SACRO IMPÉRIO ROMANO DE SEVERINUS DE MONZAMBANO

HOLY ROMAN EMPIRE OF SEVERINUS OF MONZAMBANO


 

Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

0000-0001-8940-1545

felipesahd@yahoo.com.br

Universidade Federal do Ceará – UFC

 

 

Recebido: 11/04/2023

Received: 11/04/2023

 

Aprovado: 09/05/2023

Approved: 09/05/2023

 

Publicado: 11/05/2023

Published: 11/05/2023

 

 

RESUMO

O exame do De Statu Imperii Germanici de Pufendorf mostra que ele estava fortemente interessado na questão da soberania, e que a complexa realidade do Sacro Império Romano exigia uma abordagem completamente nova para a questão de onde residia a soberania dentro do império. Argumento que o tipo de Estado que Pufendorf tinha em mente era o Estado composto representado pelo Sacro Império Romano, consistindo em muitas comunidades diferentes divididas por religião, mas compartilhando o mesmo soberano, o Sacro Imperador Romano Católico.

Palavras-chave: Império. Estado composto. Soberania. Guerra e paz. Pessoa moral.

 

ABSTRACT

The examination of Pufendorf's De Statu Imperii Germanici shows that he was strongly interested in the question of sovereignty, and that the complex reality of the Holy Roman Empire demanded a completely new approach to the question of where sovereignty within the Empire lay. I argue that the type of state that Pufendorf had in mind was the composite state represented by the Holy Roman Empire, consisting of many different communities divided by religion but sharing the same sovereign, the Catholic Holy Roman Emperor.

Keywords: Empire. Composite state. Sovereignty. War and peace. Moral person.

 


INTRODUÇÃO

Entre os desenvolvimentos mais interessantes da década de 1990 que renovaram a leitura acerca do pensamento político de Samuel Pufendorf,[1] encontra-se a discussão renovada do De statu imperii germanici (De statu), publicada em 1667 sob o pseudônimo Severinus de Monzambano.[2] É sabido que ele chamou o Império Alemão de “monstro”, porque a soberania era dividida entre o imperador e as propriedades – a “monarquia moderada” do imperador e a aristocracia dos príncipes eleitores e príncipes territoriais. Ele o considerou um Estado “irregular”, porque não representava nem uma monarquia nem uma confederação de Estados. Para responder à questão de como a multiplicidade de entidades políticas estava relacionada à instituição do império, introduziu o conceito de “sistema de Estados”, examinado por Alfred Dufour (DUFOUR 1996, p. 107-273). A contribuição de Dufour é importante, na medida em que considera o vínculo estreito entre o surgimento da teoria política de Pufendorf e sua aplicação prática. Ele demonstra como Pufendorf elaborou ainda mais o conceito de sistema de Estados em duas dissertações escritas em Heidelberg (De sistemmatibus civitatum, 1668, e De republica irregulare, 1669). Pufendorf usou esses trabalhos na elaboração de sua nova teoria das formas de governo, que explicou mais tarde em De jure naturae et gentium (De jure), onde substituiu a distinção aristotélica entre tipos de governo legítimos e ilegítimos pela distinção entre Estados “regulares” e “irregulares”, aplicando a unidade de soberania como critério. A importância prática dessa nova tipologia é evidente no relato crítico de Pufendorf de sistemas de Estados como o Império Alemão, mas também nas Províncias Unidas dos Países Baixos e na Confederação Helvética. De acordo com o interesse de Dufour, Pufendorf em sistemas de Estados atingiu seu ápice na teoria dos “interesses de Estados”, que desempenharam um papel importante em sua análise da ordem internacional.

Outra interpretação do período foi a de Maurizio Bazzoli ao propor avaliar a análise de Pufendorf do Império Alemão no contexto de sua teoria da ordem internacional (BAZZOLI, 1996, p. 29-72). O estudo do comentador italiano inicia com a observação de que a recomendação de Pufendorf de transformar o império em uma “confederação de Estados” dirigida por um “conselho perpétuo” corresponde à teoria das alianças em De jure, bem como à análise histórica dos Estados europeus em Einleitung zu der Historie der vornehmsten Reiche und Staaten, so jetziger Zeit in Europa sich befinden (Einleitung, 1682). A análise de Pufendorf sobre o poder do Estado é baseada em um princípio relativista e dinâmico, segundo o qual o poder de um Estado depende de sua relação com seus vizinhos. Por esse motivo, ele discute questões de segurança e paz em termos de “interesses” de Estados que dependem de constelações políticas e históricas específicas. De acordo com sua visão pessimista ou “realista” da coexistência pacífica dos Estados, Pufendorf lidou com a ordem internacional não em termos de “ética política internacional”, mas em termos de equilíbrio de poder. Como um meio importante para defender o interesse de um Estado, Pufendorf recomenda, em De jure, a formação de alianças para manter um equilíbrio de poder entre grupos de Estados. O conceito de “confederação perpétua” representa um tipo especial de aliança que garante a defesa mútua.

