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OS FUNDAMENTOS DA ÉTICA DA TERRA E O PROBLEMA DO ECOFASCISMO

THE FOUNDATIONS OF THE LAND ETHIC AND THE PROBLEM OF ECOFASCISM


André Luiz Lima Cardoso

0000-0003-3166-3168

andrell.cardoso96@gmail.com

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

 

Recebido: 10/03/2023

Received: 10/03/2023

 

Aprovado: 01/06/2023

Approved: 01/06/2023

 

Publicado: 08/06/2023

Published: 08/06/2023

 

RESUMO

Pretendemos apresentar aqui os fundamentos da ética da Terra, como defendida por Leopold e Callicott, e como a ética da Terra pode lidar com o problema do ecofascismo. Nossa discussão se dividirá em três momentos. No primeiro momento, explicitaremos os pressupostos evolutivos que dão sustentação para a ética da Terra, mais especificamente, a tese de que a moralidade possui sua origem na forma com que nós, mamíferos sociais, nos adaptamos e evoluímos. No segundo momento, discutiremos as bases da teoria normativa da ética da Terra, em especial, o valor intrínseco da Terra e o caráter holista da ética da Terra. Por fim, trataremos das implicações práticas da ética da Terra, com foco na objeção do ecofascismo.

Palavras-chave: Ética da Terra. Valor Intrínseco. Holismo. Ecofascismo.

ABSTRACT

We intend to present here the foundations of Land Ethic, as defended by Leopold and Callicott, and how Land Ethic can deal with the problem of ecofascism. Our discussion will be divided into three moments. At first, we will explain the evolutionary assumptions that support the Land Ethic, more specifically, the thesis that morality has its origin in the way in which we, social mammals, adapted and evolved. In the second moment, we will discuss the foundations of the normative theory of Land Ethic, in particular, the intrinsic value of the Land and the holistic character of the theory. Finally, we will address the practical implications of Land Ethic, focusing on the ecofascism objection.

Keywords: Land Ethic. Intrinsic Value. Holism. Ecofascism.

INTRODUÇÃO

A ética da Terra foi esboçada por Aldo Leopold em um pequeno ensaio homônimo, presente no livro A Sand County Almanac (1949). Neste texto, Leopold defende que a ética está sujeita a um processo de evolução, no qual em cada etapa da sequência a comunidade moral é expandida. Segundo o autor, a próxima etapa nessa evolução natural é a inclusão da comunidade biótica como pertencentes à comunidade moral. Dessa maneira, a ética da Terra defende que devemos considerar moralmente os solos, as águas, as plantas e os animais, ou coletivamente: a Terra (LEOPOLD, 1949, p. 172).

De acordo com Leopold, devemos considerar moralmente a Terra, isto é, a comunidade biótica, porque ela possui valor em si mesma e não por alguma relação de utilidade para com os seres humanos. Devemos preservar a comunidade biótica não porque isso seria algo bom para nós, ou porque nos traria alguma vantagem econômica, mas porque ela é detentora de um valor intrínseco. É este valor intrínseco da Terra que guia a ética da Terra, estabelecendo o critério que distingue o certo e o errado. Segundo Leopold, “Algo é certo quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica, Algo é errado quando tende ao inverso” (LEOPOLD, 1949, p. 189).

É importante observarmos que a ética da Terra defende que aquilo que possui valor intrínseco é a comunidade biótica enquanto coletivo, portanto, o valor dos indivíduos que a compõem é relativo ao valor da comunidade como um todo (SANDLER, 2018, p. 243). Dessa maneira, a consideração moral que devemos ter com os organismos individuais, depende de como isso pode promover a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica (LEOPOLD, 1949, p. 189). Isso implica que, se for pelo bem da Terra, é permitido o controle populacional dos indivíduos que a formam. Por exemplo, caso uma espécie esteja prejudicando um ecossistema, nós devemos diminuir sua população, até que a estabilidade do ecossistema seja retomada. Entretanto, esta consequência da ética da Terra pode ter desdobramentos desfavoráveis para a teoria.

Segundo os críticos da ética da Terra, como Schrader-Frechette e Tom Regan, o caráter holista da teoria implica que o valor dos seres humanos é também relativo ao bem que proporcionamos à comunidade biótica e, se for pelo seu bem, estamos justificados a realizar um controle populacional, com o fim de preservar a Terra (SHRADER-FRECHETTE, 1996, p. 63). Essa aparente implicação levou a objeção de que a ética da Terra seria um tipo de ecofascismo. Tal como os movimentos fascistas consideravam que o valor do indivíduo era relativo à sua contribuição para a nação, a ética da Terra consideraria que o valor do indivíduo é relativo ao bem da comunidade biótica (REGAN, 1983, p. 262). Dessa maneira, o caráter holista da ética da Terra negaria o valor intrínseco dos indivíduos, o que poderia ter consequências práticas extremamente condenáveis.

Com essa breve introdução, proponho que nossa discussão se dê em três momentos. No primeiro, explicaremos porque Leopold considera que a ética está sujeita a um processo evolutivo, no qual o próximo estágio de sua evolução se daria com a inclusão da comunidade biótica em nossas considerações morais. Além disso, explicaremos o que é a comunidade biótica propriamente e porque o nosso dever para com ela é o de preservação. No segundo, trataremos dos pressupostos que fundamentam a teoria normativa da ética da Terra, mais especificamente, o valor intrínseco da Terra e o caráter holista da ética da Terra. Estes dois pressupostos sustentam a tese de que a comunidade biótica é a entidade que possui um valor em si mesma, e todos os indivíduos que a formam possuem valor relativos ao valor da comunidade como um todo. Por fim, no terceiro momento, abordaremos as consequências práticas da ética da Terra. Daremos atenção especial ao problema do ecofascismo, isto é, a implicação de que, se é pelo bem da comunidade biótica, nós não só estamos justificados, mas devemos eliminar boa parte da população humana global.

AS ORIGENS EVOLUTIVAS DA ÉTICA

Segundo Leopold, nós podemos definir a ética de duas maneiras, ecologicamente e filosoficamente. Para a ecologia, a ética é uma limitação na liberdade de ação na luta pela existência. Para a filosofia, a ética é a diferenciação da conduta social e a anti-social (LEOPOLD, 1949, p. 172). Dessa maneira, ao instituir a conduta social, a ética estabelece limites nas ações dos indivíduos de um grupo. Com isso, os integrantes desse grupo estabelecem e se sujeitam à limitação em sua liberdade pela sobrevivência, pelo bem do todo e pela própria segurança.

