FILOSOFIA E LITERATURA NA PERSPECTIVA DE BLOOM, KUNDERA, BORGES E RORTY

PHILOSOPHY AND LITERATURE FROM PERSPECTIVE OF BLOOM, KUNDERA, BORGES AND RORTY

 

 

 

Heraldo Aparecido

0000-0001-5533-0726

heraldokf@yahoo.com.br  

Universidade Federal do Piauí (UFPI)

 

Recebido: 07/01/2023

Received: 07/01/2023

 

Aprovado: 06/02/2023

Approved: 06/02/2023

 

Publicado: 21/02/2023

Published: 21/02/2023

 

 

RESUMO

O propósito do artigo é apresentar algumas considerações sobre a relação entre a filosofia e a literatura. Para fins comparativos, a noção de literatura sapiencial do crítico literário Harold Bloom é usada como elemento central para a articulação com as concepções do romancista e ensaísta Milan Kundera, do escritor, poeta e contista argentino Jorge Luis Borges e do filósofo neopragmatista Richard Rorty. A contraposição entre as posições de Bloom, Kundera e Rorty tem linhas argumentativas divergentes sobre alguns pontos da relação filosófico-literária. Entretanto, inadvertidamente, os autores convergem acerca do propósito prático de algumas vertentes da filosofia e da literatura, no que concerne ao contexto de suas respectivas investigações sobre temas fundamentais para a compreensão da existência humana.

Palavras-chave: Literatura. Filosofia. Romance. Literatura sapiencial. Filosofia literária.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to present some considerations on the relationship between philosophy and literature. For comparative purposes, the notion of wisdom literature by literary critic Harold Bloom is used as central element for articulation with the conception of novelist and essayist Milan Kundera, of poet and short-story writer argentino Jorge Luis Borges and the neopragmatist philosopher Richard Rorty. The contrast between the positions of Bloom, Kundera and Rorty has divergent lines of argument on some point of the philosophical-literary relationship. However, inadvertently, the authors converge on the practical purpose of some aspects of philosophy and literature, with regard to the context of their respective investigations on fundamental themes to the understanding of human existence.

Keywords: Literature. Philosophy. Novel. Wisdom literature. Philosophical literature.

 

INTRODUÇÃO

A partir da temática expressa na obra Onde encontrar a sabedoria?, do crítico literário Harold Bloom, teceremos algumas considerações acerca da relação entre a sapiência literária e filosófica. Nesse sentido, além da referida obra, também usaremos como contraponto, a perspectiva do romancista tcheco Milan Kundera, no ensaio A arte do romance; algumas considerações feitas pelo prolífico escritor argentino Jorge Luis Borges (1972; 2012) em duas de suas obras literárias e, por fim, destacaremos a concepção do filósofo Richard Rorty, expressa em textos teóricos diversos. Embora as concepções dos quatro autores mencionados não sejam diametralmente opostas entre si; visto que apresentam, visões comuns na maior parte das assertivas apresentadas, ainda assim, consideramos que as contribuições dos referidos autores são suficientemente oportunas para suscitar reflexões relevantes sobre o tema proposto.

Literatura sapiencial, sabedoria do romance e filosofia literária

Nessa seção faremos uma análise dos conceitos relacionados de literatura sapiencial, poeta forte e desleitura, extraídos das seguintes obras de Harold Bloom: Onde encontrar a sabedoria? (2005) e Abaixo as verdades sagradas (1993). Em conformidade com a discussão de alguns tópicos específicos das referidas concepções bloominiana, estabeleceremos conexões pontuais com outros autores estudados, tais como Kundera, Borges e Rorty.

O ideal de sabedoria para Harold Bloom (2005), exarado na obra Onde encontrar a sabedoria?, combina religião, literatura e filosofia. Ao exaltar o poder transformador da sabedoria, Bloom dedica o início da primeira parte de sua obra ao exame dos livros bíblicos de Jó e Eclesiastes. Depois, ele tece comentários sobre o tipo de sabedoria encontrada nos escritos de alguns expoentes da literatura e da filosofia, como por exemplo, Homero, Platão, Cervantes, Shakespeare, Montaigne, Emerson, Nietzsche e Proust. Por fim, ele retoma o viés religioso, na terceira e última parte da obra para discorrer sobre sapiência cristã, personificada em São Tomás e Santo Agostinho.

