A influência dos fatores ambientais sobre a natureza e a saúde humana, segundo a medicina hipocrática
The influence of environmental factors on nature and human health according to Hippocratic medicine
Juliana da Silveira Pinheiro
UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz
Recebido: 16/05/2023
Received: 16/05/2023
Aprovado: 22/04/2024
Approved: 22/04/2024
Publicado: 21/05/2024
Published: 21/05/2024
RESUMO
Este artigo visa investigar a influência dos fatores ambientais sobre a natureza humana e sua saúde, conforme a visão da medicina hipocrática, pois elas estão intrinsecamente ligadas. Na medida em que, segundo a tese mais aceita da medicina hipocrática, a natureza humana é composta por quatro humores, cujo equilíbrio proporcionará a saúde do indivíduo, tudo o que influenciar esses humores, irá, ao mesmo tempo, influenciar tanto a natureza do homem, quanto sua saúde. Desse modo, é imprescindível, para a medicina, identificar e compreender as condições ambientais que podem, não apenas influenciar, mas determinar a doença, bem como a própria natureza do indivíduo. Para essa investigação, tratamos, especialmente, da análise do livro Ares, águas e lugares, no qual é possível verificar explicitamente uma descrição desses fatores ambientais, bem como de outros textos, tais como A Doença sagrada, A Natureza do homem, Da dieta – Livro I, Enfermidades IV e Aforismos.
Palavras-chave: Natureza humana, Saúde, Ambiente, Corpus Hippocraticum.
ABSTRACT
This article aims to investigate the influence of environmental factors on human nature and health, according to the view of Hippocratic medicine, as they are intrinsically linked. Insofar as, according to the most accepted thesis of Hippocratic medicine, human nature is composed of four humors, whose balance will provide the individual's health, everything that influences these humors will, at the same time, influence so much the nature of man, how much your health. Thus, it is essential for medicine to identify and understand the environmental conditions that can not only influence, but determine the disease, as well as the nature of the individual. For this investigation, we dealt, in particular, with the analysis of the book Airs, Waters and Places, in which it is possible to explicitly verify a description of these environmental factors, as well as other texts, such as The Sacred Disease, The Nature of Man, On Diet – Book I, Diseases IV and Aphorisms.
Keywords: Human nature, Health, Environment, Corpus Hippocraticum.
Introdução
A visão de natureza humana apresentada no texto A natureza do homem, do Corpus Hippocraticum, identifica-a explicitamente com aspectos biológicos, isto é, ela se baseia naquilo que nos compõe fisicamente, e não em uma visão metafísica ou moral. Como se pode esperar, enquanto uma perspectiva médica, essa abordagem considera aquilo que pode ser constatado empiricamente. Neste caso, a natureza humana refere-se aos quatro humores que substancialmente nos compõem: o sangue, o fleuma, a bile negra e a bile amarela. Olhando nessa perspectiva, à primeira vista, a natureza humana restringe-se ao nosso corpo e àquilo que o compõe.[1]
Porém, explorando um pouco mais, podemos perceber que, segundo esse ponto de vista, os humores são formados por elementos primários, quais sejam: o fogo, a água, a terra e o ar, que por sua vez possuem qualidades de quente, úmido, seco e frio. Essa relação, inspirada na doutrina dos quatro elementos de Empédocles, refere-se à cosmogonia pré-socrática que buscava conhecer os elementos fundamentais de todo o cosmos. Dessa forma, somos formados pelos mesmos elementos que constituem todo o universo, isto é, somos um microcosmo à maneira do grande cosmo. Nesse sentido, a visão médica hipocrática é profundamente marcada pela filosofia, de modo que, mesmo a compreensão médica dos humores, bastante concreta e empírica, apoia-se na visão universalizante da filosofia.[2]
Mais do que isso, veremos agora que a antropologia hipocrática, que inicialmente parecia ser apenas biológica, avança para a interferência do meio ambiente onde vive, na medida em que os fatores ambientais poderiam influenciar ou até mesmo determinar nossa natureza física e psíquica, podendo causar, com isso, enfermidades. Natureza e saúde estão, portanto, interligadas, pois o desequilíbrio de uma leva ao desequilíbrio da outra. Se considerarmos que a natureza humana é composta por quatro humores e que do equilíbrio deles depende a saúde do indivíduo, tudo o que influenciar esses humores, irá, ao mesmo tempo, influenciar tanto a natureza do homem, quanto sua saúde. Veremos, então, que o estudo da natureza humana, segundo o Corpus Hippocraticum, compreende não somente a consideração de seus constituintes físicos, como superficialmente se pode pensar, mas também, mais profundamente, de seus fundamentos, o que a coloca como parte de uma cosmogonia, bem como abrange o exame de todo o entorno que a influência. É o que veremos agora.
No livro Ares, águas e lugares[3], vemos com clareza a influência do meio sobre a natureza e a saúde humana. Os ventos que sopram, se são frios ou quentes, se são de sul ou de norte; a água que bebemos, se é de lagoa, de pântano, do degelo das neves, das chuvas etc.; o lugar onde moramos, se é na colina ou no vale, se tem umidade ou se é seco, se pega sol de manhã ou de tarde; enfim, cada variável dessas pode influenciar nossa saúde. Evidentemente que, contextualmente, o autor desse livro se referia à região onde ele se encontrava ou por onde havia viajado. Não é possível, portanto, aplicar ipsis litteris as recomendações desse texto, como se fosse uma cartilha, porque ela foi configurada naquela geografia. Porém, o texto nos chama a atenção para a necessidade de considerar a influência desses fatores sobre nossa saúde. Diz ele:
Quem quiser investigar corretamente a medicina deve fazer o seguinte: primeiramente, considerar, a propósito das estações do ano, os efeitos que cada uma delas é capaz de produzir, pois elas não se parecem nada entre si, mas diferem muito, tanto quanto umas às outras, quanto em suas mudanças. Em seguida, os ventos quentes e os frios, sobretudo os que são comuns a todos os homens, e aqueles que são particulares a cada região. Deve-se, então, levar em consideração as propriedades das águas, pois, assim como diferem em sabor e em peso, também suas propriedades diferem muito de uma para outra. Assim, quando um médico chega a uma cidade, na qual ele não tem experiência, ele deve examinar com cuidado a posição, a maneira como ela está posicionada em relação aos ventos e aos levantes do sol; pois a cidade não tem as mesmas propriedades se ela está voltada para o boreal ou para o noto, nem se está voltada para o levante do sol ou se está voltada para o sol poente. Eis o que se deve considerar da melhor maneira possível, inclusive acerca das águas, como elas se apresentam, e em particular, se os habitantes usam águas pantanosas e moles, ou duras, provenientes de lugares altos e rochosos, ou ainda águas salgadas e cruas. Além disso, ele deve considerar a terra, se é descampada e sem água, ou se é coberta de vegetação e abundante em água, ou ainda se é uma depressão e é sufocante, ou se é elevada e fria. Depois, ele deve considerar a dieta dos habitantes, o que lhes dá prazer; se amam a bebida, comem ao meio-dia e são inativos, ou se amam o exercício e o esforço, e são vorazes e pouco bebem (AAL[4], 1999a, p. 115-116, tradução nossa[5]).[6]
Considerar, portanto, as estações do ano, os ventos, as águas, a posição em relação ao sol, a geografia local, a vegetação, a dieta, a bebida, o prazer e os exercícios físicos é a tarefa do médico hipocrático, que deve se deslocar até as vilas para conhecer o lugar onde vive o paciente. Por isso, a figura do médico itinerante[7], que vai até o paciente, e não do paciente que vai até o médico, é típica da medicina hipocrática. Ele precisa conhecer as condições ambientais em que vive o indivíduo, uma vez que ele está buscando as causas das doenças e elas devem ser causas naturais e não místicas.[8] Nesse sentido, Ares, águas e lugares é um texto em que se encontra uma descrição desses fatores, o qual compactua com a doutrina dos humores apresentada no texto A natureza do homem, cuja compreensão da saúde se dá como equilíbrio dos humores e, como tal, se os fatores ambientais podem aumentar ou diminuí-los, eles próprios podem ser causas de doenças. Para tanto, o autor de AAL analisa detalhadamente a influência desses fatores, e, assim, podemos resumir:
Ares
O autor mostra que a temperatura dos ventos que sopram, se são quentes ou frios, interferem nos humores, de modo que podem causar diferentes doenças. Por isso, ao chegar em uma cidade, é preciso preocupar-se com a posição com relação aos ventos e à saída do sol, pois não possuem as mesmas propriedades aquelas que são voltadas ao Norte e as que são voltadas ao Sul, ou ao sol nascente ou ao poente.
