THE INTERMITTENCES OF THE HISTORICAL OBJECT: CRITICISM OF PROGRESS AND MEANINGS OF THE REVOLUTION IN WALTER BENJAMIN
Gilmário Costa
Universidade Federal de Goiás – UFG
E-mail: gilmario.filosofia@gmail.com
Resumo
Este artigo investiga a articulação entre crítica do progresso e sentidos da revolução na filosofia benjaminiana. É comum a ambos o questionamento das ameaças fascistas da época e o exame dos motivos, meios e possibilidades de subversão do sistema capitalista. Nesse itinerário, Benjamin recusa formulações marxistas mecanicistas, especialmente aquelas desenvolvidas no âmbito da II Internacional, em favor do sentido da revolução relacionado à luta de classes. A isso correspondia a exigência de articulação entre teoria e prática com vistas a uma crítica, que pretendia ser radical, da sociedade burguesa. O questionamento da imagem triunfalista de progresso constituía um fundamento desse conceito de revolução e da crítica ao fascismo.
Palavras-chave: revolução; fascismo; história; escrita; Walter Benjamin
Abstract
This paper aims to investigate the articulation between the critique of progress and the meaning of revolution in the Benjaminian philosophy. They both face the fascist threats of the time and inquiry the motives, means, and possibilities of subverting the Capitalist system. In this way Benjamin do not follow mechanistic Marxist formulations, especially those which were developed during the II International; instead, he relates the meaning of revolution to class struggle. This corresponded to the demand for articulating theory and praxis toward a critique, which was intended as radical, to the bourgeois society. The refusal of the triumphalist image of the progress established the foundation of the concept of revolution and of the critique of the fascism.
Keywords: revolution; fascism; history; writing; Walter Benjamin
O problema da revolução na obra de Walter Benjamin resultou em uma reelaboração heterodoxa dos conceitos marxistas, submetendo-os a novas indagações e às possibilidades de avaliação crítica da história contemporânea. Os instrumentos de análise são variados e os conceitos não seguem um desenvolvimento unívoco. É possível, no entanto, identificar o interesse constante em refletir acerca das ameaças fascistas da época e, o que se lhe afigurava uma exigência complementar, em discernir os motivos, os meios e as possibilidades de subversão do sistema capitalista. Em um fragmento do trabalho das Passagens manifesta-se semelhante finalidade: “A experiência de nossa geração: o capitalismo não morrerá de morte natural” (BENJAMIN, 2006, X 11a, 3, p. 708). Pressupõe-se aqui a recusa a formulações marxistas mecanicistas, mormente as que se consolidaram durante a Segunda Internacional, marcadas pela ênfase na dinâmica da correlação de forças objetivas sem espaço significativo para a práxis revolucionária propriamente dita. Esse e outros fragmentos das Passagens compreendem o sentido da revolução intrinsicamente relacionado ao de luta de classes, especialmente em sua exigência de articulação entre teoria e prática com vistas a uma crítica, que pretendia ser radical, da sociedade burguesa.
No último texto que escreveu, as teses Sobre o conceito de história (1940)[1], tais preocupações assumem um novo sentido de urgência. Compostas sob o impacto do acordo de não agressão recíproca firmado entre Hitler e Stalin em 23 de agosto de 1939 - e que deixaria perplexos os adversários do fascismo -, o interesse pelo marxismo não se dirige apenas à crítica estrutural do sistema capitalista, mas também às possibilidades de se enfrentar a barbárie discernível no horizonte da época. Tocado por essas dificuldades, pretende submeter a questionamento a imagem triunfalista de progresso presente nas teorias da história desenvolvidas pelo historicismo e pela socialdemocracia, as quais fundaram narrativas que pressupunham existir uma racionalidade no processo histórico decorrente das qualidades imanentes aos eventos de que tratavam. Benjamin manifesta dúvidas com respeito ao caráter ontológico das leis da história, as quais talvez disfarçassem as escolhas interpretativas dos responsáveis por sua formulação. Mais diretamente, demonstra que semelhante concepção triunfalista retira aos intérpretes os meios necessários à crítica ao fascismo, pois, a se levar adiante a inferência dos seus argumentos, o instante presente se justificava lógica e ontologicamente por ser ele etapa necessária ao desenvolvimento progressivo da história.
Mediante desvios na elaboração teórica hegemônica do marxismo da Segunda Internacional, Benjamin experimenta caminhos diferente. Articula exigências metodológicas apropriadas e o encontro de meios expositivos distintos dos seguidos pelas ciências, caracterizadas no “Prefácio” à Origem do Trauerspiel alemão como more geométrico[2]. Reivindica para isso expedientes firmados no conceito de interrupção, o que o leva ao abandono da narrativa histórica contínua de modo que possa surpreender na aparente ordem dos eventos os sinais da catástrofe política. É um modo radical de se pensar a revolução no qual entram elementos marxistas e temas tomados ao messianismo judaico: “O conceito-chave é o da interrupção da história, de Unterbrechung messiânica ou de Stillstand (paralisação) historiográfico” (GAGNEBIN, 1999, p. 96). Uma filosofia da história assente nas contribuições do materialismo e do messianismo encerra dificuldades consideráveis, em função dos pressupostos ontológicos e epistemológicos muito diferentes encontrados em cada um deles. No caso do pensamento benjaminiano, acrescenta-se uma segunda dificuldade: não há ecletismo nessa formulação. As duas correntes mantêm-se como polos em tensão que movimentam os conceitos e a crítica, bem como confluem para a crítica do progresso e para o(s) sentido(s) da revolução.