Em Einleitung, avalia-se as potências europeias no que diz respeito à sua “justa grandeza”, bem como aos seus “interesses” adequados. Baseado na distinção entre interesses “reais” e “imaginários” dos Estados, ele denuncia o conceito de “monarquia universal” como um “interesse imaginário” da França. A análise histórica da relação entre as potências europeias o leva a concluir que, além da Inglaterra, somente o Império Alemão tem a possibilidade de contrabalançar a ambição francesa por poder – sob a condição de que se transforme em uma unidade política confederativa. O mérito do estudo de Bazzoli consiste não apenas em uma nova abordagem do De statu, mas também no esboço da teoria da ordem internacional anteriormente negligenciada por Pufendorf, com base em sua jurisprudência natural e em seus escritos políticos.

O exame do De statu revela o profundo interesse na questão da soberania, cuja complexa realidade do Sacro Império Romano exigia uma abordagem completamente nova para a questão do seu lugar no interior do Império. Pufendorf desenvolve seu relato do Império como um sistema político irregular usando aspectos essenciais da teoria de Hobbes, portanto, partindo de todos os escritores anteriores sobre a forma imperii. Mas os escritos de Pufendorf sobre o Império não devem estar apenas ligados à discussão política e filosófica sobre a soberania no Império, mas também aos seus escritos principais, em que ele desenvolve uma teoria mais detalhada sobre a questão da soberania em geral. A paz da Vestfália não foi apenas um acordo internacional, mas também moldou a constituição do Império em um grau considerável, e isso é de importância crucial para a história do pensamento político durante o século XVII.

MONZAMBANO E O SACRO IMPÉRIO ROMANO

Se os Estados são pessoas, segue-se que haverá alguma homologia entre pessoas humanas e pessoas estatais, como tentei mostrar em discussão anterior (SAHD, 2023, p. 188-200), e porquanto sua teoria da personalidade foi informada por suas convicções teológicas, podemos explicar em parte a teoria da soberania de Pufendorf prestando atenção aos seus propósitos teológicos na defesa do livre-arbítrio. Mas é improvável que a compreensão de um teórico político de um conceito tão crucial como a soberania seja determinada inteiramente por compromissos anteriores com uma visão particular da psicologia moral. O desenvolvimento de Pufendorf da teoria da soberania estabelecida em sua magnum opus política decorreu até certo ponto, quero sugerir, de sua própria insatisfação com sua intervenção anterior no debate sobre a forma constitucional do Sacro Império Romano.

O debate surgiu em resposta a pelo menos dois estímulos intelectuais: o argumento influente de Jean Bodin em Les six livres de la république (1576) de que a soberania era indivisível; e a proeminência analítica crescente do aristotelismo político e a proposição correspondente de que o governo em qualquer sociedade política deve ser monárquico, aristocrático ou democrático (DREITZEL, 2002, p. 163-187). As terras alemãs não eram, de forma alguma, as únicas onde essas duas proposições pareciam difíceis de conciliar com a realidade política, mas a arquitetura política única do Império Alemão se destacava de maneira especialmente gritante em relação a esses postulados teóricos. Além disso, a Alemanha fornecia um contexto social e institucionalmente propício para tal debate, pois as tensões confessionais eram especialmente pronunciadas, um programa de “simplificação” nos governos locais estava em andamento desde a década de 1570 e as muitas pequenas jurisdições das propriedades forneciam uma espécie de “economia de escala” à literatura que aconselhava os governantes sobre a natureza geral e também sobre as minúcias do direito público imperial (FRIEDEBURG, 1998, p. 129-153). O debate ganhou nova vida com a Paz de Vestfália (1648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. Os tratados de paz reformaram a Constituição Imperial para criar processos de julgamento de disputas religiosas e reduziram a autoridade dos príncipes alemães sobre questões religiosas, parecendo assim fortalecer o império como entidade política. O caráter “experimental” das disposições enumeradas pelos tratados encorajou um debate mais aprofundado sobre a natureza do Império reorganizado pela Paz (STRAUMANN, 2008, p. 173-188). Em De statu, Pufendorf, escrevendo sob o extravagante pseudônimo de Severinus de Monzambano, examinou cada posição no debate e achou cada uma delas severamente deficientes. 