Leopold defende a tese de que a ética possui sua origem na tendência de indivíduos e grupos interdependentes utilizarem de modos de cooperação como uma das principais ferramentas de sobrevivência e evolução. Ecologistas denominam esse tipo de comportamento como simbiose, isto é, a cooperação derivada da interdependência das partes. Nessa perspectiva, atividades humanas como a política e a economia são formas avançadas de simbiose, em que a competição do mais forte é substituída, ao menos em parte, pelos mecanismos de cooperação estabelecidos pela ética (LEOPOLD, 1949, p. 172).

De acordo com o filósofo, o pensamento ético ao longo da história da humanidade passou por um processo evolutivo, com dois momentos marcantes. No início a ética lidava com a relação entre indivíduos, tal como os Dez Mandamentos de Moisés. Em um segundo momento a ética lidou com a relação entre indivíduo e sociedade. A Regra de Ouro é a tentativa de integração do indivíduo para com a sociedade; já o sistema político democrático é a integração da organização social ao indivíduo. No entanto, há ainda um terceiro passo a ser dado na ética, no qual devemos lidar com a relação entre seres humanos e a Terra.

Para Leopold, a inclusão da comunidade biótica em nossas considerações morais não é só uma possibilidade evolutiva, mas também uma necessidade ecológica (LEOPOLD, 1949, p. 173). É uma necessidade porque a magnitude com que a espécie humana pode afetar a comunidade biótica é algo completamente diferente do impacto que outras espécies podem ser capazes. Precisamos considerar a comunidade biótica moralmente tanto pelo seu valor intrínseco, quanto pela sobrevivência de nossa própria espécie.

Gostaria de explicitar agora as referências teóricas pelas quais Leopold fundamenta sua perspectiva sobre a ética e seu caráter evolutivo. De acordo com Callicott, a principal referência teórica que fundamenta a ética da Terra proposta por Leopold é a própria teoria da evolução de Darwin, em especial suas considerações apresentadas na obra Da descendência do Homem (1871).

De acordo com a teoria da evolução, a seleção natural ocorre a partir da seleção dos indivíduos mais aptos a sobreviver. No entanto, como a ética pode ser vantajosa evolutivamente se, por definição, ela limita a aptidão individual para a luta pela sobrevivência? Temos a concepção comum de que na natureza a lei é a “sobrevivência do mais forte”, é matar ou ser morto. Nessa concepção comum da teoria da evolução, na competição entre os indivíduos éticos e os egoístas, os últimos seriam mais aptos a sobreviver e passar seus genes adiante, e os primeiros seriam superados. Para que a ética seja explicada através do mesmo processo de seleção natural que determina outros comportamentos, é preciso explicar como os sentimentos sociais e, consequentemente, os éticos, podem ser vantajosos para a sobrevivência de uma espécie.

Segundo Darwin, a resposta é de que para várias formas de vida, e especialmente para a espécie humana, a luta pela sobrevivência é mais eficiente ao batalhar coletivamente e cooperativamente do que como indivíduos competitivos. Um hominídeo sozinho é muito frágil quando comparado com outros animais. Porém, ao se organizarem como um grupo, são capazes de se proteger e caçar presas que não conseguiriam sozinhos. Surgem então as primeiras sociedades primitivas, compostas por grupos pequenos de indivíduos. No entanto, se o comportamento egoísta fosse mantido, essas sociedades não poderiam se manter, sendo necessário algum tipo rudimentar de ética para sua preservação.

Para Darwin, as relações parentais e a afetividade com a prole formavam essa ética rudimentar, os sentimentos sociais advindos dessa relação era o que sustentava esses pequenos grupos (DARWIN, 2005, p. 81). Porém, Darwin considerou que, caso esses laços afetivos se estendessem além dos limites familiares, então a comunidade poderia crescer. E, caso essa nova e maior comunidade fosse mais bem sucedida em defender e sustentar a si mesma, então essa característica social poderia ser passada adiante. Com isso, os instintos sociais e altruístas poderiam se expandir do grupo familiar para comunidades maiores, reforçando a cooperação entre as partes.

Apesar de os sentimentos sociais possibilitarem a vida em comunidade, eles ainda não são, em si mesmos, a própria ética. Isto porque a ética é um conjunto de regras de comportamento, ou um conjunto de princípios que governam os comportamentos (CALLICOTT, 1999, p. 62). Para a ética da Terra, os sentimentos sociais, ou morais, são na verdade, o fundamento da ética.[1] Durante sua evolução, além dos sentimentos e instintos sociais, a espécie humana desenvolveu um alto nível de raciocínio, imaginação e uma linguagem simbólica diversa da de outros animais. Por conta dessas características, os seres humanos são capazes não só de reprovar comportamentos antissociais em um nível emocional, mas também de os representar e articular regras que definem os comportamentos a serem elogiados ou reprovados, o que chamamos hoje de regras morais.

Podemos afirmar que a teoria evolutiva de Darwin nos fornece uma explicação de como o comportamento ético pode ser vantajoso para a sobrevivência da espécie e, por isso, ser um comportamento sujeito à seleção natural. A ética surge como conjunto de regras que propiciam a vida em sociedade e condena aquilo que prejudica esse estilo de vida. Diferentemente de capacidades físicas que estimulam a sobrevivência através da própria força, as capacidades sociais possibilitaram a sobrevivência através da cooperação entre os indivíduos de um grupo. Por conta da racionalidade, imaginação e linguagem simbólica que a espécie humana possui, fomos capazes de articular o pensamento ético em um nível emocional e racional, o que possibilita a consideração moral de grupos que vão além do círculo afetivo mais próximo, como família e amigos.

Além de uma teoria sobre a origem da ética, Darwin e, após ele, Leopold, defendem que a teoria da evolução pode também nos explicar o desenvolvimento da ética. Segundo os autores, o desenvolvimento da ética é coextensivo ao desenvolvimento das sociedades, conforme há o alargamento das sociedades, também ocorre uma extensão da ética.

