Maquiavel hoje*

Machiavelli today

Eric Weil

Tradutor: Judikael Branco

Universidade Federal do Tocantins – UFT

E-mail: judikael79@hotmail.com

Apresentação do tradutor

“Machiavel aujourd’hui” foi publicado originalmente em 1951, na prestigiosa revista Critique, e retomado pelo autor em 1970, no segundo tomo de Essais et conférences, dedicado aos seus escritos sobre política. Trata-se de um belíssimo exemplo das contribuições de Weil ao periódico fundado por Georges Bataille. Com efeito, a colaboração do filósofo nessa revista chama atenção pelo volume, mais de 150 textos entre 1946 e 1971, mas principalmente pelo estilo de “recensão múltipla”, sigla original da Critique, que Weil tornou um novo gênero crítico-literário, na opinião de Giuseppe Bevilacqua e de Livio Sichirollo.

No texto que agora apresentamos, o autor repassa obras sobre Maquiavel publicadas ou reeditadas entre 1945 e 1949, para refletir acerca do revigorado interesse pelo secretário florentino depois da Segunda Guerra, analisando, com particular e justificada atenção, os livros de Leonhard von Muralt e Gerhard Ritter. Corrigindo um pelo outro, apontando erros e acertos em ambos, Eric Weil expõe a própria interpretação do pensamento de Maquiavel, afirmando, resumidamente, que este não é maquiavélico de fato. Se hoje, ao menos no meio acadêmico, essa tese se assemelha a uma verdade lapalissada, não o era no início da década de 1950.

Trazer o artigo de Weil para o leitor de língua portuguesa é um esforço animado pela certeza de que, apesar das grandes mudanças provocadas pelos trabalhos de Claude Lefort, John Pocock e Quentin Skinner na interpretação da obra maquiaveliana, a reflexão weiliana pode participar positivamente do aprofundamento das já muito ricas pesquisas sobre Maquiavel no Brasil.

 

Maquiavel hoje

1. Podemos descrever uma civilização enumerando seus grandes homens. Toda civilização possui uma lista de nomes sempre lembrados, mas cuja posição relativa muda, em um movimento ora lento ora acelerado: um nome, que ainda ontem era apanágio dos pedantes, de repente brilha novamente com revigorado esplendor, outro, objeto de ódio ou de adoração, volta ao elenco dos temas de dissertação. Sua dança traça a história da civilização que eles definem. Seu número é restrito e, no entanto, para o historiador, dar conta desses nomes e dessas mudanças constitui a mais séria das tarefas tanto quanto uma das mais difíceis. Platão e Aristóteles, Homero e Horácio, os trágicos atenienses, Montaigne e Shakespeare, estão entre aqueles que, nesse sentido, determinam a nossa tradição e a sua história. No domínio da política, só a figura de Maquiavel tem lugar nessa linhagem.

É fácil sustentar que nos deixaram suas obras pensadores políticos dotados de maior profundidade filosófica e com conhecimentos mais vastos. Mas, exceção feita apenas de Marx – e o caso é recente demais para que ousemos nos pronunciar sobre ele –, ninguém deu o próprio nome a um modo de considerar a realidade desta história do presente para o presente que se chama política. Ninguém fala de platonismo ou de aristotelismo político, nem mesmo de hegelianismo político, enquanto todos falam de maquiavelismo. Os homens de governo e de propaganda só se remetem a Tocqueville ou a Locke, a De Maistre ou a Rousseau, nas grandes ocasiões, como as aberturas de parlamentos ou premiações: mas nunca se deixa de plantar um marco à memória de Maquiavel ou de justificar seus próprios atos invocando as verdades positivas, razoáveis, eternas que ele pôs em evidência.

Mas se o nome de Maquiavel está sempre presente, sua figura não. Por longos períodos, só estudiosos falam dele: analisam seus escritos, reconstroem a atmosfera de Florença no final do século XV e no início do século XVI, preocupam-se com as fontes e com a filiação das ideias. Entretanto, outros momentos surgem e dão nova vida àquele que, até então, era apenas um autor entre outros: é a ele que se dirige a questão apaixonada do ser da política, é com ele que se discute como com um contemporâneo, é dele que se espera a resposta que permitirá ao homem decidir se se deve entrar no jogo da política, como se deve jogar este jogo, como se deve lidar com o fato de que outros o joguem – ou se a política é o mal tout court, mal do qual é preciso se abster a todo custo.[1]

Não queremos dizer que só os períodos de efervescência maquiavélica, ou anti-maquiavélica, tenham sido favoráveis à compreensão deste pensamento frio e apaixonado, simples e sinuoso, imbuído da Antiguidade e tão moderno que se pode dizer que contribuiu poderosamente para criar nossa modernidade. Ao contrário, os historiadores dos momentos calmos, daqueles momentos que por boas e válidas razões nos parecem calmos, fizeram mais por essa compreensão do que discípulos ou adversários. A grande obra de Villari apareceu pela primeira vez em 1877, o admirável ensaio de Macaulay remonta a 1827, o excelente trabalho de Renaudet foi publicado no início da última guerra, o livro de Albert Chérel, La pensée de Machiavel en France (na verdade, insuficiente e parcialmente levado a opor a “sã tradição francesa”, cristã e moral, às detestáveis receitas do secretário florentino) data de 1935, os trabalhos de Charles Benoist sobre o maquiavelismo se estendem por todo o primeiro terço do século XX, o ótimo capítulo de L’essor de la philosophie politique au XVIe siècle, de Pierre Mesnard, apareceu em 1936.[2] Sem a ajuda desses trabalhos, seria impossível compreender o que Maquiavel quis dizer, em quais condições falou, o que significam os termos que emprega e que subsistem, todos, com um sentido modificado e com tons bem diferentes. Mas se os autores desses trabalhos foram levados a julgar Maquiavel, eles o fizeram em relação a julgamentos anteriores, com objetividade ou ao menos decididos a ser objetivos, e não se pondo a questão: Maquiavel teve ou não razão?

A última guerra trouxe Maquiavel das bibliotecas à praça pública. É verdade que já Mussolini, no prefácio a uma edição do Príncipe, reivindicava abertamente, mas não sem prudência, o grande italiano. Se nossas lembranças são exatas, ele enviou as obras do florentino a Hitler, que lhe demonstra sua gratidão oferecendo-lhe as de Nietzsche. Mas isso era apenas encenação e, no fundo, não interessava a ninguém. Gestos de provocação dirigidos a uma mentalidade “idealista”, “pacifista”, “humanista”, que se orgulhavam de desprezar, golpe desferindo contra um “sentimentalismo burguês e podre”, que fingiam odiar, demonstração de superioridade sobre um “moralismo sem virilidade nem franqueza”. Mas não pretendemos falar de toureiros.