Comecemos por uma passagem acrescentada tardiamente ao texto das Teses e que nos insere nos principais problemas do conceito benjaminiano de revolução. Os organizadores das Obras coligidas (Gesammelte Schriften), Tiedermann e Schweppenhäuser, incluíram o fragmento XVIIa nos suplementos do texto principal, dos quais constam a nota explicativa que elaboraram e a que se seguem alguns materiais do próprio Benjamin, os paralipômenos. Em um exemplar encontrado por Giorgio Agamben, o texto aparecia com o número XVIII, o que indicava a intenção do filósofo alemão de incluí-lo na versão final da obra (LÖWY, 2005, p. 38). Sobressai em suas linhas a crítica à socialdemocracia e aos seus teóricos, que se serviam de um marxismo mecanicista e uma análise insatisfatória da situação política, além de julgarem serem os aprimoramentos da técnica e o aumento da riqueza suficientes para melhorar a situação da classe trabalhadora. A argumentação seguida no texto busca contrapor à espera passiva dos socialdemocratas o olhar atento às possibilidades abertas no movimento da realidade histórica. Citamos o texto na íntegra:
Marx secularizou a representação do tempo messiânico na representação da sociedade sem classes. E estava bem assim. O infortúnio começou quando a socialdemocracia alçou essa representação a um ideal. O ideal foi definido, na doutrina neokantiana, como uma tarefa infinita. E essa doutrina era a filosofia elementar do partido socialdemocrata – de Schmidt e Stadler a Natorp e Vorländer. Uma vez definida a sociedade sem classes como tarefa infinita, o tempo homogêneo e vazio transformava-se, por assim dizer, em uma ante-sala, em que se podia esperar com mais ou menos serenidade a chegada de uma situação revolucionária. Na realidade, não há um só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária – ela precisa apenas ser definida como uma chance específica, ou seja, como chance de uma solução inteiramente nova em face de uma tarefa inteiramente nova. Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de cada instante histórico se confirma a partir da situação política. Mas ela se lhe confirma não menos pelo poder-chave desse instante sobre um compartimento inteiramente determinado, até então fechado, do passado. A entrada nesse compartimento coincide estritamente com a ação política; e é por essa entrada que a ação política, por mais aniquiladora que seja, pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada.). (BENJAMIN, 2005, p. 134; 1991a, p. 1231).
O substantivo feminino Vorstellung (representação) e o verbo säkularisieren sublinham a relação entre tempo messiânico e sociedade sem classes. A observação sugere que o procedimento adotado por Benjamin, que inter-relaciona materialismo e teologia, não era estranho ao sentido do próprio pensamento de Marx. Tais vínculos pareciam corretos pelas razões que se apresentam na sequência. O modo como se os qualifica talvez surpreenda pela brevidade, mas se estrutura como frase adversativa que, em termos estilísticos, oferece o contraste apropriado com a mudança levada a cabo pela socialdemocracia. O texto parece sugerir que a secularização sobre a qual Marx refletiu, rica em sentido e consequência, tornou-se, com os pensadores socialdemocratas, em ideal de uma secularização mais radical apenas na aparência, uma vez que a ausência de conteúdo propriamente teológico se fez ao preço de uma mistificação do próprio movimento histórico. O “desencantamento do mundo”, segundo a célebre expressão weberiana, que presidiria as formulações socialdemocratas, não estava destituída de novas formas de fetichismo, difíceis de se devassarem por presumirem operar em nível crítico. Esse infortúnio (Unheil), no sentido político de “desastre” e “calamidade”, deveu-se a um processo de idealização e hipostasia da marcha do movimento histórico. O verbo utilizado nessa passagem – erheben – tem a acepção de “elevar” e “erguer”. Inscreve em imagens eminentes a representação da sociedade sem classes, destituindo-as da materialidade da ação política. Configura, ironicamente, uma imagem idealista de uma explicação materialista da história.
A filosofia que instruía o pensamento político da socialdemocracia alemã à época devia a sua orientação mais exatamente ao neokantismo que ao marxismo. Em vez de situar-se no plano finito da práxis, elevou o olhar para a realização futura da história em uma utopia esvaziada de significação política. A expressão “tarefa infinita” (die unendliche Aufgabe) já estava presente na filosofia fichtiana e nos românticos alemães. No pensamento desses autores a tarefa e o esforço (Aufgabe e Streben, respectivamente) associam-se à aspiração moral de liberdade e perfeição, de caráter infinito, não passível de realizar-se nesta vida em toda a sua plenitude. De outro modo, semelhante tentativa representaria um término, o que implica limitação e finitude, ambos incompatíveis com a semântica do infinito produzida pelo Eu. Sobressai em todo esse passo o esforço infinito do eu: “a atividade pura do eu, que retorna a si mesma, é em relação a um objeto possível um esforço; e aliás, conforme a demonstração acima, um esforço infinito” (FICHTE, 1980, p. 141).
A dificuldade das relações assim dispostas reside nas consequências políticas que os socialdemocratas delas retiraram em contato com o neokantismo. O ideal a que dirigiram as suas reflexões pressupõe uma ordem na história capaz de conduzi-la ao aprimoramento humano, afastando-se da ideia de “tempo messiânico secularizado” intrínseco à filosofia marxiana. Nem pode precaver-se com respeito à emergência da catástrofe, tampouco pode conceder-se o tempo da interrupção messiânica. Nessa tarefa infinita estão enredados historiadores, filósofos e atores políticos diversos, demasiado ocupados com a administração da tarefa revolucionária para que a mudança efetiva possa orientar a ação. Benjamin refere-se à filosofia que organizava tal pensamento como “filosofia escolar” (Schulphilosophie), a qual seria a base do partido socialdemocrata alemão. A qualificação não se dirige ao neokantismo – que chama de Lehre, doutrina –, mas à maneira com que foi recebido por esses representantes políticos, cujos resultados precários advinham de um pensamento inconsistente e marcado por mistificações.
Outro aspecto discutível nessa linha de pensamento é a disposição de um “tempo homogêneo e vazio” (die leere und homogene Zeit), o que Benjamin também sublinha em outras passagens do trabalho (tese XVII e Apêndice B). Caracterizada pela equivalência e destituída de significado, semelhante temporalidade estrutura a própria ordem de relações da sociedade burguesa que esses teóricos esperavam superar. Na imagem da antessala (Vorzimmer), como lugar de espera, compõe-se o movimento não-revolucionário de uma retórica da revolução. A “situação revolucionária” (die revolutionäre Situation), que viria da entrada (Eintritt), conforma o objeto de uma espera seguida com serenidade (Gelassenheit). Trata-se de um tipo de “teologia não secularizada” inserida no âmbito das formas de desenvolvimento do capitalismo tardio. Ao caráter problemático associa-se o não reconhecimento dos termos metafísicos dos seus próprios pressupostos, pois se o fizesse, conduzir-se-ia ao núcleo efetivamente crítico da interrupção do elo de eventos que impossibilitou diversos segmentos da esquerda alemã e europeia de divisar na aparente ordem da sucessão histórica os indícios de caos e barbárie que ela escondia. A ação encontrava-se prejudicada por um pensamento iludido por formas fetichizadas diversas.