Havia três posições básicas no debate conhecido como Reichspublizisten (cf. OESTREICH, 1982, p. 205-207). Rejeitada a tese segundo a qual o império era uma democracia,[3] a primeira posição defendia a sua constituição monárquica, pois o imperador estava em plena posse da soberania bodiniana. Bartholomaeus Keckermann, Hermann Kirchner e Daniel Otto foram os mais proeminentes defensores dessa perspectiva antes dos tratados de Vestfália em 1648, e Dietrich Reinkingk o mais proeminente depois dele. Reinkingk apresentou uma interpretação bastante comum do livro de Daniel, ao relatar uma visão de “quatro grandes bestas” representando “quatro reinos que surgirão da terra”. “A quarta besta é um quarto reino que aparecerá na terra. Será diferente de todos os outros reinos e devorará toda a terra, pisoteando-a e esmagando-a” (DANIEL 7:23). Seria o último reino do tipo na terra, e sua derrubada marcaria o fim dos tempos. Além de considerar que as quatro bestas correspondiam aos impérios babilônico, persa, macedônio e romano, Reinkingk defendeu uma translatio imperii de Roma à Alemanha, de modo que o Sacro Imperador Romano era um soberano de tipo semelhante ao César Romano. Pufendorf considerou que tal argumento “merece ser sibilado ao invés de respondido seriamente” (PUFENDORF, 2013, VI, §6). Admirador do “douto” Hermann Conring, De statu (PUFENDORF, 2013, V, §13-14; ver também HOCHSTRASSER, 2000, p. 47-60) retoma os argumentos contidos no De origine iuris Germanici commentarius historicus (1643) que demoliram as bases da argumentação de Reinkingk: a) o direito romano só gradualmente foi introduzido no Sacro Império Romano; b) há mais do que quatro impérios na história do mundo; c) “o Império Romano nem mesmo incluiu toda a Europa, muito menos o novo mundo” (FASOLT, 1997, p. 747).

Um segundo argumento encontra-se na tese segundo a qual o império era uma aristocracia. Henning Arnisaeus, por exemplo, considerou que se a soberania fosse compartilhada e indivisível ao mesmo tempo, então significava que plebeus, estamentos e imperador detinham poder concedido aos outros na mesma medida e simultaneamente, e o império uma aristocracia pois os nobres o mantinham em equilíbrio. Posição semelhante foi tomada por Bogilslaw Cheminitz (Hippolithus a Lapide), ao escrever durante as negociações dos tratados vestfalianos. Ele sustentou que o imperador prestava contas às propriedades e, portanto, a autoridade delas era mais fundamental do que a dele. Pufendorf objeta ambos os autores ao defender que a responsabilidade do imperador deriva de um mútuo “pacto e acordo” entre ele e as propriedades. A responsabilidade, portanto, funciona nos dois sentidos. Embora o imperador tivesse que “prestar contas de suas ações” às propriedades, não significava que ele não fosse seu superior, pois embora o imperador não possa contrariar o consentimento dos Estados, ainda assim “nenhum homem jamais ouviu os Estados fingirem fazer qualquer coisa sem o consentimento do imperador” (PUFENDORF, 2013, VI, §7). Além disso, um superior pode vincular seu poder por uma promessa, mas sem significar a inferioridade em relação a outra parte; como Pufendorf escreveu no De jure, Deus também prometeu a salvação por meio da segunda aliança.[4] Argumentos de que o império era uma aristocracia não passavam de “absurdos estranhos”, fazendo do imperador:

[...] um Magistrado subordinado, que usa muitos títulos orgulhosos precariamente concedidos a ele; como se sempre que a Monarquia não fosse absoluta, ela devesse degenerar em uma Aristocrasie, e um príncipe devesse reconhecer como seus superiores todos aqueles a quem ele não comandaria e governaria como quisesse (PUFENDORF, 2013, VI, §7).

Em terceiro lugar, nomes como Christian Besold, Veit Ludwig von Seckendorff e Johannes Limnaeus argumentaram contra o mainstream bodiniano de que a soberania era compartilhada, no sentido de que diferentes poderes soberanos recaíam sobre diferentes agentes do sistema. Tal compreensão da soberania não se aproximava, para Pufendorf, da realidade do império. Na Alemanha, “todo o Poder Supremo não está indivisivelmente nas mãos de muitos, nem suas partes estão divididas entre diversas pessoas ou colégios” (PUFENDORF, 2013, VI, §8). Ou seja, não há o conselho onde resida a soberania indivisa, nem a soberania claramente repartida entre diferentes agentes.