Segundo ele, em cidades voltadas para ventos quentes no inverno e abrigadas de ventos vindos das Ursas[9], as águas são abundantes, ligeiramente salgadas e próximas da superfície, quentes no verão, mas frias no inverno; os habitantes possuem cabeças úmidas e fleumáticas e, pelo excesso de fleuma que escorre para baixo, suas cavidades[10] são perturbadas e sua constituição física é relaxada, assim como não são capazes de bem comer, nem de bem beber. Nesse clima, homens são mais propensos a disenterias e febres contínuas; mulheres, são doentias, suscetíveis a fluxos, muitas se tornam estéreis e abortam com facilidade; crianças sofrem convulsões e podem ter aquilo que chamavam de doença sagrada, a epilepsia (AAL, 1999a, p. 117).
Já nas cidades localizadas em sentido oposto, isto é, voltadas aos ventos frios, as águas são duras, frias e doces. As pessoas possuem corpos tensos e a maioria têm cavidades inferiores rudes ou duras, sendo mais biliosas do que fleumáticas. As cabeças são sãs e duras. Nesses lugares, é muito comum pleurisias[11] e abscessos, estes devido a tensão do corpo e rigidez das cavidades. Muitas mulheres se tornam estéreis, por causa das águas duras, cruas e frias, fazendo com que os mênstruos não ocorram de modo conveniente, sendo pouco abundantes e ruins. Elas parem com dificuldade, embora dificilmente abortem, e amamentam com dificuldade também por causa da dureza e frieza das águas (AAL, 1999a, p. 118-119).
Os lugares mais saudáveis são aqueles voltados para a nascente do sol, diferentemente daqueles que estiverem voltados para os ventos das Ursas e ventos quentes. Isso porque nessas cidades o calor e o frio são mais moderados e porque as águas voltadas para o nascer do sol são límpidas e moles, e a névoa não se retém em tais cidades. Quanto ao aspecto físico, os habitantes são corados e possuem a voz clara, assim como são mais bem dotados para o entendimento, posto que todas as outras produções naturais são melhores. Aí, os homens são corados e as mulheres são muito fecundas e parem com facilidade. Nesses lugares, os casos de enfermidades são menos numerosos e fracos. Ao contrário, as cidades que estão voltadas para o poente e são ladeadas pelos ventos quentes e frios (estes últimos das Ursas) são consideradas nocivas à saúde. Isso acontece porque as névoas são frequentes pela manhã e, ao misturar-se com a água, fazem com que ela perca sua limpidez, já que não permite o sol brilhar pela manhã. Por isso, é comum que os homens sejam descorados e fracos, com voz rouca e grave, também por causa da névoa (AAL, 1999a, p. 119-120).
Águas
Da mesma forma que os ventos, as águas também podem ser saudáveis ou nocivas, a depender do que carregam e da sua temperatura. Quanto às fontes, as piores são as águas pantanosas, paradas e lacustres que, no verão, são quentes, densas e fétidas porque não fluem e, mesmo quando recebem água da chuva, ficam turvas e esquentam, produzindo muita bile. No inverno, ao contrário, são muito frias e turvas por causa da neve e do gelo, produzindo com facilidade fleuma e rouquidão. Quem as bebem têm sempre o baço muito grande e endurecido e o ventre emagrecido, duro e quente, assim como seus ombros, clavículas e rostos. Tais indivíduos são necessariamente famintos, sedentos e têm as cavidades muito secas. Esta doença é habitual no verão e no inverno. Além disso, as hidropisias são muito frequentes e mortais. No verão, sobrevêm disenterias, diarréias e febres quartãs; no inverno, entre os jovens, atacam pneumonias e doenças acompanhadas de delírio, e, nos mais velhos, ocorrem febres altas devido à dureza das cavidades. Dentre as mulheres, ocorrem inchações e leucoflegmasias[12], engravidam com dificuldade e parem arduamente. Os recém-nascidos são grandes e inchados, e, à medida que são nutridos, tornam-se tísicos e doentis (AAL, 1999a, p. 121).
As águas provindas de rochas ou de terras que carregam prata, ouro, ferro ou outro mineral, não são de boa qualidade, pois são duras ou escaldantes, já que essas matérias se formam sob a ação violenta do calor, sendo ruins para a micção e defecação (AAL, 1999a, p. 122).
As melhores águas fluem de lugares elevados e de colinas de terra, pois são doces, sendo quentes no inverno e no verão frias, pois vêm de fontes muito profundas. As que são voltadas para a nascente do sol, são as melhores, pois são mais límpidas, leves e de bom odor. Ao contrário dessas, são ruins as águas duras, salgadas e cruas, a não ser que sirvam para determinadas enfermidades, pois quando um ventre está muito duro, são boas as águas moles, leves e límpidas, enquanto que, quando as cavidades são moles, úmidas e fleumáticas, convêm as águas mais duras, cruas e ligeiramente salgadas, pois assim lhes secará o ventre. Com efeito, as águas moles amolecem as cavidades e as águas duras as ressecam (AAL, 1999a, p. 122-123).
Águas pluviais são mais leves, doces e límpidas, pela própria maneira como são formadas, pois o sol atrai e arrasta para cima o que for mais leve. No entanto, ela apodrece com facilidade também, uma vez que é formada por águas de diferentes lugares. Nesse caso, é necessário ferver a água, a fim de evitar o mau odor, a rouquidão e a tosse que pode se instalar (AAL, 1999a, p. 123-125).
Já as águas provindas de gelo e neve são todas más, pois uma vez que se congelam, não retornam mais a sua natureza original, mas a parte que dela é límpida, doce e leve se separa quando do congelamento e desaparece, e o que for mais turvo e pesado permanece (AAL, 1999a, p. 125).
Em resumo, como pudemos ver, as águas não são todas iguais e, onde se bebem águas diversas, tanto onde se bebe água de grandes rios, nos quais desembocam outros rios, quanto provenientes de lago aonde chegam muitas correntes, e também os que bebem água encanada de longa distância, as pessoas sofrem de enfermidades tais como: litíase, nefrites, estrangúrias, ciáticas e tumores escrotais. Isso ocorre porque as águas, sendo umas doces, outras salgadas e adstringentes, outras de fontes quentes, brigam entre si e vence a mais forte, que em uma ocasião pode ser uma ou pode ser outra (AAL, 1999a, p. 125-126).
Lugares, estações do ano e costumes
Da mesma forma que os ares e as águas, os lugares e as estações também influenciam nossa natureza e nossa saúde. O autor de Ares, águas e lugares descreve minuciosamente as diferentes estações, com suas possibilidades (chuvosas, secas, moderadas ou extremas) e as consequências para a saúde humana. Por exemplo, se o outono tiver chuvas, o inverno for moderado e na primavera e verão tiverem chuvas oportunas, este será considerado um ano saudável. Mas, se o inverno for muito seco e boreal, a primavera muito chuvosa e austral, o verão será propício a febres, principalmente aos fleumáticos, pois quando o calor sufocante do verão chega, sobre a terra ainda úmida da primavera, o calor é o dobro, enquanto o corpo está muito úmido (AAL, 1999a, p. 127-128).
