Arte e verdade no pensamento de Martin Heidegger: a caminho da origem da obra de arte

Art and truth in the thought of Martin Heidegger: on the way to the origin of the work of art

 Luan Alves dos Santos Ribeiro

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

E-mail: luan.alvesribeiro@hotmail.com

 

RESUMO

Martin Heidegger buscou pensar, notoriamente, em A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936), a intrínseca e antes impensada relação entre o artístico e o advento da verdade do ser. O presente trabalho analisa algumas de suas reflexões sobre a supracitada temática de modo a esclarecer a significação originária do acontecimento propriamente dito da verdade em curso nas obras de arte. Para tal, primeiramente, aprofundaremos as estruturas ali levantadas, a saber, o mundo (Welt) e a terra (Erde). Posteriormente, examinaremos a concepção do artista e do contemplador à luz da ontologia heideggeriana. Ainda depois, discutiremos os temas da linguagem (Sprache) originária e da poesia (Dichtung) para chegarmos, enfim, a um entendimento sobre a origem (Ursprung) da obra de arte segundo Heidegger.

Palavras-chave: A Origem da Obra de Arte; Mundo e Terra; Criar e Resguardar; Linguagem e Poesia; Arte e Verdade.

 

ABSTRACT

Martin Heidegger thought notoriously in The Origin of the Work of Art (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936) about the intrinsic and, not yet thought, relationship between the artistic and the advent of the truth of being in this book. The present work analyses some of his reflections on the theme above to clarify the original meaning of the event itself and the truth in progress in the works of art. Accordingly, first, the paper delves into the structures raised there: the world (Welt) and the earth (Erde). Subsequently, it examines the artist's conception and the contemplator in light of Heidegger's ontology. Next, the work discusses the themes of the original language (Sprache) and poetry (Dichtung) to reach an understanding of the origin (Ursprung) of the work of art according to the Heidegger.

Keywords: The Origin of the Work of Art; World and Earth; Create and Safeguard; Language and Poetry; Art and Truth.

 

Introdução

 

No presente artigo buscaremos nos colocar a caminho da essência (Wesen) da obra de arte no que concerne à sua fundamental relação com a verdade ontológica. Verdade essa a qual Heidegger, visitando os primevos pensadores gregos, nomeou de aletheia. Sendo a prefixo negativo e lethe, raiz cuja significação denota esquecimento e ocultação, tal concepção indica o desvelamento e paralelo velamento do ser que, por sua vez, sempre ocorre através de sentidos que eclodem e, ao mesmo tempo, obnubilam-se. Natureza crepuscular que no lusco-fusco de seu ser enraíza uma polissemia inquebrantável na nossa relação com as coisas.

Para nos enveredarmos nas sendas abertas pelos férteis questionamentos de Martin Heidegger, sobretudo, no ensaio A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936), subdividiremos nosso trabalho em três seções que abordam, respectivamente, os temas do levantar do mundo (Welt) e do elaborar da terra (Erde) posto em jogo pelas genuínas obras de arte, a natureza relacional entre o artista e o contemplador e, por último, os sentidos estritamente ontológicos da linguagem (Sprache) originária, da poesia (Dichtung) e da origem (Ursprung) da obra de arte. Que ao fim de nosso percurso, possamos, ao menos, nos afinar com tais questões abrindo-nos para uma consideração mais fundamental sobre elas.

 

Mundo (Welt) e Terra (Erde): a obra de arte como pôr-se em obra da verdade

 

No segundo dos três momentos do ensaio A Origem da Obra de Arte, a saber, A obra e a Verdade[1], Heidegger nos leva, inicialmente, a refletir sobre as obras de arte apartadas do mundo de sua proveniência. Pensemos, por exemplo, em um quadro exposto num dado museu. A força viva da época de sua criação já tendo quedado coloca-nos diante do que os críticos de arte consideram como objetos, quer dizer, como coisas de elevado valor cultural. Pensemos também em uma tragédia como Antígona de Sófocles numa rica tradução e exemplar edição crítica. O que os especialistas da arte, a partir de rigorosos estudos estéticos, têm na mais alta consideração dada à demorada labuta do tradutor que, nos limites do ato profano de traduzir – reinterpretar –, tornou-se quase impecável. Mesmo assim o que ali possibilitou o eclodir de tais exemplares, o seu mundo, não mais ilumina aqueles que estão hoje no jogo sempre imprevisível da vida. Poderíamos nos estender ainda mais na busca de outras ilustrações, mas iremos já às palavras do filósofo sobre o desterro de tais obras de arte:

 

As obras já não são aquilo que foram. São, certamente, elas mesmas o que aí encontramos, mas elas mesmas são o que foram. Enquanto ‘as que foram’, confrontam-se [entgegenstehen] conosco no âmbito da tradição e da conservação. Desde então, mantêm-se a ser apenas objectos [Gegenstände] desse tipo. É certo que o seu confrontar-se é ainda uma consequência do seu estar-em-si precedente, porém ele mesmo já não é. Fugiu delas. Toda a actividade artística, por mais que seja intensificada e exercida por mor da obra ela mesma, chega sempre apenas até ao ser-objecto da obra. No entanto, isso não constitui o seu ser-obra (HEIDEGGER, 2014a, p. 37).

 

Diferentemente do que hoje são, obras de arte em exílio, no momento da aurora de sua criação elas estavam apenas ali, e em seu estar a ser diziam ao homem grego sobre o seu próprio mundo histórico. Lemos em Observações sobre Arte – Escultura - Espaço:

 

As obras de Homero e Píndaro, de Arquíloco e Sófocles, a arquitetura e a pintura dos grandes mestres falavam por si mesmas [sprachen selber]. Elas falavam, ou seja, mostravam [Zeigten] a qual lugar o homem pertence [wohin der Mensch gehöre], elas deixavam perceber, de onde o homem recebe sua determinação [Bestimmung]. Suas obras não eram expressão de subsistentes estados e muito menos a descrição de vivências da alma. As obras falavam como eco manifesto do chamado [die Stimme] que determinava [bestimmte] a totalidade do ser-aí [Dasein] deste povo admirável. [...] A arte do escultor, por exemplo, não necessitava de nenhuma galeria ou exposição, mesmo a arte dos romanos não precisava de nenhuma documenta. (HEIDEGGER, 2008d, p. 15).

 

Diante dessa concepção, surge a ressonância de algumas perguntas como: por essa perspectiva, se a conexão da obra com seu mundo se perdeu, o que nos resta efetivamente de tal obra? Em quais conexões ela ainda está? A arte legada pela tradição se reduz a mera lembrança que nos recorda o que, enquanto humanidade, outrora fomos? Ou ainda há potencialidades insuspeitas que nos é permitido descobrir pela via do pensamento que questiona o ser? As botas de camponês pintadas por van Gogh nos mostraram um mundo e uma terra que nos recorda ainda o mundo e terra dos camponeses de hoje, mas isso nos vale para toda grande obra de arte desde as sagas de Homero aos poemas de Hölderlin, por exemplo? O que a verdade em curso no artístico pode nos revelar sobre esses questionamentos?

Para esclarecer e aprofundar o sentido ontológico da obra de arte, deslocando-se de obras retiradas de sua localidade própria, Heidegger recorre às preservadas ruínas do templo grego de Paestum, presente onde sempre esteve, no território que hoje é o sul da Itália. É com sua hermenêutica-fenomenológica de tal obra arquitetônica que o sentido ainda vivo de uma obra de arte oriunda do passado nos é revelado e que, assim, suas conexões originárias são trazidas à luz da reflexividade.

Um templo é o local onde habita um deus, não é mímesis de nada. O templo é o trono de um deus erguido em pedra, monumento levantado na rocha e que permanece. Estando diante do templo os homens que creem estão certos da presença do divino, reconhecendo a si mesmos diante de tais conexões. Sem seu deus ele não se faz aquilo que efetivamente é, pois é a ele que o templo presentifica retirando daí a sua mais profunda significação. O templo se levanta na elaboração da pedra que imponentemente se ergue suportando o calor e o brilho vicejante do sol ardente, a tempestade tórrida das noites em que Zeus lançava sobre os mortais raios violentos, as estações em seu movimento ininterrupto com suas adversas variações climáticas sendo verdadeiramente pedra. Verdadeiramente no sentido de ser não algo que sequer observamos num caminho, mas sim rocha que suporta, mostrando-se como aquilo que resiste às horas, aos anos e aos séculos e, assim, revela-se como rocha. Enquanto no utensílio a matéria se gasta, por exemplo, no uso de um martelo ou de uma cadeira, na obra de arte ela surge como se a víssemos pela primeira vez. Assim, aqui a matéria não é algo de que a arte se serve, mas aquilo que ela mesma é.

