O problema das anomalias não-observadas[1]

The problem of unobserved anomalies

 

Seungbae Park[2]

Tradução: Gabriel Chiarotti Sardi

E-mail: gabrielchi@hotmail.com[3]

 

RESUMO

O antirrealismo científico, ou seja, a visão de que as teorias bem-sucedidas são somente empiricamente adequadas, é insustentável à luz do problema das anomalias não-observadas. Esse problema pode ser descrito da seguinte forma: já que os cientistas do passado não puderam observar as anomalias que causaram a substituição das teorias passadas pelas teorias atuais, os cientistas de hoje também não podem observar as anomalias que causarão a substituição das teorias presentes por teorias futuras. Há várias estratégias que os antirrealistas seriam tentados a oferecer para contornar o problema das anomalias não-observadas. Todas elas, no entanto, são problemáticas.

Palavras-chave: instrumentalismo; indução pessimista; antirrealismo científico; alternativas não-concebidas; anomalias não-observadas.

ABSTRACT

Scientific antirealism, the view that successful theories are empirically adequate, is untenable in light of the problem of unobserved anomalies that since past scientists could not observe the anomalies that caused the replacement of past theories with present theories, present scientists cannot observe the anomalies either that will cause the replacement of present theories with future theories. There are several moves that antirealists would be tempted to make to get around the problem of unobserved anomalies. All of them, however, are problematic.

Keywords: instrumentalism; pessimistic induction; scientific antirealism; unconceived alternatives; unobserved anomalies.

 

Introdução[4]

 

Este artigo define o antirrealismo científico como a visão de que as teorias bem-sucedidas, como a teoria do oxigênio, a teoria cinética, a teoria dos germes e a teoria da relatividade especial, são meramente empiricamente adequadas. Defendo que o antirrealismo não pode resistir a uma forma de indução pessimista a que chamo de problema das anomalias não-observadas.[5] Esse problema sustenta que, assim como os cientistas do passado não puderam observar as anomalias que causaram revoluções científicas, é provável que os cientistas atuais não possam observar as anomalias que causarão novas revoluções científicas.[6] Portanto, tanto as teorias passadas quanto as atuais são empiricamente inadequadas.

Neste artigo, “pessimistas” se referem àqueles que aceitam o problema das anomalias não-observadas. Obviamente esses pessimistas são diferentes de outros pessimistas, como P. K. Stanford (2006) e K. B. Wray (2013), pois os primeiros atacam o antirrealismo enquanto os segundos atacam o realismo. Este trabalho desdobra um debate entre os antirrealistas e os antigos pessimistas. Dessa forma, os interlocutores dos antirrealistas, neste texto, não são os realistas, mas sim os pessimistas que atacam o antirrealismo com o problema das anomalias não-observadas. Não há realistas neste artigo. Portanto, neste trabalho, é ilegítimo que os antirrealistas desafiam seus interlocutores a defender o realismo de suas objeções.

Este artigo é radicalmente diferente de outros trabalhos presentes na literatura, pois se concentra na questão sobre se o antirrealismo é sustentável ou insustentável frente a uma indução pessimista, enquanto outros trabalhos tendem focar se o realismo é ou não defensável perante outras induções pessimistas. Este texto é alicerçado sobre a ideia de que o antirrealismo, para ser uma possibilidade viável ao realismo, deve resistir a críticas semelhantes àquelas dirigidas ao próprio realismo, e na observação de que os antirrealistas não prestaram atenção à desconcertante questão de que suas críticas contra o realismo também se aplicam à sua própria posição.

O roteiro deste artigo é o seguinte: na primeira seção, aprofundo o problema das anomalias não-observadas; na segunda seção, antecipo e critico as seguintes possíveis respostas antirrealistas a este problema: i) as teorias científicas que oferecem novas previsões são empiricamente adequadas; ii) os pessimistas devem se comprometer, obrigatoriamente, com algumas justificativas [burdens of proof];[7] iii) as teorias bem-sucedidas são bons instrumentos para se fazer previsões; iv) os antirrealistas não estão comprometidos com nenhuma posição positiva; v) os antirrealistas podem sustentar uma posição mais fraca, tal como a de que é melhor acreditar que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas ao invés de acreditar que são verdadeiras. Deixarei claro que nenhuma dessas respostas é satisfatória.