No texto A natureza do homem, podemos ver como, com o passar das estações, os humores aumentam ou diminuem, conforme as qualidades (quente, frio, seco e úmido) aparecem ou desaparecem. Como já apresentado no artigo “A natureza humana segundo o Corpus Hippocraticum: Análise da natureza do homem” (2021, p. 22), os humores possuem duplos princípios (quente e seco / quente e úmido / frio e úmido / frio e seco) que aumentam quando encontram um ambiente da mesma natureza e diminuem quando encontram seu contrário. Por exemplo, o fleuma, que é frio e úmido, diminui no verão seco e quente, e aumenta no inverno frio e úmido; a bile negra que é seca e fria aumenta no outono que também é seco e frio e diminui na primavera quente e chuvosa, e assim por diante. Por isso, é fundamental conhecer a natureza do que nos constitui, para que saibamos manter o seu equilíbrio, na medida em que isso depende de que um humor não aumente demasiadamente, a ponto de se sobrepor aos demais e provocar uma doença. Assim também diz o Aforismo 1º, 3ª sessão: “Sobretudo são as mudanças de estação que produzem enfermidades, e nas estações, as grandes variações de frio e de calor” (Aforismos, 1999b, p. 218, tradução nossa).[13]
É seguindo o mesmo raciocínio que o autor de Ares, águas e lugares afirma que um médico deve saber que “a contribuição da astronomia é muito importante, pois o estado das cavidades internas dos homens mudam conforme as estações do ano” (AAL, 1999a, p. 116-117, tradução nossa).[14] Conforme este autor, ao se ter conhecimento das estações e do nascimento e ocaso dos astros, poder-se-á saber como será a constituição sanitária do ano e, assim, saber quais enfermidades aparecerão no verão ou no inverno (AAL, 1999a, p. 116). Isto é o que Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine (1999, p. 267) chamam de “medicina metereológica”, a qual é inseparável e mesmo dependente da astronomia, posto que as estações, com os solstícios, os equinócios e o movimento dos astros causam modificações no corpo e afetam a saúde.
Essa análise pormenorizada dos lugares e seus climas foi feita especialmente comparando a Ásia e a Europa, uma vez que é entre esses dois continentes que as escolas hipocráticas surgem e é sobretudo nessa região que os médicos hipocráticos circulam. Para o autor de Ares, águas e lugares, o Egito e a Líbia faziam parte da Ásia[15], diferentemente do que pensavam outros autores do Corpus Hippocraticum, e é sobre esses lugares que ele irá tratar em primeiro lugar.
Aos olhos deste autor, na Ásia tudo é mais belo e maior, e os indivíduos têm caráter mais amenos e afáveis. Isso se deve às estações mais moderadas, onde não há nem frio extremo, nem secura, nem calor exacerbado, nem é alagada. Nesse lugar, é normal que os homens sejam bem nutridos, menos diferentes entre si e de excelente aspecto físico, porém, não predomina a virilidade, o gosto pelo esforço e o caráter resoluto.
Acontece com a terra exatamente como ocorre com os humanos. Pois onde as estações produzem mudanças maiores e mais frequentes, ali o solo é o mais selvagem e mais irregular, e encontrará montanhas com vegetação densa, planícies e prados. Ao contrário, onde as estações não mudam muito, nesses lugares, a terra é mais regular. Isso também acontece aos homens, se prestarmos atenção, pois há naturezas que se parecem com as montanhas arborizadas e cheias de água, outras que se parecem com os solos pobres e sem água, as que se parecem com os solos mais pantanosos e brejos, e também as que se parecem com uma planície sem vegetação e seca. Portanto, as estações que modificam a forma natural [dos corpos] são diferentes. Se elas diferem grandemente entre si, mais consideráveis são as diferenças nos aspectos físicos (AAL, 1999a, p. 132, tradução nossa).[16]
É interessante notar essa comparação dos homens às plantas e à terra, cujas diferenças entre eles se dão provocadas pela maior ou menor variação das estações. Quanto mais mudanças ocorrerem nestas, maiores serão as diferenças nos aspectos físicos, como diz ele. E o contrário também acontece, segundo o autor, de poucas variações nas estações representarem poucas diferenças nos indivíduos. Portanto, não é apenas no sentido do desencadeamento de doenças que o ambiente pode nos influenciar, mas também na maneira de formar nosso físico. Nesse raciocínio, somos como árvores e terras, uns mais úmidos, outros mais secos, alguns mais densos, outros mais finos etc., sofrendo a atuação das estações e caracterizando uma variedade de naturezas humanas.
Essa comparação do homem com o restante da natureza aparece também no Livro I da Dieta, em que o autor[17] afirma:
Em resumo, o fogo todo o tem (o embrião) organizado por si mesmo no interior do corpo, à imitação do universo, concordando o pequeno com o grande e o grande com o pequeno. A cavidade estomacal é como o órgão mais amplo, recipiente para a água seca e úmida, a fim de proporcioná-la a todo o resto e receber de todo o demais, à maneira do mar, nutridor dos animais adaptados a ele e destruidor dos inadaptados. Em torno dessa (cavidade estomacal), o fogo produz uma condensação da água fria e úmida, conduto para o ar interior frio e quente, à imitação da terra, que transforma tudo o que cai sobre ela. E ao consumir isto e ao desenvolver o outro, tem logrado uma dispersão de água ligeira e de fogo aéreo, invisível e visível, secreção do compacto, no qual se move cada elemento para chegar a fazer-se visível, no momento prefixado. No interior, o fogo formou três círculos, que se correspondem entre si, tanto por dentro quanto por fora, um nas cavidades do úmido, à maneira da lua, o outro na capa sólida circundante, à maneira dos astros, e o circuito médio que alcança tanto o interior como o exterior, à maneira do sol (Sobre a dieta, Livro I, 2020b, p. 11, tradução nossa, grifo nosso).[18]
Nessa passagem que trata da formação do embrião, à maneira dos astros e outros elementos da natureza, fica evidenciada a ideia do ser humano como um microcosmo, cuja natureza é a mesma do grande universo. Participamos da mesma phýsis, isto é, da mesma natureza, e, como tal, funcionamos da mesma maneira. Como afirma Entralgo:
Posto que a mente dos hipocráticos teve sua pátria na Grécia antiga, o homem foi para eles uma peculiar configuração da phýsis, uma cria da natureza dotada de lógos. [...] É próprio do homem pensar, falar e modificar o mundo com suas mãos. [...] Enquanto rebento da phýsis universal, o homem tem em sua estrutura e em sua dinâmica algo comum com todos os entes naturais e mais ainda com todos os seres viventes (Entralgo, 1970, p. 112, tradução nossa).[19]
Mas não somente os aspectos físicos são influenciados pelas estações e geografia. É preciso destacar que assim também acontece ao estado de espírito. No que concerne às correspondências dos aspectos físicos e do espírito ao meio ambiente, o texto Ares, águas e lugares (1999a, p. 142) estabelece:
Os que habitam regiões montanhosas, lugares altos, com água em abundância e estações com mudanças diferenciadas são indivíduos de grande porte e naturalmente com disposição para o esforço e a coragem. Selvageria e ferocidade são significativas.
Os que habitam regiões côncavas, cobertas de pradarias e sufocantes, com ventos e águas quentes são indivíduos baixos, com tendência à largura, carnudos e de cabelos e peles mais escuras, mais biliosos do que fleumáticos. A virilidade e a boa disposição são poucas, mas o hábito poderia engendrá-los.
Os que habitam regiões elevadas, planas, com água e ventos abundantes, podem ter compleições de grande tamanho e próximas entre si, mas seus espíritos serão mais dóceis e menos corajosos. Pois os que habitam regiões com climas temperados e que usam águas abundantes e boas, o físico e a moral são boas.
Mas os que habitam lugares de solo pobre, sem água, sem vegetação e sem clima temperado, nessa região os aspectos normalmente são rijos, tonificados, mais para loiros do que para escuros, com costumes e sentimentos orgulhosos e independentes.
Onde a terra é macia, fecunda e abundante, e as águas são fortemente elevadas, de sorte a serem quentes no verão e frias no inverno, e durante as estações tudo ocorre bem, os homens são carnudos e sem articulações visíveis, úmidos, sem vigor e geralmente com a alma de má qualidade. São indolentes e sonolentos.
Onde a região é sem vegetação e sem água, acidentada, oprimida pelo inverno e queimada pelo sol, os homens são rijos, magros, com articulações visíveis, tonificados e cabeludos, com espírito de trabalho e sono difícil, mais selvagens do que dóceis, mais precisos nos ofícios e mais argutos, e, nas atividades belicosas, mais bravos.