O templo não é uma coisa que comporta acidentes, não é uma matéria ao qual foi dada uma essência através da forma; do mesmo modo, ela não é a mera unidade de algo presenciado pelos sentidos (aistheton). Antes, ele se levanta na terra (Erde) de que é feito tudo o que se ergue estando em intrínseco vínculo com o vale em que está levantado, assim como com a própria natureza que brota mostrando e escondendo os entes. É na obra que a terra poderá ser terra, isto é, mostrar-se em todo o seu resplendor através do belo. Conforme as palavras do pensador da Floresta Negra:

 

Aí de pé, a obra arquitectónica repousa sobre o solo rochoso. Este assentar da obra extrai da rocha obscuridade do seu suportar rude e, no entanto, a nada impelido. Aí de pé, a obra arquitectónica resiste à tempestade furiosa que sobre ela se abate, e, dessa forma, revela pela primeira vez a tempestade em toda a sua violência. Só o brilho e o fulgor da rocha, que aparecem eles mesmos apenas graças ao Sol, fazem, no entanto, aparecer brilhando [zum Vorschein bringen] a claridade do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite. O erguer-se seguro torna visível o espaço invisível do ar. O caráter imperturbado da obra destaca-se ante a ondulação da maré e deixa aparecer, a partir do repouso, o furor dela. [...] Desde cedo, os gregos chamaram a este mesmo surgir e irromper, no seu todo, a Φύσις. Ao mesmo tempo, clareia aquilo sobre o qual e no qual o homem funda o seu habitar. Chamamos-lhes a terra. [...] A terra é aquilo em que se volta a pôr a coberto o irromper de tudo aquilo que irrompe e que, com efeito, [se volta aí a pôr a coberto] enquanto tal. Naquilo que irrompe, a terra está a ser como aquilo que põe a coberto (HEIDEGGER, 2014a, p. 39).

 

Haar em A Obra de Arte – Ensaio sobre a Ontologia das Obras nos fala da possibilidade de leitura de, pelo menos, quatro sentidos da Erde em Heidegger. Num primeiro momento, a terra designa o aspecto material do qual uma obra de arte é feita, como a pedra, o metal, a cor ou o som. Num segundo sentido, designa um lugar particular, o sítio de habitação que no caso do templo de Paestum é o vale rochoso e acidentado e no caso das botas de van Gogh o mundo da campesina labuta diária. Como terceira acepção, ela indica a natureza tal como compreendida pelos gregos, isto é, como physis, aquilo que surge e permanece; o céu, o sol, a chuva, a mata, a rocha em oposição às produções humanas como o martelo, o machado, o relógio ou a casa. Por fim, ela designa o que se esconde, o que se fecha, o desenvolvimento de todas as coisas no sentido que os gregos denominavam de lethe, o que não pode ser revelado (HAAR, 2007). Enquanto o que se furta à completa iluminação, a terra abriga mostrando sempre um sentido em detrimento de outros; ela joga o jogo de que se alimenta toda significativa obra artística. É como um dia que promete a noite ou a primavera que, no transcorrer da vida, dará margem ao eclodir do inverno que também cessará. Ela traz a obra para “uma conexão com as coisas da terra, com a natureza” (HEIDEGGER, 2014a, p.74) por ser daí retirada.

Com tal localidade, o pensador do ser busca se furtar de uma compreensão coisificadora aos moldes estéticos do que é a arte, guardando, assim, o seu misterioso acontecer histórico no irromper de sempre novas interpretações. Enquanto terra a cor brilha e quer apenas brilhar (na pintura), a pedra suporta e quer apenas suportar (na estátua ou no templo), o metal reluz e somente quer reluzir (na escultura), tal como, o som soa e quer somente soar (na sinfonia ou na cantata). Se tentarmos mensurar racionalmente o colorir da cor, apesar da pedra, o reluzir metálico, o soar da obra musical, a terra desaparece, pois ao negar-se a qualquer forma de objetivação técnico-científica, a obra de arte permite a terra ser de fato terra. A Erde, dotada dos quatro supracitados sentidos, foge às noções de arte enquanto coisa. Não se pode encerrar Dante e Brahms com análises críticas, nem sequer prescrever a totalidade dos entendimentos possíveis de Tolstói ou Rosa. Cremos que seja no sentido de preservar a claridade sempre nova que nos oferece uma grande obra de arte, em seu jogo de luz e sombras, que Heidegger designa fundamentalmente a noção não estética de terra.

Do mesmo modo, a obra que o templo é, reúne em torno de si o poder dos imortais contraposto à fragilidade da condição humana caminhante para a morte, traçando, dessa forma, a figura do destino (Geschick) dos homens que é nascer e partir. Ela levanta o horizonte significativo da habitação de um povo histórico, suas crenças, suas limitações, seus medos e anseios comuns. Ela desvela algo que, concomitantemente, recusa-se a se mostrar totalmente. É como um véu que deixa ver apenas uma parte do que esconde prometendo, todavia, o sempre mostrar de algo novo. Ela ali está como um mistério que “envolve a figura do deus e, neste encobrimento [Verbergung], deixa avançar, através do pórtico aberto, para o recinto sagrado” (HEIDEGGER, 2014a, p.38), pois tal obra reúne em torno de si “a vastidão vigente destas conexões que estão abertas” (HEIDEGGER, 2014a, p.39) e que são “o mundo deste povo histórico” (HEIDEGGER, 2014a, p.39) que ali construiu e habitou o templo para o seu deus. Por conseguinte, é diante de Paestum que o sagrado se revela com toda a sua força e, dessa maneira, desvela o mundo (Welt) dos antigos gregos. Ele deixa ver um mundo, fazendo-se elaborada na terra que é o seu abrigo. Sobre a noção de mundo, Heidegger nos diz:

 

O mundo faz mundo e é sendo mais que aquilo que é apreensível e perceptível no [meio do] qual nos julgamos ‘em casa’ O mundo nunca é um objecto que esteja ante nós e que possa ser intuído. O mundo é aquilo que é sempre não-objectivo, de que dependemos enquanto as vias do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem enlevados no ser. Aí onde se jogam as decisões essenciais da nossa história, onde por nós são assumidas ou abandonadas, onde não são reconhecidas e onde são de novo questionadas – aí se faz mundo. A pedra é desprovida de mundo. A planta e o animal também não têm mundo, mas pertencem ao afluxo velado de uma envolvência, dentro da qual estão postos. A camponesa, pelo contrário, tem um mundo, porque se detém no aberto do ente (2014a, p.42).

 

Desse modo, a Welt levantada na obra de arte é “um espaço livre de possibilidades, o espaço de sentido e de relações que um povo abre com suas escolhas essenciais, suas decisões em relação à vida/à morte, ao verdadeiro/ao falso, ao humano/ao divino etc.” (HAAR, 2007, p. 86). Ela é o âmbito significativo maior de habitação dos homens. Podemos, nesses termos, falar de mundos: o mundo do camponês, o mundo de Antígona de Sófocles, o mundo da técnica, por exemplo. É nessa última acepção que devemos entender o mundo levantado pelas obras de arte. Elas, enquanto exemplares singulares, revelam o horizonte maior de sua proveniência.

