses sustentadas pelo autor quanto a constituição teórica e histórica do poder soberano e da também constitutiva relação de exceção que lhe é adjacente.

[3] Temos atinado para o significado do advérbio virtualmente por Giorgio Agamben. Ele costuma designar uma realidade escondida, o que não é evidente, como aquilo que está sendo posto a descoberto (cf. AGAMBEN, 1995, pp. 123, 191 e 195). Algumas vezes, virtual aparece como o contrário de efetivo, como na passagem em que estado de exceção virtual, aquele não declarado ainda que possa ser assim compreendido, é antagonizado com estado de exceção efetivo (cf. p. 64).

[4] Utiliza-se no texto a palavra animalização para se indicar o que ocorre com o homem pelo pleno funcionamento da moderna máquina antropogênica ou antropológica, mas o que resulta da operação nem é vida animal semelhante à vida natural, nem é propriamente vida humana, o que resulta é apenas uma vida espoliada de si mesma, uma vida nua.

[5] Ainda que isso não fosse desejável, cabe observar o uso atravessado de vida nua entre os parênteses nesta citação direta reproduzida, na medida em que a formação da frase sugere similitude entre zoé e vida nua.

[6] Em outro momento já me pronunciei sobre o que penso dos posicionamentos do filósofo italiano sobre os eventos desencadeados pela pandemia mundial (cf. NASCIMENTO, 2021).