Do modo como se estabelecem essas correlações, parece haver não somente uma influência do meio sobre a saúde dos habitantes, mas, mais forte do que isso, uma determinação de suas naturezas. O determinismo ambiental consiste na ideia de que o meio ambiente define ou influencia o indivíduo por uma relação causal, não apenas quanto à sua saúde, mas à sua natureza física e psíquica. Podemos perceber essa interpretação quando os habitantes desses lugares são descritos com as mesmas características de suas regiões: habitantes altos em lugares altos; pessoas dispostas onde há água em abundância; vales sufocantes, com água e ventos quentes, que produzem indivíduos de estatura baixa, gordos e de cabelos escuros; terras fecundas que geram habitantes indolentes etc. Nessa descrição, a relação de determinação é entendida ao se tratar de algo que nos forma, sem termos escolha, e, em certos aspectos, sem a possibilidade de alteração, como no caso de estaturas e cores da pele e dos cabelos. De alguma forma, segundo essa ideia, nos moldamos a esses ambientes, assim como as plantas, nos constituindo a partir da mesma incidência de sol, umidade, abafamento, frescor, sombra, mudanças bruscas ou amenas de temperatura, absorvendo essas qualidades e nos tornando tais quais. Refletindo assim, Jouanna e Magdelaine escrevem:
A influência do meio externo também desempenha sobre o físico dos habitantes de uma região dada, que pode variar conforme a orientação dos ventos ou do sol, conforme a natureza da água utilizada, conforme a natureza da terra ou, mais amplamente, segundo o conjunto de condições climáticas do ano, como explica o tratado Ares, águas e lugares. Estes múltiplos fatores, componentes da “medicina metereológica”, interferem com os fatores pessoais que são a idade, o sexo ou o temperamento, mas para além das particularidades individuais, resultam em características comuns no conjunto da população submetida às mesmas condições climáticas. O meio exerce, portanto, um verdadeiro determinismo posto que o homem é um produto de seu meio geográfico e climático, da mesma forma que as plantas ou os animais (Jouanna e Magdelaine, 1999, p. 37-38).[20]
É preciso ainda destacar que o autor de AAL procura mostrar como, na sua percepção, os Europeus são muito diferentes dos Asiáticos e isso se deve, em parte, às diferenças grandes entre as estações, e em parte, aos costumes. Afirma o autor:
Eis porque, na minha opinião, os habitantes da Europa são mais corajosos do que os da Ásia; pois, em climas quase sempre constantes, reina o comportamento indolente, enquanto que, em climas que se modificam, são os comportamentos ativos, tanto para a alma quanto para o corpo; e, a partir da ociosidade e da indolência, a covardia aumenta, enquanto que a partir da vivacidade e dos esforços, aumenta a coragem. Por essa razão, os habitantes da Europa são mais belicosos, e também por causa das leis, porque não são submissos aos reis como os asiáticos. De fato, lá onde os homens são reinados, é inevitável que eles sejam muito covardes, como eu disse anteriormente. As almas são escravizadas e não querem espontaneamente correr riscos imprudentes para o poder alheio. Ao contrário, os que são autônomos, posto que correm riscos por eles mesmos, e não por outros, são espontaneamente impetuosos e afrontam o perigo, pois a eles mesmos cabe o mérito da vitória. Assim, as leis produzem a coragem de uma maneira que não é negligenciável (AAL, 1999a, p. 141-142, tradução nossa).[21]
A ideia, aqui, é de que poucas mudanças climáticas tornam o espírito mais pacífico e mais inapto para a guerra, como acontece com os asiáticos, pois a estabilidade das estações não despertaria a coragem e o ânimo. Isso os tornaria, ao mesmo tempo, mais dóceis em relação ao caráter. Por outro lado, mudanças bruscas tornam o espírito mais belicoso, pois os golpes frequentes no espírito implantam a selvageria e destroem a docilidade e a amenidade. Assim ocorreria com os europeus, que se tornariam, ao contrário dos asiáticos, mais aptos para o confronto (AAL, 1999a, p. 134 e 141).
Para além das estações do ano que provocariam essas diferenças no estado de espírito, assim também fariam os costumes, ou o nómos, como aponta a passagem acima, quando fala do regime político e do modo como o seu povo pode estar mais ou menos submetido a ele. Por “costumes” se entende aqui tudo aquilo que é criado pelo homem, no sentido das convenções culturais e político-sociais, expressas muitas vezes por leis, por oposição ao que está dado pela natureza, o qual denominamos phýsis. No trecho citado, o autor faz menção à submissão à tirania e, por outro lado, à liberdade de enfrentar os seus próprios perigos. Quando lutam livres, com autonomia, enfrentam os perigos por causas próprias e desenvolvem, com isso, a coragem. Diferentemente disso, quando forçados pelo poder de um rei a enfrentar perigos alheios, sentem que sofrem pelo que não é seu, enquanto que os frutos prósperos dos combates ficam para os reis. Nessa posição de submissão ficam desprovidos de combatividade. Assim diz o texto:
É por essas razões que, na minha opinião, o povo asiático é desprovido de combatividade; e é, por outro lado, por causa das leis. A maior parte da Ásia está, com efeito, submetida a reis. Ora, lá, onde os homens não têm poder sobre si mesmos, nem são independentes, mas são submetidos a um mestre, a questão não é de se exercitar à guerra, mas de parecer inaptos ao combate. Pois os riscos não são igualmente partilhados: é normal que eles partam em expedição, que passem por provas e morram, forçados pela despotização, separados de seus filhos, de suas mulheres e todos os seus. Quanto às façanhas nobres e corajosas que eles realizam, são seus mestres que se valem para crescer e prosperar, enquanto que os perigos e as mortes são os frutos que eles recolhem. Além disso, é inevitável que a terra pertencente a tais homens se desertifique, por causa das hostilidades e da ausência de cultura. De sorte que, mesmo se alguém for naturalmente corajoso e bravo, seu espírito será modificado pelos costumes. Eis uma grande prova disso: aqueles que na Ásia, gregos ou bárbaros, não são despotizados, mas são autônomos e sofrem por conta própria, esses são os mais combativos de todos, pois enfrentam por eles mesmos os perigos e recebem, eles mesmos, os prêmios de sua coragem, assim como as sanções por sua covardia. Perceberá também que os Asiáticos diferem entre si, alguns mais bravos, outros mais pusilânimes. A causa está nas mudanças das estações, como já foi dito por mim anteriormente (AAL, 1999a, p. 134-135, tradução nossa).[22]
Nesse sentido, o nómos ou leis ou ainda o costume é capaz de mudar a própria phýsis humana, entendida aqui como a estrutura física e psicológica do homem. Como neste trecho em que o regime político poderá influenciar o estado de espírito do indivíduo, tornando-o mais belicoso ou mais passivo, conforme a imposição de obediência ou a liberdade de maior autonomia. Assim, através de leis, seria possível produzir mais coragem ou indolência, pois naqueles que é necessário obedecer a um tirano e que, portanto, correm riscos por uma causa que não é sua, consequentemente tornam-se mais covardes. Já em indivíduos mais autônomos, em que lutam por causas próprias, é mais fácil despertar a coragem de enfrentar perigos, porque, como diz o texto, “a eles mesmos cabe o mérito da vitória”. Enquanto nos submissos à tirania não faz muito sentido a luta, nos autônomos é muito mais facilmente despertada a coragem de lutar. Desse modo, as leis podem moldar a natureza do homem, no que concerne à sua condição psicológica.