Mas será que ainda hoje Paestum levanta tal mundo já que não se crê mais nesses deuses? Sabemos que Hera e Poseidon não passam, para o imaginário hodierno, de figuras fantasiosas criadas num remoto passado. O escrito sobre a origem da arte de Heidegger nos leva a crer que sim, pois o que está em curso na arte é a verdade. A verdade na acepção do que se mostra e se oculta sendo sempre histórica e dando ao homem a sua própria habitação. Falamos da verdade como aletheia, isto é, como desvelamento e concomitante velamento do ser. Assim, mesmo com o cair dos tempos as referências do que outrora se foi permanecem vivas, abrindo-se num mundo que é sempre abrigado numa terra: nascimento e morte, saúde e doença, sagrado e profano, pátria e desterro colocam-se ali diante de nós junto à promessa de algo continuamente novo a surgir. Todavia, se a arte for compreendida como peça de museu, como ária para passar o tédio das horas, como quadro para colorir o enfado, se a verdade do ser for ignorada, se o mistério da arte permanecer olvidado na errância (Gegen-wesen) tais conexões jamais poderiam eclodir novamente. É a arte que ao gravar um mundo na terra abriga tais relações já ruídas. Conforme esclarece Duarte em A Arte Como Epifania: “A questão da Arte, questão da verdade, é, pois, uma das formas de colocar a questão do ser, que constitui o tema melódico do pensar heideggeriano, em qualquer das fases em que se costuma dividir o seu itinerário filosófico” (2014, p. 37).

Precisamos agora aprofundar as noções Erde e Welt para rumarmos para um maior esclarecimento do acontecimento da verdade em curso no artístico. Heidegger nos diz:

 

Mundo e terra são essencialmente distintos e, no entanto, nunca estão separados. O mundo funda-se na terra e a terra irrompe pelo mundo. [...] O mundo aspira, no seu assentar sobre a terra, a fazê-la sobressair. Sendo aquilo que se abre, não suporta nada de encerrado. Contudo, a terra inclina-se, como aquilo que põe a coberto, a implicar e a reter em si o mundo.

O confronto de mundo e terra é um combate. [...] No combate essencial, porém, os combatentes elevam-se um ao outro na auto-afirmação do seu estar-a-ser. [...] A terra não pode prescindir do aberto do mundo, se há-de aparecer como terra no afluxo liberto do seu fechar-se. O mundo, por sua vez, não pode desprender-se da terra, se se há-de fundar, como amplitude vigente e via de todo o destino essencial, sobre algo de decisivo (2014a, p.47-8).

 

O mundo se levanta na terra. A terra se elabora deixando ver um mundo. Um não elimina o outro em sua luta, mas ambos coabitam formando uma unidade diferenciada. Unidade, pois são interdependentes; diferenciada, porque não sucumbem um ao outro, mas antes “um leva o outro para além de si [mesmo]” (HEIDEGGER, 2014a, p.55) permitindo o acontecimento da arte. Assim, o que a arte é para Heidegger o é através de tal duelo. Duelo mediante o qual irrompe o acontecer da verdade, isto é, o desvelamento (o levantar de um mundo) e concomitante velamento do ser (o perpétuo recusar-se de sentidos que repousam na terra), pois a “essência da verdade é em si mesma o arqui-combate [Urstreit]” (HEIDEGGER, 2014a, p. 55). Dessa maneira, enquanto acontecer da verdade no duelo a arte é, concomitantemente, o acontecer da não-verdade, queremos dizer, enquanto mostrar- se ela é, antes e mais originariamente, um ocultar-se. Sua essência como desvelamento descerra uma não-essência (Un-wesen) que é o núcleo obscuro de sua proveniência de modo que a terra sempre abriga algo outro de um dado mundo. Pöggeler nos esclarece:

 

A estrutura da construção da verdade como des-ocultamento é o conjunto de mundo e Terra: mundo é a estrutura do aberto, da clareira, Terra, a estrutura do que se encerra, da ocultação como o albergamento. O mundo nunca é sem a Terra: ele não é simplesmente a clareira, mas a clareira que provém da ocultação. A Terra não é Terra sem o mundo: ela não é o meramente encerrado, mas o que se encerra e ocultador que se mantém na abertura e alberga esta em si. O mundo funda-se na Terra, a Terra faz sobressair o mundo. O com e o contra da Terra e do mundo é o “conflito”, mas este só é conflito, conquanto a verdade aconteça como o conflito primordial de clareira e ocultação. A obra de arte atiça este conflito e permite que a partir do próprio apoiar-se-em-si-mesmo esse conflito alcance o seu movimento (2001, p. 204).

 

Devemos lembrar Heráclito, para quem o “combate é de todas as coisas pai, de todos rei” (HERÁCLITO, 1996, p. 93). A physis – como uma das acepções da Erde – sendo movimento de eclosão e concomitante ocultação dos entes, doa-nos os dias e as noites, a chuva e o sol, a espera e a colheita que em harmonia duelam; possibilitam um o existir do outro tal como a dor à alegria. A obra artística revela um duelo que sempre está a acontecer diante de todos, mas que tendemos a não perceber por estarmos demasiadamente habituados. Ela revela a relação mundo-terra através da qual nós mesmos somos a partir de nosso mundo e de nossa terra. Ela nos espanta com o que há de indefinido, de amedrontador em nosso próprio mundo abrigado na terra de nossa pátria. É, nesses termos, que a arte é salvaguardada pelo pensamento heideggeriano como um enigma inexaurível, como um dom do ser que depende do criador, mas que não se exaure nele, pois o que o artista mostra é algo que lhe foi antes doado enquanto verdade originária, queremos dizer, tornado possível pelo horizonte de sua própria existência.

A arte, assim, evidencia o sempre misterioso de onde provém tudo o que nos é dado conhecer. Numa época marcada pela técnica, pela velocidade, pelo encurtamento das distâncias, pelo domínio do homem sobre a natureza, tempo da perda de uma habitação que zele pelo que é sagrado e poético, são as obras da arte, enquanto pôr-se em obra da verdade, que poderão nos acordar para o silêncio originário que o ruir das máquinas fez cair no esquecimento. É isso o que a luta de mundo e terra faz ver para o pensamento heideggeriano. Lemos:

 

A verdade está em obra – portanto, não [está aí em obra] apenas algo de verdadeiro. O quadro que mostra os sapatos de camponês, o poema que diz a fonte romana, não dão apenas a conhecer o que é este ente singular enquanto tal [...], antes deixam acontecer o não-estar-encoberto enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo. [...] O ser que se encobre é, desta maneira, clareado. A luz assim configurada proporciona o seu brilhar [(a)parecer – Scheinen] na obra. O brilhar proporcionado na obra é o belo. A beleza é o modo como a verdade enquanto não-estar-encoberto está a ser (HEIDEGGER, 2014a, p.56-7).

 

Heidegger retira, com tais afirmações, o belo da estética, deslocando-o para o âmbito ontológico. A beleza, assim, deixa de ser caracterizada pelo prazer causado na sensibilidade do contemplador para se tornar uma abertura (Eröffnen) de conexões de um mundo elaborado na terra. Assim, na arte a verdade do ser aparece como o belo sendo que aparecer é o “levantar-se, iluminar-se de repente a totalidade do que assim surge” (DUARTE, 2014, p. 77) de modo que é “esse breve instante do clarear do ser, em que este se desvela na sua verdade originária, que Heidegger denomina beleza” (DUARTE, 20014, p. 77). Na arte, por conseguinte, o ser acontece como beleza no duelo entre mundo e terra.

Por sua vez, ambos, Welt e Erde, unem-se na circunscrição da Riß traduzida como fenda, traço ou traço-fenda. A Riß une os combatentes na obra que é a canção, o quadro e o poema, fazendo-os residir nos limites de um mesmo contorno (Umriß). Pensemos, por exemplo, no percurso de uma melodia, na junção das cores em um quadro, nos encadeamentos dos versos em um poema como a fenda que mantém juntos o mundo e a terra. Trata-se de uma fenda na acepção de que ela traça uma forma que é uma abertura mantendo os digladiadores unidos em um mesmo limite. Por isso, o “combate não é fenda [Riß] ao modo do fender-se rasgando [Aufreißen] um precipício [que separe], mas antes a intimidade do co-pertencer-se dos combatentes” (HEIDEGGER, 2014a, p.66).