Com as expressões "Instante” (Augenblick) e “oportunidade revolucionária” (die revolutionäre Chance), Benjamin ressalta a intensidade da ruptura revolucionária que enfrenta as contradições e o esquecimento. Nessa tese a ênfase também recai no pensador revolucionário (der revolutionäre Denker), e não apenas na classe revolucionária. É coerente com o debate que pretende estabelecer com as propostas teóricas do neokantismo a fim de sublinhar uma teoria que não perca de vista a práxis, analisando as ressonâncias entre história e política. Em vez de tarefa infinita e nexo de eventos, o pensador revolucionário mantém-se atento à oportunidade de uma ação no presente, e que se revestia, à época em que Benjamin escrevia as Teses, de um sentimento de urgência face às vitórias sucessivas do fascismo.
O fragmento XVIIa investe dessa maneira contra a alienação no campo de uma história observada à distância, sem traços e sem origem. A entrada e acesso (Eintritt) aos compartimentos da casa forjam-se pela ação política (die politische Aktion), e é desse modo que se poderia reconhecer a promessa messiânica, mais consentânea com as expectativas de uma nova solução do que a tarefa infinita que instruía uma ação sempre adiada. No desfecho da tese o termo “interrupção” concede o arremate à linha expositiva principal do texto. A sociedade sem classes (die klassenlose Gesellschaft) não alude à conclusão de um desenvolvimento histórico, mas precisamente à cesura no mesmo desenvolvimento, dirigindo-se a uma história aberta. Entram nesse plano o entrelaçamento crítico de conceitos e ideias importantes que serão objeto de estudo nas seções que se seguem.
As críticas benjaminianas à historiografia desenvolvida pela socialdemocracia e pelo historicismo tinham o objetivo de avaliar as alternativas de enfrentamento do fascismo. Para isso, julgava necessário identificar as diretrizes políticas mais apropriadas e elaborar uma crítica da epistemologia dominante – duas atividades correlacionadas e inseparáveis. Era claro para o seu autor que as formulações teóricas firmadas nas diretrizes marxistas ortodoxas da II Internacional demonstraram ineficácia em lidar com os perigos históricos que se disseminavam a princípio na Alemanha, mas que não tardariam a atingir em alguma medida todo o mundo. Os fracassos colhidos em 1914 e em 1933 expuseram tais problemas, e, no entanto, não conduziram as suas lideranças a reelaborarem as bases teóricas das suas decisões. Benjamin desenvolveu algumas saídas a esses impasses em um artigo intitulado Eduard Fuchs, colecionador e historiador (1937), no qual se encontram alguns esclarecimentos para os problemas que investigamos e formulações que antecipam as ideias dispostas nas Teses.
O ensaio resultou de uma difícil gestação, em virtude das exigências dos diretores[3] do Instituto de Pesquisas Sociais, cuja sede, à época, havia se mudado para Nova York. Apresenta-se nele uma ideia importante para o estudo do problema da revolução: a noção de ruptura. No exame minucioso a que submete a ideologia do progresso, retoma em bases próprias o método da dialética materialista por meio do recurso ao caráter destrutivo – bem como ao seu correlato dialético, o princípio construtivo.
A correspondência entre construção e destruição manifesta-se em diversos momentos da obra benjaminiana, conquanto assumam feição própria em cada uma das suas fases e mesmo em textos contemporâneos entre si. Nos trabalhos de maturidade associam-se ao intrincado processo de memória e escrita do passado, que importa em destruição dialética do contínuo narrativo: “A ênfase sobre a descontinuidade indica um lado destrutivo da historiografia do materialismo histórico. Essa historiografia segue um princípio construtivo, mas pressupõe dialeticamente uma destruição” (MACHADO, 2013, p. 40). No breve escrito O caráter destrutivo, de 1931, Benjamin insiste em que não se trata apenas da atividade destrutiva, mas também da destruição do próprio caráter naquilo que ele teria de duradouro e constante[4]. As ruínas mencionadas nesse texto parecem aduzir o eterno retorno das relações e objetos do capitalismo tardio, com o fim de lhes quebrar o encanto. É nesse sentido que se faz referência ao risco e se o toma como pressuposto no trabalho de construção. Resistindo a exigências instrumentais, o caráter destrutivo deixa o espaço vazio, sem obrigação de preenchê-lo de imediato: “Primeiramente, pelo menos por um instante, o espaço vazio, o lugar onde se encontrava a coisa, onde vivia a vítima. Certamente vai aparecer alguém que precise dele, sem ocupá-lo” (BENJAMIN, 1986. 187). Sobressai dentre os atributos de semelhante caráter o fato de ele estar cercado de pessoas, como é peculiar ao trabalho político, revestindo-se de publicidade e manifestando a sua recusa a todo segredo (BENJAMIN, 1986, p. 187). Todo esse processo, devido aos seus passos de aniquilamento, busca descobrir novas possibilidades de apresentar a tradição e, no caso que nos interessa mais diretamente aqui, de considerar as razões e os meios de se pensar a abertura da história na qual se aproximam e se recriam em suas distâncias o passado e o presente.
Em seu ensaio sobre Fuchs, Benjamin retira consequências significativas dos problemas da transmissibilidade da tradição. Ele comenta uma carta de Engels a Mehring, datada de 14 de julho de 1893, na qual se ressalta a importância da recepção das ideias e obras, considerando insatisfatório um método que se orienta pela série histórica na qual os autores sucedem cronologicamente uns aos outros. Em grande medida, interessa a Benjamin a hipótese de que a recepção e a influência problematizam a simples linearidade histórica e, assim, conduzem ao problema da transmissibilidade da tradição. Tais pressupostos formam o horizonte para uma tomada de decisão no presente com respeito ao passado, nisso incluindo elementos redentores: “Porque é irrecuperável toda imagem do passado que ameaça desaparecer com todo presente que não se reconheceu como presente intencionado nela” (BENJAMIN, 2010, p. 110; 1991b, p. 468). A imagem do passado é inseparável do tipo de historiografia que se escolhe realizar. Dentre as diversas modalidades desenvolvidas pelos historiadores, Benjamin detém-se no tipo de escrita marcada pela continuidade, que se liga à ideia de progresso. Esta se firma no suposto enredamento entre passado e presente, cujos elos conduziriam a etapas mais avançadas de desenvolvimento material, nas quais figuram os aprimoramentos da tecnologia e das condições de saúde e alimentação.