Na competição por recursos que ocorre entre grupos sociais humanos, os maiores e mais bem organizados irão superar os menores e mais desorganizados. Com mais recursos, esses grupos sobreviventes poderão crescer em tamanho e complexidade. Do crescimento dos grupos familiares surgem os clãs, dos clãs se formam as tribos, das tribos se originam as nações e, eventualmente, das nações surgem as repúblicas. Darwin defende que, conforme há o crescimento da sociedade, há também a extensão das considerações morais para incluir o novo grupo. Segundo o naturalista:

Conforme a humanidade avança enquanto civilização, e pequenas tribos são unidas em comunidades maiores, a simples razão diria ao indivíduo de que ele deve estender seus instintos sociais e simpatia para com todos os membros da mesma nação, ainda que não os conheça pessoalmente. Chegado esse ponto, há somente uma barreira artificial que impede sua simpatia de se estender para os homens de todas as nações e raças (DARWIN, 2005, p. 100).

Darwin considera ainda que as nossas considerações morais tendem a incluir não só todos os seres humanos, mas todos os seres sencientes (DARWIN, 2005, p. 100). O naturalista considera que com o tempo, a consciência e prática moral de alguns indivíduos são passadas para as gerações futuras através da educação e do exemplo e, conforme se disseminam, são incorporadas pela opinião pública.

O que Leopold faz ao esquematizar a ética da Terra é incluir um elemento normativo nas considerações de Darwin sobre a origem e desenvolvimento da ética (CALLICOTT, p. 1999, p. 66) Leopold defende que a tendência evolutiva da ética é a consideração não só de todos os seres sencientes, mas de toda a comunidade biótica, incluindo também os solos e rios. Com a inclusão da Terra na comunidade moral o próprio lugar do ser humano nessa comunidade muda. A humanidade deixa de ser um conquistador da Terra, para ser seu membro e cidadão (LEOPOLD, 1949, p. 174) Ou seja, através da ética da Terra nós deixamos de nos entender como algo distinto da natureza, para nos compreendermos enquanto parte integrante da comunidade biótica.

A COMUNIDADE BIÓTICA E NOSSO DEVER PARA COM ELA

A ética da terra propõe que algo é certo quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. No entanto, precisamos esclarecer exatamente o que é a comunidade biótica e porque nosso dever é o de preservar sua integridade, estabilidade e beleza. Dessa forma, precisamos explicar por que são essas as características a serem promovidas e qual é nosso papel enquanto seres humanos.

Segundo Callicott, o conceito de comunidade biótica foi desenvolvido por Charles Elton, como um modelo de trabalho para a ecologia. De acordo com essa noção, a natureza é organizada como uma complexa sociedade na qual cada animal e planta ocupa um certo “nicho” ou “profissão” na economia da natureza (CALLICOTT, 1987, p. 194). É através desse conceito que Leopold irá conectar a expansão evolutiva da ética e a integração da Terra em nossas considerações morais. Leopold sugere que para entendermos a natureza de uma perspectiva ecológica, ou seja, como funciona a comunidade biótica, podemos utilizar da imagem de uma pirâmide biótica. Segundo o filósofo:

Plantas absorvem energia do Sol. Essa energia flui através de um circuito chamado biota, que pode ser representado por uma pirâmide com vários níveis. O nível inferior é o solo. O nível das plantas está em cima do solo, o nível dos insetos em cima das plantas, o nível das aves e roedores em cima dos insetos, e assim através de vários grupos de animais, até chegar no nível do topo, que consiste nos grandes carnívoros (LEOPOLD, 1949, p. 182).

O elemento em comum que conecta toda a pirâmide é a energia e seu fluxo, já o que conecta as várias espécies que estão em cada nível da pirâmide não é sua aparência, ou de onde vem, mas aquilo que comem. Cada nível depende do nível anterior como fonte de alimento e acaba sendo o que alimenta o nível subsequente, até o topo da pirâmide. Seguindo uma linha ascendente, cada nível subsequente diminui em quantidade numérica, ou seja, há muito mais plantas do que insetos, mais insetos do que pássaros e roedores e assim por diante, até chegar ao topo da pirâmide.

Essas linhas de dependência alimentar são chamadas de cadeias alimentares, por exemplo, a cadeia que liga solo-milho-vaca-homem. Todos os animais fazem parte de inúmeras cadeias alimentares, incluindo nós. A pirâmide biótica é constituída de cadeias extremamente complexas, mas é incrivelmente estável, o que prova que é uma estrutura altamente organizada. Seu funcionamento depende da cooperação e competição de suas várias partes (LEOPOLD, 1949, p. 182). É exatamente essa complexidade das cadeias alimentares que permite a estabilidade da pirâmide biótica, sem ela provavelmente a velocidade e maneira com que a energia flui dentro do sistema não aconteceria.

De acordo com Leopold, a Terra não é somente um solo, mas uma fonte de energia que flui através de um complexo circuito de solos, plantas e animais (LEOPOLD, 1949, p. 182). As cadeias alimentares são o que conduz a para os níveis superiores; a morte e decomposição são o que retornam a energia para o solo. Porém, o sistema não é fechado, alguma energia é perdida, alguma é adicionada, mas o sistema sustenta a si próprio em condições normais.

Quando mudanças ocorrem em partes do sistema, outras partes acabam se adaptando para que o fluxo de energia continue. Mudanças não necessariamente obstruem ou mudam a rota em que a energia flui. O processo evolutivo das espécies é construído a partir dessas mudanças no fluxo de energia. No entanto, enquanto as mudanças evolutivas são, usualmente, lentas e locais, as mudanças causadas por intervenção humana são sem precedentes em sua violência, rapidez e extensão.

No curso natural da evolução, a extinção de espécies ocorre quando uma espécie é substituída por exclusão competitiva ou evolui de outra forma. Nesse processo usualmente o surgimento de espécies supera a extinção de outras. Porém, o impacto humano na Terra causa uma perda de diversidade biológica que não é substituída por novas espécies. Dessa maneira, as mudanças ambientais que causamos é errada não só pela sua rapidez e extensão, mas também pelo seu resultado: o empobrecimento da diversidade biótica (CALLICOTT, 1987, p. 204).

A invenção de ferramentas, em especial após as revoluções industriais, possibilitou que os seres humanos impactassem a comunidade biótica de uma forma nunca antes vista. As mudanças climáticas que estão ocorrendo no século XXI são prova da magnitude do impacto humano em nível global. O estado atual de consumo energético dos seres humanos, ou seja, o nosso consumo energético na pirâmide biótica, é simplesmente incompatível com a capacidade da comunidade biótica de se ajustar a essas mudanças no fluxo de energia, não sendo capaz de manter sua integridade, estabilidade e beleza.