Se Maquiavel desce de novo à praça pública, se de novo se discute com ele, muito mais do que se o põe em discussão, é porque, agora, a própria política está em questão. Não se pergunta mais: que política é preciso seguir? Deseja-se saber o que é a política, esse “destino do homem moderno”. Qual é o lugar da política? Existe uma moral que se oponha à política? Podemos viver fora da política? O que se pode e o que se deve esperar da política? Uma comunidade humana pode salvaguardar ao mesmo tempo a ordem e o que, para o indivíduo, torna a vida digna de ser vivida? A política tem suas próprias leis, comparáveis às da natureza, e, supondo que seja assim, devemos aprender a conhecê-las e a nos servirmos delas? Diante de cada uma dessas perguntas, a grande sombra de Maquiavel se ergue para propor uma resposta. Entretanto, ela fala como todas as grandes sombras: com doçura e prudência, com circunspecção, lenta ao aconselhar, ainda mais lenta para emitir juízos definitivos, servindo-se da linguagem de seu tempo, detendo-se em todas as possibilidades, mesmo as que não interessam aos que a interrogam, dominados pelas preocupações do tempo presente; e como quem o interroga tem pressa, escuta mal, contenta-se com a primeira palavra que parece confirmar suas próprias preferências e corre para anunciar ao mundo que tinha razão diante do oráculo. Não surpreende que o público fique incomodado ao ouvir todos esses evangelhos divergentes e que todos apelem para a mesma autoridade. Será, então, útil procurar antes de tudo o que essa autoridade verdadeiramente diz: é impossível juntar as vantagens da questão apaixonada e séria por sua paixão, com as vantagens da busca paciente e séria, justamente por sua paciência?

 

2. De toda forma, é importante mostrar, com a ajuda de alguns exemplos, que esse reaparecimento de Maquiavel é um fato e que suas ideias (ou as que lhe são atribuídas) têm a atenção do público. A atenção do público? A pequena literatura, que sabe tão bem – seria mais exato dizer: cujos autores sabem tão bem – o que se pergunta, fornece as primeiras indicações.

Há um romance de Maugham Somerset, que se chama Plus ça change; no original, Then and Now. Não nos deteremos às qualidades literárias da obra; são indiscutíveis, embora do gênero um tanto antiquado do romance histórico. O que nos interessa é que é a história, fortemente romanceada, de Maquiavel e de sua atividade diplomática junto a César Bórgia. A trama, divertidíssima, é tirada de uma comédia do próprio Maquiavel, A Mandrágora; ela põe em cena um monge alcoviteiro, uma jovem pura e sensual que vive na espera do sedutor, um jovem galanteador etc. – e acrescenta a essas personagens uma outra, a do amante muito mais jovem, fanfarrão enganador, papel desempenhado por Maquiavel; os fios da trama política, cruzando-se com os da cadeia erótica (e por nada amorosa), formam uma tela sobre a qual o eterno bordado da vida de um homem de ação se tece por si mesmo, ternamente cínico, cinicamente terno; o retrato é válido hoje como era então. Maquiavel é um tipo eterno.

Há uma biografia de Maquiavel devida à hábil pena de Marcel Brion. Não é o produto de uma grande erudição, seria fácil apontar nela erros históricos, inconsistências na interpretação, anacronismos gritantes. Mas isso seria querer mesurá-la com uma medida que não é a sua. Maquiavel e sua época dão a ocasião para uma pintura interessante, pretexto para reflexões atuais, para aforismas impressionantes (justos ou não, contraditórios entre si ou não – o que importa?), para retratos vivos; podemos nos reconhecer no homem e na sua época e podemos tirar daí verdades aplicáveis aos nossos dias.

Temos ainda um livro de James Burnham, Les Machiavéliens. É outro gênero: trata-se de um livro filosófico – circunstância séria, tanto mais séria quanto esta filosofia é visivelmente má. Mas porquanto Burnham pretende estabelecer uma teoria cientificamente válida, devemos nos deter mais longamente sobre ele. Sua tese, no entanto, é simples: Maquiavel é um homem de ciência, não é, como Dante, um ideólogo que fala de coisas inverificáveis e irrealizáveis, de valores transcendentes e eternos, mas o homem da análise objetiva que não esconde, atrás cortina de fumaça das justificativas “nobres” e “morais”, as realidades da luta pelo poder. Assim, ele está “na linha do progresso”, o contrário de um “reacionário” e o digno ancestral dos homens que veem com clareza e aos quais não se pode sobrepor capciosamente os Mosca, os Sorel, os Michels e os Pareto.

Vamos nos dispensar de falar com detalhes que nesse livro os erros históricos são numerosos ou que muitas vezes as fórmulas carecem de clareza (algumas do puro jargão provavelmente se devem aos bons ofícios do tradutor). Importa acima de tudo constatar que Burnham não discerne todos os traços essenciais do pensamento de Maquiavel – aliás, ele está muito longe disso –, mas discerne um bom número desses traços: a autonomia da técnica política (que nele se torna, é verdade, uma autonomia da política tout court), o “positivismo florentino” do qual falava Charles Benoist, o senso da unidade nacional, a paixão pela verdade; Burnham vê alguns fatos que historiadores qualificados muitas vezes negligenciaram, por exemplo, que termos como república, comunidade, liberdade etc., têm, em Maquiavel, um significado radicalmente diferente do seu sentido moderno e muito mais próximo do que tinham na Idade Média; com toda razão ele insiste no fato de que, Maquiavel, apesar da reputação que o século XVIII lhe deu, foi inimigo declarado dos tiranos. Em uma palavra, ele viu muito, para em seguida tornar-se cego com a ajuda de um cinismo barato.     

Fazer ciência política seria um jogo aprazível e não mais um esforço se a redução de todos os fenômenos à luta pelo poder fosse suficiente para explicar tudo. É certo que tudo pode ser reduzido dessa maneira, que diante de todo problema, toda situação histórica, todo acontecimento, pode-se dizer: fenômeno de luta pelo poder ou, no máximo, epifenômeno. Isto é tão certo quanto o sucesso de qualquer “causa última”, vontade divina, relações de produção, raça etc.; e isso não tem nenhum sentido preciso, porque é, a priori, irrefutável. Todas essas teorias “unitárias” oferecem as mesmas vantagens aos que aderem a elas, aos quais elas oferecem respostas para tudo, e atestam a mesma fraqueza aos olhos dos que querem compreender: elas são puramente formais. Certamente é possível dizer que toda a política é uma luta pelo poder. Mas o que se deseja saber é de que poder se trata, de quais formas de luta, de quais homens. Seria ainda sensato dizer que uma geração exclusivamente lutou pelo poder, se todos os homens dessa geração estavam convencidos de trabalhar pela sua salvação? O que significa essa onisciência que nós atribuímos ao tratar como ideologia todo o conteúdo da consciência dos outros? As convicções dos atores não são forças reais da história? E o que deverá fazer a ciência “objetiva” para dar um fim a uma ação da qual ela pretende apenas descrever as condições e o mecanismo? Como Burnham chega a conciliar, segundo as regras da boa e velha lógica (que não parece ser uma ideologia transcendente), esse positivismo do conhecimento do que é com a afirmação, que não deixa de sustentar, de que um conhecimento positivo facilitará aos homens a luta pela liberdade? Por que eles deveriam lutar pela liberdade? Qual é a superioridade da liberdade sobre a tirania, quando se fala de “ciência positiva”? Não queremos de modo algum tomar o partido dos idealistas e das boas intenções; mas está na hora de protestar, mais uma vez, contra os realistas que se vangloriam de ter evitado toda metafísica porque jamais se deram ao trabalho de refletir sobre a deles, e que se arrogam o direito de falar de progresso e de reação sem sequer pensar na dificuldade de determinar um sentido do movimento histórico, o único que poderia dar um fundamento a esses juízos de valor. Não basta invocar a ciência: foram ditas mais banalidades em nome da ciência do que crimes cometidos em nome da religião.

