Se o lógos não diz o ser, então o que diz? Uma leitura da terceira tese do Tratado no não-ser de Górgias de Leontinos[1]*

If the lógos not say the being, so what does it say? A reading of On What Is Not Treatise third thesis by Gorgias of Leontini

Saulo Bandeira de Oliveira Marques

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

E-mail: sbmarques@gmail.com

RESUMO

Em sua terceira tese sobre o não-ser, Górgias divorcia o discurso sobre um objeto do objeto mesmo. Mas, se o lógos não diz o ser, então o que ele diz? Para essa questão, propõe-se uma abordagem que procura reabilitar a retórica enquanto um modo de especular o Mundo, mostrando quão próxima pode ser da filosofia. Para tanto, em primeiro lugar, apresentam-se as paráfrases do Tratado do não-ser. Em seguida, desde a terceira tese, expõe-se a retórica enquanto inventio. Por fim, com base na inventividade da retórica, propõe-se uma visão de mundo de viés persuasivo, mostrando a proximidade entre persuasão e especulação.

Palavras-Chave: Filosofia. Retórica. Górgias de Leontinos. Tratado do não-ser.

ABSTRACT

In his third thesis on not-being, Gorgias divorces the speech on object of the object itself. But, if the lógos not say being, what does it say? For this question, I seek an approach that rehabilitate the rhetoric as way to speculate the World, showing how it can be nearest to philosophy. Therefore, firstly, I will present the paraphrases of On What Is Not treatise. Then, from the third thesis, I will expose the rhetoric as inventio. Lastly, from the inventiveness of rhetoric, I will propose a persuasive worldview, showing the nearness between persuasion and speculation.

Keywords: Philosophy. Rhetoric. Gorgias of Leontini. On What Is Not treatise.

 

“Wherever there is persuasion, there is rhetoric. And wherever there is ‘meaning’, there is ‘persuasion’”

Kenneth Burke


 

Considerações iniciais

Contemporaneamente, diversos filósofos têm refletido sobre o papel da linguagem na relação entre o Eu e o Mundo. A esse respeito, uma das questões cruciais sobre a qual eles se debruçam é se a linguagem é apenas meio para acessar o ser ou se a linguagem “conota” o ser. Contudo, embora tenham recebido um novo olhar nessa época (OLIVEIRA, 2015, p. 11-14), reflexões desse jaez não são novas. Também os antigos, obviamente ao seu modo e dentro de um contexto histórico e social bastante característico, refletiram sobre questões semelhantes. Esse texto se propõe a participar desse debate, argumentando em favor de um ponto de vista próximo àquela segunda opção, desde o Tratado do não-ser de Górgias de Leontinos.

Como se poderia supor, a escolha de Górgias como fio condutor dos argumentos nesse texto não foi aleatória. Atendendo aos propósitos do debate que o tema “filosofia e retórica” evoca, a figura de Górgias pareceu ser a mais apropriada para discuti-lo por trazer em si toda a tensão existente entre uma e outra. Por muito tempo (ENOS, 1976, p. 35-38), Górgias foi tido apenas como um rétor e não um filósofo – e se isso não o bastasse, Platão, em um diálogo homônimo, busca até caricaturá-lo em seu ofício de orador, apresentando-o como alguém que não fazia jus à fama de jamais se calar diante de qualquer questão que lhe fosse posta (Gorg. 447c, 448a, 449a e 458b-c). Outrossim, seus textos foram vistos como simples exercícios de retórica, carentes de uma reflexão filosófica séria a respeito da temática sobre a qual tratavam, entre eles o Tratado do não-ser.

Muito já se escreveu sobre qual seria o real propósito de Górgias no Tratado. Para uns, o texto não passa de uma mera paródia às teses sobre o ser dos eleatas, mais especificamente uma galhofa ao poema de Parmênides; para outros, trata-se de puro exercício de retórica; para alguns ainda, é uma séria abordagem filosófica (DINUCCI, 2008, p. 6-7; KERFERD, 1955, p. 3; SCHIAPPA, 1997, p. 16-18). Observando os argumentos postos para sustentar as três teses do Tratado – nada é; se é, é incognoscível; se é e é cognoscível, é incomunicável –, contudo, parece que Górgias estava seriamente considerando o problema do ser – e não seria seu estilo literário nem a ironia ali presente que lhe descaracterizaria o conteúdo filosófico, como bem o anota Guthrie (1971, p. 193-194).

Górgias era um sofista e, desde a sofística, não era possível ater-se à verdade sobre as coisas porque o que há é tão-somente opinião (Hel. §11). Nesse sentido, envoltos na relatividade de suas próprias visões de mundo, não há outro caminho para os seres humanos senão a persuasão (GUTHRIE, 1971, p. 272-273). Eis o porquê do viés “trágico” (UNTERSTEINER, 2012, p. 215-258) das suas respostas, expressas em suas teses, às questões “o que é o ser?”, “é possível conhecê-lo?” e “é possível dizê-lo?”.

Essa sua perspectiva é apresentada por Platão (Gorg. 454c-455a), e, ainda que retirada de contexto e com o objetivo de criticá-lo, revela a importância da persuasão no pensamento de Górgias. Nos negócios humanos, segundo defende, é o lógos que dita o fazer e o não-fazer (Gorg. 451d e 455b-457c). Nesse sentido, o lógos se torna um “poderoso soberano” (Hel. §8), construindo a “realidade” na qual vivemos e somos (Hel. §13).