Tais pressupostos seriam encontradiços no historicismo, e Benjamin nota que a despeito dos dados materiais de que os seus representantes se servem, os resultados obtidos suscitam muitos problemas[5]. Um deles é a exposição unidimensional das conquistas do progresso, as quais exibem e se comprometem com uma noção de tempo vazio e com uma continuidade afim à reificação – ou, noutros termos, desdobram processos de naturalização da narrativa histórica que os encerra em pressupostos teóricos carentes de historicidade. Benjamin julga possível e necessário elaborar outro tipo de historiografia: “Acionar no contexto da história a experiência que é para cada presente uma experiência originária – é essa a tarefa do materialista histórico, que se dirige a uma consciência do presente que destrói o contínuo da história” (BENJAMIN, 2010, p. 110). Duas formas de apresentação (Darstellung) do passado se contrapõem aqui, a historicista e a materialista. A primeira recorre a uma imagem eterna (das ewige Bild) procedente de um método rigoroso de articulação dos elos do passado firmada no princípio de causalidade. A segunda, por seu turno, configura uma imagem única do passado, e é precisamente a legitimidade dos princípios causais e da articulação dos eventos o que se coloca em questão. De modo distinto ao seguido pelo historicismo, o método materialista assim proposto sustenta a impossibilidade de se narrar a história ao modo de um encadeamento lógico e politicamente imparcial.
Em uma passagem dos materiais preparatórios das Teses, a importância da forma de apresentação na escrita da história é expressa diretamente: “Numa abordagem materialista, o momento épico será inelutavelmente destruído pelo próprio processo de construção. É preciso contar com a liquidação do elemento épico, tal como Marx, enquanto autor, o fez em O Capital” (BENJAMIN, 2010, p. 162)[6]. Se o historicismo expõe os resultados da sua investigação por meio do recurso ao épico, assim compreendido em termos de uma narrativa tradicional e de uma qualificação triunfalista da ação humana[7], o materialismo concentra-se em livrar dessas amarras forças esquecidas e submetidas à violência tanto política quanto narrativa. A fim de levar a cabo esse propósito, aproxima-se do princípio construtivo das vanguardas, das quais Benjamin foi um dos seus principais intérpretes.
O signo de ruptura do encadeamento histórico a que se poderia associar a práxis também comparece nas considerações mais especificamente estéticas do trabalho sobre Fuchs. Vale mencionar a análise das linhas diretrizes da política cultural do Partido Socialdemocrata Alemão. Este lidava com um afluxo considerável de trabalhadores em suas fileiras, o que levava os dirigentes partidários a discutirem os rumos da educação não apenas política, mas também cultural dos membros. É justamente nesse plano que Benjamin identifica fragilidades. A primeira delas dizia respeito ao trabalho de divulgação científica que tomava os membros do partido como público, e não como classe. A segunda, decorrente da anterior, relacionava-se ao recurso à mesma estrutura epistemológica que ligava saber e poder, com que se presumia ser possível superar a dominação da burguesia pelo proletariado. Repercutia uma mesma estrutura de poder associada à ciência, se bem que com planos sociais invertidos, e, sobretudo, abandonava-se o terreno da práxis, o único capaz de situar o conhecimento no âmbito de interesse efetivo da classe trabalhadora, e isso por dois motivos: a práxis conduz o conhecimento ao âmbito do trabalho, resistindo a quaisquer hipóstases entre os dois planos; e leva igualmente aos caminhos de superação das relações reificadas entre o conhecimento e a divisão social do trabalho: “Na verdade, um saber sem acesso à práxis [ohne Zugang zur Praxis] e que nada podia ensinar ao proletariado sobre a sua situação de classe era inofensivo para os seus opressores [Unterdrücker]” (BENJAMIN, 2010, p. 114; 1991b, p. 472-473).
As observações estéticas mencionadas vinculam-se à crítica da temporalidade linear aplicada à história da cultura, a qual pretende expor as grandes obras do passado e servir-se de metodologia rigorosa de investigação. Desconsideram-se, entretanto, as condições concretas de produção cultural ligadas a determinados estágios de exploração do trabalho. O historiador materialista desconfiaria, diferentemente, das operações com que se celebram as grandes obras do espírito humano como estratégia de legitimação ideológica da classe dominante. Tal seria outra maneira de manejar a “imagem do passado”, referida no início do ensaio, de modo que transcendesse os horrores do passado. A configuração assim disposta apenas faria justiça à história se, paradoxalmente, fracassasse. Benjamin evidencia desse modo um ajuste de forças e tensões em que o conjunto da arte e da ciência
[...] deve a sua existência não apenas ao esforço dos gênios seus criadores, mas também, em maior ou menor grau, à escravidão anônima dos seus contemporâneos [der namenlosen Fron ihrer Zeitgenossen]. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. Nenhuma história da cultura fez ainda justiça ao que de essencial há nesse fato, e dificilmente pode esperar fazê-lo. (BENJAMIN, 2010, p. 117-118; 1991b, p. 476-477)[8].
Por meio do materialismo histórico – conforme Benjamin o entende ou sobre o qual projeta o próprio pensamento –, realiza-se a crítica da apropriação fetichista da cultura, definida como o processo de transformação dos objetos em mercadorias. A explicação para isso residiria na ausência, em tais circunstâncias, de experiência autêntica (echte Erfahrung), que nessa passagem significa experiência política. O caráter destrutivo da dialética dirige-se então contra o fetichismo da cultura, contra as suas representações fantasmagóricas. Semelhante proposição retira a aparência de acabamento do passado e descerra as vias mais propícias à revolução, assim como à inter-relação não reificada e não linear entre passado e presente. É nesse sentido que se pode compreender a tese de que a recepção revivifica a obra do passado. Disso decorre o ceticismo com as tentativas de se realizar uma história da cultura, cuja riqueza de objetos acumulados em suas investigações convenceu as lideranças socialistas das possibilidades educacionais que se abriam. Uma análise mais distanciada e resistente a triunfalismos haveria de revelar um procedimento meramente acumulativo e pouco crítico, ao qual Benjamin contrapõe o “caráter destrutivo” de sua dialética materialista.