Como nos diz o pensador do ser, “para os gregos, o limite não é aquilo com o qual algo acaba e termina, e sim aquilo a partir do qual algo começa, mediante o qual algo possui sua completude” (HEIDEGGER, 2008d, p.18). Tal limite do traço, no concernente à arte, manifesta a figura (Gestalt) da obra que é a “concatenação a que o traço se conforma” (HEIDEGGER, 2014a, p 67), queremos dizer, a união de mundo e terra fixado pela fenda. Ela é a “com-posição [Gestell] que a obra, enquanto tal, está a ser, na medida em que se levanta e se elabora” (HEIDEGGER, 2014a, p. 67). A arte é retirada, assim, do par conceitual matéria-forma e localizada na noção de abertura.

É no traço, e somente nele, que a cor viceja em seu resplendor, que o som soa em sua mais elevada potência, que a palavra reluz sentidos ao invés de se gastar prosaicamente no dizer. Em suma, a terra depende do traço para ser verdadeiramente terra. Sem o traço que faz ver a figura de uma obra artística, poderíamos perpetuamente passar despercebidos pelo repousar em si da terra, isto é, pelo que ela é em sua originária doação fenomênica aos homens. A terra abriga um mundo e ao mostrar novos mundos de outras terras nos revela o mundo e a terra de nosso próprio existir, assim como o sempre aberto e misterioso de nossa habitação. É no traço que a figura se mostra dando-nos o espaço que a própria obra é. Mas o que é o espaço? Fazemos tal inquirição, pois Heidegger o compreende de forma distinta da res extensa uma vez que pergunta a partir da questão do ser.

O pensamento heideggeriano nos dirá que o espaço espaça (der Raum räumt) no sentido de apontar para a ideia de que ele abre uma região (Gegend) livre para a manifestação de um mundo. Nas palavras de Heidegger: “Espaçar significa desbravar [roden], libertar [freimachen], liberar um âmbito livre [Freie], um aberto [Offenes]” (HEIDEGGER, 2008d, p.19). Em outros termos, o espaço espaça por ser uma abertura que evidencia o habitar do homem sempre em um horizonte significante. Assim, o espaço acontece e está a acontecer enquanto este ou aquele espaço – espaço do sagrado como o templo ou espaço de estudo como a biblioteca, por exemplo – o que a compreensão de mero corpo extenso não é capaz de abarcar. “O homem não é no espaço como um corpo [Körper]. O homem é no espaço de modo que ele instala [einräumen] o espaço, sempre já instalou espaço” (HEIDEGGER, 2008d, p.19). O espaço enquanto morada do homem, por conseguinte, indica uma deixar haver da própria espacialidade pela abertura para o ser do Da-sein que é apropriado e expropriado pelo ser enquanto o apropria e o expropria no mesmo evento, Ereignis[2]. Prossegue Heidegger:

 

O espaço é espaço, na medida em que espaça (desbrava), libera um âmbito livre para regiões de encontro e lugares e caminhos. Mas o espaço apenas espaça na medida em que o homem instala o espaço, doa esse liberar e nele imiscui-se, nele arranja a si e às coisas e assim protege [hütet] o espaço como espaço. Dizemos de um homem, quando possui uma relação livre e serenoalegre [Heiterkeit] para com o mundo, que ele teria conquistado seu espaço [er sei aufgerräumt]. Um corpo jamais pode conquistar seu espaço, não é próprio dele o âmbito livre do que é serenoalegre. O homem não faz o espaço; o espaço também não é nenhum modo subjetivo da intuição; ele também não é nada objetivo como um objeto. O espaço precisa, antes, do homem para espaçar como espaço. Essa relação misteriosa, que não apenas toca a vinculação do homem com o espaço e com o tempo, mas a vinculação “do Ser com” o homem (acontecimento apropriativo) (HEIDEGGER, 2008d, p.20).

 

Toda terra é sempre uma determinada terra tal como o templo o é como âmbito das conexões do mundo dos antigos gregos. Não como representação, mas como um deixar ver de um mundo como se fosse visto pela primeira vez, pois o artista “traz o invisível essencial para a configuração e, se ele corresponde à essência da arte, deixa ver, a cada vez, o que nunca foi visto até então” (HEIDEGGER, 2008d, p. 20). Como sabemos, a essência da arte é o acontecer da verdade entendida como desvelamento e concomitante velamento do ser. Nesses termos, o “espaço precisa, antes, do homem para espaçar como espaço” (HEIDEGGER, 2008d, p.20). O que sem a apropriação e expropriação entre ser e homem não seria possível.

A arte é, assim, deslocada da estética, do sensível, para a abertura da verdade (aletheia) de um mundo elaborado na terra que se dá no traço que os une na manifestação da figura. Tal deslocamento vai trazer, conforme veremos adiante, uma nova compreensão do artista e do contemplador da obra.

A arte precisa do artista para existir. O artista, do mesmo modo, necessita da arte para ser o que é. Entramos novamente no círculo hermenêutico. A arte é o acontecer da verdade na figura. Acontecer que se dá diante de quem a contempla e somente assim. Como levantar de um mundo elaborado na terra, ela revela um mistério anterior e antes ignorado de modo a não poder mais ser compreendida como mera criação de um gênio artístico. Então, como a arte verdadeiramente acontece na relação arte-criador? Qual o sentido do artista quando pensado não como aquele que exterioriza suas visões íntimas e seus sentimentos? O que é, do mesmo modo, o espectador da obra quando considerado em sua relação com o desvelamento do ser? Colocar-nos-emos agora a caminho de responder essas questões urgentes.

 

O criar e o resguardar da obra de arte

 

A concepção de obra de arte enquanto um dinâmico acontecimento da verdade nos conduz a novas considerações tanto sobre o sentido do artista quanto do contemplador. Numa concepção subjetivista o artista é comumente considerado como aquele que, a partir de sua inspiração, modela a matéria inerte dando-lhe uma forma. A arte, assim, seria uma criação que advindo da interioridade do artista alcança quem a aprecia afetando as suas emoções. Começaremos por perguntar o que é, a partir da ontologia, um artista questionando pela significação do que é criar uma obra de arte.

Uma obra de arte como, por exemplo, um quadro é o que é através de um artista que o criou. Dizemos o mesmo do poema, da canção, da escultura e de toda e qualquer obra artística. Para Heidegger, tendemos ainda hoje, devido à herança da tradição filosófica, a compreender o criar como um produzir (Hervorbringen). Todavia, dizemos também que a cadeira e a mesa são produzidas. Que as botas, a enxada, o martelo, assim como todos os demais utensílios são igualmente produzidos. Se concebermos a arte como mera produção no sentido de dar forma a uma matéria, estaremos, novamente, dispondo de considerações coisais sobre a arte tais como os cânones herdados da metafísica grega. Como já visto, através desses paradigmas não podemos alcançar a essência mesma da obra de arte.

Para Heidegger, é derivado do par conceitual matéria-forma proveniente do sistema metafísico aristotélico, que entra em jogo um conceito diretriz para o questionamento posterior sobre a arte. Esse conceito afirma que a arte é techné, no sentido de que numa obra deve sempre haver a confecção de “uma forma que é pensada pelo artista e que ele quer dar à matéria” (HADOT, 2006, p.43) sendo a imposição da forma à matéria “o fim em direção do qual se dirige o processo” (HADOT, 2006, p.43) da produção da arte. Segundo tal perspectiva, a arte é vista sob a óptica de sua confecção material e, por conseguinte, como mero produzir.

Por techné os gregos denominavam tanto a arte quanto um fazer artesanal qualquer, por exemplo, na construção de uma cadeira ou de uma casa. De acordo com esse entendimento a arte é vista a partir de seu elemento artesanal, de maneira que “o exercício artístico deve ser degradado ao nível do artesanato” (HEIDEGGER, 2010, p. 74). Para Heidegger tal compreensão tardia, aceita tanto por Platão quanto por Aristóteles, não leva em consideração o significado fundamental da palavra techné. Significado que deve ser esclarecido, diz-nos o pensador, a partir de sua contraposição à primeira nomeação grega do ser, a saber, a partir da physis, daquilo que brota por si mesmo e permanece na presença.