Não é preciso dizer que essa visão de mundo vai de encontro a toda uma longa tradição filosófica, com ramificações presentes nesta contemporaneidade. Contudo, ela não é contrária à filosofia como um todo. Aliás, como o mostrou Górgias em sua reflexão retórica sobre o Mundo, a arte de convencer e persuadir pode ser próxima da especulação filosófica. Em vista disso, considerando-a guia, propõe-se nesse texto apresentar um argumento em favor de uma “logologia retórica” desde a terceira tese do Tratado do não-ser. Para tanto, em primeiro lugar, considerando ambas as paráfrases do Tratado, apresentam-se os argumentos que lhe embasam as teses. Em seguida, a partir da terceira tese, procura-se mostrar a retórica enquanto inventio, indo além do senso comum de vê-la apenas como a arte da elocução e/ou uma estratégia discursiva. Por fim, com base na inventividade, argumenta-se por uma perspectiva marcadamente persuasiva sobre o Mundo, mostrando que a invenção retórica e a especulação filosófica não estão tão distantes uma da outra o quanto se supõe.

1 Um panorama geral das paráfrases

Assim como muitos textos da Antiguidade, o Tratado do não-ser se perdeu. Contudo, conservaram-se duas paráfrases suas: uma, equivocadamente creditada a Aristóteles, presente em Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias (MXG 979a12-980b21); a outra, elaborada por Sexto Empírico, no primeiro livro do Contra os Lógicos (Math. VII, §§65-87). Ainda que as teses do Tratado sejam idênticas em ambas as paráfrases, os argumentos na do pseudo-Aristóteles são mais bem detalhados que na de Sexto Empírico, razão pela qual recentemente os estudiosos lhe tem preferido.

Entretanto, a única coisa que seguramente se sabe da paráfrase do pseudo-Aristóteles é que ela é a mais antiga entre as duas. Todavia, quando foi escrita e quem a escreveu, mesmo não faltando hipóteses a respeito, são desconhecidos. Além disso, a má-conservação do texto, com algumas lacunas e trechos corrompidos, compromete-lhe a leitura, levando os tradutores, em um esforço hercúleo, a buscarem harmonizar as redações dos diferentes manuscritos, o que provoca não só significativas diferenças na tradução, mas, também, cizânia entre si pelas escolhas feitas (CASSIN, 2005, p. 269-272; KERFERD, 1955, p. 3-5).

A versão de Sexto Empírico está mais bem conservada e, fora algumas particularidades, não apresenta grandes problemas para os tradutores. Contudo, isso não significa ausência de controvérsias. Em seu desfavor, por um lado, pesa ter sido redigida cerca de sete séculos após a redação do Tratado; por outro, o viés nitidamente pirrônico dado por Sexto Empírico ao seu texto provoca certo receio entre os estudiosos sobre a correspondência de sua paráfrase com o texto original do Tratado (CASSIN, 2005, p. 269-272; DINUCCI, 2008, p. 5-6).

Em que pesem essas questões, as paráfrases são bastante aproximadas e é possível ter uma boa noção do texto de Górgias. No Tratado, ele defende três teses, em sequência, a seguinte após uma concessão à anterior: nada é; se é, é incognoscível; se é e é cognoscível, é incomunicável (MXG 979a12-13; Math. VII, §65). Para provar suas teses, Górgias basicamente funda seus argumentos em antinomias a fim de mostrar a problemática relação entre o ser, o seu conhecimento e o uso da linguagem nesse âmbito (DINUCCI, 2008, p. 7-8).

A primeira tese do Tratado é nada é.[2]-[3] Talvez por ser a primeira, talvez por ser a mais fundamental entre as teses, os argumentos sobre nada é foram mais desenvolvidos que os das demais. Há, inclusive, na paráfrase do pseudo-Aristóteles, após a argumentação lógica sobre o não-ser, uma discussão quanto à viabilidade dessa tese (MXG 979a34-979b20) – algo sem equivalente na exposição das outras duas.

Um dos argumentos lançados por Górgias para comprovar a primeira tese é o de que o ser é idêntico ao não-ser. O paradoxo e sua consequência absurda são alcançados através de uma intricada demonstração lógica, aqui simplificada: se o não-ser é não-ser, então o não-ser é; se o não-ser é, seu contrário, o ser, não é; porém, o ser é tanto quanto o não-ser é; assim, ser e não-ser são o mesmo, o que é absurdo (MXG 979a25-33; Math. VII, §§66-67 e §§75-76). Portanto, nada é.[4]

Não satisfeito, em sequência, Górgias aproveita dos argumentos de outros filósofos, até do eleata Zenão, para intensificar a contradição do ser. Opondo os argumentos daqueles que dizem ser o ser uno com o de ser o ser múltiplo, o de ser o ser eterno com o de ser o ser mutável e o de ser o ser gerado com o de ser o ser infinito, Górgias extrai consequentemente que o ser nem é uno nem múltiplo, nem eterno nem mutável, nem gerado nem infinito (MXG 979b20-980a9; Math. VII, §§68-76).[5] Assim, desde essa diafonia em torno do ser, restaria comprovado que o ser não é.

 

Mas, e se o ser é? Para Górgias, eis a segunda tese, se o ser é, é incognoscível.[6] Para comprovar essa tese, Górgias argumenta pela impossibilidade de se conhecer o ser tanto pela razão quanto pela experiência sensível.