O caso mais emblemático e curioso dessa discussão da atuação do nómos sobre a phýsis é o dos macrocéfalos ou os cabeças longas, que trata de uma intervenção do nómos sobre a estrutura física. Conta o autor de Ares, águas e lugares que determinado povo considerava muito nobre ter a cabeça longa e, como tal, moldavam a cabeça dos recém-nascidos a fim de torná-la mais alongada. Como a cabeça dos bebês é ainda mole, eles a moldavam com as mãos no sentido da altura e colocavam uma bandana e outros apetrechos, sob a ação dos quais a esfera da cabeça se alterava e aumentava o comprimento. Sob essa ação, a natureza se modifica por violência, isto é, por uma ação que não lhe é própria. Porém, consideravam que, com o tempo, esta forma era incorporada pela natureza, ainda que o costume parasse de exercer seu constrangimento. Ou seja, diz o autor que as cabeças dessas crianças assumiam a forma alongada e depois os filhos dessas nasciam com o mesmo formato de cabeça. Dessa maneira, mesmo que não houvesse mais a ação deliberada do homem sobre o molde das cabeças das crianças, de algum modo esse formato ficaria incorporado pela própria phýsis. Assim, seus filhos nasceriam com as cabeças longas também. Diante disso, questiona o autor:
Se de pais carecas nascem crianças carecas, de pais de olhos esverdeados nascem crianças com olhos esverdeados, de pais com olhos vesgos nascem crianças vesgas, ao menos na maioria dos casos, e se o raciocínio é o mesmo para o resto do corpo, o que impede que de um macrocéfalo nasça também um macrocéfalo? (AAL, 1999a, p. 133, tradução nossa).[23]
Dessa forma, por origem no costume, o corpo seria moldado, isto é, a cultura interferiria não somente na visão do corpo, mas na sua alteração, o que, por sua vez, acreditava-se, iria reproduzir o mesmo padrão físico. Este caso é muito mais complicado de se aceitar, do que os casos de interferência do costume em nosso estado de espírito, haja vista que agora estamos falando de alteração física permanente e perpassada para outras gerações. Que nosso estado de ânimo se fortaleça ou se condicione à certas leis ou imposições, isso podemos de certa forma compreender. Porém, o que se trata aqui é de algo muito mais gritante: é a natureza física sendo moldada pela cultura. Até que ponto isso de fato acontece? O corpo realmente assimilaria essas modificações e isso seria passado geneticamente? Certamente essa não é uma pergunta que poderíamos fazer aos médicos hipocráticos dessa época, porque estamos questionando sobre algo que não lhe era de seu conhecimento. É uma pergunta anacrônica. Porém, em que se baseia essa crença? Haveria limites para essa intervenção do nómos? O texto não enseja muitas respostas, mas levanta uma das primeiras reflexões sobre as interações entre natureza e cultura.
O que se verifica com tudo isso é que a natureza humana é construída para além do conjunto de humores, tais como, o sangue, o fleuma, a bílis negra e a bílis amarela. Ela é fortemente influenciada não somente pelo ambiente, como por exemplo pelo calor, pela umidade e condições geográficas, mas também pelos costumes que moldam nossa condição psicológica e, mais ainda, nossa condição física – defende o autor de AAL. Sobre isso, comenta Entralgo (1970, p. 182) que a natureza do homem não é apenas biológica, mas também uma realização biográfica, social e política da phýsis humana. Segundo ele, a tékhne, enquanto uma prática ou arte, tal como a metalurgia, a escultura, a medicina ou a culinária, exige a permanência em determinadas pólis, que possuem determinadas configurações, acarretando sobre o homem uma espécie de molde a ele. Se, para exercer sua profissão, o indivíduo precisa morar em uma cidade, com espaços pequenos, com pouco sol e pedras, dormindo tarde, por exemplo, isso com certeza irá influenciar sua disposição de espírito e mesmo irá aumentar ou diminuir certos humores. Se, ao contrário, pela sua tékhne, ele precisar morar no campo, exposto às intempéries, por exemplo, certamente que isso poderá moldá-lo de outra forma. Enfim, em decorrência da arte que se pratica, e do ambiente político e social, sua saúde será influenciada de alguma forma. E a história, com seus diversos contextos, poderá atuar sobre a saúde humana.
Portanto, de acordo com essa perspectiva, poderá haver influências do meio, desde as mais leves, até as mais fortes e duradouras, que seriam inclusive incorporadas e não mais mudadas. Cabe saber o que é possível alterar novamente e o que não mais será.
É exatamente essa a questão que o médico hipocrático deve saber e colocar a sua arte a serviço do que é possível modificar com o objetivo de recuperar a saúde, identificando e alterando os fatores naturais que causaram a doença. Assim, ele deve conhecer a natureza particular do indivíduo e entender a relação causal que o ambiente exerce sobre ela. Por isso, é fundamental que ele viaje até o local do paciente, como já dissemos, para conhecer o quê, no ambiente, pode estar causando a enfermidade, desde aquilo que mais obviamente o próprio paciente consegue perceber, até as maiores sutilezas, que o conhecimento médico consegue compreender. Nesse sentido, o meio ambiente determina a saúde e a doença, até que possamos mudar essas variáveis e estabelecer outra relação causal mais sadia.
Também no Livro I, da Dieta, o autor mostra como o médico pode intervir para tentar recobrar a saúde do paciente através da alimentação e de exercícios físicos, mas também destaca a importância de estar atento às relações dos exercícios com a quantidade de alimentos, a natureza dos indivíduos e a idade dos corpos, bem como sua adequação às estações do ano, às variações dos ventos, às localidades onde habita e às constituições do ano. Da mesma forma, será necessário conhecer as saídas e as postas do sol, de modo que se saiba prevenir as mudanças e os excessos das comidas e bebidas, dos ventos e do universo inteiro, de tudo o que certamente vem aos seres humanos como enfermidades (Dieta, Livro I, 2020b, p. 9).
No livro Sobre as enfermidades IV, o autor mostra como os alimentos carregam desde a terra princípios ativos que podem aumentar ou diminuir o fluxo dos humores, ajudando a equilibrar ou a desequilibrar o organismo. Ele afirma:
Em todos os alimentos e bebidas existe algo de bilioso, algo aquoso[24], algo sanguíneo e algo fleumático em maior ou menor quantidade. Esta é a razão pela qual os alimentos e as bebidas se diferenciam uns dos outros em relação à saúde. [...] Quando alguém come ou bebe, o corpo arrasta até si desde o ventre o humor em questão e as fontes o arrastam desde o ventre através das veias; cada variedade de humor arrasta a seu semelhante e o distribui no corpo, o mesmo que no caso das plantas cada classe de humor arrasta da terra a seu semelhante. A terra tem em si inúmeros princípios ativos e de todas as classes. Proporciona a cada planta o que se desenvolve nela com um humor semelhante ao que a mesma planta possui de forma congênita e afim, e cada uma arrasta da terra seu alimento segundo sua própria natureza (Sobre as enfermidades IV, 2020c, p. 70, tradução nossa).[25]
Em consequência disso, se a quantidade de humor ingerida através dos alimentos e das bebidas for demasiada, de modo que o corpo não possa absorver tudo, ela é expelida pelas fezes, urina ou suor, ou ainda pelo nariz e boca, em algumas ocasiões. Mas se isso não puder ser feito, a pessoa adoece. Se, pelo contrário, a quantidade de humor ingerida for muito pouca, o indivíduo emagrece. É importante destacar que uma quantidade de humor só é expelida quando chega uma nova quantidade ingerida. E assim, o próprio corpo tenta entrar em seu próprio equilíbrio e, quando não consegue, o excesso de um humor provoca a doença.
A saúde não se explica somente pelo equilíbrio interno do corpo, mas também pelas relações harmoniosas que ele entretém com seu meio ambiente. Entre esses elementos exteriores, é preciso contar, em primeiro lugar, tudo o que penetra do exterior no corpo, o ar, as bebidas, os alimentos. Um tratado dietético se objetiva a encontrar o ponto de equilíbrio entre aportes alimentares e exercícios destinados a queimá-los: uma má distribuição corre o risco de fato de causar a abundância que engordará o corpo, incapaz de dominar o afluxo de alimentos, ou ao contrário de provocar o vazio que levará à fraqueza. Além disso, conforme a teoria humoral, os alimentos são providos de qualidades primeiras, quente, frio, seco, úmido, em correspondência com os humores. [...] Com efeito, o corpo sofre a influência do meio natural no qual ele vive. Os ventos ou as águas utilizadas são também dotados de qualidades primárias, da mesma forma que as estações, frequentemente no quadro de um sistema quaternário em correspondência com os humores (Jouanna e Magdelaine, 1999, p. 26-27, tradução nossa).[26]
Tudo isso parece configurar uma tentativa constante de toda a natureza de manter-se em equilíbrio, tirando de onde está cheio para colocar onde está mais vazio, em uma simbiose com todo o ambiente. Nossa saúde é, portanto, o equilíbrio de nossa natureza, nesse jogo de atuações sobre ela. É por isso que influenciar a natureza humana consiste diretamente em influenciar nossa saúde, da mesma forma que restaurar a saúde é recuperar a potência de nossa natureza, no sentido de tudo o que ela é capaz de fazer, seja se movimentar, realizar seus processos biológicos, pensar ou sentir.