Para Bloom (2005, p. 15), a sabedoria só pode ser atingida na solidão, isto é, na solitária reflexão acerca de leituras de obras grandiosas: os escritos sapienciais, que podem “absorver ou destruir”. Exemplo disso é encontrado no final do “Eclesiastes I” que encerra a constatação segundo a qual, quando ampliamos nossa sabedoria, aumentamos também o nosso pesar. Para ele, os textos sagrados de Jó e Eclesiastes compartilham essa característica com as tragédias shakespearianas, como Hamlet e Otelo. Ele denomina de “sabedoria do aniquilamento” esse tipo de discernimento trágico que nos faz sofrer (BLOOM, 2005, p. 43). Consideramos que tal perspectiva seria compartilhada por Borges, já que os seus ensaios “Sobre os Clássicos” (2013) e “A memória de Shakespeare” (2011) evocam a relevância do Livro de Jó e de Macbeth como obras que nos aproximam da imortalidade.

Embora Bloom não considere que a literatura da sapiência traga conforto, a impressão final é que a sabedoria literária envolve uma espécie de conforto existencial, encontrado na reflexão de temas – frequentes no livro ora analisado – como: tristeza, morte, solidão, desejo, abnegação, fé, medo, esperança, caráter, êxtase, loucura, angústia, infortúnio, felicidade, infelicidade, pecado, arrependimento, esperança, revelação, redenção, enfermidades, renúncia, sonho. Tal sabedoria literária tem, ao contrário do que propõe Rorty, um aspecto eminentemente individual, algo que, logo de início, leva a questionar a utilidade social dos literatos. Se Rorty (1995; 1998) enfatiza essa utilidade, Bloom apenas insinua, já que para ele, diante de Shakespeare, todos os demais grandes vultos da literatura e, principalmente, da filosofia são pálidas sombras. Diferentemente de Rorty, o posicionamento de Bloom (1993; 2005) sobre tal tema não é inteiramente explicitado.

A respeito da antiga rixa entre a poesia e a filosofia, a posição de Bloom é explicitamente favorável durante todo o livro a Homero e contra a posição platônica (PLATÃO, 2000). O crítico literário escreve:

Se Homero chegasse à fronteira da República de Platão, duvido que este lhe impedisse a entrada. Tal noção contraria o que Platão disse acerca dos poetas, mas devemos acreditar na polêmica? Não tenho competência para avaliar Platão como filósofo, mas seus diálogos, no que têm de melhor, são poemas dramáticos absolutamente singulares, sem par na história da literatura (BLOOM, 2005, p. 44).

Ou seja, o crítico literário acredita a filosofia platônica capitularia diante da poesia homérica. Em outra obra escrita precedentemente, Abaixo as verdades sagradas, Bloom (1993) lembra que, caracteristicamente, a cultura grega cultiva sob muitos aspectos o elemento agonístico, o componente combativo de ideias, discursos e ações. Desse modo, os ataques virulentos dos filósofos Xenófanes e Platão contra Homero poderiam ser explicados pelo fato de ambos defenderem uma perspectiva, a filosófica, que se apresentava como alternativa ao legado homérico. Inclusive, no caso platônico, principalmente na obra A República, o sentido de algumas noções importantes na cultura ocidental tem acepções distintas daquelas encontradas na obra homérica Odisséia. Isso é exemplificado na seguinte passagem:

[...] Homero não tem uma única palavra para designar a mente ou a alma. Para ele, psique não é alma, mas a força vitalista que nos mantém em ação; ela é, por assim dizer, o órgão da vida. Homero utiliza duas outras palavras para aquilo a que chamamos “mente”, além de psique. São estas thymos, o órgão da emoção, ou o que gera agitação ou movimento, e noos, órgão da percepção, ou causa das imagens e das ideias. Thymos nos persuade a comer, ou a desferir golpes em nosso inimigo, ao passo que noos permite-nos ver e compreender (BLOOM, 1993, p. 45).