 

1. O problema das anomalias não-observadas

 

Bas van Fraassen (1985, p. 294) afirma que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas. De forma similar, K. B. Wray diz que “tudo o que os cientistas podem afirmar saber sobre suas teorias de fundo é que eles salvam os fenômenos e são superiores às teorias com as quais foram comparadas” (2008, p. 321). Dizer que uma teoria salva fenômenos significa afirmar que ela é empiricamente adequada (VAN FRAASSEN, 1980, p. 12). Em outro artigo, Wray sustenta que nem “realista nem antirrealista negam que as afirmações de que teorias científicas bem-sucedidas fazem sobre fenômenos observáveis ​​são verdadeiras” (2012, p. 376). M. Alai interpreta o empirismo construtivo como a posição que sustenta que “tudo o que precisamos acreditar é que uma teoria é empiricamente adequada” (2017, p. 21). Assim, van Fraassen, Wray e Alai concordariam com a atual definição de antirrealismo que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas.

Estamos justificados a acreditar que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas? Três filósofos (PARK, 2001, p. 78; LANGE, 2002, p. 282; LYONS, 2003, p. 898) dizem que não, ao afirmarem que elas se deparam com uma indução pessimista contra o antirrealismo. [Essa indução pessimista] sustenta que se as teorias do passado, como a teoria do flogisto, a teoria calórica e a mecânica newtoniana, são empiricamente inadequadas, as teorias do presente, como a teoria do oxigênio, a teoria cinética e a teoria da relatividade, também são empiricamente inadequadas. As teorias atuais podem até parecer empiricamente adequadas, mas serão empiricamente inadequadas no futuro, assim como as teorias do passado são atualmente.

As teorias passadas se revelaram empiricamente inadequadas por conflitarem com anomalias, ou seja, ao se depararem com fenômenos que elas não podiam explicar. As anomalias, no entanto, não foram observadas pelos proponentes das teorias do passado, embora se enquadrassem em seus domínios teóricos. Elas [anomalias] foram mais tarde observadas por cientistas posteriores e, em seguida, desencadearam revoluções científicas. Um exemplo é o movimento periélio de Mercúrio que não foi observado por Newton, embora estivesse dentro do domínio da mecânica newtoniana. Mais tarde [esse movimento] foi observado e levou à substituição da mecânica newtoniana pela mecânica einsteiniana. Era uma anomalia não-observada para a mecânica de Newton.

Agora que o conceito de anomalia não observada está claro, estamos prontos para formular o problema das anomalias não-observadas: uma vez que os cientistas do passado não podiam observar as anomalias que causaram a substituição de suas teorias pelas teorias atuais, os cientistas atuais não podem observar as anomalias que causarão a troca das teorias atuais por teorias futuras. Os cientistas do futuro poderão observar as anomalias das teorias do presente, assim como os cientistas atuais podem observar as anomalias de teorias do passado. As teorias atuais podem parecer empiricamente adequadas, mas dados futuros revelarão que elas são empiricamente inadequadas. Isto não é meramente possível, mas provável que as teorias atuais sigam o mesmo caminho das teorias passadas.

O problema das anomalias não-observadas combina a já mencionada indução pessimista dos três filósofos contrários ao antirrealismo com a visão de Thomas Kuhn (1962/1970) sobre as causas das revoluções científicas, isto é, a visão de que uma revolução científica é causada pelo acúmulo de anomalias graves e pelo advento de um novo paradigma. Na ausência de qualquer um dos dois [acúmulo de anomalias e emergência de um novo paradigma], uma reviravolta científica não pode ocorrer. A indução pessimista contra o antirrealismo e a visão de Kuhn implicam conjuntamente que as teorias atuais se depararão com anomalias até então não-observadas, assim como as teorias do passado se depararam com anomalias que antes não haviam sido observadas e que, como resultado, as teorias atuais serão substituídas por teorias futuras da mesma forma como as teorias do passado foram suplantadas pelas teorias de hoje.

O problema das anomalias não-observadas consiste na premissa de que os cientistas do passado não puderam observar as anomalias das teorias do passado e a conclusão é a de que os cientistas do presente não podem observar as anomalias das teorias do atuais. A premissa pode ser justificada pela longa lista apresentada por Stanford acerca das transições das teorias do passado para as do presente:

 

Lista de Stanford (2006, p. 19-20):

 

a) da química elementar à química corpuscular primitiva à teoria do flogisto de Stahl à química do oxigênio de Lavoisier e à química atômica e contemporânea daltoniana;

b) das várias versões do pré-formacionismo às teorias epigenéticas da embriologia;

c) da teoria calórica do calor para teorias termodinâmicas mais recentes e contemporâneas;

d) das teorias dos eflúvios da eletricidade e do magnetismo às teorias do éter e do eletromagnetismo contemporâneo;

e) das teorias do desequilíbrio dos humores às teorias do contágio por miasmas e, finalmente, às teorias germinativas das doenças;

f) das teorias corpusculares da luz do século XVIII às teorias ondulatórias do século XIX à concepção da mecânica quântica contemporânea;

g) da teoria da hereditariedade por pangênese de Darwin à teoria do plasma germinativo de Weismann à genética molecular mendeliana e depois às suas versões contemporâneas;

h) das espécies biológicas funcionalmente integradas e necessariamente estáticas de Cuvier à autogênese de Lamarck e à teoria da evolução de Darwin.