Influenciando nosso corpo, o meio também pode produzir doenças psíquicas. De acordo com o autor da Doença Sagrada, que acredita-se ser o mesmo de Ares, águas e lugares, nossas alegrias, prazeres, sofrimentos e dores provêm do nosso cérebro e este pode ser afetado pelo clima. A umidade é um fator muito importante, a qual pode alterar nossa percepção e ser capaz de levar à loucura. Vejamos o que diz o texto:
Os homens devem saber que a fonte dos nossos prazeres, de nossas alegrias, de nossos risos e de nossas brincadeiras não é outra senão aquele lugar [o cérebro], que é igualmente a fonte de nossos aborrecimentos, de nossas aflições, de nossas tristezas e de nossos prantos. E é através dele, sobretudo, que nós pensamos, concebemos, vemos, ouvimos e distinguimos o feio e o belo, o mal e o bem, o agradável e o desagradável, tanto distinguindo conforme o costume, quanto percebendo conforme o que for conveniente. Como distinguimos prazeres e desprazeres de acordo com a oportunidade, não são as mesmas coisas que nos agradam sempre. É ainda por causa dele que enlouquecemos e deliramos, e somos tomados por medos e terrores, seja pela noite ou mesmo durante o dia, assim como insônias, divagações intempestivas, preocupações injustificadas, incapacidade de reconhecer o real, sentimentos de estranheza diante do habitual. Tudo isso nos chega a partir do cérebro, quando este não está saudável, mas está ou mais quente, ou mais frio, ou mais úmido, ou mais seco do que seu estado natural, ou quando está em outro estado contra a natureza, que não lhe é habitual. Nós enlouquecemos devido à umidade do cérebro; pois, quando ele está mais úmido do que seu estado natural, necessariamente ele se move, e, ao mover-se, nem a visão, nem a audição permanecem estáveis, mas ora ouve-se e vê-se uma coisa, ora outra, e a língua expressa isto que é ouvido e visto a cada circunstância. Ao contrário, enquanto o cérebro estiver estável, o homem conservará a sua razão (Da Doença Sagrada, 1999c, p. 160-161, tradução nossa).[27]
E mais:
Da mesma forma que o cérebro percebe primeiro o pensamento proveniente do ar antes das outras partes do corpo, assim também se alguma mudança ocorrer no ar devido às estações e se o mesmo se tornar diferente daquilo que ele era, o cérebro é o primeiro a senti-lo. Eis porque eu afirmo que as enfermidades que se abatem sobre ele são as mais agudas, as mais graves, as mais mortais e as mais difíceis de serem reconhecidas pelos mais inexperientes (Da Doença Sagrada, 1999c, p. 163, tradução nossa).[28]
A epilepsia, que era chamada de “doença sagrada”, é um exemplo de doença considerada passível de cura, desde que observada a influência de fatores naturais no seu desencadeamento, tais como o frio, a umidade, o calor ou a secura.
Para além das especificidades dessas influências que, como dissemos no início, se devem a um contexto geográfico específico, devemos entender que essa observação dos fatores ambientais sobre nossa saúde não se trata de mera curiosidade. Algumas podem ser questionadas, outras, porém, devem ser consideradas ou mesmo recuperadas, porque já esquecidas. O que este levantamento nos permite perceber é que nossa saúde depende de onde estamos. Não depende apenas dos remédios que tomamos. Ao contrário, muitas vezes, o próprio ambiente é nosso remédio e pode ser também o nosso veneno. Sendo assim, devemos nos perguntar: estamos atentos a ele? Estamos atentos à água que bebemos, à direção que o vento sopra, ao sol que seca a umidade, ao frio que incomoda? Sabemos a qual meio somos melhor adaptados? Respeitamos isso? Enfim, conhecemos nossa natureza? Sabemos qual é a nossa disposição natural? Estamos onde naturalmente nos sentimos dispostos ou estamos forçando uma adaptação a algo que não nos alimenta e só nos adoece?
Essas reflexões nos fazem pensar não somente no impacto que o exterior tem sobre nosso interior e sua capacidade de nutri-lo e mantê-lo equilibrado, ou, ao contrário, de desequilibrá-lo, mas também em como nossa natureza é individual e com certa flexibilidade. Aos olhos da medicina hipocrática, não há uma natureza única e homogênea. Há uma multiplicidade de possibilidades de naturezas, dependendo das combinações possíveis de humores e elementos, seja distinguindo as mais frias das mais quentes, as mais úmidas das mais secas, as mais jovens das mais velhas, as masculinas das femininas e outras mais. Nossa natureza é, além de tudo, alterável pelo meio e agora temos consciência dos inúmeros fatores ambientais que podem fazer isso, não somente sobre o estado físico, mas também sobre o estado psíquico. E mais do que pensar que o meio externo é uma coisa diferente de nós mesmos e que viria apenas a atuar sobre nós, o que os textos indicam é que nós somos um produto do meio, porque não somos uma parte diferente dele. Somos feitos das mesmas matérias, dos mesmos elementos e com a mesma dinâmica de todo o cosmos.
Considerações finais
O estudo da influência dos fatores ambientais sobre a natureza e a saúde humana, nos textos do Corpus Hippocraticum, nos mostrou o forte impacto do meio em que estamos vivendo sobre nós e que, portanto, a saúde não depende somente do funcionamento de um órgão ou daquilo que literalmente comemos ou bebemos. Ela depende de tudo aquilo que nos afeta. Num sentido mais amplo, do frio, do calor, da umidade, da secura, os quais aumentam e diminuem os humores, alternando-se com o tempo e as estações. Nosso corpo é vivo e sensível, e ele se retrai ou se distende conforme esses e outros fatores, incluindo, por exemplo, as propriedades da água ou quanto tempo a névoa leva para se dissipar. A medicina hipocrática é, portanto, um convite a observarmos as sutilezas do que nos envolve e mostra como a enfermidade, muitas vezes, é fruto de nossa desatenção ao que nosso corpo é exposto. Um bom médico hipocrático deverá saber coletar essas informações e observar a incidência desses fatores sobre um determinado indivíduo. Na medida em que os corpos não são iguais, pois o equilíbrio dos humores é diferente para cada um, é preciso entender quais fatores são favoráveis para cada pessoa, pois os mesmos fatores podem ser benéficos para uns e maléficos para outros. A medicina hipocrática mostra, destarte, a necessidade de um diagnóstico individualizado, embora se possa encontrar linhas dirigentes sobre o que costuma ser saudável.
Para além disso, há autores no Corpus Hippocraticum que defenderão um grau mais acentuado de influência do ambiente sobre nós, como vimos no caso de Ares, águas e lugares, de modo que, não somente nossa saúde dependerá da relação harmoniosa com o entorno, como nossa estrutura física e psíquica será moldada por ele também, tornando-a mais densa, mais lenta, mais preguiçosa, mais ágil, mais belicosa, mais covarde ou mais dócil, conforme suas características. Entretanto, podemos questionar: até que ponto a atuação dos fatores ambientais e dos costumes, como já questionamos, poderá nos definir? De qualquer forma, a natureza humana parece ser entendida aqui como a incorporação de um estado constituído pelo meio.