Ora, se os eleatas estivessem certos, o não-ser não poderia ser pensado, porque o não-ser não é. Contudo, o não-ser é pensado, a exemplo de uma biga que corre sobre o mar ou da Quimera. Górgias, então, conclui que se se pode pensar tanto o-que-é quanto o-que-não-é, não há como distinguir um e outro, quer dizer, não é possível conhecer o ser porque não se pode diferençar o verdadeiro do falso. Ademais, e agora voltando-se para a experiência sensível, Górgias também declara a impossibilidade de se conhecer o ser pelos sentidos, pois embora a experiência sensorial seja conhecida enquanto pensada, existem descompassos entre sentir e pensar: ouvir que o homem voa não é suficiente para crer em um alguém “levantando voo”. Por essas razões, mesmo se o ser é, ele é incognoscível (MXG 980a9-19; Math. VII, §§77-82).

Por fim, Górgias lança a terceira tese: se o ser é e é cognoscível, ele é incomunicável.[7] Ele a demonstra desde dois argumentos: por um, os sentidos têm critérios próprios e distintos, não redutíveis ou convertíveis entre si, e essa heterogeneidade não permite falar de um cheiro, um sabor etc.; pelo outro, a relatividade da experiência, quer entre duas ou mais pessoas, quer de uma só pessoa, sobre um mesmo objeto, torna impossível qualquer dizer a seu respeito. Vejamos.

Pelo primeiro argumento (MXG 980a19-980b9; Math. VII, §§83-86), comunicar o ser é impossível porque cada órgão dos sentidos percebe o ser sob aspectos distintos. Por exemplo, uma imagem, por ser apreendida pela visão, não pode ser convertida em som para ser captada pela audição. Nesse sentido, quando alguém pretende falar algo sobre o ser (aroma, textura, cor etc.), nada se fala do ser, isto é, o lógos[8] pronunciado é algo distinto do ser: o lógos não expressa o ser, e, sim, o ser revela o lógos. Haveria, assim, para Górgias, uma inversão na relação entre significante e significado: esse não aponta para aquele, mas é um efeito seu.

No segundo (MXG 980b9-21), Górgias defende que a percepção de um mesmo objeto varia de pessoa para pessoa e, quando uma intenciona comunicar sua percepção à outra, quem a escuta não terá o seu mesmo sentir. A percepção da doçura do mel, por exemplo, é uma para fulano e outra para beltrano e, por mais riquezas de detalhes que fulano ponha em seu relato, o seu sentir não será comunicado para beltrano porque esse sente a doçura de modo diferente. Mas, há mais: a mesma pessoa tem sensações diferentes quando exposta ao mesmo objeto. Se sicrano provar o mesmo mel após ter ingerido café ou torta de limão, o sabor do mesmo mel lhe parecerá diferente. Isto é, cada experiência não é apenas individual, mas, sobretudo, única e, porque as pessoas conhecem as coisas de modo distinto, não é possível comunicar a quem quer que seja tal vivência. Em suma, para Górgias, uma coisa é o ser; outra, o que dele se percebe ou experiencia; e outra ainda, aquilo que dele se diz. Há, assim, uma distinção entre o lógos pronunciado, o que pretende significar e aquilo a que faz referência.

Mas, se o lógos não diz o ser, o que ele diz? Antes de abordar essa questão convém falar um pouco da inventividade da retórica. É o que se faz a seguir.

2 A retórica enquanto inventio

As três teses do Tratado revelam um Mundo perturbadoramente desordenado. Não há certeza sobre nada, apenas opiniões sobre os eventos que se sucedem – tão diversas quanto conflitantes. Pior: impossibilitados de evitarem essa diafonia de perspectivas, os seres humanos ainda são constrangidos a agirem em meio a inconciliabilidade dessas visões de Mundo (Hel. §11).

Cada lógos é um dizer subjetivo, particular, fruto de uma experiência única que, por sua vez, está atrelada a incontáveis variáveis e circunstâncias. E essa característica do lógos o faz um dizer potencialmente carregado de engano[9] enquanto uma expressão de plausibilidade e não de certeza, um engano que por sua razoabilidade e pelo “poder soberano” do lógos (Hel. §8) tem a capacidade de fazer de um ser outro ser ou mesmo um não-ser (UNTERSTEINER, 2012, p. 173-183, p. 253-255 e p. 259). E isso tem sérias implicações.

Segundo Cassin (1990, p. 273-281), os sofistas se aproveitavam dessa equivocidade, mais especificamente da homonímia e da anfibologia, para construírem seus discursos sobre o ser. E, quando o fizeram, eles expuseram um incômodo inconveniente que a metafísica, de modo geral, insistia em ocultar: o ser é uma convencionalidade do dizer.[10] A escandalosa pluralidade de sentidos de um lógos revelada pelo discurso sofista feriu de morte a pretensa univocidade da essência do ser: em oposição a Aristóteles, não é que, embora se resguarde sua ousía, se possa dizer o ser de muitas maneiras, mas, sim, que o ser é um mero acordo entre os falantes.

Sob essa óptica, a ausência de quaisquer critérios ontológicos e gnosiológicos faz da persuasão o único parâmetro para engendrar uma “realidade” (Hel. §13). Pelo “doce encanto” do lógos, nós assentimos condescendentemente às narrativas sobre o ser (DK 82A26) e somos guiados para determinadas escolhas e decisões (Hel. §11). E, nesse cenário, saber “manejar a palavra” é um trunfo (Gorg. 452e) – daí o porquê de a retórica estar inclusa no rol dos ensinamentos de qualquer sofista.[11]

Originada no âmbito dos tribunais,[12] a retórica inicialmente não era mais que um método de organizar o discurso de forma a apresentar uma determinada pretensão verossímil como a mais razoável com vistas a fazê-la ser o caso para aquela lide. Os sofistas perceberam a utilidade dessa propensão de a retórica racionalizar a verossimilhança e adotaram-na sem moderação como uma estratégia argumentativa – e essa proximidade com a sofística rendeu à retórica a má fama da vaziez e da trapaçaria. São imputações injustas, no entanto. Ainda que se enfatize a elocução a ponto de reduzir a retórica à arte de falar bem, a oratória é apenas uma parte da retórica; já o ludíbrio é um mero sofisma e não retórica propriamente dita – algo que até Aristóteles reconheceu (Rhet. 1355b8-15).