 

Essa lista visa apoiar a premissa de que os cientistas do passado não podiam conceber as teorias atuais. A premissa supostamente sustenta a conclusão de que os cientistas atuais não podem conceber as teorias futuras. A premissa e a conclusão compõem conjuntamente o que é chamado de problema das alternativas não-concebidas.

O problema das anomalias não-observadas reflete o problema das alternativas não-concebidas. Se a lista de Stanford apoia a premissa do problema das alternativas não-concebidas, ela também apoia a premissa do problema das anomalias não-observadas. Não há razão para pensar que ela sustenta a primeira ao passo que não sustenta a segunda. Além disso, se a inferência da premissa para a conclusão do problema das alternativas não-concebidas está correta, a inferência da premissa para a conclusão do problema das anomalias não-observadas também está. Não há razão para achar que a primeira está certa enquanto a última está errada. Assim, os problemas das anomalias não-observadas e das alternativas não-concebidas gozam da mesma força indutiva. Há uma semelhança adicional entre eles, a saber: ambos apelam a elementos que inicialmente não são vislumbrados pelos cientistas, mas mais tarde são considerados e provocam revoluções científicas.

Há, todavia, uma diferença entre os problemas de anomalias não-observadas e alternativas não-concebidas. Como observado anteriormente, o problema das anomalias não-observadas combina a indução pessimista contra o antirrealismo com a visão de Kuhn sobre as causas das revoluções científicas, ao passo que o problema das alternativas não-concebidas combina a indução pessimista contra o realismo com o problema da subdeterminação. A indução pessimista contra o realismo sustenta que, uma vez que as teorias passadas se revelaram falsas, as teorias atuais também se revelarão falsas (POINCARÉ, 1905/1952, p. 160; MACH, 1911, p. 17; LAUDAN, 1977, p. 126; PUTNAM, 1978, p. 25). O problema da subdeterminação ocorre quando as teorias fazem afirmações diferentes sobre inobserváveis, mas afirmações semelhantes sobre observáveis. Assim, o problema das anomalias não-observadas é direcionado ao antirrealismo, enquanto o problema das alternativas não-concebidas é dirigido ao realismo.

Nessa seção argumentei que o problema das anomalias não-concebidas[8] representa uma ameaça ao antirrealismo. Na próxima seção, antecipo e refuto várias possíveis respostas antirrealistas ao problema das anomalias não-observadas.

 

2. Respostas antirrealistas e seus problemas

 

2.1. Novas previsões

 

Para evitar o problema das anomalias não-observadas, os antirrealistas podem explorar a resposta crítica de J. Saatsi ao problema das alternativas não-concebidas. Ele afirma que “os casos de subdeterminações não-concebidas citados por Stanford, em geral, não envolvem nenhuma novidade preditiva de sucesso” (2009, p. 358). A esperança de Saatsi é que, uma vez que os realistas acreditam que apenas as teorias que ofereçam novas previsões são aproximadamente verdadeiras, eles não precisam se preocupar com as teorias antigas listadas por Stanford porque elas não fizeram novas previsões. Utilizando o insight de Saatsi, os antirrealistas podem sugerir que não estávamos justificados em acreditar que as teorias passadas da lista de Stanford eram empiricamente adequadas, uma vez que elas não ofereceram novas previsões, mas estamos justificados a acreditar que as teorias atuais são empiricamente adequadas, uma vez que fazem novas previsões. Em outras palavras, o sucesso de novas previsões indica de maneira confiável a adequação empírica, embora o mero sucesso [teórico] não.

Essa estratégia, contudo, é problemática à luz das respostas de Stanford e T. Lyons aos argumentos de Saatsi. Stanford objeta que algumas teorias passadas ofereceram novas previsões, como, por exemplo, a teoria ondulatória da luz de Fresnel (2009, p. 384). Lyons (2003, p. 898–899) apresenta uma lista de muitas teorias, dentre as quais estão inclusas a teoria calórica, a teoria do flogisto e a teoria atômica de Dalton, afirmando que fizeram novas previsões, mas são consideradas falsas atualmente. As observações históricas de Stanford e Lyons implicam que, mesmo que os antirrealistas elevem seu nível de sucesso para o surgimento de novas previsões teóricas de sucesso, o antirrealismo ainda é vulnerável ao problema de anomalias não-observadas.