O que a ética da Terra defende é que devemos ter uma relação de preservação com a natureza, ou seja, humanidade e Terra em um estado de harmonia. Por isso, o nosso dever moral para com a comunidade biótica é a sua preservação, ou seja, devemos promover o fluxo normal de energia através da pirâmide biótica. Segundo Callicott, promover o funcionamento adequado da pirâmide biótica é o summum bonum da ética da Terra (CALLICOTT, 1987, p. 204). O dever moral da preservação ocorre em três instâncias, que formam a máxima da ética da Terra.

Em primeiro lugar, devemos manter a integridade da comunidade biótica, ou seja, devemos manter a complexidade das partes que compõem a pirâmide. Importante salientar que a integridade diz respeito aos grupos que formam cada nível, e não aos indivíduos em si. Devemos preservar a existência do maior número de espécies possível, pois a complexidade da pirâmide biótica é o que a mantém. Porém, é preciso manter os grupos em um número de indivíduos que permita o fluxo normal de energia através dos vários níveis. Se uma espécie é extinta ocorre um bloqueio e uma alteração no fluxo de energia, o que pode ser prejudicial para a comunidade como um todo. No entanto, ao diminuirmos o número de indivíduos, tal como no caso de pragas, esse fluxo não é interrompido, somente a extensão com que a energia flui é modificada.

Em segundo lugar, devemos preservar a estabilidade da comunidade biótica, isto é, possuímos o dever de manter o fluxo de energia em condições normais. Por exemplo, se uma espécie não nativa é inserida em um local e acaba por se tornar uma praga, ela impede o fluxo normal daquele ecossistema.

Enquanto a integridade está mais ligada à diversidade das partes que compõem a comunidade biótica, a estabilidade diz respeito a quantidade de energia que cada nível da pirâmide biótica armazena. Portanto, promover a estabilidade da comunidade biótica é garantir que a estrutura da pirâmide biótica permaneça da forma usual, isto é, seguindo uma linha ascendente, cada nível subsequente diminui em quantidade numérica em relação ao nível anterior. A estabilidade da comunidade biótica é comprometida quando um nível superior possui uma quantidade numérica incompatível com o nível inferior. Espécies invasoras são um exemplo de como a estabilidade da terra pode ser comprometida.

Em terceiro lugar, devemos preservar a beleza da comunidade biótica. Este é um dever ético, mas relacionado a um critério estético, mas o que Leopold entende enquanto beleza não fica claro em seu texto. Ao formular a máxima da ética da Terra, Leopold nos diz: “Examine cada questão em termos do que é eticamente e esteticamente certo, assim como o que é vantajoso economicamente” (LEOPOLD, 1949, p. 189). Consideramos que há duas questões relacionadas à beleza que são importantes de serem mencionadas. Primeiro, a preservação da beleza permite justificar a preservação de solos e águas, ainda que a sua modificação não tenha impacto na parte viva da comunidade biótica. Segundo, em relação aos seres vivos, Leopold parece ligar o conceito de beleza e o conceito de diversidade, um ecossistema com diversidade ecológica é um ecossistema mais belo do que um sem uma grande variedade de espécies (LEOPOLD, 1949, p. 180).

O potencial das mudanças humanas na natureza é de uma velocidade e magnitude nunca antes vista na história, nossas ações e a forma atual com que nos relacionamos com a Terra são incompatíveis com a capacidade da comunidade biótica de manter o sistema em equilíbrio. Nossas ações podem impactar a comunidade biótica de formas irreversíveis, o que fundamenta a posição de Leopold de que a ética da Terra é uma necessidade ecológica (LEOPOLD, 1949, p. 173).

Dessa maneira, de acordo com a ética da Terra, possuímos o dever de preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. Isso implica que precisamos mudar a forma com que nos relacionamos moralmente com a Terra. Precisamos deixar de avaliar as coisas somente por um ponto de vista econômico, passando a levar em consideração nosso papel como cidadãos da comunidade biótica.

OS FUNDAMENTOS NORMATIVOS DA ÉTICA DA TERRA

Quando Leopold nos convida a considerar a Terra para além do valor econômico, ele nos convida a considerá-la não como um meio, mas como um fim em si mesmo. Devemos estabelecer aqui a distinção entre dois tipos de valor, o intrínseco e o extrínseco (instrumental)[2]. Algo possui valor intrínseco quando é valioso por si mesmo, independentemente de qualquer outro fator. Por exemplo, o conceito de dignidade humana de Kant é a ideia de que o ser humano possui um valor intrínseco, não podendo ser comparado ou quantificado. Já o valor instrumental de algo se refere a utilidade de algo para obtenção de um determinado fim. Por exemplo, o valor instrumental da comida é determinado por como ela aplaca a fome e favorece a saúde do indivíduo.

Por muito tempo, a cultura ocidental considerou a natureza somente pelo seu valor instrumental, como se a Terra existisse somente para saciar nossas necessidades e desejos. A ética da Terra defende que esse ponto de vista é equivocado e, com o tamanho do potencial de impacto humano na natureza, autodestrutivo (LEOPOLD, 1949, p. 174). Devemos considerar a comunidade biótica como algo que possui valor intrínseco, no qual a preservação da sua integridade, estabilidade e beleza é um fim em si mesmo. Segundo Leopold, somente ao considerarmos a comunidade biótica como valiosa em si mesma podemos estabelecer uma relação ética com ela (LEOPOLD, 1949, p. 188).

Uma relação ética com a Terra só pode ocorrer a partir da consideração do seu valor intrínseco, ou seja, o valor intrínseco é o que fundamenta a consideração moral. No entanto, podemos nos perguntar, o que justifica a atribuição de valor intrínseco a comunidade biótica? Segundo a ética da Terra, a justificativa é derivada do processo evolutivo da ética e das sociedades. Conforme as sociedades cresceram, a consideração do valor intrínseco dos integrantes dessas sociedades também se expandiu para adequar os novos integrantes. Seguindo a tese de que a ética acompanha a expansão das sociedades, em conjunto com o nosso reconhecimento enquanto parte da comunidade biótica, se segue que devemos expandir nossas considerações morais de modo a adequar o crescimento da sociedade da qual fazemos parte (CALLICOTT, 1987, p. 198).