A retórica é um saber técnico amplo que envolve, grosso modo, três vertentes. A primeira, talvez a mais conhecida, a técnica da elocução, que trata da fluidez do discurso, de sua estrutura lógica e do seu estilo. A segunda, a estratégia argumentativa, cuja abordagem se dirige ao melhor método de apresentar um argumento. A terceira e última, da arte de inventar, a técnica de elaborar um dizer sobre algo que seja verossímil para o auditório. Desde esse ponto de vista, a persuasão se mostra uma atividade bem diferente daquela difundida no senso comum de ser uma habilidade de manipular a realidade para atrair o apoiamento alheio.[13]

Para Górgias, persuadir era um atributo da sabedoria (DK 82B8). Aquele que quisesse conquistar a adesão de um auditório às suas teses precisava estar atento às circunstâncias e à conveniência para definir a melhor estratégia para alcançar o convencimento. De outro modo: para achar o que dizer (inventio), ele deveria ponderar sobre qual dizer (eikós), quando dizer (kairós) e como dizer (léxis).

Os testemunhos (DK 82A1, A2, A30) relatam Górgias como um orador de capacidade tal a jamais se calar diante de qualquer assunto, mesmo de improviso. Seu estilo era único e marcadamente poético – os fragmentos apontam-no como o primeiro a utilizar de figuras de linguagem nos discursos, até então um expediente próprio à poesia, sendo, inclusive, o criador de algumas delas.[14] Contudo, esse viés estético tinha mais a ver com a exposição adequada de seus argumentos do que a uma simples ornamentação. Se, por um lado, sua poética buscava “encantar” os ouvintes através de uma experiência estética estimuladora das paixões (Hel. §§8-10), por outro, ela visava realçar suas ideias. Por exemplo, se a sua intenção era salientar as diferenças entre duas perspectivas, Górgias recorria à antítese (Hel. §1; Pal. §3); se era enfatizar uma perspectiva como a única possível, a um erótema (Hel. §7, §12 e §§19-20; Pal. §4); e se era associar características, a uma metáfora (DK 82B5a e B5b).

Também considerado uma inovação gorgiana no âmbito da retórica,[15] o kairós é a habilidade de reconhecer o momento oportuno, o timing adequado para adaptar o discurso às circunstâncias. O kairós resulta de uma observação constante dos ouvintes e da ocasião, a fim de falar a coisa certa no momento certo. Ainda que anedótico, o episódio da andorinha (DK 82A23)[16] é um exemplo do uso do kairós.

Após refletir sobre como e quando dizer, a tarefa da inventio se perfaz na escolha de qual dizer, entre os dizeres existentes, será o utilizado enquanto argumento. Embora os lógoi tenham correspondência com aquilo do que se diz, a pretensão é selecionar aquele mais crível para um auditório (Hel. §11). Ou seja, a concepção de eikós na retórica gorgiana estava além do meramente verossímil.[17]-[18]

Para Górgias, o eikós deveria ser entendido como o que se mostra mais próximo àquilo reputado enquanto uma “perspectiva razoável” de dado evento do Mundo pelos ouvintes, isto é, em sua crença sobre ele (Hel. §11 com DK 82B26). Então, diante da pluralidade das visões sobre o ser, o lógos que se “fará realidade” será aquele que lhe disser o acontecimento o mais razoavelmente admissível (POULAKOS, 1984, p. 223-224). Portanto, não lhe basta parecer: é preciso espelhar a visão do público. É o caso, por exemplo, dos argumentos apresentados na Defesa de Palamedes. A fim de provar que não era um traidor (Pal. §23), mas, sim, uma vítima de uma cilada arquitetada por Odisseu, Górgias elenca uma série de razões que fariam da versão de Palamedes sobre o acontecimento um relato plausível, seja pela dificuldade prática inerente à ação, seja pelas vantagens obtidas, seja ainda pelo caráter de Palamedes (Pal. §§6-21).

Nesse sentido, enquanto arte da persuasão, para Górgias, a retórica é um modo de agir no e especular o Mundo – talvez, a única forma de fazê-lo. Afinal, se não é possível conhecer o ser nem dele nada dizer, a segunda e a terceira teses, respectivamente, resta convencer o outro de que tal ou tal perspectiva é a mais condizente, quer dizer, fazer o outro crer em uma correlação entre as circunstâncias e o lógos sobre o ser[19] (DK 82B26; ENOS, 1976, p. 44-45). E cabia a essa arte da inventio levar a persuasão a efeito (Gorg. 453a).[20]

Inventar um argumento é, então, como se poderia supor, criar um dizer sobre algo que fizesse as percepções dos outros o enxergarem como um reflexo daquele algo sobre o qual se está a falar enquanto um signo do lógos. Assim, o lógos nem diz o ser, nem o seu fenômeno e nem mesmo a experiência que se tem, quer deste, quer daquele (WALTERS, 1994, p. 146). A questão é: o que diz? A seção seguinte lhe propõe uma resposta.