Compreendida nesses termos, queremos dizer, em confronto com a physis, a palavra techné deve indicar não mais um mero produzir artesanal, na acepção de dar forma a uma matéria, mas antes e mais fundamentalmente um produzir (Hervorbringen)[3] no sentido de fazer aparecer, de tornar presente os entes, trazendo-os para o desencoberto. Nessa acepção, enquanto a physis indica o que surge e permanece, a techné deve indicar o vir à luz e se estabelecer na presença daquilo que é produzido – na acepção de retirado do nada para o ser – na margem consentida pelo que já é, isto é, pelo que surge enquanto physis. Assim, a techné é entendida por Heidegger enquanto uma forma de desvelamento e, assim, do acontecimento da verdade do ser. Podemos ler:

 

A palavra τέχνη indica antes um modo do saber. Saber significa: ter visto, no sentido lato de ‘ver’, que significa perceber aquilo que está presente enquanto tal. A essência do saber, para o pensamento grego, assenta sobre a ἀλήθεια, quer dizer, sobre o desencobrimento [Entbergung] do ente. Sustenta e conduz todo o comportamento relativamente ao ente. A τέχνη enquanto saber apreendido de modo grego, é, nessa medida, um produzir do ente, enquanto traz aquilo que está presente enquanto tal para fora do estar-encoberto precisamente para o não-estar-encoberto do seu aspecto, [pondo-o] diante [vor (+ bringen)]; τέχνη não significa nunca a execução de um fazer (HEIDEGGER, 2014a, p. 61).

 

Desse modo, por techné é entendido o ato de trazer os entes para o âmbito do desencoberto a partir do que já está desencoberto, isto é, da physis. Por isso, segundo Heidegger, o fundamento da designação de technetés tanto para o artista quanto para o artesão não se refere, em sua essência, ao labor artesanal de ambos, mas sim à natureza da produção de obras de arte, e, do mesmo modo, da produção de utensílios que “são uma irrupção do homem que sabe e procede de acordo com esse saber em meio à Φύσις e em função da Φύσις” (HEIDEGGER, 2010, p. 75). Saber referente ao que o homem sempre já entende do ser no ente, daquilo que se dá enquanto o que se mostra em si mesmo, compreendendo-o desta ou daquela forma. O já aberto, isto é, o que é – a physis – permite, por sua vez, enquanto local de acontecimento e espaço de jogo, o advir do novo mediante o produzir do artista ou do artesão.

É nessa acepção que a techné se refere essencialmente, para Heidegger, a um saber alicerçado no desvelamento do ser e, assim, fundamentado na verdade do ser. Todavia, diz-nos o pensador, com o despontar e a eventual consolidação do par matéria- forma, o sentido originário de techné caiu em esquecimento, dando margem para uma concepção que a considera meramente a partir de sua confecção material. O pensador alicerça, assim, uma compreensão mais originária da techné a partir de uma compreensão mais originária da verdade. É nesse sentido que o produzir enquanto o criar de uma obra de arte é, em sua mais íntima significação, um acontecimento da aletheia[4].

A obra de arte é techné, mas no sentido de ser a contenda entre mundo e terra unidos pelo traço manifesto na figura e não uma simples matéria à qual foi dada uma forma. Ela é a abertura de um espaço para o desvelamento do ser que enquanto histórico ocorre de diversos modos. Ela é “o produzir de um ente que antes ainda não era e que, posteriormente, nunca mais virá a ser” (HEIDEGGER, 2014a, p. 64) e, dessa forma, traz o novo que revela o antigo mistério da habitação humana entre as vias do nascimento e da morte, do sagrado e do profano, do admirável e do abjeto. Nela a verdade alcança uma forma antes jamais vista. O artista não a cria ao modo do subjetivismo moderno, mas a expressa na figura através da beleza. Ele antes escuta o inaudito pelos mortais imersos em suas relações utilitárias com os entes do interior do mundo. Assim, a arte o ultrapassa, por mais genial que possa ser a expressão, pois gênio algum poderia criar a terra e o mundo de um povo. É antes a “obra que cria o artista e não o inverso” (HAAR, 2007, p. 92), pois o que nela se descerra acontece a partir de uma doação do ser que ocorre enquanto verdade histórica.

É, assim, na abertura do Da-sein para o ser, no comum-pertencer (Zusammengehörigkeit) entre ambos, que reside o seu mais profundo sentido. Desse modo, é apropriando-se e expropriando-se do ser e concomitantemente sendo apropriado e expropriado pelo ser que o artista cria a sua obra retirando de seu mundo e de sua terra a condição de possibilidade mesma da criação.

Conforme visto, tanto a arte quanto o artista recebem um novo estatuto no pensamento heideggeriano. Heidegger, da mesma maneira, perguntará pelo sentido do contemplador da obra de arte a partir da ontologia, rumando, assim, para fora das concepções estético-metafísicas. Se a obra é a iluminação de um mundo abrigado na terra mediante a apropriação e a expropriação entre homem e ser sendo a criação “o estar-fixado do combate [entre mundo e terra] por meio do traço-fenda na figura” (HEIDEGGER, 2014a, p. 69) ela deve, em consonância, iluminar-se se apropriando e se expropriando de quem a contempla resguardando o acontecer da sua verdade.

Para o nosso pensador “o caráter de acontecimento de apropriação [Ereignishafte] (que a obra seja a obra que é) lança a obra para além de si” (HEIDEGGER, 2014a, p. 69) no sentido que, enquanto localidade (Ort) da aletheia, encontra a abertura de quem se coloca a observá-la e, assim, acontece como verdade (o desvelado) e como não-verdade (o velado). Sem esse ente aberto ao ser a obra não poderia realizar-se enquanto obra e envolver os homens em seu horizonte significativo. Diz-nos Heidegger:

 

Ela [a obra de arte], [...], simplesmente nos insere nessa abertura e, deste modo, nos faz sair, ao mesmo tempo, daquilo que é habitual. Seguir essa remoção [Verrückung] significa: modificar as conexões habituais com o mundo e com a terra e, desde então, reter em si as relações usuais com o fazer e o apreciar, com o conhecer e o olhar, para permanecer na verdade que acontece na obra. É só a contenção deste permanecer que permite ao criado ser a obra que é. A isto: deixar a obra ser obra, chamamos o resguardar da obra. É só para o resguardar que a obra se dá, no seu ser-criada, como efetivamente real, o que significa agora: presente como carácter de obra (HEIDEGGER, 2014a, p. 70).

 

Nesses termos, assim como não pode haver arte sem os que criam, a obra também não pode existir sem aqueles que a resguardam de modo que “os que resguardam pertencem à obra de forma tão essencial como os que criam” (HEIDEGGER, 2014a, p. 75). Se a obra criada não se depara com aqueles que por ela zelam, possibilitando a apropriação-expropriação da verdade, se ela não estabelece conexões com a comunidade humana, ela permanece em espera, sem ocorrer propriamente. A co-originariedade entre ser e homem encontra, dessa maneira, sua correspondência na relação entre obra criada e os contempladores que a resguardam.

Resguardar [Bewahrung], assim, tem aqui o sentido de integração do contemplador “na pertença à verdade que acontece na obra” (HEIDEGGER, 2014a, p. 72) num momento anterior à abstração sujeito-objeto – em que o ente humano se coloca diante da obra para compreendê-la como um objeto. Trata-se, por conseguinte, da apropriação e da expropriação entre o ser e o Da-sein que se põe na referência do mundo abrigado na terra que na arte se abre. É nesse sentido que o Da-sein resguardador da obra serve de clareira para ela, iluminando-a através de sua abertura e sendo, ao mesmo tempo, iluminado por ela.

Tal resguardar, diz-nos o pensador, é “o instar [innestehen] da abertura do ente que acontece na obra” (HEIDEGGER, 2014a, p. 71) sendo, igualmente ao criar como produzir, um saber acerca do ser. Saber não como “mero conhecer e representar de algo” (HEIDEGGER, 2014a, p. 71) por parte de um sujeito, mas antes como a experiência do pensar através da entrega do Da-sein ao não estar encoberto do ser, queremos dizer, ao acontecimento da verdade e ao, concomitante, acontecer da não-verdade. Trata-se de um saber assentado na aletheia. Assim, ao insistir diante da obra a comunidade humana que a resguarda possibilita o seu efetivo advir.