Ao defender que a posição dos seres humanos deve ser de um cidadão da comunidade biótica, ou seja, como parte da comunidade biótica, Leopold também defende que isso implica em um respeito pelos outros membros, mas também pela comunidade em si (LEOPOLD, 1949, p. 174). A ética da Terra defende então que não são somente as entidades individuais que possuem valor, mas também entidades coletivas, como espécies, ecossistemas e a própria comunidade biótica. Dessa maneira, a ética da Terra possui um caráter holista em sua teoria moral.

De acordo com Galvão, uma teoria ética holista sustenta que o estatuto moral dos indivíduos depende do papel que desempenham na comunidade a que pertencem. Galvão diferencia as teorias holistas em duas categorias, um holismo moderado e um radical:

Holismo moderado: defende que o estatuto moral dos indivíduos depende parcialmente da sua contribuição para a comunidade biótica.

Holismo radical: defende que o estatuto moral dos indivíduos depende exclusivamente da sua contribuição para a comunidade biótica (GALVÃO, 2002, p. 02).

A menção de Leopold ao respeito com os outros membros da comunidade biótica pode nos levar a considerar a ética da Terra como um holismo moderado, pois separa a consideração moral com os membros e com a comunidade. No entanto, ao longo de seu ensaio, Leopold favorece muito mais a interpretação da ética da Terra como um holismo radical. Em torno do meio do seu ensaio, quando Leopold discute as pautas de conservação, ele não trata dos indivíduos, mas do “direito biótico” das espécies serem preservadas (LEOPOLD, 1949, p. 179). Além disso, a própria máxima moral não inclui os indivíduos, mas somente a comunidade biótica em si mesma. Dessa maneira, temos razões para considerar que a ética da Terra é uma teoria holista radical, na qual o estatuto moral dos indivíduos é determinado exclusivamente por seu papel na Terra (CALLICOTT, 1987, p. 196; GALVÃO, 2002, p. 3).

De acordo com Callicott, o holismo da ética da Terra é derivado do seu aspecto ecológico. A ecologia é o estudo das relações entre os próprios organismos e também com o ambiente (CALLICOTT, 1987, p. 200; 1999, p. 68). Antes da ecologia, a paisagem natural era vista como uma espécie de conjunto de objetos, no qual alguns eram vivos, outros conscientes, mas de qualquer modo, uma pluralidade de indivíduos separados. Com o desenvolvimento da ecologia, foi possível compreender a mesma paisagem como uma unidade articulada na qual os indivíduos não podem ser entendidos a não ser pelas suas relações com o todo.

Segundo o ponto de vista ecológico, não é a natureza dos organismos que define suas relações, mas o contrário, são as relações ecológicas que determinam a natureza do organismo. Uma espécie é de uma determinada forma porque ela precisou se adaptar a certo “nicho” no ecossistema. De acordo com Callicott, “o próprio sistema, literalmente e quase que diretamente, molda e forma seus próprios componentes'' (CALLICOTT, 1989, p. 200). Dessa maneira, a visão de mundo ecológica adotada pela ética da Terra leva à postura holista de suas considerações morais. De um ponto de vista ecológico, a comunidade biótica possui primazia ao espécime individual.

Conservacionistas, dentre os quais Leopold está incluso, estão preocupados com as entidades coletivas da comunidade biótica, como populações, espécies e ecossistemas, mas não com os espécimes individuais necessariamente (CALLICOTT, 1999, p. 68). Isso possui implicações na forma com que a ética da Terra é aplicada a casos práticos. Por exemplo, em muitos casos, a melhor forma de preservarmos uma espécie de planta em extinção é através da deliberada eliminação de seus principais predadores. Preservar a integridade da comunidade biótica usualmente requer a redução da população de algumas espécies, sejam elas nativas ou invasoras.

Lembremos que a comunidade biótica é uma pirâmide de fluxos de energia, que passam de um animal para o outro, até o topo da pirâmide. Nessa economia da natureza há “produtores” e “clientes”, presas e predadores. Podemos dizer que a integridade e estabilidade da comunidade biótica depende tanto da vida quanto da morte, ou ainda, que a vida de um depende necessariamente da morte de outro. Dessa maneira, para a ética da Terra, a morte de membros da comunidade não é incorreto prima facie. A incorreção dependerá de quem é morto, por quais razões e em que circunstâncias (CALLICOTT, 1999, p. 69).

Segundo a ética da Terra, a espécie humana é cidadã da comunidade biótica e, por isso, estamos sujeitos à mesma consideração holística que as outras espécies. Ou seja, o valor da espécie humana é relativo à nossa função na comunidade biótica (CALLICOTT, 1989, p. 327). Na pirâmide biótica, os seres humanos estão no nicho dos onívoros, tal como os ursos. Segundo Callicott, levando em conta a diferença de tamanho, a população humana deveria ser de, no máximo, o dobro da população dos ursos (CALLICOTT, 1999, p. 326). Para o filósofo, uma população de mais de 8 bilhões de indivíduos, e que não mostra sinais de diminuir, é incompatível com a capacidade da comunidade biótica de manter sua integridade, estabilidade e beleza.

O PROBLEMA DO ECOFASCISMO

Para os críticos da ética da Terra, dado o ponto de vista holista da teoria, e dado que os seres humanos não possuem nenhum estatuto moral relevantemente distinto das outras espécies, se o tamanho da população humana é prejudicial à comunidade biótica, então nós possuímos o dever moral de eliminar boa parte da população humana (AIKEN, 1984, p. 269). De acordo com Shrader-Frechette, “ao subordinar o bem-estar de todas as criaturas à integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica, o bem-estar humano individual também é subordinado, em todos os casos, ao bem-estar da comunidade biótica” (SHRADER-FRECHETTE, 1996, p. 63).

Por conta dessa aparente implicação da ética da Terra, Tom Regan denominou a ética da Terra como um fascismo ambiental, ou como ficou mais conhecido, um ecofascismo (REGAN, 1983, p. 262). De acordo com essa crítica, a ética da Terra tem a mesma atitude para com os indivíduos que os movimentos fascistas. A diferença é que enquanto o fascista vê na nação a comunidade moral relevante, o ecofascismo considera a comunidade biótica como a comunidade moralmente relevante. Em ambas as posições a implicação é a mesma, o valor do indivíduo é definido exclusivamente por sua contribuição para com a comunidade (GALVÃO, 2002, p. 05).