3 Se o lógos não diz o ser, então o que diz?

Uma boa pista para o dizer do lógos está nos comentários de Cassin (2005, p. 57-63) a um dos argumentos da terceira tese da paráfrase de Sexto Empírico. Sua leitura[21] considera o lógos não como uma “rememoração” do ser, isto é, uma ponte entre as sensações do sujeito e os objetos externos, mas, sim, enquanto um “fazer” o ser, ou, melhor, o ser como efeito do lógos. Para entender essa perspectiva é preciso observar a diferença entre os signos indicativo e comemorativo em Sexto Empírico (Math. VIII, §§145-158).[22]

Um signo é um indício de uma relação entre dois ou mais objetos e/ou fenômenos que são diferentes. O signo comemorativo visa estabelecer um liame entre o perceptível e aquilo ocasionalmente não-evidente, ou seja, ele aponta para algo que não está presente, mas pode ser “(re)lembrado” (Math. VIII, §§152-153). É o caso, por exemplo, da cicatriz que lembra uma ferida ou da fumaça que é sinal do fogo. Já o signo indicativo relaciona algo perceptível a outro algo naturalmente não-evidente, quer dizer, ele revela algo que não pode ser observável (Math. VIII, §154). Como relata Sexto Empírico, para algumas das filosofias do Helenismo, os movimentos do corpo eram indicativos da existência da alma.

A leitura de Cassin do ser enquanto um signo indicativo do lógos é bastante coerente com as teses do Tratado. Se, por um lado, caso o ser fosse um signo comemorativo do lógos, ou vice-versa, seria não apenas possível conhecê-lo, mas, sobretudo, tê-lo à vista – o que vai de encontro à primeira e à segunda teses. Por outro, caso o lógos fosse um signo indicativo do ser, e não o contrário, conforme a interpretação de Cassin, o lógos revelaria o ser, quer dizer, o ser seria comunicável – algo em sentido oposto à terceira tese.

Mas, o que significa dizer que o ser revela o lógos?

Embora o lógos seja algo distinto do ser, ele não é um dizer arbitrário (Math. VII, §§84-85). Por exemplo, as impressões fenomenais do ser nos sentidos fornecem os atributos para se proferir um lógos sobre aquela experiência sensorial – visão, tato, audição etc. Há, assim, no ser, algo que o faz parecer de dada maneira e não ao mero alvedrio do Eu (Hel. §15).

Não obstante, aquela experiência que imprime sua sensação é ela mesma lógos, é um efeito do lógos (CASSIN, 2005, p. 289-291, nota n. 34). Isso quer dizer que, por exemplo, o sabor experimentado (doce, amargo etc.) é produto de uma sensação, mas, também, de um lógos daquela sensação – o mesmo ocorrendo com a visão, o olfato, a audição e o tato. Assim, em que pese o lógos pronunciado guardar alguma relação com o objeto ao qual ele pretende referenciar, ele, o lógos, só diz o próprio lógos – inclusive, não há qualquer garantia de dizer-se como é sem distorções (PORTER, 1993, p. 289-291).

Nesse sentido, enquanto algo distinto do ser e sendo, ele mesmo, um algo, o lógos não diz nada além de si mesmo (CASSIN, 2005, p. 289-291, nota n. 34; PORTER, 1993, p. 289): o lógos encerra-se em si e diz-se tautologicamente (PORTER, 1993, p. 284). Então, distinto do, inconvertível no e não-referencial ao ser, o lógos sobre algo não é mais que uma simples inferência. É um dizer que procura uma aparência com o dito e, por isso, faz o dito assumir um sentido (CASSIN, 2005, p. 289-291, nota n. 34). Dizer que o ser revela o lógos é afirmar haver uma relação linguística pela qual o ser assume uma aparência que não é intrínseca nem necessariamente correlata com o lógos, com a experiência sensível ou com o ser mesmo. Sem dúvidas, esse é um campo fértil para florescer a persuasão. Afinal, em meio a tantos dizeres sobre o ser, qual deles lhe “dirá melhor”?

Nesse abismo entre o ser e o dizer, a retórica enquanto inventio será a modeladora do dizer o ser – ela lhe conotará. Isso significa que o lógos não diz o ser, o seu manifestar ou a experiência que se tem, seja desse, seja daquele (WALTERS, 1994, p. 146), mas, sim, diz um dizer que lhe transforma e dá-lhe significado, “faz” o ser ser um ser. Como anota Cassin (2005, p. 62-63), é por causa da conotação dada pelo lógos que o ser pode ser apreendido; o ser só tem sentido a posteriori do discurso linguístico sobre ele.

E é nesse ponto que a retórica e a filosofia se encontram.

Para Plebe e Emanuele (1992, p. 11), ambas, a retórica e a filosofia, atuam no mesmo âmbito intelectual: “propor temas de caráter geral, sustentá-los através de uma tese, discutir para demonstrar sua validade”. E a linguistic turn da filosofia acentuou essa proximidade (OLIVEIRA, 2015, p. 12). Como bem o aponta Oliveira (2015, p. 13),

[...] não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na linguagem. A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade.

Sob esse aspecto, então, a especulação filosófica se volta para a significação do dizer, enxergando na filosofia da linguagem uma nova filosofia primeira (OLIVEIRA, 2015, p. 13-14). Buscar entender o significado se tornou pré-requisito para a reflexão filosófica porque “é impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem” (OLIVEIRA, 2015, p. 13). À sua maneira, a retórica compartilha dessa perspectiva.

De modo geral, enquanto a filosofia busca por explicações definitivas, algumas vezes apregoando a última verba,[23] à retórica é suficiente propor um sentido, ainda que restrito e precário, àquele algo em análise. Assim, tanto a especulação (filosofia) quanto a invenção (retórica) se propõem a oferecer uma significação para isso que se chama de “realidade”. Sob esse viés, a retórica e a filosofia estão menos distantes do que parece.