 

2.2. Exigência de justificativas

 

Os antirrealistas podem buscar a estratégia de exigir justificativas para os pessimistas. Diferentes justificativas surgiriam dependendo se existem finitas ou infinitas alternativas no espaço de possibilidades de alternativas não-concebidas. Stanford (2006, p. 133) afirma que o número de alternativas não-concebidas é infinito, enquanto S. Ruhmkorff (2011) afirma que é finito. Em vez de decidir entre as posições deles, exploro diferentes fundamentações que surgem em qualquer um dos casos. Porém, ao final, sob qualquer suposição, a estratégia antirrealista proferida para enfrentar o problema das anomalias não-observadas se mostrará ineficaz.

Suponhamos, primeiro, que haja um número finito de alternativas não-concebidas. Sob essa suposição, os antirrealistas podem argumentar que, como mostra a longa lista de Stanford, já descartamos alternativas suficientes com anomalias não-observadas e estamos agora diante do fim de longas cadeias de alternativas no espaço de possibilidades, ou seja, as teorias atuais estão livres de anomalias. Em contraste, os pessimistas podem argumentar que ainda não eliminamos teorias suficientes e precisamos descartar mais [teorias] antes de chegarmos a alternativas não-concebidas e livres de anomalias não-observadas. Por exemplo, a teoria dos humores e a teoria dos miasmas foram eliminadas e a teoria dos germes é aceita atualmente. Suponha que estas sejam as únicas teorias de doenças no espaço de possibilidades de alternativas. Nesse caso, já eliminamos alternativas suficientes com anomalias não-observadas, então podemos concluir que a teoria dos germes não tem uma anomalia não-observada. Suponha agora que haja um milhão de teorias de doenças no espaço de possibilidades. Nesse caso, ainda não eliminamos alternativas suficientes tendo anomalias não-observadas, portanto, a teoria dos germes possui uma anomalia não-observada.

Não sabemos quão grande é o número finito de teorias sobre a causa das doenças. Consequentemente, os antirrealistas desafiariam os pessimistas a apresentar razões para pensar que a crença pessimista de que ainda não eliminamos teorias suficientes é mais provável de ser verdadeira do que a crença antirrealista de que já eliminamos teorias suficientes. Sem tais razões, o problema das anomalias não-observadas não é superado. Os pessimistas, no entanto, desafiariam os antirrealistas a apresentar razões para pensar que a crença antirrealista que já descartamos alternativas suficientes são mais prováveis ​​de serem verdadeiras do que a crença pessimista de que ainda não descartamos teorias suficientes. Sem tais razões, não estamos justificados a acreditar que as teorias atuais são empiricamente adequadas, sendo assim, o antirrealismo não é sustentável. Posto isto, pessimistas e os antirrealistas se encontram em um impasse.

Suponha agora, em vez disso, que haja um número infinito de alternativas não-concebidas. Pessimistas teriam um forte argumento contra o antirrealismo sob essa suposição. Se houver um contingente infinito de alternativas não-concebidas, as anomalias não-observadas poderiam infestar indefinidamente nossas teorias no futuro. Teorias livres de anomalias não-observadas estariam em pontos infinitamente distantes nas cadeias infinitamente longas de alternativas não-concebidas. Uma vez que somos seres finitos, só podemos eliminar um número finito de alternativas e nunca seremos capazes de alcançar os pontos em que as teorias estão livres de anomalias não-observadas.

Como os antirrealistas poderiam responder a esse problema? Eles poderiam alegar que o número de rivais empiricamente adequadas pode ser infinito, apelando para o famoso exemplo do problema da subdeterminação levantado por van Fraassen (1980, p. 46). Esse exemplo afirma que se pode gerar um número infinito de teorias alternativas rivais da mecânica newtoniana variando a velocidade do sistema solar em relação ao espaço absoluto. Todas as alternativas compartilham as três leis do movimento e a lei da gravidade, mas elas não compartilham afirmações sobre a velocidade absoluta do universo. Se uma dessas alternativas concorrentes for verdadeira, então todas elas seriam empiricamente adequadas. Assim, pode haver, infinitamente, muitas teorias rivais empiricamente adequadas e todas livres de anomalias não-observadas.

Como o exemplo de van Fraassen ajuda o antirrealismo? Os antirrealistas podem argumentar que as alternativas não-concebidas, que são livres de anomalias não-observadas, ocupam uma porção infinitamente grande da cadeia infinitamente longa de alternativas não-concebidas e que o conjunto de tais teorias poderia, talvez, incluir as teorias atuais. O problema das anomalias não-observadas, entretanto, requer a suposição oposta de que o conjunto não inclui as teorias atuais. Consequentemente, os pessimistas possuem o dever de apresentar razões para justificar que a sua crença de que o conjunto que não inclui as teorias atuais é mais provável de ser verdadeiro do que a crença antirrealista de que o conjunto que inclui as teorias atuais é mais provável de ser verdadeiro. Na ausência de tais razões, o problema das anomalias não-observadas não incide.