Para Callicott, a ética da Terra não possui as implicações que seus críticos atribuem, sendo somente um erro aparente. Precisamos lembrar que a consideração da comunidade biótica ocorre através de uma expansão da comunidade moral, um terceiro passo na história da moralidade. Nesse movimento as considerações morais anteriores não são excluídas, mas estendidas para os novos integrantes. Segundo o filósofo, “A ética da Terra é uma acreção, ou seja, uma adição às várias éticas sociais que foram acumuladas, não algo que busca substituí-las”. (CALLICOTT, 1999, p. 71).

Uma analogia nos permite entender mais facilmente o ponto de Callicott. Ser um cidadão do Brasil, dos Estados Unidos ou da China implica que possuímos certas obrigações para com a nação em que nascemos. No entanto, também fazemos parte de comunidades menores do que a nação, como nossas cidades ou a nossa comunidade familiar. Novamente, possuímos determinadas obrigações com esses grupos menores. Porém, as obrigações com a nação, apesar de serem de uma comunidade maior, não excluem as obrigações com grupos mais íntimos, como a família.

A ética da Terra defende que o mesmo ocorre com a inclusão da comunidade biótica em nossas considerações morais. Nosso reconhecimento enquanto parte da comunidade biótica e as obrigações advindas disso não implicam em uma exclusão das nossas obrigações para com a humanidade e a dignidade humana. O desenvolvimento da moralidade não cresce como um balão em expansão, que não deixa traços de suas fronteiras anteriores, mas sim como a circunferência de uma árvore. Cada unidade social, maior e recente, engloba a anterior, mais íntima e primitiva (CALLICOTT, 1987, p. 207-208).

Segundo Galvão, nesta resposta ao ecofascismo, Callicott parece defender que a máxima moral da ética da Terra, que antes parecia ser o único princípio de ação moral, é agora somente um princípio prima facie, entre vários outros princípios prima facie, advindos das nossas obrigações com as comunidades mais restritas (GALVÃO, 2002, p. 08). No entanto, Callicott não nos fornece, até aqui, critérios pelos quais poderíamos solucionar conflitos entre os princípios prima facie, somente afirma que geralmente as nossas obrigações com grupos mais íntimos possuem preferência em relação às obrigações mais exteriores (CALLICOTT, 1987, p. 208).

Por exemplo, um ecossistema está sendo prejudicado por uma população que necessita explorá-lo para a sua subsistência. Nesse caso há o conflito das nossas obrigações para com a comunidade humana e com a biótica. Porém, se essas obrigações nos fornecem somente deveres prima facie, como podemos definir o que fazer? Qual obrigação é moralmente mais relevante, o dever de possibilitar o sustento dessa população, ou o dever de preservar o ecossistema? Para casos como esse a estratégia de Callicott se mostra insuficiente. Segundo Shrader-Frechette:

Sem princípios éticos de segunda ordem que protejam os seres humanos, pelo menos em algumas circunstâncias, grandes extermínios ou violações de liberdades civis básicas seriam justificadas, até mesmo exigidas, com o fundamento de que isso resolveria o problema populacional e seria algo bom para a biosfera (SHRADER-FRECHETTE, 1996, p. 63).

Diante desta dificuldade, Callicott, buscou encontrar critérios capazes de estabelecer prioridades entre os princípios prima facie, critérios que poderiam ordenar a escolha de qual obrigação deveria ser privilegiada. Para isso, o filósofo propõe dois princípios de segunda ordem, um relacionado com o pertencimento às várias comunidades e outro relacionado com a força dos interesses.

O primeiro princípio de segunda ordem (PSO-1) é de que, “obrigações geradas pelo nosso pertencimento em comunidades mais veneráveis e íntimas tem precedência sobre as geradas pelo pertencimento em comunidades mais recentes e impessoais” (CALLICOTT, 1999, p. 73). De acordo com PSO-1, no caso de conflito de obrigações com comunidades diferentes, a mais antiga (conforme a teoria biossocial da ética da Terra) possui precedência. Vejamos o seguinte exemplo. Há uma guerra e um jovem se encontra diante do seguinte dilema: ou ele cuida de sua mãe que está sozinha em casa, ou ele vai para a guerra para proteger sua nação. Nesse exemplo há o conflito entre dois âmbitos de obrigação, o do familiar e do civil. Ambas são obrigações igualmente importantes, e ele não pode realizar ambas. Segundo PSO-1, o jovem deveria ficar em casa e proteger sua mãe, pois o pertencimento à família é anterior ao pertencimento à nação, e deve ser priorizada por isso.

Quando aplicamos PSO-1 isoladamente em casos de conflito entre as obrigações com a humanidade e com a comunidade biótica, temos o resultado de que nossas obrigações para com os seres humanos possuem primazia, pois são anteriores às obrigações para com a comunidade biótica. No entanto, isso teria o resultado exatamente oposto aos propósitos da ética da Terra, por exemplo, a obrigação de preservar um ecossistema seria menos importante do que a obrigação de promover o comércio, ainda que prejudique a comunidade biótica. Isso simplesmente porque as obrigações para com a humanidade são anteriores às derivadas da comunidade biótica.

Para resolver este tipo de situação, Callicott propôs o segundo princípio de segunda ordem (PSO-2), isto é, “Interesses mais fortes geram deveres que possuem precedência aos deveres gerados por interesses mais fracos” (CALLICOTT, 1999, p. 73). Callicott não explica exatamente como avaliar a “força” de um interesse. Porém, parece considerar que os interesses mais fundamentais para a sobrevivência, como o interesse por alimentação e abrigo adequados, possuem primazia a interesses menos importantes, como o desejo por objetos luxuosos (CALLICOTT, 1999, p. 73). Ou seja, deveres originados dos interesses pelas necessidades mais básicas possuem precedência sobre os deveres advindos de interesses secundários e não fundamentais para a sobrevivência.

Com PSO-2 nós podemos solucionar a implicação controversa de PSO-1 tomada de forma isolada. Por exemplo, tomemos o conflito de interesses entre o interesse de preservação da comunidade biótica que forma a floresta amazônica e o interesse de enriquecer de alguns latifundiários que incendeiam as florestas. O interesse da comunidade biótica em permanecer viva é um interesse muito mais forte do que o interesse de alguns indivíduos em enriquecer e, por conta disso, o nosso dever para com a comunidade biótica deve ter precedência sobre o nosso dever de promover o bem da comunidade humana. O contrário também poderia ocorrer, caso os interesses da comunidade humana forem mais fortes que os da comunidade biótica, devemos priorizar os interesses mais fortes.