Então, refletir retoricamente sobre o Mundo é especular por soluções desde as várias perspectivas existentes a fim de firmar um entendimento mais ou menos duradouro sobre um determinado problema. Ou seja, frente à incerteza e à indecidibilidade sobre o ser, e mesmo diante do risco iminente do engano, resta apenas argumentar por tal ou qual lógos. Na prática, conhecer é persuadir (WALTERS, 1994, p. 144-146).

Daí uma “logologia retórica” desde Górgias. Ser e dizer, embora distintos, enlaçam-se em um nó (DK 82B26). Dizer algo é fazer esse algo ser, isto é, sua existência e realidade são um efeito do lógos. Enquanto arte da invenção, caberia à retórica tratar desse fazer ser a partir do dizer.

Em resumo, e concluindo, a terceira tese do Tratado demonstra o quão dependentes o ser e o conhecer são da linguagem. Dizer um dizer sobre algo é dotar aquele algo de sentido, não só para fazê-lo compreensível, mas para formatá-lo enquanto um ente do Mundo. O lógos enunciado não diz o ser; ele o “performatiza”, “age” enquanto “exprime”: produz um efeito-mundo (CASSIN, 1990, p. 303-304; 2005, p. 63; 2009, p. 353-356).

Considerações finais

As três teses do Tratado mostram o quanto a linguagem orienta o conhecer e faz o ser. Se se enxergar o Mundo sob as lentes da retórica, pode-se ver o quanto a persuasão modelou isso o que se chama “realidade”. Por ela, a contingência do Mundo é domesticada, ordenando-se a fortuidade da vida, e mitigando-se a dissonância dos lógoi sobre o ser. O dizer persuasivo faz o Mundo ser do jeito que o conhecemos – outras linguagens originariam “outro” Mundo (Hel. §11). E isso só foi e é possível pela inventio da retórica.

É o caso, por exemplo, como o relata Ballweg (1991, p. 176-178), do uso de determinadas palavras para descrever certos eventos e/ou circunstâncias do Mundo. Empregar uma palavra no lugar de outra dá àquele algo nomeado um status diferente do que teria se fosse nomeado por outra palavra. Há uma espécie de conotação existencial que cria a realidade na qual vivemos e somos (Hel. §13). Desde esse ponto de vista, “ser”, “realidade” e até mesmo “verdade” ou “racionalidade” assumem os contornos que tem, quando apenas expressam uma vinculação duradoura entre um algo e dada característica (ser), um posicionamento sobre o mundo circundante (realidade), uma relação entre um algo e outro ou entre eventos ou entre um algo e um evento (verdade) ou ainda uma observação sobre a regularidade no sucedimento entre pensamentos, entre ações ou entre essas e aqueles (racionalidade). Se o Mundo só tem sentido dentro da linguagem e só por ela é exprimível e inteligível (OLIVEIRA, 2015, p. 13), dizê-lo é materializá-lo, é possibilitar sua experimentação.

Enquanto uma análise daquilo que nos cerca, a retórica se aproxima da filosofia. Ambas propõem teses, debatem as antíteses, verificam sua conformidade e sustentam seus pontos de vista. Sob esse aspecto, não há razão para não considerar a inventio retórica como uma atividade de alto grau intelectual.

Porém, diferentemente da filosofia, a retórica não pretende a equivalência entre dizer um algo e dizer a verdade sobre o algo. Para a retórica, dizer algo não é referir-se àquele algo, mas dar-lhe sentido, conotá-lo. Enquanto um performativo, o lógos persuasivo faz o ser, no mais pleno sentido de fazer – por isso o jaez demiúrgico de um “poderoso soberano” (Hel. §8).

Bem. Começou-se com Górgias, termine-se com Górgias.

Deixar envolver-se com o lógos retórico não é sinal de ingenuidade, mas, sim, ter em mente o aspecto ilusório da “realidade” do que nos cerca (DK 82B23). É ter sensibilidade e inteligência o suficiente para apreciar as maravilhas do “doce encanto” do lógos (DK 82B28). É perceber as possibilidades do Mundo e agir sobre ele (POULAKOS, 1984, p. 221).

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Recebido: 21/09/2022                                                                          Received: 21/09/2022

Aprovado: 01/11/2022                                                                       Approved: 01/11/2022



[1]* As traduções de referência das paráfrases do Tratado do não-ser adotadas são a de Loveday e Forster, para a do pseudo-Aristóteles, e a de Bett, para a de Sexto Empírico. Subsidiariamente, em língua portuguesa, recorreu-se a tradução de Barbosa e Ornellas e Castro, além das traduções organizadas por Dinucci (2017) e aquelas presentes em Cassin (2005). A tradução de referência adotada para os demais textos de Górgias citados nesse artigo é a de Barbosa e Ornellas e Castro.

A fim de facilitar a consulta dos textos antigos aqui citados em outras traduções, sua referência não seguirá o padrão da ABNT. Com exceção do Tratado do não-ser e do Elogio de Helena e da Defesa de Palamedes, aquele referenciado de acordo com as notações de suas paráfrases e esses pelas abreviaturas Hel. e Pal., os demais fragmentos dos textos de Górgias seguem a numeração de Diels-Kranz. A numeração de Diels-Kranz também será utilizada na referência ao Poema de Parmênides. Já o Górgias de Platão será referenciado por Gorg. e a Retórica de Aristóteles por Rhet.

[2] A primeira “tese” sobre o ser no Poema de Parmênides é “[...] os únicos caminhos de investigação que há para pensar: / um que é, que não é para não ser, / é caminho de confiança (pois acompanha a realidade); / o outro que não é, que tem de não ser, / esse te indico ser caminho em tudo ignoto, / pois não poderás conhecer o não ser, não é possível, / nem indicá-lo [...]” (DK 28B2).