Tendo descartado essas três posições gerais, Pufendorf passou a considerar outra categoria de organização política, exemplificada pela Suíça e pelas Províncias Unidas, com a qual a Alemanha parecia ter alguma semelhança. Ele a nomeou de “Sistema Confederado”, que designava vários Estados ligados entre si “em um Corpo” em virtude de uma liga ou aliança permanente (PUFENDORF, 2013, VI, §8). Pufendorf reconheceu que as Dietas na Holanda e na Suíça não eram os senados soberanos dos Estados aristocráticos. Em vez disso, eles eram os conselhos de confederações, Estados unidos por foedus, sem formar o vínculo permanente característico do Estado incorporador de todas as suas partes. Essas confederações se manifestavam como unidades constituídas capazes de fazer leis para seus membros, mas, nas palavras de Murray Forsyth, “não a unidade constituída de um povo, mas uma unidade constituída por Estados” (FORSYTH, 1981, p. 15-16). O Sacro Império Romano apresentava uma semelhança superficial com essas confederações, porque existia uma organização central na qual os estamentos coordenavam suas atividades. No entanto, Pufendorf considerava a presença do imperador suficiente para excluir a Alemanha de pertencer a esta categoria. Os tratados de Vestfália determinaram que “todos os Eleitores, Príncipes e Estados do Império Romano, assim estabelecidos e confirmados em seus antigos Direitos, Prerrogativas, Liberdades, Privilégios, livre exercício do Direito Territorial” (Treaty of Westphalia, art. LXIV). Como Pufendorf entendeu, esses “direitos antigos” não eram de soberania, ou de alguma parte na soberania, mas pertenciam ao sistema feudal alemão particular que fornecia um esquema de direito consuetudinário no caso do silêncio do direito positivo (PUFENDORF, 2013, capítulo V). A jurisdição de quaisquer assuntos não tratados em leis específicas pertencia ao imperador em virtude de seus direitos reservados, e as suas prerrogativas “permaneceram as mesmas em 1648 como haviam sido em 1618” (OSIANDER, 2001, p. 270). Um arranjo piramidal de vassalos e senhores supervisionado pelo imperador permaneceu até certo ponto mesmo depois de 1648, apesar da configuração confederativa do corpo político dos Estados (o Reichsstände) que continuou a exercer seu “Direito Territorial”. Como aponta Peter Schröder, como vários dos Estados menores não se sentiam seguros em seu próprio poder territorial, o imperador era “importante para sua antiga clientela como garantidor de sua independência e existência imperturbável” (SCHRÖDER, 1999, p. 977; ver também WILSON, 2006, p. 568). O imperador controlava o Conselho Áulico Imperial, permitindo que os súditos apelassem contra seu príncipe e os príncipes vizinhos apelassem uns contra os outros ao imperador, e “em vez de Vestfália limitar o potencial do imperador e do Reich de interferir em conflitos territoriais, uma lista cronológica das execuções imperiais de veredictos judiciais contra o Reichsstände revela o contrário, com a maioria das execuções ocorrendo após 1648” (MILTON, 2015, p. 5).

O que foi, então, o Sacro Império Romano? Não era uma democracia, ou uma aristocracia, ou uma monarquia, ou qualquer mistura razoavelmente direta de qualquer um desses. Tampouco, segundo o De statu, era “um Corpo ou Sistema de muitos Estados Soberanos e Príncipes, entrelaçados e unidos em uma Liga”. Em vez disso, era “algo (sem nome)” que flutuava entre uma monarquia limitada e um sistema de Estados (PUFENDORF, 2013, VI, §9). “O governo, estado ou império da Alemanha tem algo de irregular”, observou Pufendorf, “que não nos permitirá submetê-lo a nenhuma das formas principais ou regulares de governo, como geralmente são descritas por mestres da política” (PUFENDORF, 2013, VI, §1). Entendido em termos dessas categorias, o império era “como um monstro disforme”, “um corpo irregular” (PUFENDORF, 2013, VI, §9).

Na segunda edição do De statu, preparada no início da década de 1690 e publicada postumamente em 1706, foi retirada a passagem que comparava o império a um monstro. Há alguma especulação na literatura secundária de que Pufendorf moderou sua linguagem por causa da hostilidade que sua caracterização do Sacro Império Romano provocou (ver BURGDORF, 1998). No entanto, as revisões posteriores podem, pelo menos em parte, ser explicadas pelo fato de que no livro VII do De Jure, publicado seis anos após o De statu ter aparecido pela primeira vez e cerca de duas décadas antes de começar a trabalhar na segunda edição, Pufendorf encontrou uma maneira de levar ordem ao Sacro Império Romano.[5] Ele distinguiu entre dois tipos de sistema de Estados. O primeiro é o que nomeou no De statu de sistema confederado, “quando dois ou mais Estados estão ligados num só corpo, em virtude de alguma liga ou aliança”. O segundo, porém, é onde “dois ou mais Estados estão sujeitos ao mesmo Rei”. É possível no caso de “corpos morais [corporibus moralibus], ter apenas uma cabeça sobre vários deles juntos e, consequentemente, ter uma pessoa como cabeça de muitos corpos distintos”, embora no caso de corpos naturais tal configuração “teria uma aparência tão monstruosa [monstrosum]” (PUFENDORF, 1998, VII, V, §17). Desnecessário dizer que a segunda categoria se aplica ao Império Alemão e, portanto, o império não parece mais monstruoso, pois o império era uma união de corpos morais. Vistos sob esta perspectiva, os Estados do império eram sociedades independentes, cada uma constituída por um contrato de associação, que haviam firmado um contrato de sujeição com o soberano, o imperador. O Sacro Império Romano era, portanto, o que, em linguagem mais moderna, seria chamado de Estado composto ou reino múltiplo (KOENIGSBERGER, 1986, p. 1-26; ELLIOT, 1992, p. 48-71; HONT, 2005, p. 458).