Nas Teses, a investigação e os resultados alcançados no ensaio sobre Fuchs seriam conduzidos a consequências mais radicais do ponto de vista crítico e expressivo.
Benjamin aprofunda nas Teses as suas críticas à ideologia do progresso. No fragmento IX, empregam-se radicalidade de juízo e riqueza imagética singulares na literatura marxista da primeira metade do século XX:
Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus". Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar [starrt]. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos [eine Kette von Begebenheiten] aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe [eine einzige Katastrophe], que sem cessar amontoa escombros [Trümmer] sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços [Zerschlagene]. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nos chamamos de progresso é essa tempestade. (BENJAMIN, 2005, tese IX, p. 87; 1991a, p. 697-698).
Mediante descrição eminentemente visual, o autor discorre sobre o quadro Angelus novus (1920), de Paul Klee[9]. Focaliza uma parte dele, o anjo, e ainda mais especificamente a perplexidade do olhar. Ao plano descritivo segue-se a conjectura da sua afinidade com o anjo da história. A ênfase no olhar convém ao efeito de perspectiva associado à escrita da história, o que implica, no caso das Teses, o compromisso com a exposição de meandros esquecidos do passado. Obtêm-se tais ideias por meio de uma montagem textual contraposta à linearidade causal.
A metáfora do olhar como metáfora da história parece ser uma intuição importante do texto, acompanhando-o até às frases finais. Corresponde à imagem do passado que estrutura uma das suas preocupações não apenas nessa tese, mas no conjunto das suas investigações materialistas da história. O anjo olha para o passado, e não para o escritor, no presente da enunciação sem manifestar satisfação com o vulto futuro dos acontecimentos. O olhar alegórico que lhe empresta a leitura alegórica de Benjamin rompe as articulações reificadas, procedendo ao inventário dos escombros que certa unidade textual intentava esconder. Inclui-se nessa reflexão o interesse pelos modos de apresentação da escrita da história, especialmente com os conteúdos esquecidos em escolhas linguísticas marcadas pela continuidade narrativa. A frase que encerra a tese dimensiona em sua construção o movimento catastrófico entrevisto pelo anjo da história: inicia-se com as luzes do progresso e conclui com a tempestade da barbárie. A ideia de progresso pressupõe que estágios sucessivos no tempo atestariam o aperfeiçoamento da história, servindo os resultados de determinada etapa como meio para o avanço em direção ao futuro. Disso decorre que, embora se lamentem os infortúnios vividos, não se pode negar a sua necessidade. Diferentemente, a crítica expressa na tese IX confronta os postulados da ideia de progresso e as suas consequências tanto epistemológicas – na descrição dos eventos históricos – quanto políticas – nas ações precárias em relação ao fascismo.
Benjamin recorre à figura do anjo em diversas passagens da sua obra. Para referirmos um exemplo inicial, ele cultivou o projeto, que nunca se concretizou, de publicar uma revista intitulada Angelus novus. Chegou mesmo a escrever a sua apresentação, na qual se acham ideias estéticas significativas. Nessas múltiplas intercorrências do anjo, ele não assume o sentido tradicional de mensageiro. Robert Alter nota que as descrições e imagens benjaminianas “afastam o anjo do âmbito da revelação e das mensagens divinas” (ALTER, 1992, p. 149). A tensão entre passado e presente, constante em sua obra, agudiza-se aqui com as imagens de ruínas e catástrofes atinentes à história em sentido amplo e à necessidade de uma escrita dos vencidos. Também encerra uma referência mais imediata à emergência e vitória provisória do nazifascismo, favorecida pelo pacto Molotov-Ribbentrop entre União Soviética e Alemanha assinado no ano anterior ao da composição das teses e que instruía a não agressão recíproca entre os dois países. Em tais circunstâncias, o anjo não figura como intermediário entre os planos transcendente e imanente, mas como representação temporal: “num eixo temporal entre o sonho da origem paradisíaca e o prospecto inconcebível – ou seria ele um pesadelo? – daquilo que se encontra no fim da longa catástrofe da história” (ALTER, 1992, p. 150). Os elementos assim dispostos ensejam a hipótese de que o anjo da história não assume a função de um mensageiro, mas de testemunha. Seu campo é a rememoração[10] do inacabamento do passado que espera a salvação.
Há mais um aspecto da tese IX que exige comentários adicionais. A expressão “juntar os destroços” (das Zerschlagene zusammenfügen) apresentaria vínculos com a doutrina judaica da Tikkun, segundo esclarece Michel Löwy (2005, p. 94). Em um ensaio sobre o messianismo judaico, Gerschom Scholem apresenta os princípios dessa doutrina, seguindo em especial os ensinamentos do místico e cabalista Isaac Luria (1734-1572), que expôs em linguagem mística processos cósmicos complexos, recorrendo em alguns momentos às doutrinas da Schevirat Há-Keilim (ruptura dos vasos) e da Tikun (reparação). A primeira concebe a penetração da luz divina no espaço primitivo em diversos estágios e formas. Após um demorado e complexo seguimento as dispersões múltiplas dessa luz foram reunidas em vasos especiais. Dentre as diversas ordens dessa luz, as mais inferiores emanaram subitamente, provocando fraturas nos vasos. Elementos demoníacos penetraram no mundo, mas algumas frágeis manifestações daquela luz originária encontram-se nos fragmentos: “Os diabólicos mundos ínferos do mal […] emergiram dos fragmentos que ainda retinham algumas centelhas de luz divina. […] Deste modo, os bons elementos da ordem divina vieram misturar-se aos viciosos” (SCHOLEM, 1972, p. 271). Tal evento oferece o horizonte de entendimento do significado da salvação explicitada como restituição (Tikun) da forma original. A chegada do Messias levaria ao seu arremate todo o processo: “o aparecimento do Messias nada mais é que a consumação do processo contínuo da Restauração, do Tikun” (SCHOLEM, 1972, p. 277). Destarte, “juntar os destroços” assume um sentido soteriológico associado ao anjo da história, cujo cumprimento, em vez de uma garantia, assume caráter problemático devido às múltiplas manifestações da ideologia do progresso. Há aqui uma contradição insanável entre o demorar-se do anjo face às ruínas e o desenrolar-se do progresso rumo ao futuro.