A verdade do ser é, enquanto verdade histórica, algo que necessita da constitutiva abertura do Da-sein para acontecer. O homem, do mesmo modo, não pode realizar sua essência sem a apropriação e a expropriação do ser, pois o que ele é se dá nesse comum-pertencer e até onde sabemos apenas através do homem pode advir algo como um horizonte de sentidos e, assim, um mundo e uma terra que é pátria. Dessa maneira, é da verdade apropriada-expropriada que o artista retira a sua obra deixando ver um mundo elaborado na terra, ambos unidos pelo traço-fenda que surge enquanto figura. Sem esse ato não há obra. Todavia, sem os que resguardam trazendo para a efetividade o desvelamento do ser, pondo-o em movimento, a arte também não pode ocorrer. A arte é, por conseguinte, um estar a caminho da verdade não possível sem as seguintes dimensões: criador, obra e contemplador.

A partir das supracitadas elucidações ontológicas acerca do sentido do artista e do contemplador da obra, Heidegger, em seu ensaio sobre a origem da obra de arte, aprofunda ainda mais o acontecimento da verdade. A partir de agora nos dedicaremos a compreender esse momento rumando para as noções de linguagem (Sprache) originária, de poesia (Dichtung) e da tripla instituição ocasionada pelas grandes obras, a saber, o doar, o fundar e o iniciar. Desse modo, almejamos, enfim, aprofundar nosso entendimento acerca da origem da obra de arte tal como proposto pelo pensamento heideggeriano irrompido da virada para o desvelamento histórico do ser.

Perguntamo-nos agora, então, pelo o que é, em essência, a linguagem em curso na arte? Não a linguagem como mera transmissão de uma informação qualquer, mas antes como linguagem fundadora. Pelo que é a poesia em sua acepção mais fundamental? Pelo que ela deixa ver trazendo para a presença dos mortais? Do mesmo modo, indagamos: pelo que a arte pode efetivamente instituir nas veredas abertas do mundo de um povo? Nosso pensador nos conduzirá por essas e por outras questões.

 

Linguagem (Sprache), poesia (Dichtung) e a origem da obra de arte

 

Comumente, tendemos a compreender a linguagem como um instrumento de comunicação, isto é, como um recurso através do qual o homem pode tornar inteligível para outrem aquilo que se passa no âmago de sua subjetividade tal como os seus pensamentos e as suas emoções. Por esse ponto de vista, a linguagem seria, essencialmente, composta por símbolos criados pelos homens a fim de garantir a possibilidade de uma relação com os outros. Sua função primordial seria, assim, efetivar uma mediação entre dois ou mais sujeitos. Nas palavras de Heidegger: “A linguagem, na sua representação mais corrente, é tida como um tipo de mediação. Serve para a conversação e para se chegar a acordo – para o entendimento em geral” (HEIDEGGER, 2014a, p. 78).

Tomando em consideração a supracitada definição de linguagem, tendo em vista uma aproximação do seu sentido mais fundamental, Heidegger afirma que se poderia dizer três coisas principais sobre ela. Primeiramente, a de que a linguagem seria uma expressão. Posteriormente, a de que ela seria uma atividade humana. Por fim, de que ela seria uma representação oriunda de uma apreensão do real e do fantasioso. (HEIDEGGER, 2003b). Todavia, por mais corretas que possam ser tais considerações, Heidegger afirma que elas não são suficientes para um efetivo entendimento de sua essência que deve ser considerada à luz do desvelamento do ser

Assim como as definições metafísicas de homem não podem apreender o Dasein, tais considerações não podem alcançar a linguagem enquanto linguagem. Antes, tal modo de ver toma a linguagem por um objeto que deve ser, mediante um processo de abstração, definido em sua essentia. Para Heidegger, assim como foi feito com a obra de arte, é preciso não objetificá-la, deixando a linguagem ser linguagem, compreendendo-a a partir do seu dizer. Seus esforços buscam considerá-la em seu próprio acontecer para, dessa maneira, estar a caminho de sua fala fazendo a sua experiência[5]. Em O caminho para a linguagem, lemos:

 

Segundo uma antiga tradição, nós somos aqueles seres capazes de falar e, assim, aqueles que já possuem a linguagem. A capacidade de falar, ademais, não é apenas uma faculdade humana, dentre muitas outras. A capacidade de falar distingue e marca o homem como homem. Essa insígnia contém o desígnio de sua essência. O ser humano não seria humano se lhe fosse recusado falar incessantemente e por toda parte das vezes, impronunciado. À medida que a linguagem concede esse sustento, a essência do homem repousa na linguagem (HEIDEGGER, 2003c, p. 191).

 

Ora, as palavras de Heidegger situa a linguagem num âmbito em que desde muito já a entendemos, a saber, como algo próprio ao modo de ser do homem. Se um homem não fala o chamamos de mudo tal como denominamos aquele que não enxerga de cego. Só há mudo e cego entre os que podem, a partir de seu modo de ser, falar e enxergar – não há árvores cegas ou pedras mudas. Assim, a linguagem é algo sem o qual o homem não pode ser aquilo que é. Não há homem sem linguagem nem linguagem sem homem. Mas o que é, quando concebida não como um objeto, a linguagem? Acostumamos a concebê-la como um objetivo, assustamo-nos com o modo de perguntar proposto pelo pensador do ser.

Já em Ser e Tempo o pensamento heideggeriano se preocupou com esse elemento, situando-o como um existenciário (Existenzial) responsável pela possibilidade de articulação da compreensibilidade do Dasein. No âmbito da analítica existenciária o “fundamento ontológico-existenciário da linguagem é o discurso” (HEIDEGGER, 2014c, p.453) sendo que o “discurso é a articulação da entendibilidade” (HEIDEGGER, 2014c, p. 455). Nesse sentido, o discurso (Rede), enquanto faculdade de articular e compreender, estaria na base de toda interpretação e, do mesmo modo, do advir de qualquer sentido possível. O Dasein articula através de seu discurso o seu compreender (Verstehen) e a sua disposição afetiva (Befindlichkeit) diante do mundo.

Nessa acepção, seria através da linguagem que se estruturaria, em co-originariedade com o compreender e a disposição afetiva, a relação do Dasein com o mundo. Antes de ser uma expressão, atividade humana ou representação, ela seria, assim, um poder articular da compreensibilidade situada do homem. Todavia, a partir das transformações ocorridas no pensamento heideggeriano a partir da década de 1930 a linguagem tomará ainda outra acepção. Ela não será compreendida como um existenciário, mas antes como uma determinidade da forma como o ser foi e é doado em sua verdade histórica apropriando e expropriando o Da-sein em um só acontecimento.

Toda vez que nos direcionamos a algo já o nomeamos desta ou daquela forma entendendo-a de alguma maneira. É a linguagem o local através do qual toda relação entre ser e Da-sein se torna possível. Ela dá a margem da habitação humana determinando todo horizonte significativo de um povo, pois tudo o que é compreendido o é através dela. “Não é, portanto, de se admirar que”, fala-nos o pensador, “tão logo o homem faça uma ideia do que se acha ao seu redor, ele encontre imediatamente também a linguagem” (HEIDEGGER, 2003b, p.7).

Mas onde a linguagem nos fala mais propriamente? Qual é a região através da qual podemos considerá-la antes das objetificações? Em que localidade nos é dado ter o acesso à sua essência? Heidegger dirá que esse lugar é a poesia. Mas em que sentido? Na acepção de ser no verso rimado a localidade de seu acontecer mais próprio? Precisamos tornar claro como Heidegger compreende o poético para entender suas colocações sobre a linguagem originária.

Conforme visto, a arte é o acontecimento da verdade que une mundo e terra no traço-fenda que aparece na figura da obra. Tal figura desvela o ser em um ente específico e, assim, o expressa em uma forma condensada. Heidegger utiliza dois termos para designar a poesia. O primeiro é a poesie que indica a poesia em sentido estrito, isto é, a poesia do verso rimado efetuado pelo poeta. A segunda, por sua vez, é Dichtung que em alemão indica tanto uma condensação quanto a poesia (HAAR, 2007). É nessa segunda acepção que o filósofo considera as artes em geral – como a própria poesia, a música, a pintura, a arquitetura, por exemplo - e, em essência, a própria linguagem. Heidegger denomina as artes em geral como poéticas devido ao privilégio da linguagem diante de outras formas de desvelamento do ser.