Há alguma plausibilidade na descrição tácita e retrospectiva de Pufendorf do império (Schröder, 1999). Todos os assuntos vitais tinham que ser tratados pelo imperador e propriedades conjuntamente na Dieta Imperial. O que o império quis, quis pela vontade do imperador como soberano, mas as comunidades representadas na Dieta fizeram com que o imperador exercesse essa soberania de acordo com as leis fundamentais do império, cuja observância ele havia jurado a si mesmo em seus pactos com os vários Estados. Eles eram como tantas faculdades diferentes de entendimento, fornecendo os pré-requisitos para atos soberanos de vontade. Assim, ao contrário de uma confederação nos modelos suíço ou holandês, o Sacro Império Romano parecia ser, à luz do repensar mais abstrato de Pufendorf do De statu, um Estado genuinamente regular:

[...] a fim de completar a essência de um Estado perfeito [perfectae] e regular, tal união é necessária, pois fará com que todas as Coisas, que pertencem ao seu Governo, pareçam proceder de uma alma [velut ab una anima procisci videantur]. Agora, portanto, é manifesto que o antigo caminho da mistura [um sistema confederado] constitui um corpo que é mantido unido, não pelo vínculo de uma autoridade suprema, mas apenas por compacto; e que, portanto, deve ser classificado, não entre os regulares, mas entre os irregulares; sendo apenas fracamente protegido contra assaltos estrangeiros e muito desagradável para distúrbios internos e convulsões (PUFENDORF, 1998, VII, V, §13).

O mesmo não pode ser dito do império, onde tudo o que é desejado, sendo querido por uma pessoa natural, “parece proceder de uma alma”.

Por que Pufendorf poderia ter desejado insistir que os Estados compostos eram regulares? Com seu argumento de que um sistema de Estados poderia subsistir como uma espécie de corpo político quando unidos sob uma coroa, Pufendorf esperava fornecer uma justificativa político-científica à paz religiosa na Alemanha. Havia sólidas razões pragmáticas de que a figura do imperador deveria ser considerada como um soberano supremo capaz de punir o comportamento incivil ou insociável e conferir os benefícios da paz e da prosperidade a seus súditos. A “Diferença de Religião... divide a Alemanha e a distrai”, escreveu Pufendorf no De statu (PUFENDORF, 2013, VII, §9).[6] A Alemanha, assim, tornou-se uma presa fácil para predadores externos. Durante o ano em que a primeira edição do De statu foi publicada, Luís XIV da França, que vinha expandindo rapidamente seu exército desde 1661, invadiu a Holanda espanhola. Como se viu, ele iria atacar as Províncias Unidas em 1672 e, finalmente, a Alemanha protestante em 1688. Pufendorf considerou que o rei francês estava tentando assegurar a hegemonia na Europa Ocidental. O catolicismo estava invadindo o continente. O tratamento de Luís XIV no De statu é impregnado de ironia:

[...] em todas as ocasiões ele se mostra muito solícito pela liberdade geral da Alemanha; oferecendo-se como um mediador, para compor quaisquer diferenças que surjam entre um príncipe e outro, e está sempre pronto para enviar dinheiro ou homens a cada um deles que os desejar; e, em suma, faz questão de mostrar-lhes que certamente podem esperar mais de sua amizade do que da do Imperador ou das leis do Império (PUFENDORF, 2013, VII, §6).

O “fim de todo esse namoro”, continuou ele, “é a abertura de um caminho para a ruína da liberdade alemã” (PUFENDORF, 2013, VII, §6). A Alemanha deveria ser unida para não deliquescer no caos e assim sucumbir aos desígnios do Rei Sol. Precisava reconhecer uma vontade soberana no império, e essa vontade deveria ser a do imperador. Em De jure, Pufendorf encontrou uma maneira de conceituar essa unidade.