É nesse sentido integrativo que Jouanna e Magdelaine escrevem:
Uma das grandes intuições do Corpus é a de que o homem é indissociável do universo que o rodeia, e isso de várias maneiras. No quadro da teoria humoral, os médicos determinaram, entre os humores e estações do ano, uma série de associações e de correspondências. Ao longo do ano, os humores aumentam ou diminuem, induzindo modificações sutis da natureza humana e estimulando, por afinidade, certas doenças em preferência a outras. O corpo segue, portanto, o ritmo da natureza e das estações (Jouanna e Magdelaine, 1999, p. 37, tradução nossa).[29]
Não é, portanto, apenas poético falarmos em seguirmos o ritmo das estações. Essa é a própria observação médica hipocrática, sem a qual adoecemos e com a qual o médico deve fazer seu trabalho, que consiste em ajudar a natureza a restaurar a saúde. Seu papel consiste exatamente nisso: em ser um facilitador da natureza, para que o seu equilíbrio se restabeleça, quando perdido. Porém, cabe aqui nos perguntarmos quanto à nossa responsabilidade nesse processo: sabemos qual é o ritmo da natureza? Observamos que ela se movimenta em recolhimento e expansão? Compreendemos isso e a respeitamos? Atendemos às necessidades de cada momento ou as ignoramos, nos exigindo a mesma resposta em diferentes condições? Percebemos a influência de cada fator ambiental sobre nosso corpo e estado de espírito, desde os mais evidentes até os mais sutis? Os ventos, as águas, os lugares, os alimentos, as estações. Conhecer isso não é fazer poesia; é fazer medicina.
Referências bibliográficas
ENTRALGO, Pedro Laín. La medicina hipocrática. Madrid: Revista de Occidente, 1970.
HIPÓCRATES. Epidemias. In: GUAL, Carlos García. (Ed.). Tratados hipocráticos V. Madrid: ePubLibre, 2020a. (Biblioteca Clásica Gredos).
HIPÓCRATES. Sobre la dieta. In: GUAL, Carlos García. (Ed.). Tratados hipocráticos III. Madrid: ePubLibre, 2020b. p. 17-66. (Biblioteca Clásica Gredos).
HIPÓCRATES. Sobre las enfermidades IV. In: GUAL, Carlos García. (Ed.). Tratados hipocráticos VIII. Madrid: ePubLibre, 2020c. p. 17-66. (Biblioteca Clásica Gredos).
HIPPOCRATE. Airs, eaux, lieux. In : L’art de la médecine. Traduction Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine. Paris: GF-Flammarion, 1999a.
HIPPOCRATE. Aphorismes. In : L’art de la médecine. Traduction Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine. Paris: GF-Flammarion, 1999b.
HIPPOCRATE. Maladie sacrée. In : L’art de la médecine. Traduction Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine. Paris: GF-Flammarion, 1999c.
HIPPOCRATE. Nature de l’homme. In : L’art de la médecine. Traduction Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine. Paris: GF-Flammarion, 1999d.
JOUANNA, Jacques; MAGDELAINE, Caroline. Introduction. In: L’art de la médecine. Paris: GF-Flammarion, 1999, p. 7-65.
PINHEIRO, Juliana da Silveira. A natureza humana entre a medicina e a filosofia. Vitória, Sofia, v. 11, n. 2, ago./2022, p. 01-16.
PINHEIRO, Juliana da Silveira. A natureza humana segundo o Corpus Hippocraticum: análise do texto A Natureza do Homem. Belo Horizonte, SapereAude, v. 12, n. 23, (jan.-jun.) 2021, p. 12-26.
Juliana da Silveira Pinheiro
Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Atualmente é professora adjunta de Filosofia Moderna, na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), com estágio de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisadora nas seguintes temáticas: Filosofia e Medicina; Descartes e as paixões; Medicina hipocrática.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] Essa reflexão foi apresentada no artigo “A natureza humana segundo o Corpus Hippocraticum: análise do texto A natureza do homem”. Belo Horizonte, SapereAude, v. 12, n. 23, jan.-jun./2021, p. 12-26.
[2] Sobre a relação entre medicina e filosofia na medicina hipocrática, tratamos no artigo “A natureza humana entre a medicina e a filosofia”, Vitória, Sofia, v. 11, n. 2, ago./2022, p. 01-16.
[3] Datado da segunda metade do séc. V a.C., cuja autoria é desconhecida.
[4] AAL = Ares, águas e lugares.
[5] As traduções das citações de Ares, águas e lugares, Aforismos, Medicina sagrada, bem como da Natureza do homem foram feitas por nós a partir da versão francesa de Jacques Jouanna e Caroline Magdelaine, como consta na bibliografia. Já as traduções de Epidemias, Sobre a dieta e Sobre as enfermidades IV, realizamos a partir da versão espanhola de Carlos García Gual, também constante nas referências. As citações originais desses textos estão no rodapé das páginas correspondentes.
[6] “Qui veut chercher à appréhender correctement la médecine doit faire ce qui suit: tout d’abord considérer, à propos des saisons de l’année, les effets que chacune d’elles est capable de produire; car elles ne se ressemblent nullement entre elles, mais diffèrent beaucoup, aussi bien de l’une à l’autre que dans leurs changements; ensuite les vents chauds et les vents froids, surtout ceux qui sont communs à tous les hommes, ensuite aussi ceux qui sont particuliers à chaque contrée. Il doit en outre considérer les propriétés des eaux; car de même que les eaux diffèrent en saveur et en poids, de même leur propriété diffère beaucoup de l’une à l’autre. Ainsi, lorsqu’un médecin arrive dans une cité dont il n’a pas l’expérience, il doit en examiner avec soin la position, la façon dont elle est située par rapport aux vents et par rapport aux levers du soleil ; car la cité n’a pas les mêmes propriétés selon qu’elle est située face au borée ou face au notos, ni selon qu’elle est située face au soleil levant ou face au soleilcouchant. Voilà ce qu’il doit considérer du mieux possible ; et de même à propôs des eaux, comment elles se présentent, et en particulier si les habitants usentd’eaux marécageuses et molles ou d’eaux dures issues de lieux élevés et de lieux rocheux, ou d’eaux salées et crues. Puis il doit considérer le sol, s’il est dénudé et sans eau ou s’il est couvert de végétation et plein d’eau, s’il est enfoncé et étouffant ou s’il est élevé et froid. Puis il doit considérer le régime des habitants, quel est celui qui leur plaît, s’ils aiment la boisson, prennent un repas à midi et sont inactifs, ou s’ils aiment l’exercise et l’effort, sont gros mangeurs et petits buveurs” (AAL, 1999a, p. 115-116).
[7] Como itinerante, o médico hipocrático percorria várias cidades e povoados, a fim de conhecer o local onde residia o paciente e, assim, conhecer melhor as possíveis causas de sua doença. Como tal, temos registros, no livro Epidemias, de histórias clínicas no norte da Grécia, na Trácia (Perinto, Abdera) e Tessália (Larissa, Melibea, Cranón); ao sul da Grécia, no Peloponeso (Elis); em Atenas; e nas ilhas de Tasos, Milos, Creta, Salamina e Delos.
[8] Sobre a discussão entre causas místicas e causas naturais das doenças, trataremos em outro artigo. Mas, para resumir o problema, trata-se de não mais considerar a doença como um infortúnio gerado pela ira dos deuses, por exemplo, e sim como um desequilíbrio causado por um fator ambiental.
[9] As Ursas marcam o Norte, de onde, nessa região, geralmente provinham ventos frios.
[10] Nesta época, ainda não havia o conceito de “órgão”, mas o de “cavidade”, que, num sentido vago, refere-se ao ventre (cavidade de baixo) e ao peito (cavidade do alto).
[11] Inflamação da pleura, membrana que envolve os pulmões.
[12] Hidropisia subcutânea.
[13] “Ce sont les changements de saisons surtout qui donnent naissance aux maladies et, dans les saisons, les grandes variations de froid ou de chaud”(Aphorismes, 1999b, p. 218).
[14] “La contribution de l’astronomie à la médecine est très importante ; car, en même temps que les saisons, l’état des cavités change chez les hommes” (AAL, 1999a, p. 116-117).
[15] Trata-se aqui da Ásia Menor, ou Anatólia, que consiste na protrusão ocidental da Ásia, compreendendo dois terços da Turquia, com o acréscimo, como dissemos, da Líbia e do Egito.