Um fato importante para diferenciar as concepções de Bloom e Rorty a respeito da tensa relação entre filosofia e literatura, é que Bloom deseja que se escolha entre seus representantes primordiais, Homero e Platão e, consequentemente, entre as duas áreas (BLOOM, 2005, p. 80). Ele alega ter se tornado avesso à filosofia a partir do momento que conheceu a poesia de William Blake e Hart Crane e que, não obstante, só recorre a filósofos, como por exemplo, Wittgenstein e Hume, quando busca aforismos interessantes, ao passo que recorre a Shakespeare, “em busca de verdade, força, beleza e, principalmente, de pessoas” (BLOOM, 2005, p. 49). Em outras palavras, o crítico literário relata que suas escolhas sempre priorizaram as concepções poéticas em detrimento das filosóficas.

Essa percepção de Bloom contraria o ideal rortyano inspirado na sabedoria da incerteza kunderiana, segundo a qual não é preciso seguir o modelo disjuntivo da filosofia que reivindica a prevalência de uma posição sobre outra; e sim, cultivar a relatividade das posições e incentivar a ambivalência através de seres humanos experimentais, os personagens literários, que não exigem que alguém esteja certo (KUNDERA, 1988).

Existe uma diferença fundamental entre a maneira de pensar de um filósofo e a de um romancista. Fala-se frequentemente da filosofia de Tchekov, de Kafka, de Musil etc. Mas tente tirar uma filosofia coerente de seus escritos! Mesmo quando exprimem diretamente suas ideias, em seus apontamentos, estas são mais exercícios de reflexões, jogos de paradoxos, improvisações que a afirmação de um pensamento (KUNDERA 1988, p.73).

Mesmo quando o romancista e ensaísta tcheco usa alguns de seus personagens para abordar temas filosóficos, sua crítica encerra de modo coerente as características propostas por ele para o jogo de reflexão romanesco: não há afirmações taxativas, mas somente questionamentos e proposições que admitem e enfatizam a relatividade essencial do conhecimento humano. Exemplo disso, é extraído do romance kunderiano mais conhecido, A insustentável Leveza do Ser:

O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?

O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida que vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplendida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não tem o menor sentido. [...] Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos aparecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade.

Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer veredicto (KUNDERA, 1985, p. 9-10).

Como é possível notar, Kundera (1988, p. 76) pratica como romancista aquilo que defende como ensaísta, visto que concebe o romance como “[...] uma meditação sobre a existência vista através de personagens imaginários”. Em conformidade com tal primado, ele continua sua investigação existencial não para promover um aprofundamento acerca do referido tema filosófico, mas para mobilizar mais elementos paradoxais que sirvam de preâmbulo para a tessitura de seu romance.

Em outro ensaio, constante no livro A cortina, o romancista tcheco amplifica a problemática expressa acima, ao ponderar também que:

O imperativo que exorta o romancista a “concentrar-se no essencial” (naquilo que “só o romance pode dizer”) não daria razão àqueles que que recusam as reflexões do autor como um elemento estranho à forma do romance?  Na verdade, se um romancista recorre aos meios que não são propriamente seus, pertencentes mais aos erudito e ao filósofo, não poderia ser mais um sinal de sua incapacidade de ser plenamente romancista e só romancista, um sinal de fraqueza artística? E mais: não há o risco de as intervenções meditativas transformarem as ações dos personagens numa simples ilustração das teses do autor? E ainda: a arte do romance, com o seu sentido da relatividade das verdades humanas, não exige que a opinião do autor permaneça escondida e que toda reflexão seja reservada apenas ao leitor? (KUNDERA, 2006, p. 67-68).