E, no entanto, Pufendorf ainda tinha que reservar às comunidades que constituíam o império o direito de resistir ao imperador, porque esse soberano, como o morador do palácio de Versalhes, era católico. Pufendorf sugeriu, em um capítulo adicionado à segunda edição de sua Einleitung (1684), que vários imperadores estariam “dispostos” a se converter ao protestantismo e, assim, “se desvencilhar da soberania papista”, mas que eles foram impedidos de fazê-lo por “razões de Estado”, ou seja, o fato de que fazê-lo teria proporcionado uma ocasião à invasão francesa, conspiração papal e até mesmo a afirmação de reivindicações imperiais por “Príncipes Seculares” do império, que “então fingiriam ter o mesmo direito a essa dignidade com a Casa da Áustria” (PUFENDORF, 1684, XII, §38). Mesmo assim, o catolicismo do imperador significava que ser soberano alemão não era uma situação enfaticamente positiva. Pufendorf, portanto, viu-se obrigado a formular uma teoria da soberania que pudesse confundir o conflito interno no império, mas ao mesmo tempo permitir às sociedades protestantes o direito de, em algum momento, desistir de obedecer a esse soberano. No modelo jesuíta de causalidade eficiente a agentes livres, Pufendorf encontrou uma maneira de transitar pelo necessário meio termo. A ordem social, afirmou ele, depende, em última análise, do respeito dos cidadãos por Deus como o doador do direito natural, e a razão natural simplesmente não pode estender-se ao fornecimento de requisitos às ações de uma vontade indiferente que contradiz o direito natural. Uma vez que a soberania se manifesta na vontade, um ato de vontade soberana que não é considerado razoável não pode ser contado como a vontade da pessoa moral composta do Estado.[7]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tipo de Estado que mais interessou a Pufendorf foi o Estado composto, pois ele escreveu como súdito do Sacro Império Romano, aquela complexa comunidade política composta de diferentes territórios frequentemente divididos por religião e na qual as linhas de autoridade não eram claramente traçadas. Pufendorf estava preocupado em teorizar a política composta de tal maneira que pudesse ser reconciliada com algum tipo de noção do Estado como um ator soberano. A Guerra dos Trinta Anos marcou uma espécie de implosão do império e, mesmo após os tratados de Vestfália, que concluíram a guerra e se esforçaram para colocar o império em uma base mais segura, ele permaneceu um alvo óbvio para as potências estrangeiras em busca de conquista. Pufendorf queria mostrar como uma entidade tão pesada como o Império Alemão poderia ser um agente e agir com uma só mente. A soberania tinha que proceder, como ele disse, de uma alma. Assim, ele argumentou que a soberania estava alojada na vontade do imperador. Ao mesmo tempo, porém, como um luterano convicto, o catolicismo romano do imperador assustava Pufendorf quase tanto quanto a perspectiva de uma invasão externa: sua soberania tinha de ser verificada.

A concepção de personalidade de Pufendorf adequou-se brilhantemente aos seus propósitos ao lidar com esse enigma espinhoso. Ele tirou suas ideias sobre agência racional e livre e, portanto, os aspectos constitutivos da personalidade, de Francisco Suárez. Suárez sustentou que a causa da liberdade humana é a faculdade intrinsecamente livre da vontade, mas que a raiz dessa liberdade é o intelecto, pois sem as cognições e as razões fornecidas pelo intelecto a vontade não pode agir. Os escritores jesuítas desenvolveram esse relato da liberdade humana durante seus debates com a ordem dominicana sobre a natureza da graça de Deus e a capacidade ou incapacidade dos seres humanos de tomar alguma iniciativa com relação à salvação. Quaisquer que sejam suas razões para perseguir essa imagem da livre agência humana, e por mais diferentes que sejam as próprias razões de Pufendorf para adotá-la, ele fez esse relato da economia psicológica da liberdade fundamental à sua própria caracterização da pessoa e, portanto, da pessoa moral do Estado. Partindo de uma teoria das entidades morais que deveriam ser compreendidas por analogia com as entidades físicas, Pufendorf pretendia enfatizar que a pessoa moral do Estado, como uma entidade moral particular, era livre e, portanto, deveria decidir agir e mover-se para agir, da mesma forma que uma pessoa física livre. Isso implicava a mesma organização interna das faculdades cognitivas no Estado e na pessoa física. No Estado sensatamente constituído, argumentou Pufendorf, pode haver apenas uma única vontade que conta politicamente: quando os indivíduos submetem suas vontades à vontade de uma pessoa, eles estabeleceram a soberania sobre si mesmos, e a pessoa física que possui essa vontade é soberana. Mas, além da vontade, deve haver também no estado um intelecto comum, e uma multidão com algum sentido resolveria isso em outro lugar que não com o soberano. A raiz da liberdade do soberano pode e deve situar-se fora da vontade soberana, funcionando como facilitadora e incapacitante dos atos de vontade da pessoa do Estado. E Pufendorf não via razão para que não houvesse, em uma política composta, vários intelectos, simbolizados pelos conselhos que há muito falavam pelas comunidades do império, cada um fornecendo várias condições sine qua non para o exercício de uma vontade soberana. Assim, Pufendorf e não Hobbes foi o verdadeiro teórico da soberania “vestfaliana”, devidamente compreendida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAZZOLI, Mauricio. La concezione pufendorfiana della politica internazionale. In: V. Fiorillo (org.) Samuel Pufendorf Filosofo del Diritto e della Politica. Atti del Convegno Internazionale. Milano, 11-12 novembre 1994. Napoli: La Città del Sole, 1997, p. 29-72.