No entanto, a observação de que o conjunto de rivais empiricamente adequadas pode ser infinitamente maior não pode conceder aos antirrealistas o que eles precisam, justamente porque o conjunto de rivais empiricamente inadequadas também pode ser infinitamente maior. Dado que a mecânica newtoniana é empiricamente inadequada, o exemplo de van Fraassen evidencia não apenas que pode existir um número infinito de rivais empiricamente adequadas, mas também que pode haver um número infinito de rivais empiricamente inadequadas. Não há razão para pensar que as teorias atuais são mais propensas a pertencer ao conjunto de infinitas teorias empiricamente adequadas em vez de pertencer ao conjunto infinito de teorias empiricamente inadequadas. Assim, voltamos a um impasse entre antirrealistas e pessimistas.

Em suma, não importa se o número de alternativas não-concebidas é finito ou infinito. O que está em jogo é se as teorias atuais são mais ou menos propensas a se encontrarem no alcance do conjunto infinito de rivais empiricamente adequadas do que no conjunto infinito de rivais empiricamente inadequadas. Assim sendo, não estamos justificados a acreditar que as teorias atuais são empiricamente adequadas.

 

2.3. Instrumentalismo

 

Stanford, atualmente um dos principais filósofos da ciência envolvido no debate acerca do realismo, adota uma posição positiva chamada de instrumentalismo epistêmico. Ele define essa posição da seguinte maneira:

 

Ser um instrumentalista significa que, sobre qualquer teoria em particular, deve-se acreditar nas previsões empíricas e métodos [recipe] de intervenção que a teoria oferece, mas não na descrição de alguma parte da natureza em que se baseiam essas recomendações pragmáticas. (STANFORD, 2006, p. 195)

 

Dito de outra forma, os instrumentalistas acreditam que as previsões de uma teoria bem-sucedida são verdadeiras e usam a teoria para manipular objetos, mas não acreditam que o que ela diz sobre [entidades] inobserváveis ​​é verdadeiro. Não está claro se os instrumentalistas acreditam que todas as previsões de uma teoria são verdadeiras e se todas os expedientes derivados de uma teoria são úteis. Dessa forma, o instrumentalismo parece ser neutro acerca se as teorias bem-sucedidas são mais ou menos empiricamente adequadas. Parece, portanto, que o problema das anomalias não-observadas não significa uma ruína para o instrumentalismo.

Examinando mais de perto, todavia, o problema das anomalias não-observadas impõe uma ameaça ao instrumentalismo. Não está claro se os instrumentalistas estão justificados a acreditar que as teorias atuais são bons instrumentos para fazer previsões e derivar métodos de intervenção. Os instrumentalistas podem argumentar que as teorias atuais são bons instrumentos. Os pessimistas, por outro lado, objetariam que as teorias atuais estão fadadas a serem substituídas por sucessoras devido a anomalias não-observadas. Tal consideração levanta a suspeita de que são maus instrumentos, embora agora pareçam bons instrumentos. Além disso, não acreditamos hoje que teorias passadas, como a teoria calórica e a teoria do éter, sejam bons instrumentos, embora nossos ancestrais acreditassem que fossem. Da mesma forma, embora acreditemos agora que as teorias atuais são bons instrumentos, nossos descendentes não acreditarão.

Os instrumentalistas podem responder que as teorias do passado ainda são bons instrumentos, pois ainda podemos usá-los para fazer previsões verdadeiras em determinados domínios. Por exemplo, ainda usamos a mecânica newtoniana para enviar um foguete para a lua. Como as teorias do passado ainda são bons instrumentos, as teorias atuais continuarão a ser bons instrumentos para nossos descendentes. À medida que a ciência progride, nossas teorias estarão cada vez mais perto da utilidade ideal. As teorias atuais estão mais próximas da utilidade ideal do que as teorias passadas. De forma análoga, as teorias futuras estarão ainda mais próximas da utilidade ideal do que as teorias atuais. Todas elas são bons instrumentos.

Um problema com essa interpretação é que as teorias atuais estão fadadas a encontrar anomalias, assim como as teorias passadas, e, portanto, devemos nos preocupar que elas possam não funcionar quando aplicadas a novos fenômenos, apesar do fato de os novos fenômenos pertencerem aos seus domínios. Podemos chamar essas teorias de bons instrumentos? Os pessimistas podem definir “um bom instrumento” como um instrumento que funciona bem mesmo quando aplicado a novos fenômenos em seu domínio e então alegar que as teorias atuais não são bons instrumentos. Os instrumentalistas podem replicar afirmando que são bons instrumentos na medida em que funcionam bem quando aplicados a fenômenos antigos em seus domínios. Deixe-me salientar aqui que essa disputa entre pessimistas e instrumentalistas é meramente terminológica. Ou seja, enquanto os instrumentalistas estão dispostos a atribuir “bons instrumentos” às teorias passadas e presentes, os pessimistas não. Nessa disputa é apenas uma questão de preferência atribuir “bons instrumentos” a teorias passadas e presentes.[9]