É, ao contrário, agradável ver reeditados os Diálogos no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, de Maurice Joly, esse antigo livro de história tão curiosa, e que serviu para a produção dos célebres Protocolos dos Sábios de Sião. Joly não empreendeu a formulação de uma teoria: o seu Maquiavel é o homem perverso e consciente, o homem cuja máscara permite ao seu criador – pois se trata de uma criação – dizer a Napoleão, o Pequeno, suas verdades; o sábio que ilumina a lanterna daquele pobre idealista que é Montesquieu, ao qual ensina como se servir das leis mais justas para os fins menos confessáveis, como falsificar um balanço mantendo o ar da maior severidade em matéria fiscal e financeira, como enganar o povo, como corromper a opinião pública, como silenciar as críticas. Maquiavel é aquele que conhece profundamente a nobre arte da mentira, que sabe muito bem como se costura a pele da raposa sobre a do leão: não se deu por acaso o reaparecimento desse grande panfleto. 

 

3. Seria possível continuar a série, falar de outros livros publicados na França e no exterior e observar o espaço sempre maior que os historiadores da teoria política dedicaram a Maquiavel. Os exemplos citados são suficientes para provar a sua presença, e, talvez, a comprovem tanto melhor quanto os livros corresponderem menos à realidade histórica do pensador. Ele é atual e, amado ou odiado, se impõe; ele representa por excelência o desapego frio, o olhar impassível, é o profeta da técnica na política, o mestre do realismo amoral (mais que imoral). É ele que se invoca para afirmar a decisão de levar a política a sério, de considerá-la como a realidade última da vida nesse mundo, de não confundir o que é desejável com o que pode ser realizado. Mas se é invocado, não se discute com ele. Procura-se nele uma atitude, não um ensinamento. Deseja-se uma imagem, não a presença real de um pensamento organizado, capaz de se defender contra o interlocutor com a condição de que se lhe dê a palavra.

A associação da interrogação apaixonada e da busca paciente da qual falamos acima, nós a encontramos em dois autores de língua alemã, o suíço Leonhard von Muralt, e o cidadão do Reich, Gerhard Ritter, ambos professores universitários, historiadores profissionais conhecidos por outros trabalhos. Seria um acaso que esses dois livros tenham aparecido na língua do povo que levou ao extremo a aplicação do sistema de técnica política que se chama, de forma errada, maquiavelismo? Do povo que, mais do que qualquer outro, e não sem culpabilidade histórica, sofreu a política como seu destino, e como um destino atroz? E seria ainda um acaso que o autor suíço, espectador aterrorizado, mas espectador ligado aos atores pelo parentesco da língua, da tradição, dos hábitos de pensamento e de expressão, chegue a uma imagem radicalmente diferente daquela do autor alemão? Ritter fez a experiência mais direta da opressão exercida em nome do Estado e da salvação pública, participou da resistência contra a tirania, ou, em todo caso, sofreu como amigo dos inimigos do regime, viveu e escreveu em meio às ruínas da grande aventura, sentindo-se obrigado a prestar contas do que aconteceu, a prestar contas do fato de que aquilo pôde acontecer e deve, por conseguinte, ter um fundamento de possibilidade na natureza das coisas. É possível – e nós trataremos de mostrá-lo – que as duas teses sejam exageradas, que uma e outra tenham muito nitidamente sublinhado traços reais, negligenciando outros que não o são menos e que não são menos importantes. Fica sempre o fato de que eles se esforçam igualmente em fazer Maquiavel falar, em ouvir o que ele diz e o fazem porque estão convencidos de que ele tem algo a nos dizer.

Embora o livro de von Muralt tenha sido publicado depois da primeira edição da mais importante das duas obras que Ritter dedica a Maquiavel, e que a leve em conta, é de von Muralt que falaremos em primeiro lugar. A sua tese, mais paradoxal e, no fundo, mais sã, facilita o acesso aos verdadeiros problemas do pensamento maquiaveliano.

Maquiavel, segundo von Muralt, é o adversário mais declarado do maquiavelismo. Não apenas não é o pai da mentira: ele desaconselha abertamente, vivamente, a mentir, porque não ignora que a honestidade seja a melhor diplomacia. Não apenas não é o defensor da tirania e dos homens de ferro e de sangue: o único sistema válido a seus olhos é a democracia ordenada, fundada sobre a justiça, defendida por um exército verdadeiramente popular, e que vive seguindo suas leis, por meio de suas leis. Ele não adora, como muitas vezes lhe foi recriminado, aquela virtù, pura concentração de força, violência, astúcia e ativismo: mesmo sabendo que a virtù é necessária, ele a subordina à bontà, a honestidade do cidadão e quase já do burguês, do qual os livros sobre Maquiavel geralmente não fazem menção. Não despreza a religião, em particular, não despreza o cristianismo: pensa que sem religião, não pode haver Estado viável e que o cristianismo, se se quisesse compreendê-lo segundo o seu verdadeiro sentido, é a religião do Estado moderno. Ele está longe de todo historicismo, de todo relativismo moral; em toda parte, supõe uma escala absoluta de valores. Se admite a necessidade de uma ditadura temporária, em circunstâncias particulares que se apresentam, é verdade, na existência de toda comunidade política, não é porque prefira o absolutismo, mas o reino da lei, da honestidade e da fé.

O autor, é claro, é mais matizado nas suas afirmações do que pode parecer depois das poucas linhas que refazem aqui o argumento da sua obra. Mas, por outro lado, ele vai estranhamente longe na sua interpretação: com efeito, ele tenta mostrar que Maquiavel antecipou os princípios da Constituição da Confederação Helvética de hoje e que não há, substancialmente, nenhuma oposição entre o sistema político ideal de Maquiavel e aquele, real, dos Cantões suíços de nossos dias. Isso não deixa de chocar, e por mais de uma razão: pode-se falar de democracia em Maquiavel, mas com certeza não é a democracia que nós conhecemos depois da revolução francesa, menos ainda aquela igualitária de nossos dias; é a das liberdades, não da liberdade, a das liberdades que Saint-Simon, por exemplo, defende, sem empregar o nome, contra o arbítrio de Luís XIV. Ainda mais inquietante é a maneira formal de ver as coisas que permite identificar ideias radicalmente diferentes, desde que se possa transpor uma na outra as fórmulas que as exprimem, sem se preocupar minimamente com as realidades sociais, econômicas e políticas às quais correspondem, nos diferentes momentos, essas fórmulas verbalmente identificáveis. Outras críticas seriam possíveis: é arbitrário afirmar, como faz von Muralt seguindo W. Andreas, que a transformação do Estado da Idade Média, fundado sobre os estados, em Estado moderno e constitucional não era ainda inverossímil na época de Maquiavel; é arbitrário no sentido de que uma evolução como essa não havia ocorrido em lugar algum e que a palavra “inverossímil” não significa estritamente nada quando se trata de homens que, a menos que sejam diretamente inspirados pelo espírito personificado da história, não poderiam sequer sonhar tal evolução. Deve-se notar sobretudo que as relações da religião e do cristianismo de um lado, do Estado moderno do outro, não são tão simples, que Maquiavel sobre esse ponto não foi tão fiel quanto von Muralt parece supor: a religião é necessária ao Estado e mesmo o cristianismo pode servir, na falta de uma fé mais útil; mas os elogios, sempre irônicos ou com duplo sentido, que Maquiavel faz aos fundadores dessa religião – não são muitos –, o que ele diz sobre a interpretação correta da religião, em particular sua preferência por Moisés, situado com Ciro, os primeiros reis romanos, Ligúrio e os outros fundadores de Estados, sua admiração pelo próprio Moisés, porque suprimiu os que resistiam à realização de sua obra, suas críticas ao passivismo cristão, sem mencionar sua condenação sem apelo do papado nos planos histórico, político, moral, sem falar de suas comédias ridicularizando os representantes da Igreja – tudo isso mostra que a função da religião no Estado de Maquiavel certamente não é de ordem religiosa, que seu valor não é de modo algum autônomo e que, indispensável à saúde social do Estado, ela sozinha é insuficiente para fundá-lo e mantê-lo.