BURGDORF, Wolfgang. Reichskonstitution und Nation: Verfassungsreformprojekte für das Heilige Römische Reich Deutscher Nation in politischen Schrifttum von 1648 bis 1806. Mainz: Philipp von Zabern, 1998.

CONRING, Hermann. De origine iuris Germanici commentarius historicus. Helmestadii: H. Müller, 1643.

DÖRING, Detlef. Pufendorf–Studien. Beiträge zur Biographie Samuel von Pufendorf’s und seiner Entwicklung als Historiker und theologisher Schriftsteller. Berlin: Duncker & Humblot, 1992.

DREITZEL, Horst. Toleranz und Gewissensfreiheit im konfessionellen Zeitalter: Zur Diskussion im Reich zwischen Augsburger Religionsfrieden und Aufklarung. In Religion und Religiosität im Zeitalter des Barock, ed. Dieter Breuer, part 1. Wiesbaden: Harrassowitz, 1995a, p. 115-128.

DREITZEL, Horst. Gewissensfreiheit und soziale Ordnung: Religionstoleranz als Problem der politischen Theorie am Ausgang des 17. Jahrhunderts. Politische Vierteljahresschrift, v. 36, n. 1, 1995b, p. 3-36.

DREITZEL, Horst. Reason of state and the crisis of political Aristotelianism: An essay on the development of 17th century political Philosophy. History of European Ideas, v. 28, 2002, p. 163-187.

DUFOUR, Alfred. Federalisme et raison d’Etat dans la pensée politique pufendorfienne. In: V. Fiorillo (org.) Samuel Pufendorf Filosofo del Diritto e della Politica. Atti del Convegno Internazionale. Milano, 11-12 novembre 1994. Napoli: La Città del Sole, 1996, p. 107-138.

ELLIOT, J. H. A Europe of composite monarchies. Past and Present, v. 137, 1992, p. 48-71.

FASOLT, Constantin. A question of right: Hermann Conring’s New Discourse on the Roman-German Emperor. Seventeenth Century Journal, v. 28, 1997, p. 739-758.

FORSYTH, Murray. Unions of States: The Theory and Practice of Confederation. New York: Leicester University Press, Holmes & Meier Publishers, Inc., 1981.

FRIEDEBURG, Robert von. Reformed Monarchomachism and the genre of the “politica” in the Empire: The Politica of Johannes Althusius and the meaning of hierarchy in its constitutional and conceptual context, Archivio della Ragion di Stato, v. VI, 1998, p. 129-153.

HAAS, Julia. Die Reichstheorie in Pufendorfs “Severinus de Monzambano”. Berlin: Duncker & Humblot, 2006.

HOLLAND, Ben. The Moral Person of the State. Pufendorf, Sovereignty and Composite Polities. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

HONT, István. Jealousy of Trade: International Competition and the Nation-State in Historical Perspective. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.

KOENIGSBERGER, H. G. Politicians and Virtuosi: Essays in Modern History. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

MILTON, Patrick. Intervening against tyrannical rule in the Holy Roman Empire during the seventeenth and eighteenth centuries. German History, v. 33, 2015, p. 1-29.

MOORE, James & SILVERTHORNE, Michael. Protestant Theologies, Limited Sovereignties: Natural Law and Conditions of Union in the German Empire, the Netherlands and Great Britain. In John Robertson (Ed.), A Union for Empire: Political Thought and the British Union of 1707. New York: Cambridge University Press, 1995, p. 171-197.

OESTREICH, Gerhard. Neostoicism and the Early Modern State. Translated by David McLintock, Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

OSIANDER, Andreas. Sovereignty, international relations, and the Westphalian myth. International Organization, v. 55, 2001, p. 251-287.

PUFENDORF, Samuel. Einleitung zu der Historie der vornehmsten Reiche und Staaten, so jetziger Zeit in Europa sich befinden. Frankfurt (Main), 1684.

PUFENDORF, Samuel. De jure naturae et gentium. Ed. Frank Böhling. Vol. 4 of Samuel Pufendorf: Gesammelte Werke, ed. Wilhelm Schmidt-Biggemann. Berlin: Akademie Verlag, 1998.

PUFENDORF, Samuel. De Statu Imperii Germanici: Liber Unus (Latin Edition). Charleston: Nabu Press, 2013.

SAHD, Luiz Felipe N. A. S. Direito natural, sociabilidade e religião na política de Samuel Pufendorf. Fortaleza: EdUECE, 2023.

SCHMIDT-BIGGEMANN, Werner. Samuel von Pufendorf – Filosofia do Estado e do direito entre o barroco e o Iluminismo. In: Lothar Kreimendahl (org.) Filósofos do Século XVII (trad. de B. Dischinger) São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 148-174.

SCHRÖDER, Peter. The constitution of the Holy Roman Empire after 1648: Samuel Pufendorf’s assessment in his Monzambano. Historical Journal, v. 42, 1999, p. 961-983.