Minha resposta crítica ao instrumentalismo ecoa a resposta crítica de Stanford (2015) ao seletivismo. S. Psillos (1999, p. 127) afirma que as teorias passadas eram aproximadamente verdadeiras com base nos resultados de suas partes verdadeiras, embora suas partes ociosas fossem falsas. Stanford responde que a diferença entre pessimistas e seletivistas “é simplesmente uma diferença de estilo ou gosto na aplicação da expressão ‘aproximadamente verdadeiro’, em vez de um desacordo substantivo entre eles” (2015, p. 876). Em sua narrativa, não há nenhuma consideração sobre a questão de aplicar “aproximadamente verdadeiro” para teorias bem-sucedidas ou não. Digo a mesma coisa sobre a diferença entre instrumentalistas que atribuem “bons instrumentos” a teorias bem-sucedidas e pessimistas que se recusam a fazê-lo.

Os antirrealistas podem levantar a seguinte objeção: devemos agora considerar a ciência como totalmente destituída de sentido? Não deveríamos ter nenhuma confiança em suas previsões sobre o futuro? Uma ideia que leva ao ceticismo é absurda. Como dizem alguns filósofos: “o ceticismo é uma ameaça horrível; uma posição filosófica que leva ao ceticismo reduz si mesma ao absurdo” (LADYMAN et al., 1997, p. 317). O problema das anomalias não-observadas nos impede até mesmo de acreditar que teorias bem-sucedidas sejam bons instrumentos. Portanto, é uma ideia absurda.

Considere, contudo, que o problema das anomalias não-observadas é paralelo ao problema de alternativas não-concebidas. Por conseguinte, se o primeiro é absurdo, o segundo também o é. A fim de evitar essa crítica contra este último, Stanford teria que expor uma diferença relevante entre os dois problemas que lhe dariam o direito de dizer que o problema das anomalias não-observadas nos leva ao ceticismo, mas o problema das alternativas não-concebidas não. Não está claro para mim qual seria essa diferença significativa.

 

2.4. Não-comprometimento

 

Os antirrealistas podem se desesperar e adotar uma nova posição que pode ser chamada de não-comprometimento. É a posição que não está comprometida com nenhuma reivindicação. Não está comprometida nem com a alegação de que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas, nem com a afirmação de que são bons instrumentos. Portanto, é imune ao problema das anomalias não-concebidas. Também não está comprometida com mesma a reivindicação que o ceticismo cartesiano está implicado, a saber, a afirmação de que não sabemos nada sobre o mundo. Portanto, é insuscetível a todas as críticas dirigidas ao ceticismo cartesiano. O descomprometimento é uma posição perfeita em termos de sua defensibilidade. Resiste a qualquer crítica porque não está comprometido com nenhuma reivindicação com a qual podemos pensar que está comprometido. Naturalmente, portanto, esse descomprometimento contorna o problema das anomalias não-observadas.

Há, porém, uma desvantagem epistêmica com o não-comprometimento. Aqueles que são não-comprometidos [ou descomprometidos] devem ser evasivos até mesmo sobre suas próprias teorias. Imagine que eles trabalharam dia e noite por várias décadas em seus laboratórios e, finalmente, chegaram a uma teoria científica. Essa teoria possui todas as virtudes teóricas, como amplo escopo, precisão, simplicidade e fecundidade. Os descomprometidos estão tão entusiasmados com sua teoria que acreditam que ela é verdadeira. Eles, no entanto, não devem acreditar que ela seja verdadeira. Nem deveriam sequer acreditar que ela seja empiricamente adequada. Os não-comprometidos devem simplesmente ser evasivos quanto a isso de acordo com seu não-comprometimento.

Existe ainda outra desvantagem epistêmica com o não-comprometimento. Os descomprometidos não podem entrar em desacordo com seus colegas epistêmicos que também não se comprometam com suas teorias científicas. Esses colegas [também descomprometidos] nem mesmo acreditam que as teorias sejam empiricamente adequadas. Se todos nós fôssemos não-comprometidos, nenhum de nós seria capaz de propagar a outras pessoas as teorias em que nós mesmos confiamos. E qual o problema disso? É que não temos apenas o objetivo de estarmos a salvo quando nossos colegas epistêmicos desenvolvem suas próprias teorias, mas também o anseio epistêmico de difundir nossas teorias para eles (PARK, 2017, p. 58). O descomprometimento é uma política epistêmica útil para atingir o primeiro objetivo, mas não o segundo.