Toda linguagem é Dichtung, pois ela determina o nosso encontro e a nossa compreensão com os entes trazendo para o claro através de seu nomear todo o horizonte significativo humano. Nesses termos, é ela que fala através de nós já que “onde não está a ser nenhuma língua, como no ser da pedra, da planta e do animal, não há também nenhuma abertura do ente” (HEIDEGGER, 2014a, p. 78). A poesia como Dichtung indica, nesse sentido, não uma invenção de um gênio ou um uma representação fantasiosa de um sujeito. Ela, antes e mais originariamente, refere-se a um nomear que traz para o traço da obra um mundo e uma terra apropriando-se e expropriando-se do Da-sein. Nomear este alicerçado num escutar o apelo da linguagem fundamental que não se gasta prosaicamente, mas traz o espanto para a proximidade dos mortais.

Podemos perceber que, para o pensamento heideggeriano, a linguagem, antes de quaisquer outras funções como expressão e representação, concerne a um trazer para o desencoberto a relação entre mundo e terra colocando em curso o desvelamento do ser. Enquanto na cotidianidade usamos as palavras, gastando-as em nossa comunicação, na arte ela nos revela algo do qual nos esquecemos por estarmos absorvidos em um mundo marcado predominantemente por relações utilitárias; esse algo tange ao âmbito de nossa própria habitação na constitutiva polissemia do ser que nos apropria e nos expropria.

A poesia (Dichtung) deixa ver algo, descerra um mistério para além das objetificações das ciências da linguagem. Nela a chuva se faz chuva, o sol se faz sol, a morte se faz morte e o nascimento um enlevo no jogo da existência – o que em nosso ir e vir cotidiano comumente não percebemos. Ela resgata em suas nomeações a integridade da linguagem em seu autêntico dizer rompendo com a nossa habitualidade. Por isso, na poesia é como se víssemos o que ali se mostra pela primeira vez. Ela coloca em curso o acontecimento da verdade e da não-verdade como desvelamento e concomitante velamento do ser. É nesse sentido que: “A verdade, como clareira e encobrimento do ente, acontece na medida em que é poetada. Enquanto deixar-acontecer da chegada da verdade do ente, toda arte é, enquanto tal, na sua essência poesia” (HEIDEGGER, 2014a, p. 76). Em Construir, habitar, pensar, o pensador nos fala:

 

O acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem. Isso só acontece, porém, quando prestamos atenção ao vigor próprio da linguagem. Enquanto essa atenção não se dá, desenfreiam-se palavras, escritos, programas, numa avalanche sem fim. O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo a senhora do homem. [...] É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão. Dentre todos os apelos que nos falam e que nós homens podemos a partir de nós mesmos contribuir para se deixar dizer, a linguagem é o mais elevado e sempre o primeiro (HEIDEGGER, 2001a, p. 126).

 

Nesse cenário é importante enfatizar que enquanto a poesia (poesie) – a poesia (Dichtung) em sentido estrito – traz através da linguagem um novo horizonte, abre uma nova região, as outras formas de artes como a pintura e a arquitetura, por exemplo, fundam a sua abertura numa região já estabelecida pelo ditado poético da primeira que são as nomeações de um povo, isto é, as formas como o ente foi e é compreendido enquanto ente para os que ali estão. Temos, dessa maneira, uma precedência da poesie diante das outras artes também poéticas no sentido da Dichtung. A poesie é, assim, o mais privilegiado dos ditados poéticos, pois a verdade acontece antes na linguagem. Ela é “o limiar da experiência artística em geral por ser, antes de tudo, o limiar da experiência pensante” (NUNES, 1986, p. 261). Não que as outras formas de arte não sejam também acontecimentos da verdade, porém há, para Heidegger, uma certa primazia da linguagem verbal, pois é através dela que a compreensão de ser primeiramente advém ao Dasein.

Todas as formas de arte que realizam o seu desígnio são formas de poesia (Dichtung) no sentido de pôr em obra a verdade do ser. Do mesmo modo, tanto o criar como o resguardar de uma obra são formas do ditado poético, pois a obra só se realiza de fato a partir dos que a criam e dos que a resguardam. Mas o que, de modo efetivo, acontece na verdade em curso na poesia em seu nomear e renomear os entes? O que ela oferta para os homens com seu dizer originário? O que ela traz ao desvelar o mundo e a terra de um povo através do criado para os que a resguardam? Heidegger dirá que poesia é uma instituição (Stiftung) da verdade. Seu dizer, por conseguinte, é um dizer fundamental através do qual os homens fundam o seu habitar histórico sobre a terra.

O ditado poético enquanto essência da obra de arte institui a verdade, para Heidegger, em um triplo sentido. A primeira forma de instituição da verdade é o doar (Schenken), a segunda é o fundar (Gründen) e a terceira é o iniciar (Anfangen). Instituir, todavia, não traz consigo a concepção de uma invenção subjetiva geniosa, mas antes de um escutar e expressar o apelo da linguagem originária que é a própria Dichtung por parte do criador e, igualmente, em demorar-se diante da obra, zelando por ela e a iluminando, por parte dos que a resguardam. Apropriação e expropriação entre homem e ser através da linguagem. Dessa maneira, cada modo de instituir condiz, pela perspectiva aqui descerrada, aos modos da essência mesma do ser em suas doações aos mortais. Conforme analisaremos a seguir, é através dessa tripla instituição da verdade poética que Heidegger chegará, enfim, a origem (Ursprung) da obra de arte.

O doar como primeiro modo da instituição da verdade na obra indica que a verdade ali em curso “é um excesso, um dom” (HEIDEGGER, 2014a, p. 81) que se dá aos homens a partir do Ereignis. Verdade que toma o homem sendo igualmente tomada por ele a partir do comum-pertencer de um ao outro. Assim, é somente a partir desse evento singular que o mundo e a terra podem advir para aqueles que ali habitam. Criar se torna, por essa perspectiva e antes de qualquer outra coisa, o receber de um dom do ser. É dito:

 

O projecto verdadeiramente poético é a patenteação originária daquilo para o que o aí-ser, enquanto histórico, já está lançado. E isto é a terra e, para um povo histórico, a sua terra, o fundo que se encerra, sobre o qual repousa com tudo aquilo que, ainda encoberto para si mesmo, já é. Mas é o seu mundo que vigora a partir da conexão do aí-ser com o não-estar- encoberto do ser (HEIDEGGER, 2014a, p. 81).

 

Com as palavras de Heidegger, podemos compreender que, por sua via de pensamento, a arte é, num primeiro momento, extraída de um estar a ser histórico que ocorre, por sua vez, sempre em uma terra que é pátria e através da qual se dá o mundo daquele povo. O artista não a concebe a partir de sua mera imaginação associando ideias de acordo com a verossimilhança e o possível, por exemplo. Do mesmo modo, ele não cópia algo que é tal como é na realidade efetuando uma mímesis nem é uma representação. O poeta, enquanto sentido abrangente de todo grande artista – já que a arte é, em essência, Dichtung – retira do inaudito pelos homens imersos no ruído ordinário da vida a profundidade abissal das palavras e, assim, traz como se fosse novo a maravilha do que historicamente sempre está a acontecer. Assim, a obra de arte institui a verdade como doação.

Da mesma forma, a instituição da verdade na obra “é instituição não apenas no sentido da doação livre, mas é-o também no sentido do fundar que confere um fundo” (HEIDEGGER, 2014a, p. 81-2). Ora, a obra provém de uma dádiva do ser que se apropria e se expropria do homem sendo, igualmente, apropriado e expropriado por ele. Nessa doação em que o ser se mostra e concomitantemente se oculta são fundadas as épocas históricas a partir do encontro entre ser e homem na linguagem. Isso se dá porque tal doação funda toda e qualquer compreensão acerca do ente para os homens que habitam aquele mundo. Por conseguinte, ao se doar o ser traz o fundamento histórico de um povo através da poesia. É nesse sentido que o segundo modo de intuição da verdade, o fundar, acontece na Dichtung.