De acordo com Callicott, quando há conflito entre os dois princípios de segunda ordem, nós devemos sempre priorizar o veredicto de PSO-2 (CALLICOTT, 1999, p. 76). Ou seja, os deveres para com os interesses mais fortes sempre terão prioridade, independentemente do veredicto de PSO-1. Dessa forma, quando há o conflito entre os deveres para com a comunidade humana e a biótica, e os interesses da comunidade biótica são mais fortes que os interesses humanos, nós devemos dar prioridade para os deveres para com a comunidade biótica. Como Lo e Galvão apontam, ao estabelecer essa prioridade do juízo de PSO-2, Callicott cria um princípio de terceira ordem, que solucionaria o conflito entre os de segunda (LO, 2001, p. 345; GALVÃO, 2002, p. 10).

Este princípio de terceira ordem torna o PSO-1 praticamente irrelevante, pois o veredito de PSO-1 só é relevante quando PSO-2 isoladamente não é capaz de resolver o conflito entre obrigações. Segundo Galvão, o problema é que esse tipo de situação é mais a regra do que a exceção, pois PSO-2 não se afigura praticável na maioria dos contextos. Apesar de difícil, não parece ser impossível estabelecermos comparações de interesses entre comunidades humanas distintas. No entanto, isso se torna demasiado complicado quando tentamos comparar interesses da comunidade biótica. Por exemplo, como poderíamos determinar se o interesse da comunidade biótica em não ser afetada adversamente é mais forte do que o interesse humano de não ter sua população drasticamente reduzida? De acordo com Galvão, para essa dificuldade a ética da Terra não fornece uma saída. Isso prejudica a plausibilidade de PSO-2, se não for possível comparar interesses tão díspares como os da comunidade biótica e da comunidade humana, objetivo principal da ética da Terra, então PSO-2 parece ser impraticável (GALVÃO, 2002, p. 11).

Além disso, segundo Galvão, o PSO-1 também possui problemas substanciais. Apesar deste princípio evitar a objeção do ecofascismo, dado a primazia para com a comunidade humana, PSO-1 possui outras implicações menos atraentes. Segundo PSO-1, obrigações para com comunidades mais íntimas e antigas possuem primazia sobre as obrigações com comunidades mais impessoais e recentes. Isso implica que quanto mais antiga e íntima a comunidade, maior são nossas obrigações para com ela. No entanto, conforme Galvão, “do mesmo modo que torna o respeito pelos direitos humanos universais prioritários em relação à promoção do bem da comunidade biótica, PSO-1 coloca os deveres para com a nação ou a etnia acima do respeito pelos direitos humanos” (GALVÃO, 2002, p. 13). Como as comunidades nacionais ou étnicas são anteriores à consideração da humanidade como um todo, PSO-1 implica que nossos deveres para com as primeiras devem ter primazia sobre a última. Torna-se então evidente que, apesar deste princípio evitar o problema do ecofascismo, ele ainda teria implicações inaceitáveis, PSO-1 poderia ser utilizado como justificativa moral de práticas racistas ou ultranacionalistas.

Dessa maneira, apesar de solucionar o problema do ecofascismo, Galvão considera que a solução proposta por Callicott é inaceitável. O PSO-1 possui implicações práticas extremamente contra intuitivas, como a permissibilidade de práticas discriminatórias. Já PSO-2 revela-se como um princípio impraticável, pois não fornece explicações de como podemos estabelecer, de forma clara, quais interesses são mais fracos ou fortes (GALVÃO, 2002, p. 13).

Consideramos que a crítica de Galvão se sustenta em sua maior parte. Concordamos com a crítica a PSO-1 e suas implicações controversas, de fato, PSO-1 acaba por ser uma possível justificativa de práticas simplesmente inaceitáveis. No entanto, consideramos que a crítica à PSO-2 estabelece uma consequência que não é necessária, mas somente possível. Pela dificuldade em compararmos interesses entre seres tão distintos, como os seres humanos e a comunidade biótica, Galvão assume que tal tarefa seja simplesmente impossível. No entanto, a dificuldade não implica em uma impossibilidade.

Retornemos ao exemplo das queimadas na floresta amazônica. Nesse caso estamos tratando dos interesses de sobrevivência da comunidade biótica e o interesse de enriquecimento de alguns seres humanos. Segundo o PSO-2, os interesses vitais da comunidade biótica são mais fortes que os interesses secundários de enriquecimento de alguns seres humanos. Apesar de não conseguirmos “sentir” tal como os outros cidadãos da comunidade biótica, possuímos conhecimento suficiente da importância da preservação da integridade, estabilidade e beleza de um ecossistema tão vital para a ecosfera como é o da Floresta Amazônica. Não é preciso algum tipo de “identificação” com a comunidade biótica para considerar seus interesses em nossas considerações morais, mas sim o reconhecimento de que todos nós somos cidadãos da comunidade biótica e todos devem ser considerados moralmente.

Ainda que não tenhamos critérios necessários e suficientes para compararmos interesses tão diversos, isso não quer dizer que tal tarefa seja impossível. Justamente enquanto um princípio de ação, PSO-2 permite a existência de uma “área cinzenta” em que a comparação dos interesses se torna mais complicada, nessas situações o exame do caso concreto possibilitaria uma melhor avaliação dos interesses em jogo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos explicitar neste artigo os fundamentos da ética da Terra e como essa teoria lida com a objeção do ecofascismo. Para isso, em um primeiro momento, nós abordamos o pressuposto fundamental que levou à construção da ética da Terra, a saber, a tese de que a ética possui sua origem no próprio processo evolutivo do Homo sapiens. De acordo com esta tese, a moralidade foi selecionada naturalmente como a forma de conduta em sociedade mais bem sucedida para a manutenção e crescimento da espécie humana. A moralidade possui sua origem nos sentimentos sociais presente nos mamíferos e, aliado a capacidade de raciocínio, imaginação e linguagem simbólica, a humanidade se tornou capaz de representar e articular regras que definem os comportamentos a serem elogiados ou reprovados, o que chamamos hoje de regras morais.