O fracasso em atingir o segundo objetivo é acompanhado por enormes desvantagens práticas. Imagine que os não-comprometidos apresentem uma candidatura de Prêmio Nobel ao Comitê Norueguês de Inovações. Para sua decepção, porém, a comissão nem sequer acredita que sua teoria seja um bom instrumento e, portanto, se recusa a conceder um Prêmio Nobel aos não-comprometidos. Esses, por sua vez, protestam que sua teoria é tão virtuosa que deveria fazer o comitê acreditar que ela é verdadeira ou empiricamente adequada. A comissão responde que é um contrassenso os não-comprometidos esperarem que o comitê acreditasse que sua teoria seja verdadeira ou empiricamente adequada.

Por fim, se você adotar o não-comprometimento será possível contornar o problema das anomalias não-concebidas, mas as desvantagens epistêmicas e práticas que ele implica são tão radicais que você não iria querer sustentá-lo em sua vida cotidiana. Você pode adotá-lo apenas por diversão filosófica. Mas mesmo de uma perspectiva filosófica, dificilmente se trata uma posição expressiva. Nenhum esforço mental é necessário para mantê-lo. Antirrealistas brilhantes enfrentariam o problema das anomalias não-observadas de frente, tentando refutá-lo ao invés de abandonar sua posição e abraçar o não-comprometimento. De qualquer forma, os interlocutores dos pessimistas neste artigo não são não-comprometidos, mas sim os antirrealistas – e antirrealistas não devem ser confundidos com descomprometidos.

 

2.5. Posição fraca

 

Os antirrealistas podem recuar para uma posição mais fraca de que é melhor [somente] acreditar que as teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas do que acreditar que são verdadeiras. Esta posição não está comprometida com a visão de que as teorias de sucesso são empiricamente adequadas nem com a visão de que elas são bons instrumentos. Portanto, não é vítima do problema das anomalias não-observadas.

Essa posição antirrealista, no entanto, é tão fraca que é vulnerável às críticas que lancei aos não-comprometidos acima. Imagine novamente que os antirrealistas desenvolveram uma teoria científica. Essa teoria é tão virtuosa que eles acreditam que é verdadeira ou empiricamente adequada. Os antirrealistas, porém, não podem acreditar que ela seja um bom instrumento. Eles só podem aceitar que é melhor crer que ela seja empiricamente adequada do que acreditar que seja verdadeira. Então eles enviam um pedido ao Comitê Norueguês de Inovações do Prêmio Nobel. Para sua consternação, a comissão rejeita a sua candidatura dizendo que nem sequer acreditam que a teoria dos antirrealistas seja um bom instrumento e que uma teoria científica deve ser um bom instrumento para ser digna de consideração para um Prêmio Nobel. Para serem justos, a comissão acrescenta que, embora não acreditem que seja um bom instrumento, eles pensam que seja melhor simplesmente acreditar que a teoria seja empiricamente adequada do que acreditar que seja verdadeira.

 

Conclusão

 

O problema das anomalias não-observadas é paralelo ao problema das alternativas não-concebidas de Stanford. Os dois problemas, não obstante, visam alvos diferentes. O primeiro é direcionado ao antirrealismo e o último ao realismo. A moral final do problema das anomalias não-observadas é que os antirrealistas devem ter cuidado quando elaboram uma crítica ao realismo. Caso contrário, eles podem, involuntariamente, atingirem a si mesmos.

Deixe-me lembrar aos leitores que os interlocutores opostos neste artigo são antirrealistas que acreditam que teorias bem-sucedidas são empiricamente adequadas e os pessimistas que acreditam que teorias bem-sucedidas são empiricamente inadequadas devido ao problema das anomalias não-observadas. Eles não estão acompanhados por realistas que acreditam que as teorias bem-sucedidas são verdadeiras. [Além do fato que] antirrealistas perspicazes tentariam defender o antirrealismo do problema das anomalias não-observadas em vez de requerer aos realistas que defendam o realismo deste mesmo problema.

 

Agradecimentos

 

Esse trabalho foi financiado pelo Ministério da Educação da República da Coreia e pela Fundação Nacional de Pesquisa da Coreia (NRF-2016S1A5A2A01022592).

 

Referências bibliográficas

 

ALAI, M. 2017. The Debates on Scientific Realism Today: Knowledge and Objectivity in Science. In Varieties of Scientific Realism: Objectivity and Truth in Science, ed.  E. Agazzi. Switzerland: Springer International Publishing, 2017.

KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1962/1970.

LADYMAN, J.; DOUVEN, I.; HORSTEN, L.; VAN FRAASSEN, B. A Defense of van Fraassen’s Critique of Abductive Inference: Reply to Psillos. In The Philosophical Quarterly, v. 47, n. 188, 1997.