Teremos de voltar a todos os problemas levantados por von Muralt. Entretanto, podemos declarar já agora que as suas teses, exceto as que acabamos de mencionar, nos parecem perfeitamente justas. Os textos que o autor cita, e outros que podem ser acrescentados, demonstram que Maquiavel, que deu seu nome ao maquiavelismo (Charles Benoist pôde também falar, não sem aparência de verdade, de um maquiavelismo anterior a Maquiavel) não foi maquiavélico no sentido vulgar do termo. Não foi, então, apenas um “positivista”, um teórico da técnica política, da luta das elites; ele teve uma moral, uma ideia precisa do Estado perfeito, ele atribuía um fim à sua atividade e ao seu ensinamento. Certamente ele não foi um bom cristão, talvez nem mesmo, pessoalmente, um homem de boa moral burguesa; mas ele também não pregou a superioridade do crime, não foi um herói da Renascença no sentido de Gobineau e de seus inumeráveis acólitos germânicos, ele não estava convencido de que o poder é bom em si mesmo, que deve buscá-lo por ele mesmo, que ele justifica tudo por ele mesmo.

O resultado é tão diametralmente oposto à opinião corrente e vulgar relativa a Maquiavel, que somos obrigados a nos perguntar como uma opinião tão injusta a seu respeito pôde ter tanto crédito. Por que a reparação devida à memória de Maquiavel se produziu tão tarde? Von Muralt não pertence inteiramente à escola dos que tomaram a defesa de seu herói com os aparentes argumentos de Rousseau (seguido, sem dúvida inconscientemente, por Burnham), afirmando que Maquiavel, “fingindo dar lições aos Reis”, “deu grandes lições aos povos”, e que “foi obrigado a disfarçar seu amor pela liberdade”: von Muralt está bem convencido de que Maquiavel não escondeu seu amor pela liberdade e que estava muito longe de querer ensinar os povos. Maquiavel é um realista, mas um realista moral, ou antes um moralista que quer realizar a moral. Mais uma vez, subscrevemos de bom grado essa tese fundamental. Mas resta saber por que ninguém a desenvolveu mais cedo. Von Muralt, honesto cidadão da livre Confederação Helvética, aterrorizado pelo espetáculo das atrocidades alemãs, sentiu-se obrigado a fundar racionalmente as próprias convicções políticas e a buscar argumentos precisamente no autor que, por séculos, foi considerado o adversário mais feroz da moral na política, no pretenso apologista da violência, da astúcia, da mentira, dizendo que se o próprio Maquiavel confirma, ao invés de infirmar, o valor da honestidade na política, a virtude moral se estabelece sobre o fundamento mais sólido? Talvez. Mas uma incompreensão radical de mais de quatro séculos faz pensar; pois as exceções são raras e nós só conhecemos como exceções válidas o artigo de Fichte, de 1807, pouco lido e não inteiramente satisfatório, porque renuncia a toda discussão da política interna, por consequência, ao interesse principal de Maquiavel, e uma página de Hegel, rápida, demasiado rápida – e publicada apenas em 1932. Mas não é verdade que este mesmo Maquiavel, depois que tudo foi dito, não se incomodou por recomendar o emprego de todos os meios e que as suas censuras mais amargas se dirigiram aos que hesitaram diante dos métodos imorais, mas eficazes, enquanto seus elogios foram para homens como César Bórgia ou Castruccio Castrani? A tese de von Muralt é verdadeira, apoia-se em argumentos e textos que a comprovam: ela não parece conter toda a verdade.

Assim, não nos deve surpreender ver Ritter tomar uma posição inteiramente diferente. Os próprios títulos dos dois livros que ele dedica a Maquiavel são característicos. Um deles se chama Das sittliche Problem der Macht [O problema moral da potência], o outro (mais antigo e mais importante), Die Dämonie der Macht [A demonia da potência].

Este último é um título sobre o qual devemos nos deter um instante: é impossível traduzi-lo em francês [assim como em português] sem forçar a língua. Pois o quer dizer a palavra demonia, que deixamos como está no original? Na tradição francesa e católica, o que é do demônio é do diabo. Ora, depois de Goethe, o demônico encontrou em alemão seu sentido grego: o demônio é o gênio que guia o homem, e demônico é o homem que, maior que o comum dos mortais, ao invés de padecer ou de perseguir a história, a faz, a cria, tal qual Napoleão e Byron: homens além da moral da vida quotidiana, acima dos juízos de valor, vencedores de todas as resistências, situados entre os habitantes da terra e os dos céus. O problema é, então, para Ritter, o do caráter demônico da política, da potência, da história.

É verdade que essa não foi a visão de Goethe: a seus olhos, só o grande indivíduo tinha direito a esse qualificativo. Mas os sistematizadores passaram por aí, e depois de Tillich, o demônico, no neutro, responde a todo tipo de questões “metafísicas”. Ele deve também servir para resolver o problema Maquiavel. Então, quem é Maquiavel? O homem que pensou mais profundamente a demonia da potência, esse caráter ambíguo, ambivalente da potência: servindo tanto ao bem quanto ao mal, ela carrega o homem de ação para apoderar-se dele no final, para arrastá-lo, dominá-lo, destruí-lo. A potência funda tudo ao mesmo tempo: criação e destruição, bem e mal, o que existe de mais baixo, o que há de mais nobre. No seu plano, a vontade humana vai ao encontro das forças sobre-humanas que ela não pode não desencadear se quiser ser eficaz, e que ela é incapaz de dominar uma vez que as pôs em movimento. Maquiavel foi o primeiro a descobrir essa natureza demoníaca da política. Não que tenha sido a-moral, imoral – Ritter o vê bem –, ele tem um ideal de Estado e de sociedade, um sonho de reformador e de patriota. Mas em nenhum momento perde de vista esse irredutível entrelaçamento de tendências divergentes, essa trágica união no conflito, impossível de apaziguar, do indivíduo e da sociedade, da moral e da necessidade técnica, do ideal e da condição.

O conceito de demonia (devemos nos perguntar se é realmente um conceito e não a caixa sob a qual se escondeu o verdadeiro problema) permite a Ritter justificar a política que ele mesmo chama continental para contrapô-la à tradição anglo-saxã, de natureza insular. Um pensador como Thomas More pode negligenciar a demonia da potência, Ritter declara, porque é um cidadão de um país que não teve que lutar por sua unidade nacional, que, inatacável de fora, pode defender seus interesses impondo sua mediação às nações capazes de ameaçá-los, se estas não estivessem constantemente ocupadas umas com as outras: a convicção moral da Utopia é subjetivamente sincera; mas, objetivamente, é apenas a camuflagem de uma diplomacia fina, forte, servindo-se de fatores econômicos para conduzir suas guerras, ou melhor, para fazer que outros as conduzam, pondo-se moralmente acima dos outros que só conhecem meios brutais. O insular desempenha o papel de professor de moral, certamente com imensa honestidade, mas sem a mínima compreensão da situação radicalmente diferente dos outros, e Thomas More não vê a demonia, porque não pode vê-la. Mas seu pensamento elucida, por contraste, o pensamento de Maquiavel.