O ser não é como um ente do qual se derivam os demais entes, ele é pura doação. Ao se doar aos homens tal encontro apropriativo-expropriativo funda as épocas históricas e, assim, dá início ao destino (Schicksal) daqueles que ali vivem. Todo momento histórico se alicerça num certo entendimento geral do que é o ente em seu todo. A essa compreensão que se refere, de modo essencial, à verdade do ser Heidegger denomina de destino. O terceiro e mais essencial modo de instituição da verdade poética é o iniciar enquanto o pôr a caminho de um destino. Por isso, sempre que “a arte acontece, isto é, quando há um início, um abalo atinge a história, a história tem início ou volta a iniciar-se” (HEIDEGGER, 2014a, p. 83). Em A Questão da técnica, lemos:

 

Pôr a caminho significa: destinar. Por isso, denominamos de destino a força de reunião encaminhadora, que põe o homem a caminho de um desencobrimento. É pelo destino que se determina a essência de toda história. [...] A ação humana só se torna histórica quando enviada por um destino (HEIDEGGER, 2002c, p. 27).

 

É nessa acepção que a obra de arte cuja essência é pôr-em obra o acontecimento da verdade dá início a história (Geschichte)[6]. Em seu instaurar ela estabelece o destino dos homens determinando a constitutiva relação homem-ser. Aí reside, em seu sentido mais profundo, a significação do caráter fundacional das grandes obras de arte. O que ocorre também nos grandes pensadores que, mesmo sem considerar a diferença entre ser e ente, pensaram o ser e ao expressá-lo instauraram os paradigmas sobre os quais toda uma tradição se construiu. É nessa acepção que o filósofo da Floresta Negra efetua uma rememoração (Andenken) dos momentos decisivos da destinação ocidental ao voltar-se para a metafísica, fazendo o mesmo com a arte ao dirigir-se para a estética.

O início (Anfang) instituído pelo ditado poético é, caracteristicamente, um início que perpetuamente continua acontecendo de modo a determinar a compreensão dos homens de uma dada tradição. Sua concepção se difere, dessa forma, ao começo (Beginn) entendido enquanto o momento datado em que algo ocorreu. Algo que, posteriormente, foi lançado no passado. Enquanto o começo é desprovido de futuro, o início prossegue ocorrendo no porvir.

Assim, com o desenvolvimento das noções da tripla instituição da verdade poética, Heidegger chega à tão procurada proveniência da essência da obra de arte. Ela reside no ditado poético que institui a verdade enquanto doação, fundação e início. Instituição que, por se constituir como um abalo, coloca em curso uma nova abertura na história de um povo. Por conseguinte, a origem da obra de arte é o acontecimento da verdade e da não-verdade que ocorre como poesia (Dichtung) instituidora. O pensador nos esclarece:

 

A arte permite que a verdade brote [entspringen]. A arte, enquanto resguardar instituinte, faz brotar, na obra, a verdade do ente. Fazer brotar algo, trazê-lo ao ser no salto instituinte a partir da proveniência da sua essência – é isso que quer dizer a palavra ‘origem’.

A Origem da obra de arte, isto é, dos que criam e, simultaneamente, dos que resguardam, ou seja, do aí-ser histórico de um povo, é a arte. É assim porque, na sua essência, a arte é uma origem: é um modo insigne como a verdade vem a ser, isto é, devém historicamente (HEIDEGGER, 2014a, p. 84).

 

A origem da obra de arte é o artista. A origem do artista é a obra de arte. Obra que não existe sem os que a criam e sem os que resguardam por ela. Criar e resguardar são formas do ditado poético dado em um único evento de apropriação e expropriação entre ser e homem. Tal ditado traz para o desencoberto uma nova nomeação do ser e, desse modo, dá origem à própria história. É nessa acepção que a instituição poética é a origem da obra de arte.

 

Considerações finais

 

Pudemos compreender em nosso pequeno percurso até aqui como a obra de arte, vista a partir de uma perspectiva ontológica, é uma localidade privilegiada do acontecimento da verdade histórica de um povo. O que as concepções estéticas não consideram por tratarem as obras como meros objetos. Dessa maneira, a arte reúne um mundo e uma terra no traço-fenda da figura que aparece na forma da beleza. Ela é uma abertura para o ser.

Do mesmo modo, a obra necessita dos que a criam, não sendo, todavia, fruto de uma subjetividade criadora, mas antes um auscultar o apelo do ser a partir da linguagem. Igualmente, ela precisa de uma comunidade humana que por ela resguarde, zelando por sua verdade. Criar e resguardar são formas do ditado poético em que homem e ser se apropriam e se expropriam mutuamente. Formas sem as quais a obra não pode efetivamente acontecer como obra de arte.

Nesse cenário a linguagem é caracterizada, essencialmente, como a morada do ser, como âmbito através do qual todo encontro do homem com o ser se torna possível. É assim que a linguagem se torna um nomear que descobre o mundo. Nomear poético que desvela e oculta o ser em sua verdade e não-verdade. Por conseguinte, sendo o artístico também Dichtung, ela é uma tripla instituição que dá origem, assim como a filosofia, ao horizonte significativo de toda uma tradição. Por isso nos diz o pensador em seu ensaio sobre a obra de arte: “A arte é história em sentido essencial: funda a história” (HEIDEGGER, 2014a, p.84).

 

Referências bibliográficas

 

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CASANOVA, Marco. Compreender Heidegger. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

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Recebido: 13/09/2022                                                                         Received: 13/09/2022

Aprovado: 17/10/2022                                                                        Approved: 17/10/2022

 



[1] O primeiro momento intitula-se A coisa e a obra enquanto o terceiro é denominado de A arte e a verdade.

[2] Como explica Casanova: “Acontecimento apropriativo [Ereignis] é uma expressão que procura pensar o acontecimento a cada vez histórico do surgimento das ontologias a partir de uma dupla apropriação. [...] Como o ser se confunde com sua história e como a essência e a verdade do ser nos remetem para o surgimento de uma medida ontológica que dá sustentação em uma época a todas as suas determinações em geral, é preciso que haja um ente capaz de escutar o dizer histórico e dar concomitantemente voz a um tal dizer. O ser-aí humano precisa se deixar apropriar pela história do ser em meio ao acontecimento apropriativo, para que a verdade do ser possa acontecer, ou seja, para que o ser possa desdobrar a sua essência” (2009, p. 177).

[3] Sobre o termo produzir (Hervorbringen) Carneiro Leão nos esclarece: “Composta do verbo ducere, que significa levar, e da preposição pro, diante de, em, frente a, pro-duzir é uma instauração de vigor que leva o modo de ser de algum ente para a frente da presença histórica” (CARNEIRO LEÃO, 1996, p.78).

[4] “Atendendo à circunscrição da essência da obra, segundo a qual está em obra o acontecimento da verdade, podemos caracterizar o criar como o deixar-vir-a-ser [Hervorgehenlassen] a algo produzido. O tornar-se-obra da obra é um modo do devir e do acontecer da verdade” (HEIDEGGER, 2014a, p. 62).

[5] Em A Essência da Linguagem, podemos ler: “Mas fazer a experiência com a linguagem é algo bem distinto de se adquirir conhecimentos sobre a linguagem. Esses conhecimentos nos são proporcionados e promovidos infinitamente pela ciência da linguagem, pela linguística e pela filologia das diferentes línguas e linguagens, pela psicologia e pela filosofia da linguagem. [...] Dizer isso não significa porém desvalorizar a pesquisa científica e filosófica das línguas e da linguagem. Essa pesquisa tem todo o seu direito e valor. A seu modo, ela está sempre ensinando coisas muito úteis. No entanto, uma coisa são os conhecimentos científicos e filosóficos sobre a linguagem e outra é a experiência que fazemos com a linguagem” (HEIDEGGER, 2003a, p.122).

[6] Heidegger traça uma distinção entre a história enquanto desvelamento do ser (Geschichte) e a história da historiografia (Historie), do fato histórico tal como considerado pelos historiadores.