LANGE, M. Baseball, Pessimistic Inductions and the Turnover Fallacy. In Analysis, v. 62, n. 4, 2002.

LAUDAN, L. Progress and Its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth. California: University of California Press, 1977.

LYONS, T. Explaining the Success of a Scientific Theory. In Philosophy of Science v. 70, n. 5, 2003.

MACH, E. History and Root of the Principle of the Conservation of Energy. Translated by P.E.B.Jourdain. Chicago: Open Court Publishing Company, 1911.

PARK, S. Accepting Our Best Scientific Theories. In Filosofija. Sociologija v. 26, n. 3, 2015.

PARK, S. Defense of Epistemic Reciprocalism. In Filosofija. Sociologija, v. 28, n. 1, 2017.

PARK, S. Scientific Realism and Antirealism in Science Education. In Coactivity: Philosophy. Communication, v. 24, n. 1, 2016.

PARK, S. Scientific Realism vs. Scientific Antirealism. Ph. D. Dissertation. University of Arizona, 2001.

PARK, S. Should Scientists Embrance Scientific Realism or Antirealism. In The Philosophical Forum, v. 50, n. 1, 2018.

POINCARÉ, H. Science and Hypothesis. New York: Dover, 1905/1952.

PSILLOS, S. Scientific Realism: How Science Tracks Truth. New York: Routledge, 1999.

PUTNAM, H. Meaning and the Moral Sciences. London: Routledge & K. Paul, 1978.

RUHMKORFF, S. Some Difficulties for the Problem of Unconceived Alternatives. In Philosophy of Science, v, 78, n. 5, 2011.

SAATSI, J. Saatsi, J. Grasping at Realist Straws. In Metascience, v. 18, 2009.

STANFORD, P. K. Catastrophism, Uniformitarianism, and a  Scientific Realism Debate That Makes a Difference. In Philosophy of Science, v. 82, n. 5, 2015.

STANFORD, P. K. Exceeding Our Grasp: Science, History, and the Problem of Unconceived Alternatives. Oxford: Oxford University Press, 2006.

VAN FRAASSEN, B. C. Empiricism in the Philosophy of Science. In Images of Science, eds. P. Churchland and C. Hooker. Chicago: University of Chicago Press, 1985.

VAN FRAASSEN, B. C. The Scientific Image. Oxford: Oxford University Press, 1980.

WRAY, K. B. Epistemic Privilege and the Success of Science. In Noûs, v. 46, n. 3, 2012.

WRAY, K. B. Pessimistic Induction and the Exponential Growth of Science Reassessed. In Synthese, v. 190, n. 18, 2013.

WRAY, K. B. The Argument from Underconsideration as Grounds for Anti-Realism: A Defence. In International Studies in the Philosophy of Science, v. 22, n. 3, 2008.

 

 

Recebido: 23/09/2022                                                                            Received: 23/09/2022

Aprovado: 18/10/2022                                                                          Approved: 18/10/2022

 



[1] Nota do tradutor: artigo originalmente publicado sob o título “The Problem of Unobserved Anomalies” no periódico Filosofija. Sociologija, n. 29, v. 1, p. 04-12 em 2018.

[2] PhD em Filosofia pela Universidade do Arizona. Professor na School of Liberal Arts do Ulsan National Institute of Science and Technology na Coreia do Sul. E-mail: nature@unist.ac.kr.

[3] Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

[4] Nota do tradutor: o tradutor manifesta seus agradecimentos ao prof. Park e ao periódico Filosofija. Sociologija pela gentil prontidão em ceder gratuitamente os direitos autorais do artigo original para sua tradução para o português.

[5] A expressão “anomalias não-observadas” tem origem em Park (2001, p. 32).

[6] Por conveniência, descarto o uso da expressão “provavelmente”.

[7] Nota do tradutor: o autor utiliza a expressão “burdens of proof”, que em uma tradução direta poderia ser transcrito como “ônus da prova” ou “ônus probatório”. Todavia, visando tornar mais claro o sentido da expressão no interior do contexto do artigo, optei pelo uso do termo “justificativa”, pois reflete de forma mais adequada o sentido empregado, isto é, o fato de os antirrealistas exigirem, por parte dos antigos pessimistas, algumas razões que legitimem e fundamentem epistemologicamente suas posturas pessimistas.

[8] Nota do tradutor: o autor utiliza algumas vezes no texto a expressão “anomalias não-concebidas” (unconceived anomalies) como sinônima de “anomalias não-percebidas” (unobserved anomalies). A aparente intenção de Park foi a de ressaltar o paralelo entre sua argumentação e a de Stanford (alternativas não-concebidas [unconceived alternatives]).

[9] Para mais críticas contra o instrumentalismo, ver: Park (2015, 2016, 2017 e 2018).