Referimo-nos acima ao construto eminentemente visual da tese IX. Ao dispor o fragmento por meio de uma escrita alegórica, o pensador alemão acentua a profusão de ruínas acumuladas aos pés do anjo, deparando ao leitor uma atmosfera carregada e com visualidade vacilante. O anjo ensaia um movimento duplo: o de despertar dos mortos – é provável que se trate de expressão simultaneamente teológica e política – e, em linguagem agora da mística de Luria, de restituição desses escombros em uma unidade novamente viva. No entanto, talvez se deva fazer o reparo de que o direcionamento materialista das teses coloque obstáculos à simples ideia de restauração. Tomaria, nesse caso, a imagem mística como modo de conceber a unidade de uma experiência política profana futura e, sobretudo, reconhecer como etapa necessária da práxis revolucionária o compromisso com os mortos. Seria possível reconhecer o caráter positivo dessa tensão dos planos teológico e materialista se se leva em consideração o contexto do documento. Guardaria referência cifrada às vitórias do fascismo contra as quais se perfaz uma restituição crítica, e não conservadora – ao escolher o termo “catástrofe”, Benjamin possivelmente indica que não seria nada razoável, nem mesmo desejável, o retorno a um estágio primevo, movendo-o antes a disposição em forjar os meios de uma escrita radical da história. A ironia da tempestade do paraíso que conduz a história às suas etapas seguintes, apesar das ruínas e escombros, conforma a substância do questionamento crítico da ideologia do progresso que tem nesse pequeno texto uma das suas expressões mais contundentes.
A avaliação materialista peculiar do progresso assim elaborada, e que já acompanhamos no ensaio sobre Eduard Fuchs, também compõe parte das reflexões benjaminianas no trabalho das Passagens. Em certa altura do arquivo K desenvolvem-se as implicações do método dialético para a crítica do progresso. Aceita a caracterização de que o método dialético se ocupe da “situação histórica concreta” (konkrete-geschichtliche Situation) do objeto. Entretanto, seria necessário acrescentar outra exigência não menos importante, a do interesse pelo objeto, o que significa resistir à neutralidade supostamente alheia às demandas do presente. As figuras do despertar e da explosão conferem nesses termos a força imagética à escolha política na relação com o passado: “acende o pavio do material explosivo que se situa no ocorrido […]. Abordar desta maneira o ocorrido significa estudá-lo não como se fez até agora, de maneira histórica, mas de maneira política, com categorias políticas” (BENJAMIN, 2006, K 2, 3, p. 437)[11]. Seriam questionáveis as premissas epistemológicas de certa caracterização da história comprometida com a distância axiológica dos fatos passados e com a descrição dos princípios causais necessários ao seu desenvolvimento progressista. Francisco Machado está correto em discernir nessas escolhas do filósofo alemão o compromisso com a resistência ao conformismo face ao arbítrio sistemático do poder: “A teoria da história de Benjamin supera a neutralização num nível político-prático ao chamar a atenção para a possibilidade de uma ação consciente e libertadora no presente como superação de situações de opressão” (2013, p. 223). Pode-se identificar pelo menos uma formulação contraditória na ideologia do progresso. Professa a marcha rumo a estágios superiores de desenvolvimento da história de modo tão peremptório que finda por destituir de relevância a práxis humana capaz de retificar rumos e romper encadeamentos em favor precisamente de um progresso da humanidade. A defesa amiúde dogmática dessa marcha opera a despeito dos próprios sujeitos do processo e só poderia servir aos interesses de quem se beneficia atavicamente dos seus resultados. O progresso concerne mais a uma possibilidade do que a um dado e só pode legitimar-se mediante as interrupções e a rememoração que tornam factível enfrentar a barbárie que não se aparta do seu movimento.
Finalmente, vale referir alguns tópicos do arquivo N das Passagens, o qual nos permite retomar em linhas mais avançadas os problemas examinados nas seções anteriores. Ele tem como tema a teoria do conhecimento e a teoria progresso. Dentre os elementos presentes em seus fragmentos, interessam-nos as reflexões críticas à apresentação da imagem do passado como um conjunto dotado de sentido interno – sentido como significado que legitima os eventos e como direção que designa o seu curso racional. Em vez de serem superados por estágios mais avançados no presente, os eventos passados logram colocar em crise justamente esses estágios: “A apresentação materialista da história [die materialistische Geschichtsdarstellung] leva o passado a colocar o presente numa situação crítica” (BENJAMIN, 2006, N 7a, 5, p. 513; 1991c, p. 588). Semelhante apresentação recupera as vozes esquecidas por um tipo de epistemologia e de escrita que não poderia lhes fazer justiça, uma vez que as insere em um conjunto de relações causais que lhes retira a unicidade. Essas vozes limitam-se a ser um dos elos do movimento histórico.
Em outro fragmento, o problema se coloca de maneira distinta, agora referido ao sentido de uma experiência política considerada genuína se tem como correlato a ruptura com o “eterno retorno” das narrativas contíguas do passado: “A especificidade da experiência dialética consiste em dissipar a aparência do sempre-igual – e mesmo da repetição – na história. A experiência política autêntica está absolutamente livre dessa aparência” (BENJAMIN, 2006, N 9, 5, p. 515). Tais notas não implicam uma condenação unilateral do progresso. O seu alvo não é o conceito isolado que devesse ser negado, e sim o modo como compõe e justifica certas continuidades narrativas da escrita da história que lhe retiram qualquer sentido revolucionário e crítico: “tão logo o progresso se torna a assinatura do curso da história em sua totalidade, o seu conceito aparece associado a uma hipóstase acrítica, e não a um questionamento crítico” (BENJAMIN, 2006, N 13, 1, p. 520). É provável que a sua avaliação mais contundente do tema se encontre no vínculo entre progresso e barbárie. A catástrofe não diz respeito a um acontecimento excepcional que perturba a ordem desejada da história. Ela estabelece essa mesma ordem dependente da continuidade dos diversos arranjos de poder, de legitimação da violência e de ritos sociais excludentes. Tudo isso se insere no campo semântico de legitimação teleológica da história e pode tomar as perdas e infortúnios de indivíduos, classes e povos como ruínas residuais de um processo globalmente mais importante. Para nos servirmos de uma expressão de teor freudiano, se se pode atribuir alguma estranheza à catástrofe, tal apenas se justificaria como uma estranha familiaridade da catástrofe com respeito ao progresso.