Na concepção kunderiana, a resposta para tais digressões encerra a possibilidade de considerar a existência de uma categoria por ele denominada como “romances que pensam” (KUNDERA, 2006, p. 67) e que consistiriam em exercícios investigativos em torno de um “enigma existencial”. Em outras palavras, trata-se de fazer adentrar o pensamento na trama romanesca: como um hipotético moto-contínuo que trabalha sem cessar, visto que não se limita ao pensamento ou ações dos personagens para sondar a miríade de possibilidades da existência humana. Nesse ponto, convém destacar que embora algumas narrativas no interior dos romances dialoguem diretamente com a filosofia, não se trata do mesmo tipo de sofisticação conceitual encontrada na reflexão teórica ou da crítica filosófica. Sob determinado aspecto, a digressão romanesca usufrui de uma liberdade mais abrangente do que a filosófica porque não parte de nenhum sistema de ideias prévio para exarar verdades ou analisar situações humanas hipostasiadas na vida dos personagens. A despeito dessa diferença, as ferramentas romanescas, usadas para investigar a relatividade essencial das coisas humanas e fazer avançar imaginativamente a realidade para além das fronteiras do verossímil, também são sofisticadas e diversificadas, visto que podem assumir as seguintes formas: “[...] metafórica, irônica, hipotética, hiperbólica, aforística, engraçada, provocadora, fantasista” (KUNDERA, 2006, p. 69).

É nesse sentido que o romancista e ensaísta tcheco afirmara em uma obra anterior, Os testamentos traídos, que a moral do romance é a suspensão da moralidade, pois no âmbito romanesco devemos refrear a perniciosa avidez teórica de julgar, classificar, explicar, definir e hierarquizar, visto que tais obsessões são diametralmente opostas “ao universo da relatividade romanesca” (KUNDERA, 1994, p. 25). Posteriormente, na sua última coletânea de ensaios, na obra Um encontro, os romances são definidos de modo mais direto e abrupto como indagações existenciais (KUNDERA, 2013, p. 23).

De modo geral, as reflexões críticas e estéticas de Milan Kundera em torno da peculiaridade da arte do romance convergem num ponto: investigação do romance em torno da existência humana mantém uma densa e tensa relação com a filosofia, alternando aproximações e distanciamentos: seja na busca de inspiração em seus temas, na antecipação de alguns de seus principais conceitos e na anuência ou confrontação de ideias filosóficas. Tais elementos podem ser verificados com regularidade em boa parte da sua tetralogia ensaística, composta pelas obras: A arte do romance (1988), Os testamentos traídos (1994), A cortina (2006) e Um encontro (2013).

A predileção por temas filosóficos, de forma direta ou indireta, também aparece nos contos do ficcionista argentino Jorge Luis Borges. Tanto Ficções (1972) quanto O livro de areia (2012) apresentam algumas menções, digressões e reflexões em torno de algumas ideias filosóficas que, sob pretexto de terem sido estudadas ou ensinadas por algum personagem, acaba servindo para a composição de importantes paradoxos. Em outras palavras, Borges (1972; 2012) enfatiza temas da metafísica, do ceticismo, do idealismo e do empirismo, não apenas para compor um contexto de seus contos fantásticos, mas também, para fazer breves elucubrações sobre tais tópicos. Exemplos disso são os contos “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” que enigmaticamente consegue transitar de forma aparentemente simples de Meinong, Spinoza, Schopenhauer e Berkeley para abordar as complexidades epistemológicas presentes nas concepções filosóficas do monismo, idealismo, materialismo dialético e niilismo; já em “A loteria da babilônia”, surgem os nomes de Heráclito, Pitágoras e Pirro; sobre a história “A biblioteca de Babel”, o prólogo provocativamente insinua que Aristóteles pode ter sido um de seus autores precursores; já Vico e Hegel aparecem no “Tema do traidor e do herói” (BORGES, 2012). E também os contos: “O outro”, no qual menciona Heráclito; “Utopia de um homem que está cansado”, na qual cita a Suma teológica de Aquino e também a Utopia de More; além de “There are more things”, em que o nome de Berkeley aparece novamente (BORGES, 2012). Além disso, os estoicos são mencionados com reverência no ensaio “25 de agosto de 1983” (BORGES, 2011).

Nessa perspectiva, é possível evidenciar a partir dos exemplos mencionados que, assim como Kundera, a escrita do contista argentino procura, em certa medida, provocar a filosofia a ir além das cercanias acadêmicas ao evidenciar a relevância de sua presença no mundano e trivial cotidiano de seus personagens.

De volta à abordagem kunderiana, na sequência, temos a conexão do tema filosófico nietzschiano com outro tema clássico da filosofia grega antiga, extraído da ontologia parmenidiana. Ele continua:

[...] cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza. Isso é o que fazia com que Nietzsche dissesse que a ideia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre este pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplendida leveza.