Talvez Ritter vá um pouco longe ao contestar a Maquiavel todo desejo de educar a nação: como então poderia acusar os príncipes de corromper os povos? Talvez Ritter exagere o sentido da demonia de seu herói. Mas é certo que ele vê um aspecto essencial de seu personagem, justamente o aspecto que von Muralt havia negligenciado. A potência enquanto tal, os meios para adquiri-la e conservá-la, eis os problemas que não deixaram de obcecar Maquiavel, em nenhum momento de sua existência de teórico da política e do Estado. Maquiavel discerniu com extrema clareza que a potência é a condição necessária de toda realização histórica; ele escarnece dos profetas desarmados e das pessoas que se envolvem nos negócios do Estado sem querer jogar o jogo: pode-se abster disso, mas uma vez envolvido, não se tem mais o direito de se deter à metade do caminho e sucumbir aos escrúpulos, de qualquer ordem que estes sejam. Virtude, honestidade, religião, são fatores que é preciso considerar na política, mas que não devem dominar o homem de Estado. Tirar vantagem deles no momento da decisão é ou uma astúcia ou uma prova de inconsciência e de inconsequência. Na luta, só a luta conta. E Ritter conclui daí: eis porque a Inglaterra e, mais tarde, a França não compreenderam nada da verdadeira natureza da política alemã, política de um país obrigado a se fazer, circundado por adversários potenciais ou reais, forçado a ser “realista” no sentido de Maquiavel; eis, enfim, porque os alemães não compreenderam o realismo político dos seus adversários.

Ritter é um historiador bom demais para não constatar que outros fatores contribuíram para a formação dessas duas maneiras de pensar, e ele toca um ponto de grande importância ao insistir sobre a diferença das mentalidades luterana e calvinista: por um lado, a convicção de que tudo o que é deste mundo é mau, que o Estado é uma necessidade para seres decaídos, que, portanto, ele não pode pretender nenhum valor autônomo, não pode nem aspirar a uma verdadeira reforma de seu ser, que o príncipe pode e deve ter uma consciência cristã enquanto indivíduo, mas que na sua função, ele é obrigado pelas leis deste mundo, que o cidadão só deve obedecer à autoridade indispensável e querida por Deus, boa ou má que seja, e que não poderia ser colocado em relação direta com os fins transcendentes do gênero humano. Por outro lado, a certeza de que Deus exige do homem a transformação deste mundo para a Sua maior glória, o desejo de submeter o terrestre ao céu, de controlar as autoridades mundanas pela comunidade dos fiéis, o direito, isto é, a obrigação moral à revolta. Como estas atitudes não teriam contribuído para confirmar o positivismo político de uns, o moralismo de outros?

Mas estamos lidando aqui com Maquiavel, e o próprio Ritter faz dele o personagem central da sua exposição, exposição que é ao mesmo tempo uma defesa da Alemanha. Acusou-se o autor de ser nazista, senão em sua ação pessoal, ao menos nas suas opiniões. Não há nada de mais falso. O erro é compreensível, mas não por isso deixa de ser um erro. Ritter é um conservador alemão, e é pela resistência dos conservadores, por causa das suas ligações com Goerdeler e os conspiradores de 20 de julho, que ele sofreu nas prisões de Hitler. Ora, este conservadorismo, para o espectador que vive no Ocidente moralista, se confunde facilmente com o nazismo. O que têm em comum é ver no Estado sobretudo a potência, a concentração do poder, é a convicção do caráter natural da luta política, a tese do caráter inevitável da luta. O que os distingue – e é lamentável que Ritter não o diga com toda a clareza desejável – é a afirmação em uns, a negação em outros, dos valores diferentes daqueles políticos, valores individuais, humanos, transcendentes, morais. É também que, para uns, o poder e a potência são fins em si mesmos, enquanto, para os outros, não passam de instrumentos indispensáveis, mas sem valor em si. Daqui essa posição ambígua diante do problema da potência; posição que reconhece que existe um problema, mas que não permite entrever o meio para resolvê-lo, porque a potência continua irremediavelmente amoral.

Não existe problema mais duro para quem deseja pensar a política. Ademais, é preciso lamentar que Ritter, que percebe o problema e a sua grandeza, não seja um pensador. Pequenos indícios o mostram. Por exemplo, é surpreendente encontrar, em dez linhas, as seguintes afirmações: a) a noite de São Bartolomeu foi uma carnificina friamente calculada; b) Catarina de Médici foi movida por uma mistura de medo feminino e de ciúme irrefletido, muito distante das receitas de Maquiavel; c) no entanto, uma parte da razão de Estado se diluiu entre essas motivações puramente pessoais e irracionais (Démonie, p. 120 s.). Não é fácil encontrar a solução da contradição, enunciada numa única página (ibid. p. 172), entre uma primeira tese segundo a qual não se pode vencer a antinomia da existência política estabelecendo simplesmente uma relação de fim e meio entre a ordem pacífica e a luta pela potência, e outra tese que quer que a luta jamais apareça como fim em si, mas que seja, em última instância, o meio para estabelecer uma nova ordem sã e duradoura. Parece claro o que Ritter procura e, duas páginas depois, ele o enuncia: o verdadeiro político deve sempre, mesmo no meio da luta, manter sua razão lúcida, a verdadeira razão de Estado. Mas isso seria mais do que um simples desejo? Não é precisamente a natureza dessa razão que se procura? E se não se deve esconder a luta sob o manto da moral, se nos tornamos suspeitos ao falar de moral, quais poderiam ser o conteúdo e a medida dessa razão?  

Talvez seja proveitoso refletir por um momento sobre o título da segunda obra de Ritter, O problema ético (ou moral) da potência. O que estes termos poderiam significar? Se a potência é amoral, sem relação com a moral, como poderia haver para ela um problema moral? Ela põe um problema ao homem moral? Certamente – mas não mais do que qualquer outro dado da sua existência empírica: ela não é nem mais nem menos “demônica” do que a natureza, do que qualquer paixão: a potência é neutra. Demônico e demonia, são belos termos, mas que, infelizmente, não escondem nada. O que quer que o homem faça, ele não é nunca criador de suas condições, e se o demônico designa algo, não é nada além da própria vida. Logo, a explicação pela demonia não explica nada, e a descrição por meio do demônico não descreve nada. Pode-se interpretar como se quiser: na medida em que essas palavras têm um sentido, elas têm o de um problema que não ajudam a formular, menos ainda a resolver. Pior ainda, elas impedem de colocá-lo corretamente. Pois o fundo da questão é, muito simplesmente, que não há problema moral para a potência, nenhum problema moral do demônico; o único problema é o da potência para a moral (ou, como Ritter diz algumas vezes, de uma forma que preferimos: para a razão), e enquanto é absurdo exigir da potência uma moral, tão absurdo quanto demandar uma moral à natureza ou à paixão – nós não falaremos da exigência estritamente pessoal do indivíduo em relação a si próprio: estamos no terreno da política –, é perfeitamente legítimo, perfeitamente natural pedir que a moral e a razão se ponham o problema de saber como farão para se realizar no plano da potência. Basta admitir essa tese que deveria, depois de muito tempo, ser uma evidência, para compreender que toda tentativa de enobrecimento da potência pura só pode levar à confusão, e que as boas intenções aplicadas ao realismo místico do demônico (ou, mais basicamente, ao positivismo raso e falso de Burnham) não são mais justificáveis porque não poderiam mostrar o que se deve fazer – ou fazer compreender o que se passa. Uma vez que se permitiu separar abstratamente moral e política, nenhum deus fará mais viver o cadáver despedaçado da realidade.