[3] Há uma discussão sobre qual o sentido do verbo “ser” (einai) no Poema de Parmênides: a) predicativa (o ser é algo), b) identitativa (o ser é o ser), c) existencial (o ser existe) ou d) veritativa (o ser é verdade). Questões como a perda do original do Poema, as sucessivas cópias (e recópias) e a imperícia dos copistas para lhe grafarem os acentos e os espíritos de forma correta, certamente, contribuíram para essa ambiguidade (SANTOS, 2000, p. 59-63; SCHIAPPA, 1997, p. 18-22). Outrossim, ressalta Santos (2000, p. 82-83), no mesmo sentido Guthrie (1971, p. 199-200), a ambiguidade de einai era típica da época histórica na qual o Poema foi redigido, um problema que só veio a ser resolvido com Platão.

Górgias se aproveita dessa equivocidade do verbo einai e “joga” com as suas possíveis acepções, em paralelo ao Poema de Parmênides (GUTHRIE, 1971, p. 192-200; SCHIAPPA, 1997, p. 20 e p. 22-27). Cassin (1990, p. 278-279) relata esse “jogo” nos seguintes termos: “Na versão anônima [a do pseudo-Aristóteles] do Tratado do não-ser de Górgias, a demonstração própria ao sofista se anuncia por uma frase que, como tudo indica, está citada expressis verbis: ouk éstin oúte eînai oúte me eînai (Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias, 979s.). Essa fórmula é, ao mesmo tempo, homonímica e anfibólica. Homonímica porque joga, com ouk éstin, com todos os sentidos não-categoriais do verbo ser, que, nesse caso preciso, a acentuação dos manuscritos, aliás tardiamente codificada, não permite mesmo distinguir; éstin, com efeito, pode ser aqui verbo de existência, ou bem cópula, ou ainda, já que em início da frase, um impessoal marcando a possibilidade. A fórmula é não menos anfibólica porque, segundo o sentido de éstin, três construções diferentes são possíveis e tão verossímeis umas quanto as outras; se se trata do verbo de existência, então os dois infinitivos têm função de sujeito: ‘nem ser nem não-ser existem’; se se trata de cópula, eles são predicados de um sujeito que pode muito normalmente estar em elipse: ‘isso’ ou ‘ele não é nem ser nem não-ser’; com a modalidade enfim, os infinitivos tornam-se completivos: ‘não é possível nem ser nem não-ser’. A ‘tradução’ menos ruim, se é que ainda se pode utilizar o termo, servir-se-ia talvez de parênteses como de um álibi, para sugerir a ubiqüidade (sic) da frase: ‘(isso) não é (possível) nem ser nem não-ser’. Pois, bem entendido, na demonstração de Górgias, nenhum desses três sentidos deve ser excluído, mas eles decorrem, ao contrário, um do outro de forma regular: se ‘ser’ e ‘não-ser’ não têm existência, então não poderiam jamais servir de verbo em nenhuma frase, não podendo nesse caso dizer de nenhum sujeito que ele é ou que não é”.

Essa abordagem de viés “irônico” é um dos fatores pelos quais o Tratado foi considerado uma simples paródia.

[4] Na discussão sobre a viabilidade da primeira tese, mencionada a pouco, o pseudo-Aristóteles usa da mesma estratégia lógico-argumentativa para contradizer Górgias, concluindo o oposto: tudo é. Afinal, assim argumenta, se o-que-é é o-que-é e o-que-não-é é o-que-não-é, então tudo é, pois tanto o-que-é é quanto o-que-não-é é. Além do mais, não é porque o-que-é é e o-que-não-é é que são a mesma coisa: o-que-não-é, por ser o-que-não-é, não é verdadeiro, mas o-que-é, por ser o-que-é, é verdadeiro, nesse sentido o-que-é não seria semelhante ao o-que-não-é, embora tudo seja.

[5] No Poema, a deusa assevera a Parmênides que o ser é ingênito, imperecível, indivisível, imóvel (quer espacial, quer temporalmente), completo e infinito (“esférico”) (DK 28B8).

[6] A segunda “tese” no Poema é “[...] pois o mesmo é pensar e ser” (DK 28B3).

[7] A terceira “tese” é “É necessário que o ser, o dizer e pensar sejam [...]” (DK 28B6).

[8] Consoante Liddell e Scott (1996, p. 1057-1059), há diversas acepções para o termo lógos, desde “cômputo” ou “cálculo” até “palavra”, “discurso” ou mesmo “raciocínio”. A maioria das traduções consultadas traduziram-no por “palavra”, embora também tenha sido vertido por “discurso” e “dizer”. Não obstante igualmente possíveis, “palavra” parece menos preferível que “discurso”, caso se considere o Elogio de Helena como parâmetro (Hel. §8). Contudo, ainda que se prefira “discurso” como a melhor tradução, optou-se por apenas transliterar o termo, a fim de conservar toda a sua riqueza semântica.

[9] Conforme Untersteiner (2012, p. 173-183), não se deve confundir engano (apatē) com falsidade (pseûdos). Enquanto naquele há um viés pessoal, voltado para a ambiguidade das opiniões, nessa há um caráter objetivo, é aquilo que já se sabe falso. No engano, haja vista a equivocidade, qualquer perspectiva pode ser possível. Na falsidade, há um erro ou uma mentira consciente sobre o algo do qual se fala.

Em sentido contrário, para Cassin (1990, p. 304-306), os sofistas agiam no âmbito do pseûdos.