Mas, na verdade, será atroz o peso e a beleza a leveza?

O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. [...] O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.

Por outro lado, a ausência total do fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancia da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.

Então, o que escolher? O peso ou a leveza?

Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. [...] Essa divisão em polos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Menos em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza? Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão? Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições (KUNDERA, 1985, p. 10-11).

Na digressão que Kundera (1985) faz acerca da tensão entre o peso e a leveza essencial das coisas humanas, não temos a pretensão acadêmica de situar teoricamente a discussão para, em seguida, oferecer uma alternativa para o problema descrito. Pelo contrário, a sutil escolha dos elementos filosóficos contrastantes mencionados serve para o propósito específico de aguçar a percepção do problema. Problema esse que, não obstante, além de dar título à referida obra kunderiana, também perpassará boa parte das intensas vicissitudes vivenciadas pelos protagonistas do romance. Nesse sentido, posteriormente, os principais personagens do referido romance, Tomas, Teresa, Sabina e Franz serão utilizados como egos experimentais do autor para exprimir suas reflexões sobre a existência humana. Tal recurso gnosiológico de investigação e problematização, como admoesta o próprio autor, também é usado no contexto de seus demais romances, sempre que a incursão de um personagem nos domínios de um tema existencial fez-se necessária (KUNDERA, 1988).

A concordância do filósofo neopragmatista Rorty em relação a Kundera é atestada pelo fato declarado dos ensaios do romancista tcheco terem servido de inspiração para a proposição da sua filosofia literária (RORTY, 1994; SILVA, 2018). Todavia, antes mesmo da formulação e proposição dessa nova arena filosófica, o neopragmatista norte-americano exara a relevância da sabedoria romanesca tanto para a moralidade quanto para a própria existência humana. Ele escreve:

Uma sociedade que tenha retirado seu vocabulário moral dos romances, ao invés dos tratados onto-teo-lógicos ou ôntico-morais, não colocaria para si mesma questões sobre a natureza humana, sobre o cerne da existência humana, ou sobre o significado da vida humana. Ao contrário, ela se perguntaria o que nós podemos fazer para prosseguirmos uns com os outros, como nós podemos arranjar as coisas para nos sentirmos confortáveis uns com os outros, como as instituições podem ser alteradas de modo que o direito de cada um de ser entendido tenha uma melhor chance de ser satisfeito? (RORTY, 1999, p.109).

Além de Milan Kundera, Rorty também evoca nos seus escritos algumas ideias de Harold Bloom. Assim, considerando as ocasiões em que Rorty (2006; 2009) cita Shakespeare favoravelmente, é provável que ele concordasse com Bloom a respeito da capacidade singular do poeta inglês em criar egos experimentais modelares, tanto para serem seguidos quanto para serem evitados, como o obcecado Hamlet, o ardiloso Iago e os românticos Romeu e Julieta. Para Bloom, Platão tenta inutilmente concorrer com Homero. E, a julgar pela sua entusiástica defesa da poesia, até hoje, na sua acepção, a filosofia tenta inutilmente concorrer com a literatura. O crítico literário afirma:

Deixemos de lado o Timeu e as Leis. Poderá o leitor comum, agora e sempre, absorver mais sabedoria junto à República e ao Banquete do que junto à Ilíada e à Odisséia? Será que Hume e Wittgenstein nos fazem mais sábios do que Hamlet e Rei Lear? Em busca de sapiência, devo reler (com grande relutância) Foucault, a respeito do poder e do despotismo, ou a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido? Tais perguntas são absurdas: é inútil tentar competir com Homero, Shakespeare e Proust, a não ser que você seja um Ésquilo, um Cervantes e um Joyce. Platão é singular entre os filósofos porque, conforme disse Emerson, “registrou direitos autorais sobre o mundo”. Mas Homero é o mundo, e ninguém pode sobre ele deter direitos autorais (BLOOM, 2005, p. 70-71).