 

4. E Maquiavel? Essas considerações ainda o tocam? Ou, seguindo as especulações de Ritter, afastamo-nos demais da planície fértil da história, esquecendo o nosso propósito? Parece que não. Pois de duas uma: ou duas interpretações tão opostas como a de von Muralt e a de Ritter se explicam pelo fato de que o próprio Maquiavel não soube superar a contradição aparente entre política e moral – e nesse caso, Ritter teria razão quanto ao essencial de sua tese histórica, mesmo se é possível criticá-lo em alguns detalhes, mesmo que se possa desejar, acima de tudo, que ele tivesse ido mais longe que o seu ator; ou Maquiavel verdadeiramente apreendeu a realidade política – seria melhor dizer: a realidade sob seu aspecto político, porque se trataria de toda a realidade –, e os diferentes modos de determinar o essencial de sua doutrina proviriam de visões parciais e complementares de um edifício do qual só o conhecimento de toda sua arquitetura, interna e externa, torna compreensíveis o desenho e a organização. Tentaremos defender a última dessas teses, à medida que tal projeto possa começar a ser executado nos limites de um artigo.

Viu-se – algumas vezes, não com muita frequência, mas podemos encontrar essa realidade formulada, por exemplo, em Mesnard – que o problema para Maquiavel não é tanto o que se chama, no uso corrente, a política, esta atividade contínua dos homens de Estado e dos políticos que procuram defender os interesses correntes dos Estados: interessa-lhe antes tudo, ou quase exclusivamente, a fundação de um Estado. Aos seus olhos, o maior dos heróis é aquele que funda um Estado. Sem dúvida, uma vez criado o Estado, é preciso mantê-lo vivo. É igualmente certo que Maquiavel, leitor de Políbio, influenciado pelas teorias astrológicas da história circular, para a qual nada dura eternamente, que vê os povos e as religiões sucessivamente assumirem o primeiro lugar, não crê que o melhor Estado possa subsistir em sua forma perfeita. Sem dúvida, ele adere ao ideal grego da cidade independente, forte o bastante para se fazer respeitar, suficientemente segura de si mesma e de suas bases para não procurar o próprio crescimento; esse ideal, ele o encontra ademais realizado nas cidades livres da Alemanha setentrional, protegidas pela força do Império contra as agressões dos nobres, por sua fraqueza, contra as usurpações do imperador. Mas em regra geral, um Estado deverá crescer ou desaparecer, e a política “imperialista”, para empregar uma palavra moderna, com suas consequências para a vida interna, é normalmente seu destino. Vêm daí as receitas tão escandalosas do Príncipe, as reflexões tão chocantes dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio: tudo o que mantém o Estado é lícito, é obrigatório.

Então, tudo parece se encerrar naquele célebre princípio segundo o qual o fim justifica os meios. Princípio que tem uma péssima fama. Confessamos nunca ter compreendido essa reputação, menos ainda o porquê da recente retomada da discussão sobre o tema. Deseja-se reconhecer nisso o fundamento do maquiavelismo ou do jesuitismo; condena-se quem adere ao princípio por causa do princípio, e igualmente condena-se o princípio por causa de seus aderentes. Ora, esse princípio não é apenas verdadeiro, ele não faz mais do que enunciar um truísmo. De fato, como um meio seria justificado senão por seu fim? E para que serviria um fim no domínio da ação, senão para justificar a escolha dos meios, dado que, nesse plano, o fim só é agente e real justamente nos meios que ele põe em ação? Com certeza é legítimo, e mesmo indispensável se perguntar se se quer reconhecer certo fim, se ele exige o emprego de certos meios: neste caso, constatar-se-á que não se persegue um, mas dois fins – um que justifica esse meio, e outro em relação ao qual o que é meio para o primeiro constitui um obstáculo ou um ato redibitório. Não é menos legítimo e é igualmente indispensável se perguntar se o que se recomenda como meio o é de fato: é pouco provável, para tomar apenas uma ilustração, que a mentira possa servir a verdade e a razão, se se trata de educar os homens à razão e à verdade. Mas nada disso infirma o princípio – e por conseguinte, a aversão a Maquiavel (porque nem mesmo os seus admiradores se desfazem dessa aversão) não pode remontar a esse fundamento.

Mas pode ser que tenhamos nos expressado mal. Quisemos dizer que os meios de Maquiavel não são apropriados a seu fim, em outros termos, que segundo suas prescrições não poderiam dar vida a um Estado, nem cura-lo nem fazê-lo prosperar. Ou se contestaria o valor do fim: os meios seriam bons, tecnicamente, mas serviriam o mal ou, ao menos, não serviriam o bem, porque seu emprego, útil ao Estado, seria pernicioso para fins mais elevados.

Comecemos pela segunda questão, de longe a mais espinhosa. O Estado constitui um fim? Para Maquiavel, a resposta não deixa dúvida: fora do Estado, não é sequer possível falar de moral, de valores, de razão; pois, fora do Estado, só há violência. O homem é naturalmente egoísta, avaro, desejoso de dominar os outros e de apropriar-se de bens para si; é pouco inclinado à bondade, à simpatia; em uma palavra, ele está o mais distante possível do bom selvagem. Mas ele pode ser justo, se viver sob leis justas, num Estado de justiça, se for educado em vista da honestidade. Não fosse assim, o Estado seria supérfluo: ora, por toda parte o homem vive nos Estados, e tudo o que se pode pedir razoavelmente, é que o Estado seja tão bom quanto possível.

É preciso dizer que, neste ponto, toda a tradição ocidental, grega, romana, cristã, segue Maquiavel. Nenhuma afirmação é mais clássica, nenhuma corresponde melhor à experiência do que a que ensina que o homem não é razão, mas que é razoável, que se pode e se deve formá-lo, que ele mesmo pode e deve seguir a razão, que o homem não nasce bom, mas que ele pode e deve se educar na comunidade dos homens. Ora, sendo assim, é certo dizer que o Estado, esta estrutura da comunidade que permite à comunidade pensar e querer, escolher sua organização, seus meios e seus fins, – é certo dizer que o Estado, forma real na qual a comunidade age e assume conscientemente suas responsabilidades, é o plano da moral e da imoralidade.

Não é preciso dar grande importância ao pretenso pessimismo de Maquiavel, que todos os autores mencionam em primeiro lugar. Ele existe. Mas ele é apenas o reconhecimento do fato de que o homem sem lei é um homem sem lealdade. A partir desse ponto, Maquiavel vai mais longe, muito mais longe.

Se não há lealdade sem lei, a lei pode governar os homens sem lealdade? Maquiavel nunca deixou de surpreender os espíritos ditos lógicos e em verdade abstratos por sua resposta – que é um não puro e simples. Von Muralt faz bem ao insistir sobre o grande papel que desempenha em Maquiavel o conceito de bontà, palavra que pode ser traduzida por honestidade: não há Estado onde não há mais honestidade. As cidades suíças podem viver livremente, quer dizer, sob as leis que elas se deram – digamos mais uma vez que, para Maquiavel, liberdade significa sempre suis legibus uti: a metade dos contrassensos cometidos a respeito dele são fruto de um anacronismo na interpretação dessa sentença –, porque seus cidadãos são honestos, para ser preciso: porque eles respeitam sua palavra, porque pagam corretamente seus impostos sem que seja obrigado a fiscalizá-los, porque não procuram privar seu próximo de seu bem nem de sua honra, porque respeitam as mulheres e as filhas dos outros (Maquiavel vê o essencial do bom Estado na garantia do patrimônio e da honra: em tal Estado, o cidadão é contente com sua sorte e fiel à autoridade), enfim, porque os chefes não buscam sua vantagem pessoal, mas defendem a da cidade.