No segundo momento, nós investigamos os pressupostos normativos da ética da Terra, isto é, o valor intrínseco da Terra e o caráter holista da teoria ética. O que Callicott e Leopold sugerem é que nós devamos considerar a Terra não como um instrumento, como algo que pode ou não nos favorecer, mas como algo que possui valor em si mesmo. A preservação da comunidade biótica não deve ser justificada por uma via econômica ou auto interessada, mas pelo valor intrínseco que a comunidade biótica possui, independentemente de como isso afeta nossos interesses. Além disso, a ética da Terra também defende um holismo radical, ou seja, sua teoria ética atribui valor intrínseco somente à comunidade como um todo, e não aos seus componentes. Nesta perspectiva os integrantes da Terra não são um fim em si mesmo, seu valor é relativo ao seu papel na comunidade biótica.

Este holismo radical da ética da Terra nos levou ao terceiro momento de nossa discussão, no qual abordamos a objeção do ecofascismo. Segundo os críticos da ética da Terra, como Regan e Shrader-Frechette, seu caráter holista implica que todos os integrantes da comunidade biótica (incluindo os seres humanos) possuem um valor relativo ao benefício que proporcionam à comunidade biótica como um todo. Nesta perspectiva, se for para o bem da comunidade biótica, estamos justificados a reduzir drasticamente a população humana, até que sua integridade, estabilidade e beleza sejam asseguradas. Tal como os fascistas consideravam a nação como a única entidade moral relevante, os defensores da ética da Terra consideram a comunidade biótica como a única entidade moral relevante.

Para se defender da objeção do ecofascismo, Callicott propõe algumas respostas ao longo dos anos. A sua primeira tentativa de resposta é considerar que nossa responsabilidade para com a comunidade biótica é só mais uma obrigação entre as várias outras obrigações derivadas do nosso pertencimento a outras comunidades. Com esta resposta Callicott, acreditava que a crítico do ecofascismo seria evitada, pois nosso dever moral com a comunidade biótica não elimina ou se sobrepõe ao nosso dever de preservar a espécie humana. No entanto, esta via de resposta foi insuficiente, pois Callicott não nos fornece nenhuma forma de selecionar prioridades entre os vários princípios prima facie, o que impossibilitaria a ética da Terra de ser praticada de forma coerente.

Para aperfeiçoar sua resposta, em 1999, Callicott propôs dois princípios de segunda ordem, que poderiam resolver os conflitos envolvendo os princípios prima facie. O primeiro princípio, PSO-1, determina que as obrigações para com comunidades mais íntimas e antigas têm primazia sobre as obrigações para com comunidades mais impessoais e recentes. Já o segundo princípio, PSO-2, defende que interesses mais fortes geram deveres que possuem primazia sobre os gerados de interesses mais fracos. Com estes dois princípios, Callicott considera que a objeção do ecofascismo é evitada e ainda mantêm as implicações práticas que a ética da Terra propõe.

Galvão, um dos críticos da ética da Terra, considera que apesar de evitar a objeção do ecofascismo, Callicott acaba enfrentando objeções tão sérias quanto. Segundo Galvão, PSO-1 possui implicações controversas, como uma possível justificativa de posições racistas e nacionalistas. Já PSO-2 não seria praticável, pois Galvão considera que não é possível estabelecermos quais interesses são mais fortes quando consideramos os interesses de grupos tão díspares, como os da comunidade biótica e da humana. Consideramos que a crítica de Galvão se sustenta parcialmente, concordamos que PSO-1 possui implicações inaceitáveis, e deve ser então rejeitada. Já a crítica sobre PSO-2 é forte demais, apesar de haver “áreas cinzentas” em que é muito difícil estabelecer a prioridade entre interesses, há casos em que PSO-2 nos fornece veredictos claros e plausíveis sobre quais interesses devem ser priorizados.

Por conta de tudo exposto até aqui, consideramos que a ética da Terra é uma teoria ética coerente, mas que ainda possui problemas a serem resolvidos. Se os defensores da ética da Terra seguirem a estratégia já colocada por Callicott, é necessária uma reformulação de PSO-1 de modo que evite as implicações controversas deste princípio e ainda evitem a objeção do ecofascismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CALLICOTT, J. Animal liberation: A triangular affair. Environmental ethics, v. 2, n. 4, p. 311-338, 1980.

CALLICOTT, J. The Conceptual Foundations of The Land Ethic. In: Companion to A Sand County Almanac: Interpretative and critical essays. Wisconsin: The University of Wisconsin Press. p. 186-217, 1987.

CALLICOTT, J. Holistic Environment Ethics and The Problem of Ecofascism. In: Beyond The Land Ethic: More Essays in Environmental Philosophy. New York: State University of New York Press. p. 59-78, 1999.

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GALVÃO, P. O Dilema da Ética da Terra. 2002. Disponível em: https://sites.google.com/campus.ul.pt/pedro-galvao/textos. Acesso em: 01 jun. 2023.

LEOPOLD, A. A Sand County Almanac. Oxford: Oxford University Press. 1949.

LO, Y S. The land ethic and Callicott's ethical system (1980-2001): An overview and critique. Inquiry, v. 44, n. 3, p. 331-358, 2001.

REGAN, T. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press. 1983.

SANDLER, R. Environmental Ethics: Theory in Practice. Oxford: Oxford University Press. 2018.

SHRADER-FRECHETTE, K. Individualism, Holism, and Environmental Ethics. Ethic and Environment, v. 1, No. 1. p. 55-69,1996.

 

 

André Luiz Lima Cardoso

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Participa, desde 2019, do Núcleo de Ética Prática (NUEP) do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalha, desde 2021, como Professor ACT de Ensino Médio na Rede Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) através da concessão de bolsa CAPES-PROEX.

 

 

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[1] De acordo com Callicott, a teoria ética de Darwin possui suas origens nas teorias morais de David Hume e Adam Smith, nas quais é defendido que a ética não possui sua origem no pensamento racional, mas nos sentimentos morais (CALLICOTT, 1999, p. 62).

[2] Alguns autores consideram que o valor instrumental não é equivalente ao valor extrínseco, mas somente um tipo de valor extrínseco. No entanto, em nossa discussão trataremos ambos como idênticos, a crítica da ética da Terra é de que não podemos julgar a Terra somente pela sua utilidade, mas também pelo valor em si que ela possui. Para uma discussão sobre os tipos de valor extrínseco, Ver (BRADLEY, 1998).