Uma forma de escrita da história condizente com a ideia de marcha contínua é apologética na melhor das hipóteses, assumindo aqui um duplo papel de relevo simultaneamente positivo e negativo: jogar luz sobre o aparente seguimento necessário dos eventos e esconder os instantes de ruptura: “A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momentos revolucionários do curso da história. Ela almeja intensamente a produção de uma continuidade” (BENJAMIN, 2006, N 9a, 5, p. 516). Delineia-se uma ideia de tradição referida aos processos de transmissão linear infensa a rupturas e tensões. Ironicamente, a planura e desimpedimento desse fluxo de eventos e de obras culturais colocam sérios obstáculos a esforços por conduzir adiante as investigações e os processos criativos, os quais exigem em igual medida as energias destrutivas[12].
Haveria ainda no caráter conservador da teoria do progresso outro aspecto contraditório das suas formulações e a imagem conformista da tradição que lhe é correlata. Como inscrição em tudo divergente, tome-se este fragmento: “Em qualquer época, os vivos descobrem-se no meio-dia da história. Espera-se deles que preparem um banquete para o passado. O historiador é o arauto que convida os defuntos à mesa” (2006, N 15, 2, p. 523). Na imagem da partilha encontram-se os vivos e os mortos – aqueles preparam em homenagem dos últimos a reunião. Inicialmente, parece estranha a responsabilidade movida ao passado, sem referência ao futuro. O exercício proposto talvez guarde relações com a rememoração, concedendo relevo aos planos abertos da história. Em semelhante evento, o historiador assume a função de arauto, metáfora singular por recorrer a uma imagem antiga e de caráter solene, surpreendente em uma exposição materialista da história. Ou talvez sirva a um propósito polemista dirigido ao progresso, face ao qual a imagem tanto significaria uma inadequação deliberada quanto uma ruptura temporal encenada. Além disso, pode-se conjecturar que esse atributo em princípio limitado do historiador vise a sublinhar o caráter coletivo do evento, tanto dos vivos, quanto dos mortos, coerente com a localização temporal do “meio-dia da história”, aberto aos planos futuros de uma configuração potencialmente radical sob a condição de colher as provocações decorrentes de um passado não menos aberto. Nem se inclina à aurora das civilizações, fautor de diversas narrativas conservadores, tampouco a sinais apocalípticos, alerta não menos imobilizador. A práxis revolucionária efetiva situa-se no curto-circuito temporal com que se destrói a linearidade aparente a fim de se construírem alternativas aos processos de opressão na história.
O presente trabalho seguiu a hipótese de que a crítica do progresso compõe um aspecto da teoria da revolução na filosofia benjaminiana. Com o objetivo de demonstrá-la, investigamos quatro temas dispostos em seções específicas: a interrupção como estratégia crítico-narrativa; a ruptura como método historiográfico; a catástrofe como contraparte dialética do progresso; e as considerações epistemológicas pressupostas na crítica do progresso. Esse conjunto conceitual e argumentativo exigiu a atenção ao contexto de emergência do fascismo contra o qual Benjamin se posicionou desde o início. Era também necessário esclarecer os vínculos metodológicos e políticos que ele construiu entre o materialismo histórico e o messianismo judaico, os quais não compõem uma síntese eclética em sua obra, mas instâncias tensionais capazes de oferecer novos ângulos de análise de fenômenos históricos extremos, tais como o fascismo.
As referências à interrupção e à ruptura nesses trabalhos encontram o encaminhamento metodológico coerente no caráter destrutivo do materialismo histórico, com o qual destitui a relação entre homem e mundo de continuidade e permanência. Semelhante destruição, todavia, encontra a sua contraparte no princípio construtivo que se beneficia do trabalho crítico anterior. A articulação assim disposta permite enfrentar a naturalização do processo histórico pressuposta em duas influentes doutrinas historiográficas à época, a socialdemocracia e o historicismo, as quais não apenas serviam-se de metodologia problemática, mas também ofereciam orientação política insuficiente para o devido enfrentamento dos riscos políticos então emergentes. Em vez de enredamento causal comprometido com uma pretensa neutralidade política, Benjamin intenta arrancar o passado dessa cadeia e redimi-lo, o que significa, entre outras coisas, rememorar a sua incomensurabilidade. Poderia desse modo discernir forças esquecidas submetidas à violência política e narrativa.
Se no caso do materialismo histórico tratava-se de conceder relevo à ruptura do enredamento teleológico dos eventos do passado, exigência retomada em diversas obras do autor, o messianismo judaico aparece, especialmente nas Teses, na doutrina judaica da Tikkun. Ela assume o sentido soteriológico de restituição dos fragmentos de luz dispersos em um processo cósmico primevo. Quando se refere ao ato mediante o qual o anjo da história juntaria os destroços do passado, Benjamin pressupõe semelhante orientação messiânica. Ao historiador materialista cabe manter-se atento à esperança disposta em momentos de perigo, conquanto reconheça a fragilidade dessa promessa. A restituição nesse caso implica o gesto duplo de despertar os mortos e de manter a história viva. As proximidades com essa doutrina, sem embargo, guardam limites, uma vez que o autor não perde de vista a exigência revolucionária a que as suas reflexões atendem. A articulação entre materialismo histórico e messianismo judaico permitiria, das múltiplas possibilidades – e limites – que descerra, tarefas adicionais à revolução: não apenas forjar os planos do futuro, mas também fazer justiça ao passado.