Mas se as coisas forem diferentes? Se a honestidade tiver desaparecido entre os homens? Se a sociedade estiver corrompida? Bem, nesse caso, o reino da lei, o regime da liberdade, devem esperar que o fundador ou o reformador se apresentem, e só a violência será capaz de vencer a violência. É preciso acrescentar ainda que um povo que jamais conheceu a liberdade e que, entretanto, não vive mais de modo pré-estatal, não ascenderá nunca à liberdade: nação de escravos, corrompida pela sucessão de príncipes egoístas e usufruidores, ela não será capaz de viver sob a lei – da mesma forma que uma nação que tenha conhecido a liberdade jamais a esquecerá. Esta última esperará sempre seu reformador, seu libertador: aquela, da anarquia cairá sob a tirania, e da tirania, na anarquia. Maquiavel não fala de povos-escravos.

Fundador e reformador, eis seus verdadeiros heróis. O reformador, porque restabelece na sua força original o Estado do fundador e porque nisso lhe é igual: ele não é menos necessário que o primeiro, pois todas as coisas humanas mudam, periclitam, ruem sob o efeito do tempo. O fundador, porque constitui em comunidade razoável o que, antes dele, era apenas um aglomerado de indivíduos mais próximos à animalidade que da civilização. Eles são demônicos, mas no sentido de Goethe, porque recriam o homem sob uma nova imagem.

Frequentemente surgiram preocupações acerca de uma incoerência que teria levado Maquiavel a dar-se inteiramente à república, às instituições livres, que o leva às imprecações mais amargas contra os tiranos, ao elogio sem reserva da igualdade dos cidadãos, à crítica mais severa daqueles que, por sua riqueza ou por sua influência pessoal, conseguem impor a própria vontade particular à comunidade (aos olhos de Maquiavel, o caso é ainda mais grave se estes chegam a isso sem empregar a força: a comunidade deve estar fundamentalmente podre se seus cidadãos preferem as facções às leis) – e que, no mesmo livro, frequentemente na mesma página, o faz insistir na necessidade da ditadura de um só, a necessidade da criatividade política do indivíduo isolado e separado de todos os outros,  em direito e sob a obrigação quase-moral de empregar todos os meios para atingir seu fim. Perguntou-se como ele pode exaltar ao mesmo tempo a honestidade e a mistura de violência e de astúcia, como ele ousa aconselhar o príncipe a se fazer temer se não puder se fazer amar – e redigir, a pedido de Leão X Médici, um projeto de constituição para Florença, no qual propõe, de uma maneira que se pode sem hesitação chamar de ingênua, dar à sua cidade natal leis tais que depois da morte dos príncipes atuais, ela pudesse governar-se unicamente por estas mesmas leis, sem a intervenção de algum senhor. Duvidou-se de sua sinceridade lendo seus ataques, não só contra a corte papal, desmoralizante por sua falta de bontà, e o papel deletério da potência temporal da Igreja, mas também contra o cristianismo, religião debilitante – e além disso, que o esforço principal do fundador deve se voltar para a criação de uma religião.

Ora, todas essas contradições só aparecem como tais a partir do momento que se projeta sobre o mesmo plano os conceitos, essencialmente diferentes, do fundador e da autoridade legal. O fundador não é obrigado por nenhuma lei, simplesmente porque, antes dele, não há lei. Ele não é guiado por nenhuma religião, porque, antes dele, não há religião. Moral e religião pertencem a um povo constituído em Estado sob leis, por leis, melhor ainda: nas leis. Só no Estado o homem pode aspirar a essa segurança que é o seu mais profundo desejo, a essa honra que lhe dá um valor aos seus próprios olhos, porque ela é o valor que lhe dão os seus iguais. Criando (ou renovando) boas leis, o homem supera a medida humana e, verdadeiro semideus, se eleva à imortalidade.

O que é necessário à Itália de Maquiavel, é um tal semideus. A nação está podre e seus corruptores vivem no meio dela: os grandes banqueiros, os pequenos potentados, os restos do feudalismo, a nobreza, não a nobreza guerreira, mas a que, na cidade, oprime o povo ao invés de procurar, na mais nobre das emulações com esse último, a salvação comum, os condottieri rapinantes e sanguinários, mas incapazes de engendrar um Estado; nascidos da podridão e prosperando por ela, todos eles perderam até mesmo a ideia da lei, se é que algum dia a tiveram. Seu interesse pessoal, o de seu grupo, de sua facção, os guia e faz com que chamem em seu socorro esses estrangeiros que, nutrindo-se da gordura da terra italiana, suprimem seus adversários para mais tarde suprimir aqueles que os chamaram. Não há mais honestidade na Itália, não há espírito cívico. O cidadão não está mais pronto a lutar por seu país e se põe nas mãos de pessoas que não têm nenhuma razão para não o trair, pessoas que, ao contrário, têm todas as razões para fazê-lo. O que é infinitamente mais grave é que não há mais lei nem Estado. Os povos da França ou da Espanha estão tão podres quanto a nação italiana; mas eles são organizados, e sua constituição é tão forte que esses Estados podem suportar um rei incapaz ou perverso: suas leis os mantêm. A Itália não tem mais nada e tudo deve ser recomeçado.

Por que César Borgia é um grande homem? Não por ser violento, mas por querer a unidade da Itália, por querer dar paz e satisfação ao povo, por ser inteligente o bastante para mandar pendurar em praça pública, dividido como um porco, o chefe de sua polícia que, liquidando os irredutíveis, os nobres, os chefes de facções, fez-se odiar por sua crueldade, ele é grande por respeitar o que o povo respeita, por saber não apenas se fazer temer, mas também se fazer amar, por não se esquivar diante do emprego da violência contra a violência, por ser o único suficientemente forte, inteligente e grande, para tornar-se supérfluo depois de ter estabelecido o reino da lei.

César Borgia fracassou, porque não previu que sofreria um ataque de paludismo no dia em que seu pai morria de apoplexia, e durante toda a sua vida, Maquiavel procurou o grande indivíduo que retomaria a sua obra. Ele não o encontrou: Soderini era um miserável chefe da república florentina, um daqueles que cometeram o maior dos crimes políticos, o de não ir até o fim do caminho, por falta de clarividência e de decisão. Os Médici foram homens medíocres. Sem desesperar e sem esperança, Maquiavel se pôs a ensinar, não o que é o Estado, mas como se deve fundá-lo e defendê-lo – nos seus Discursos, que tratam em seus três livros da política interna, da preparação e da condução da guerra, do papel dos cidadãos particulares e das facções, e no Príncipe, que não passa de um capítulo separado dos Discursos, ou melhor, um apêndice, que analisa os meios para adquirir e para se manter um principado, e na sua Arte da guerra, discurso técnico e, ao mesmo tempo, apelo ao patriotismo. É apenas de passagem que ele menciona o Estado tal como deve ser, mais exatamente, como é no seu verdadeiro conceito. Mas não conhecemos um único trecho dos seus escritos em que, por um só instante, ele o tenha perdido de vista.