[10] “A ontologia age como se o ser que ela tivesse que dizer já estivesse presente e assim não tem mais que se preocupar, a não ser com a adequação. Górgias faz compreender que ela só pode manter sua posição e ocupar assim toda a cena porque esquece, não o ser, mas que ela mesma é um discurso” (CASSIN, 1990, p. 304).

[11] O movimento sofista surgiu em um momento histórico de grandes mudanças socioeconômicas e políticas nas poleis gregas. Esse grupo de expertos itinerantes que se propunham ao ensino por meio de honorários não tinham um corpus teórico homogêneo: seus “cursos” variavam de sofista para sofista, embora todos eles tivessem a retórica em sua “grade curricular”. Mais sobre a relação entre a retórica e a sofística, ver Guthrie (1971, p. 44-48; 176-181) e Untersteiner (2012, p. 514-518; p. 542-543).

[12] Tradicionalmente, o surgimento da retórica é atrelado à derrocada da tirania em Siracusa, em 465 a.C. Gelão, que tomou a cidade, e Hierão, seu sucessor, promoveram uma massiva deportação de cidadãos e expropriaram suas terras. Sob o domínio de Trasíbulo, sucessor de Hierão, já passadas duas décadas, a população de Siracusa, em um levante popular, restabeleceu a democracia. A versão mais aceita entre os pesquisadores é que, com o término da tirania, os cidadãos exilados, ou os seus descendentes, puderam reclamar suas terras perante os tribunais recorrendo a peças de oratória elaboradas por logógrafos. Entre os logógrafos, dois se destacaram: Córax, o inventor do método que veio a se tornar a retórica, e seu discípulo Tísias (ALEXANDRE JÚNIOR In: ARISTÓTELES, 2005, p. 19-21).

[13] Conforme aponta Alexandre Júnior (In: ARISTÓTELES, 2005, p. 21-25), pela amplitude dos temas que a retórica abrange, não existe uma uniformidade entre os estudiosos sobre a sua natureza. Ora acentua-se o viés da elocução, ora o da estratégia argumentativa, por exemplo. Contudo, o seu viés inventivo tem recebido uma atenção significativa desde a linguistic turn (BALLWEG, 1991, p. 176).

[14] DK 82A32: “Trasímaco foi o primeiro a descobri-lo e em todos os seus escritos sobressai um uso excessivo do ritmo. Na verdade... Górgias foi o primeiro a descobrir o páriso, a rima e também a antítese, as quais, pela sua natureza, ainda que se não faça de propósito, acabam geralmente em esquemas rítmicos, mas o seu uso foi aplicado com falta de moderação... Górgias é mais insaciável neste estilo e abusa em demasia destas virtuosidades [como ele mesmo as denomina]; Isócrates, apesar de na sua juventude ter escutado, na Tessália, Górgias, já em idade avançada, utilizou-as com mais moderação [...]”.

[15] Embora se credite a Górgias o pioneirismo do uso da noção de kairós nos discursos retóricos, Dionísio de Helicarnasso (DK 82B13) é enfático ao dizer que mesmo Górgias nada escreveu sobre o tema que seja digno de nota.

[16] O relato narra que, em certa ocasião, Górgias foi atingido por excrementos de uma andorinha. Nesse episódio, ele teria exclamado “Ó Filomela, isto é uma vergonha!”, em alusão ao mito segundo o qual Filomela havia sido metamorfoseada em uma andorinha. Como aponta o testemunho, Górgias pretendia livrar-se de chacotas e, pelo kairós, ele transfere ao pássaro, não por ser pássaro, mas por haver sido uma jovem, o vexame do acontecido.

[17] Liddell e Scott (1996, p. 484-485) listam como acepções de eikós “verossímil”, “provável”, “razoável”, “plausível”, “verossimilhança”, “probabilidade”, “razoabilidade” e “plausibilidade”.

[18] Em sentido contrário, Untersteiner (2012, p. 285-291), para quem eikós é utilizado em Górgias lato senso. Em sentido próximo ao texto, mas diferindo quanto a relação entre o eikós e a inventio, Plebe e Emanuele (1992, p. 22-28), que consideram o eikós o resultado da inventio e não como um de seus elementos.

[19] Platão é contundente em sua crítica à verossimilhança na retórica. No Górgias (Gorg. 449c-461b), Sócrates vai conduzindo Górgias a reconhecer as limitações da retórica, desde seu campo de atuação até à sua eficácia.

[20] Em sentido contrário, Gagarin (2001, passim) defende que a persuasão não era nem o principal nem o maior objetivo do movimento sofista.

[21] Apesar de a leitura de Cassin se apoiar na sugestão de Mourelatos, sua interpretação é oposta à conclusão que ele chega. Argumentando desde as correspondências semânticas dos termos parastatikós e mēnytikós em outros contextos nos escritos de Sexto Empírico, Cassin (2005, p. 57-63) defende o ser enquanto um signo indicativo do lógos, como se exporá, enquanto Mourelatos (1987, p. 158-164) defende o ser como um signo comemorativo. O principal argumento apresentado por Mourelatos (1987, p. 161-164) se baseia na relação entre os estímulos não-linguísticos e as reações linguísticas, ao modo de um behaviorismo.

[22] Uma discussão pormenorizada dos signos no Pirronismo está além da proposta desse artigo. As poucas linhas a seguir sobre o tema não discutem detalhes e têm apenas o intuito de subsidiar a argumentação.

[23] Não se pode negar a existência de correntes filosóficas que buscam a verdade, mas a filosofia não se resume a elas. Se assim fosse, o Niilismo, o Pirronismo ou o Nominalismo, apenas para citar alguns poucos exemplos, não poderiam ser chamados de filosofia.