Na digressão histórico-literária de Bloom, a distância que separa a filosofia da literatura, no quesito sabedoria, é abissal. Isto porque, para ele, há uma nítida distinção entre a sabedoria cerceada pelos limites do maravilhoso (a imaginação) e a sabedoria cerceada pelos limites da razão. Na perspectiva bloominiana, diferentemente da filosofia que seria “um exercício preparatório do saber”, a alta literatura de Shakespeare, Homero, Dante, Cervantes, Milton, Tolstoi e Proust logra êxito na obtenção do que deseja – a sabedoria – porque seu objetivo não é pautado por uma normativa transcendente: a literatura não cede à tentação de estipular uma linha divisória entre o real e a cópia do real (BLOOM, 2005, p. 73). Se o fizesse, Bloom acredita que nem o próprio Platão ousaria dizer que Hamlet é uma cópia de uma cópia em vez de essencialmente real. Acreditamos que Rorty veja com simpatia, tanto esse arroubo anti-platônico quanto a obsessão por Shakespeare, uma vez que a leitura canônica de Bloom, que exalta o dramaturgo inglês é considerada pelo neopragmatista como um convite aos discordantes a formularem seus próprios e idiossincráticos cânones e os inserirem na disputa.

Bloom afirma que é possível encontrar a sabedoria nos textos religiosos, na alta literatura e na filosofia. Todavia, a sapiência poético-literária é sempre superior à filosófica, como ele deixa transparecer na seguinte passagem:

Escritores sapienciais, raramente, são filósofos: Montaigne e Bacon, Johnson e Goethe, Emerson e Nietzsche, Freud e Proust, não são Descartes e Hobbes, Spinoza e Leibniz, Hume e Kant, Hegel e Wittgenstein. A antiga contenda entre poesia e filosofia jamais terá fim, e a literatura sapiencial é mais poética do que filosófica. Platão, o único filósofo que pode competir com Homero, Shakespeare e Dante, está em uma categoria à parte [...] (BLOOM, 2005, p. 239).

Aqui é preciso mencionar que, estranhamente, os clássicos gregos e latinos da antiguidade estão ausentes da obra de Bloom, já que nenhuma menção é feita a autores como, por exemplo, Cícero, Lucrécio e Sêneca. Acerca disso, como contraponto, seria interessante comparar alguns dos temas sapienciais tratados no livro de Bloom, na perspectiva de Sêneca (1973). Todavia, como excede o escopo temático desse texto efetuar tal comparação, continuaremos nossa abordagem a partir dos autores que efetivamente foram mencionados pelo crítico literário.

Embora Montaigne tenha criado o gênero literário ensaio e cultivasse a sabedoria clássica dos gregos e latinos antigos, o único filósofo que poderia ser alçado à condição de poeta-forte, seria Nietzsche. Talvez porque Bloom (2005, p.248), assim como Rorty, admire a capacidade do filósofo alemão de “apreciar a sua própria contingência” e a contingência de sua própria linguagem, como Nietzsche expressa em sua célebre descrição da verdade, no texto Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (1873):

O que é a verdade portanto? Um batalhão de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível [...] (NIETZSCHE, 1974, p. 56).

Consideramos que Rorty (1994) aprecia tal passagem porque ele vê na metáfora uma boa substituta para a verdade, pois ela nada representa já que não tem um lugar prévio e definido na linguagem. Bloom, por sua vez, considera simplesmente as metáforas mais saudáveis para a “afirmação da verdade” do que as preces e a crenças (BLOOM, 2005, p. 236). Embora ele nada diga em defesa dessa sua opção, seu comentário seguinte, mostra-se favorável à argumentação de Rorty (1998) sobre a questão da autocriação a partir do valor inspirador das grandes obras literárias, visto que o crítico literário acredita que quem “se dispõe a ser poeta da sua própria vida, deve, na melhor das hipóteses, compartilhar o saber dos poetas-fortes, e não dos filósofos, teólogos, psicólogos ou políticos” (BLOOM, 2005, p. 249).