Então, nada de mais natural e injusto do que fazer o maquiavelismo derivar de Maquiavel: basta esquecer que Maquiavel não fala do chefe de um Estado constituído e são (quando o faz, seus conselhos são o contrário das receitas “maquiavélicas”), mas fala da fundação de um Estado. Se não nos esquecermos disso, não demoraremos a entender por que ele apela para o herói e rejeita o tirano. Ele o diz com todas as letras: só o indivíduo pode criar, só o povo mais constante, mais esclarecido, mais fiel, sabe conservar. Não se perguntará mais por que ele detesta o papado e concede o primeiro lugar à religião: Roma corrompe o cristianismo e a Santa Sé é ao mesmo tempo forte demais para que se possa realizar a unidade da Itália contra sua vontade, e fraca demais para realizá-la por seus próprios meios; mas não há povo honesto sem religião, com a condição, bem entendida, de que se tome o termo no sentido que Maquiavel, como bom latinista, lhe atribui, o de escrúpulo moral, de fidelidade às obrigações e à palavra dada, o sentido no qual a religião não é senão a face subjetiva da honestidade, o respeito do fiel pela lei que ele não é capaz de pensar. O Estado, por outro lado, não é do Príncipe, não é eu, qualquer que seja este eu; o Estado é a lei, e Maquiavel é tão cioso desta soberania da lei, que a boa constituição, para ele, deve prever a ditadura temporária e submetida às leis para impedir que a força de circunstâncias extraordinárias leve à tirania permanente e arbitrária de um homem ou de um grupo: nada de mais perigoso para o Estado e para moral do que um príncipe que não é mais fundador ou reformador.

Enfim, não se temerá mais o imoralismo ou o amoralismo de Maquiavel em política externa: não ficou demonstrado que aquele que diz política externa fala, por definição, de um domínio em que a moral não está realizada, mas continua eternamente por se realizar, por que ela não se tornou lei? Não é precisamente a grande dor de Maquiavel a constatação de que entre os homens de um único país, de uma única língua, de uma única tradição, reinam relações de política externa? Enquanto os Estados soberanos, quer dizer, submetidos unicamente à própria vontade individual, tiverem de se defender contra a vontade individual de outros Estados, é possível que todos os meios sejam empregados por qualquer um dentre eles: todos devem se preparar para opor a esses meios outros meios da mesma natureza. Quanto ao resto, Maquiavel nunca foi estúpido a ponto de crer nas pequenas astúcias; ele compreendeu muito bem o valor, o enorme valor, do crédito moral dos príncipes e dos Estados, e a mentira não foi a arma principal do homem que, nas suas instruções ao embaixador Girolami, o advertia acima de tudo sobre os perigos da duplicidade e da necessidade de se fazer estimar como homem honrado, liberal e sincero. Não recomendou a violência, ele que repete que a fidelidade dos cidadãos e dos aliados é fundada sobre a confiança, a gratidão e o sentimento da liberdade. Resta, entretanto, o fato de que política externa não conhece lei: Maquiavel não se interessa por ela como problema em si. O historiador de Florença, quando se dá conta das razões que lhe fazem escrever uma nova história de sua cidade, declara que seus predecessores só falaram das guerras, mas se calaram sobre conflitos internos, de tal forma que seus escritos não são nem instrutivos nem interessantes, “se houver uma leitura útil aos cidadãos que podem ser chamados ao governo de uma república, esta será a que revela as causas dos ódios e das divisões, a fim de que, tornados sábios pelo perigo dos outros, eles possam manter a unidade”. A política externa constitui o perigo para o Estado sadio, não um perigo, mas o perigo: se ele concordasse em sonhar – ele o faz às vezes –, ele sonharia com um Estado fora de todo contato com outros Estados, sem adversários sempre presentes e que o forcem a crescer para não ser devorado. É preciso saber se defender; mas antes de tudo, é preciso viver em um Estado que valha a pena ser defendido – e que será defendido, porque seus habitantes sabem e sentem que ele o merece e que nada seria pior para eles que perdê-lo. Unidade sob a lei, ordem na liberdade, paz, honra e segurança, eis o fim que atribui à política aquele cujo nome deu origem ao termo maquiavelismo.

 

5. Devemos ainda retomar a questão que pusemos em primeiro plano, a de saber se os meios aconselhados por Maquiavel são aptos para alcançar esse fim? Pensamos que não. Concordamos que esses meios sejam perigosos – e com o próprio Maquiavel: ele não deixa de insistir sobre as inconveniências desses procedimentos: o fundador só teria realmente realizado o seu papel se o Estado do qual ele é o pai e o criador puder viver, depois de sua morte, sem senhor, sem herói, sem profeta. Ele não esconde que nada é mais raro do que um homem tão grande e tão profundamente devotado à causa do Estado para satisfazer essa condição indispensável. Mas quando tudo foi dito, não resta outros meios para a razão além daqueles da violência, daquela violência que a razão quer submeter ao seu julgo, que, por assim dizer, é o julgo da liberdade. É preciso uma sorte extraordinária para que, na história de um único povo, se apresentem ao mesmo tempo as condições necessárias e os homens que saibam tirar proveito delas para fundar e para reformar o Estado. Maquiavel só conhece um único exemplo disso, o da Roma republicana. Mas a tarefa foi realizada uma vez, a fortuna sorriu uma vez para o projeto: não é permitido se desesperar.

Eis a grandeza de Maquiavel, eis porque, em uma época como a nossa, a sua sombra, que bebeu o sangue apenas derramado, retoma a palavra para repetir seu grande discurso; eis porque esse discurso, por dizer as coisas como são, será sempre invocado, sempre novamente sujeito a interpretações parciais e partidárias: expondo tudo, expõe também todos os aspectos da realidade política e não há tese que não possa se tornar autorizada ou detestável citando uma sentença isolada de Maquiavel. Mas, porque esse discurso é verdadeiro e porque a realidade de todo momento presente da política encerra todos os interesses particulares e todos os preconceitos, a totalidade dos erros e das afirmações unilaterais restabelecerá, apesar do desejo de cada um dos responsáveis por eles, a totalidade da doutrina.

Recebido: 13/11/2022                                                    Received: 13/11/2022

Aprovado: 16/11/2022                                                 Approved: 16/11/2022

 



* E. Weil, “Machiavel aujouord’hui”. In: Essais et conférences 2. Paris: Vrin, 1991, p. 189-217. O tradutor agradece ao Professor Patrice Canivez, Diretor do Instituto Eric Weil, da Université de Lille, a autorização para publicar esta tradução, bem como ao Professor Marcelo Perine (PUCSP) pela generosa revisão.

[1] William Somerset Maugham, Plus ça change [Then and now]. Paris: Plon, 1948; Marcel Brion, Machiavel. Paris: Aubin Michel, 1948; James Burnham, Machiavéliens défenseurs de la liberté. Paris: Calmann-Lévy, 1949; Maurice Joly, Dialogue aux Enfers entre Machiavel et Montesquieu, Paris: Calmann-Lévy, 1948; Gerhard Ritter, Die Dämonie der Macht. Munich: Oldenbourg, 1949; Gerhard Ritter, Das sittliche Problem der Macht. Berne: Francke, 1948; Leonhard von Muralt, Machiavellis Staatsgedanke. Bâle: Schwabe, 1945.

[2] Não pretendemos oferecer aqui uma bibliografia (que se encontra em Benoist ou em Gautier-Vignal, Machiavel. Paris: Éditions Universitaires, 1920), apenas indicar algumas obras facilmente acessíveis ao leitor francês.