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RECEBIDO: 24/08/2022 RECEIVED: 24/08/2022
Aprovado: 07/11/2022 Approved: 07/11/2022
[1] Doravante nos referiremos ao texto como Teses.
[2] Tome-se, por exemplo, esta passagem: “É característico do texto filosófico confrontar-se, sempre de novo, com a questão de apresentação [vor der Frage der Darstellung]. Em sua forma acabada, esse texto converte-se em doutrina [Lehre], mas o simples pensamento não tem o poder de conferir tal forma. A doutrina filosófica funda-se na codificação histórica. Ela não pode ser invocada more geometrico” (BENJAMIN, 1984, p. 49; 1991a, p. 207. Tradução modificada).
[3] A obra foi uma encomenda do Instituto que Benjamin demorou muito tempo para cumprir, o que se deveu especialmente ao interesse maior pelo projeto sobre Baudelaire e sobre as passagens. Confira-se, por exemplo, algumas cartas que Horkheimer lhe enviou de Nova York: 3/12/1934 – “Como vai o trabalho sobre Fuchs? Era bom que não perdesse de vista este assunto” (HORKHEIMER apud BENJAMIN, 2010, p. 191); 28/1/1935; 19/3/1935; 18/9/1935 – “E agradeço-lhe a sua disponibilidade para escrever ainda o ensaio sobre Fuchs. A ocupação com este psicólogo, historiador e coleccionador não o afastará muito da análise do século XIX” (HORKHEIMER apud BENJAMIN, 2010, p. 196); 16/3/1937 – longa carta na qual Horkheimer acusa o recebimento do trabalho e apresenta sugestões pormenorizadas e algumas críticas.
[4] Conforme esclarece Tag Andersson: “Como caráter, o homem se encontra em uma relação constante com o mundo” (ANDERSSON, 2014, p. 390).
[5] A crítica ao historicismo foi desenvolvida por diversos filósofos no século XX e já encontrava em Nietzsche contribuições significativas. As críticas contemporâneas dirigiam-se especialmente contra um tipo de historiografia de caráter acumulador de dados e sem nenhuma referência aos problemas do presente. Parte delas é desenvolvida por Benjamin ao questionar o peso dos dados e bens culturais do passado sobre o presente, numa mescla paradoxal de agenciamento de pretensas grandes realizações do passado e o incontornável congelamento da história: “Arbitrariedade e improdutividade do passado relativamente ao presente, cansaço e tédio do presente perante a massa tradicional de bens educacionais e culturais, nisso a crítica benjaminiana se encontra com a contemporânea” [“Beliebigkeit und Unproduktivität der Vergangenheit für die Gegenwart, Müdigkeit und Überdruß der Gegenwart angesichts der überkommenen Massen an Bildungs – und Kulturgütern – darin trifft sich Benjamins Kritik mit der zeitgenössischen”] (GREFFATH, 2016, p. 194).
[6] Pode-se ler em sentido próximo este fragmento do trabalho das Passagens: “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história. Ele arranca, por uma explosão, a época da ‘continuidade da história’ reificada. Mas ele faz explodir também a homogeneidade dessa época, impregnando-a com ecrasita, isto é, com o presente” (BENJAMIN, 2006, N 9a, 6, p. 516; 1991c, p. 592-593). A menção à substância explosiva “ecrasita” (cresilato de amônio) – que consta como um dos produtos controlados pelo Exército Brasileiro – é uma imagem contundente da ruptura necessária ao conceito de história buscado pelo autor e que era antípoda a qualquer tonalidade épica.
[7] Uma outra apresentação do épico ainda se encontra no ensaio sobre o contador de histórias, de 1936. Aqui o termo se refere à oralidade e, juntamente com a arte do narrador tradicional, contrastam com o romance clássico, o qual busca apresentar um sentido passível de conduzir a narrativa a perfeito arremate: “O que distingue o romance do conto (e da epopeia num sentido estrito) é sua ligação essencial com o livro. […] A transmissão oral, patrimônio da épica, é de natureza diferente daquela que caracteriza o romance” (BENJAMIN, 2018, p. 26).
[8] Algumas frases dessa passagem seriam retomadas na tese VII de Sobre o conceito de história.
[9] Um desenho que ele havia adquirido em 1921 na galeria Hans Golz, em Munique, e que hoje pertence ao acervo do Museu de Jerusalém.
[10] Não nos foi possível examinar em pormenor o conceito de rememoração (Eingedenken), que ofereceria esclarecimentos importantes, mas ao preço de estender os limites do nosso artigo além do recomendável. Pareceu-nos mais adequado reservar o estudo desse conceito a outro artigo, no qual nos dedicaremos às suas origens e alcance bem como aos seus vínculos com a teoria benjaminiana da revolução.
[11] A imagem do pavio já havia sido utilizada em Rua de mão única (1926), no texto “Alarme de incêndio”. Nela também se mostra a necessidade de interrupção, recusando qualquer sorte de ideologia do progresso ou de linearidade histórica: “Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado. Ataque, perigo e ritmo do político são técnicos – não cavalheirescos” (BENJAMIN, 1995, p. 45-46). Contudo, existe uma diferença entre os dois textos: em Passagens, focaliza-se a explosão do contínuo da história; em “Alarme de incêndio”, a interrupção de um itinerário explosivo. O primeiro gesto é positivo, o segundo, negativo.
[12] Nos materiais preparatórios para as teses existe um apontamento sobre as relações entre tradição e continuidade que apresenta alguns elementos adicionais relevantes à crítica do progresso. Intitula-se “Problema da tradição I” e centra-se no conceito de dialética em repouso. Mediante raciocínio intricado, embora não exatamente hermético, Benjamin apresenta a tese de que a tradição se caracteriza por sua descontinuidade, em contraste com a história orientada pelos acontecimentos (Ereignisse). Se algo se mostra contínuo na tradição, isso decorre da aparência de encadeamento dos fenômenos, provavelmente devido à sua apropriação pelas classes dominantes a fim de configurarem em linhas favoráveis as suas estruturas de poder e dominação: “Pode ser que a continuidade da tradição seja mera aparência. Mas então é a constância dessa aparência que confere à constância a continuidade nela” (2010, p. 158).