CONCLUSÃO

Consideramos que a principal dificuldade subjacente ao tópico da discussão referente à secular relação entre a filosofia e a literatura pode ser descrita como uma questão de ordem teleológica. Isso porque, quando tratamos de evidenciar a necessidade de uma finalística, isto é, de uma meta ou propósito final para qualquer disciplina ou área do conhecimento humano, esbarramos no obstáculo conceitual da própria filosofia que, por definição, é teorética e não prática. Isso é importante destacar porque Bloom (2005), em conformidade com a sua concepção de literatura sapiencial, contrasta o conhecimento oriundo da literatura e da filosofia, conferindo ao último uma posição hierarquicamente inferior em relação a primeira. Nos termos definidos por ele, é lícito exigir dos textos filosóficos uma finalidade prática, tal qual aquela vislumbrada por ele nos textos literários. Em consonância com tal noção, embora haja tipos de conhecimento proporcionados por ambas as áreas, somente pode ser considerado sapiencial aquele tipo de conhecimento que tem algum tipo de aplicabilidade prática na vida humana. Acerca desta distinção entre conhecimento e sabedoria, especificamente, não há como contrapor argumentos.

Todavia, podemos assumir uma posição menos deletéria para o legado filosófico, como faz Kundera (1988), que minimiza a fronteira entre as contribuições literárias e filosóficas ao sustentar que o romance, por exemplo, assumiu na modernidade os temas existenciais que a filosofia abandonou. Na sua interpretação, não há hierarquia entre um campo e outro, mas apenas funções e abordagens diferentes sobre temas comuns. Trata-se de temas compartilhados porque, tanto a filosofia quanto a literatura proporcionam uma compreensão melhor das coisas humanas: pensamentos, sentimentos, emoções, ações, desejos, medos e esperanças, dentre outros assuntos. Em tais casos, a proposta kunderiana sustenta que a intrincada e densa investigação filosófica não consegue obter os mesmos resultados que a fértil imaginação romanesca. Isso porque os aportes teóricos filosóficos cumprem uma função lógica e discursiva, diferentemente das narrativas dos romances, que não tem a finalidade de encontrar definições e verdades. Ao privilegiar o relativismo e a incerteza, gêneros literários como o romance e o conto contribuem para o propósito poético e estético de criar novos mundos e encontrar beleza nas suas mais diversas nuances, ainda que isso seja incompreensível para determinadas épocas e imperceptível para algumas pessoas. E isso ocorreria mediante o uso de egos experimentais que, ao exprimir uma questão filosófica de forma emblemática, seja como angústia ou convicção dos personagens, contribui para um propósito real maior, tanto no sentido de autotransformação dos seus leitores quanto na possibilidade de vislumbrar mudanças cruciais de alguns aspectos da sociedade.

Tal imaginativa capacidade literária, particularmente cultivada nos romances, é definida por Rorty (1994) como uma virtude mais abrangente do que os textos filosóficos possuem. Ele exara que os romancistas são melhores do que os filósofos na atividade de oferecer detalhes imaginativos e sensíveis sobre os tipos de coisas que necessitamos saber para compreender melhor as complexas relações que estabelecemos com nós mesmos, com os outros e com o mundo. Nesse sentido, a perspectiva rortyana não concebe a necessidade de estender indefinidamente a discussão entre um suposto conflito entre a filosofia e a literatura. Para o filósofo neopragmatista, tanto a filosofia quanto a literatura são elementos necessárias e relevantes da cultura humana; e, em alguns momentos, é extremamente dificultoso tentar distinguir uma produção literária de uma filosófica, e vice-versa. Exemplos desse tipo residem na própria noção bloominiana de literatura sapiencial, que abarca Shakespeare e Nietzsche; na relativa indistinção entre filósofos e literatos nos escritos borgianos, particularmente, nos imaginativos e intrigantes contos fantásticos; na definição kunderiana de sabedoria da incerteza, que contempla Cervantes e Descartes como fundadores da modernidade; e a própria noção rortyana de filosofia como gênero literário. Desse modo, contrariamente à proposta bloominiana, não faz sentido hierarquizar o contributo de ambas, visto que se trata de ferramentas igualmente pertinentes para a investigação e compreensão das grandes questões da humanidade.

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Heraldo Aparecido Silva

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor Associado vinculado ao Departamento de Fundamentos da Educação (DEFE/CCE/UFPI). Membro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL/CCHL/UFPI).

 

 

 

 

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