STRAUMANN, Benjamin. The Peace of Westphalia as a secular Constitution. Constellations, v. 15, 2008, p. 173-188.

Treaty of Westphalia, art. LXIV. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/17th_century/westphal.asp. Acesso em: 9 Fev. 2012.

WHALEY, Joachim. Germany and the Holy Roman Empire, vol. II, The Peace of Westphalia to the Dissolution of the Reich 1648-1806. Oxford: Oxford University Press, 2012.

WILSON, Peter H. Still a monstrosity? Some reections on early modern statehood. Historical Journal, v. 69, 2006, p. 565-576.

 

Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Titular na Universidade Federal do Ceará.

 

 

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] Penso na renovação do pensamento político tomando como base, em algum momento, o De statu realizada por comentadores importantes: Detlef Döring (1992), James Moore e Michael Silverthorne (1995), Horst Dreitzel (1995a e 1995b), Alfred Dufour (1996) e Maurizio Bazzoli (1996).

[2] De statu, a partir da perspectiva do visitante italiano Severinus, satiriza a doutrina oficial da “constituição mista” do reino. Nas palavras do editor das obras completas de Pufendorf, Wilhelm Schmidt-Biggemann, “a obra de maior relevo que ele escreveu em Heidelberg é novamente um pequeno opúsculo, uma combinação de sátira e introdução à história da constituição do reino em forma de diálogo”. Uma vez que o príncipe de Pfalz, Karl Theodor, que certamente conhecia o conteúdo da obra, não permitiu a sua publicação, o opúsculo foi divulgado nos Países Baixos com “o fingido local de impressão Gênova” (SCHMIDT-BIGGEMANN, 2003, p. 156-157; cf. HAAS, 2006, p. 39-40). Na década de 1690, Pufendorf preparou uma segunda edição publicada postumamente em 1706. Ver-se-á na parte final do meu artigo uma mudança de perspectiva, não consta mais a passagem que comparava o império a um monstro. A minha explicação não segue a literatura secundária segundo a qual o autor moderou a sua linguagem com receio das consequências da caracterização crítica do Sacro Império Romano. Proponho a tese segundo a qual as revisões posteriores podem, pelo menos em parte, ser explicadas em virtude da publicação do De jure naturae et gentium (De jure), em especial, o livro VII, divulgado seis anos após o De statu ter aparecido pela primeira vez e cerca de duas décadas antes de começar a trabalhar na sua segunda edição.

[3] Pufendorf concorda e argumenta que descrever o império como uma democracia seria “negar o nome de cidadãos a homens livres e patriarcas” que não estavam representados na Dieta Imperial, um absurdo visto que todos eles detinham por tradição constitucional vários privilégios ou liberdades (PUFENDORF, 2013, VI, §3).

[4] “Deus não pode, de nenhuma outra forma, tornar-se um devedor do homem mortal, senão por conta de sua promessa gratuita, cuja violação seria repugnante para sua bondade” (PUFENDORF, 1998, I, IX, §5).

[5] Para um relato detalhado do desenvolvimento do pensamento constitucional de Pufendorf entre 1667 e 1672, ver Alfred Dufour (1996).

[6] Para uma discussão que enfatiza as propostas de Pufendorf para fortalecer a unidade imperial, ver Joachim Whaley (2012, p. 96-99).

[7] Neste quesito, devo ao trabalho minucioso de Ben Holland a fonte da escolástica molinista e suareziana no pensamento do luterano Pufendorf. A Parte I do livro de Holland explica como e por que Pufendorf desenvolveu sua noção do Estado como uma pessoa moral. O capítulo 1 explora a concepção molinista ou jesuíta de liberdade, desenvolvida por Luis de Molina e Francisco Suárez, que Pufendorf posteriormente adotou, particularmente a distinção de intelecto e vontade, e a preservação da liberdade humana por meio da noção do divino “conhecimento [apenas] mediato”. O ponto principal é que, de acordo com a concepção molinista de liberdade, uma pessoa livre tem duas “faculdades”: uma vontade e um intelecto. A vontade é a faculdade “formalmente livre” que permite à pessoa agir ou não em qualquer conjunto de circunstâncias – na verdade, resistir a causas externas (HOLLAND, 2017, p. 32-34). Mas a vontade requer razões para a ação, e os objetos da vontade devem primeiro ser “conhecidos” pelo intelecto (p. 35-37). O intelecto é, portanto, uma condição necessária para um ato livre. Outra consequência importante do capítulo está na afirmação da liberdade contra as noções luterana e calvinista de “escravidão” pecaminosa e empregada na casuística jesuíta do confessionário. Holland também vincula a casuística ao humanismo da Renascença, particularmente a retórica, elucidando assim seu caráter probabilista e seu efeito “libertador” no uso prático da razão na busca de seus fins autodefinidos.