[16] “Il en va du sol exactement comme, au reste, des humains. Là où les saisons offrent les changements les plus grands et les plus fréquents, là le sol est le plus sauvage et le plus inégal et vous trouverez qu’il y a le plus de montagnes à la végétation dense, de plaines et de prairies. Au contraire, là où les saisons ne varient pas grandement, chez ces gens-là le sol est le plus égal. Il en va de même des hommes si l’on veut y prêter attention ; car il y a des natures qui ressemblent à des montagnes boisées et pleines d’eau, d’autres à des sols légers et sans eau, d’autres à des terrains plutôt couverts de prairies et marécageux, d’autres à une plaine et à un sol nu et sec. Car les saisons qui modifient la forme naturelle [des corps] sont différentes. Et si elles sont grandement différentes entre elles, plus importantes sont aussi les différences dans l’aspect physique” (AAL, 1999a, p. 132).
[17] Não se sabe ao certo a autoria desse texto. Presume-se que a data de escrita tenha sido no ano de 400 a.C.
[18] “En resumen, el fuego todo lo ha organizado por sí mismo en el interior del cuerpo, a imitación del universo, acordando lo pequeño con lo grande y lo grande con lo pequeño. La cavidad estomacal es como el órgano más amplio, recipiente para el agua seca y húmeda, a fin de proporcionarla a todo el resto y recibir de todo lo demás, a la manera del mar, nutridor de los animales adaptados a él y destructor de los inadaptados. En torno a esta <cavidad estomacal> produjo el fuego una condensación de agua fría y húmeda, conducto para un aire interior frío y caliente, a imitación de la tierra, que transforma todo lo que cae sobre ella. Y al consumir esto y desarrollar lo otro, ha logrado una dispersión de agua ligera y de fuego aéreo, invisible y visible, secreción de lo compacto, en lo que se mueve cada elemento para llegar a hacerse visible en el momento prefijado. En el interior el fuego ha formado tres circuitos, que se corresponden entre sí tanto por dentro como por fuera: el uno en las cavidades de lo húmedo, a la manera de la luna, el otro en la capa sólida circundante, a la manera de los astros, y el circuito medio que alcanza tanto el interior como el exterior, a la manera del sol” (Sobre a dieta, Livro I, 2020b, p. 11).
[19] “Puesto que la mente de los hipocráticos tuvo como patria la Grecia antigua, el hombre fue para ellos una peculiar configuración de la phýsis, un retoño de la naturaleza dotado de lógos. […] El hombre, kàtaphýsin, piensa, habla y modifica el mundo con sus manos. […] En cuanto viviente retoño de la phýsis universal, el hombre tiene en su estructura y en su dinámica algo común con todos los entes naturales y más aún con todos los seres vivientes” (Entralgo, 1970, p. 112).
[20] “L’influence du milieu extérieur joue aussi sur le physique des habitants d’une région donnée, qui peut varier selon l’orientation aux vents ou au soleil, selon la nature de l’eau utilisée, selon la nature du sol ou, plus généralement, selon l’ensemble des conditions climatiques de l’année, comme l’explique le traité Airs, eaux, lieux. Ces multiples facteurs, composantes de la “médecine météorologique”, interfèrent avec les facteurs personnels que sont l’âge, le sexe ou le tempérament, mais, au-delà des particularités individuelles, entraînent des caractéristiques communes dans l’ensemble de la population soumise aux même conditions climatiques. Le milieu exerce donc un véritable déterminisme puisque l’homme est un produit de son environnement géographique et climatique, au même titre que les plantes ou les animaux” (Jouanna et Magdelaine, 1999, p. 37-38).
[21] “Voilà pourquoi, à mon sens, les habitants de l’Europe sont plus courageux que les habitants de l’Asie ; car dans un climat toujours à peu près constant règnent les conduites indolentes, tandis que dans un climat changeant ce sont les conduites endurantes, pour l’âme comme pour le corps; et à partir de l’oisiveté et de l’indolence la lâcheté grandit, tandis qu’à partir de l’endurance et des efforts, c’est le courage. À cause de cela, les habitants de l’Europe sont plus belliqueux, et aussi à cause des lois, parce qu’ils ne sont pas soumis à des rois comme les Asiatiques. De fait, là où les hommes sont soumis à un roi, il est inévitable que, dans ce pays-là, ils soient très lâches, je l’ai déjà dit auparavant. Les âmes sont, en effet, asservies et ne veulent pas se lancer spontanément dans des risques inconsidérés pour le pouvoir d’autrui. Au contraire, ceux qui se gouvernent par leurs propres lois, étant donné qu’ils assument les risques pour eux-mêmes et non pour autrui, font spontanément preuve d’ardeur et affrontent le danger ; car le prix de la victoire, c’est pour eux-mêmes qu’ils le remportent. Ainsi les lois produisent le courage d’une façon qui n’est pas du tout négligeable” (AAL, 1999a, p. 141-142).
[22] “C’est pour ces raisons-là, à mon avis, que le peuple asiatique est dépourvu de combativité; et c’est, en outre, à cause des lois. La majeure partie de l’Asie est, en effet, soumise à des rois; or, là où les hommes n’ont pas pouvoir sur eux-mêmes et ne sont pas indépendants mais sont soumis à un maître, l’enjeu n’est pas pour eux de s’exercer à la guerre, mais de paraître inaptes au combat. Carles risques ne sont pas également partagés : il est normal que les sujets, eux, partent en expédition, subissent des épreuves et meurent, tout cela sous la contrainte, dans l’intérêt de leurs maîtres, et en étant séparés de leurs enfants, de leur femme et du reste de leurs proches. Quant aux exploits nobles et courageux qu’ils accomplissent, ce sont leurs maîtres qui en profitent pour grandir et prospérer, tandis que les dangers et la mort sont les fruits qu’eux-mêmes récoltent. En outre, il est inévitable que la terre appartenant à de tels hommes se désertifie, à cause des hostilités et de l’absence de culture. De la sorte, même si quelqu’un est porté par sa nature au courage et à la vaillance, sont esprit en est détourné par les lois. En voici une grande preuve : ceux qui en Asie, Grecs ou Barbares, ne sont pas soumis à un maître mais sont indépendants et subissent des épreuves pour leur propre compte, ceux-là sont les plus combatifs de tous ; car les dangers, ils les affrontent pour eux-mêmes et ils remportent eux-mêmes les prix de leur courage, de même que la sanction de leur lâcheté. Vous trouverez aussi que les Asiatiques diffèrent entre eux, les uns étant plus braves, les autres plus pusillanimes. La cause en est dans les changements des saisons, comme il a été dit par moi dans ce qui précède” (AAL, 1999a, p. 134-135).
[23] “Si donc de parents chauves naissent des enfants chauves, de parents aux yeux glauques des enfants aux yeux glauques et de parents qui louchent des enfants qui louchent, au moins dans la majorité des cas, et si le raisonnement est le même pour le reste de la forme [du corps], qu’est-ce qui empêche que d’un macrocéphale naisse aussi un macrocéphale?” (AAL, 1999a, p. 133).
[24] Para este autor, os quatro humores eram o sangue, o fleuma, a bílis e a água.
[25] “En todos los alimentos y bebidas hay algo bilioso, algo acuoso, algo sanguíneo y algo flemático en mayor o menor cantidad. Ésta es la razón por la que los alimentos y las bebidas se diferencian unos de otros en relación con la salud. […] Cuando alguien come o bebe, el cuerpo arrastra hacia sí desde el vientre el humor en cuestión y las fuentes lo arrastran desde el vientre a través de las venas; cada variedad de humor arrastra a su semejante y lo distribuye en el cuerpo, lo mismo que en el caso de las plantas cada clase de humor arrastra de la tierra a su semejante. La tierra tiene en sí misma numerosos principios activos y de todas clases. Proporciona a cada planta lo que se desarrolla en ella con un humor semejante al que la misma planta posee de forma congénita y afín, y cada una arrastra de la tierra su alimento según su propia naturaleza” (Sobre las enfermedades IV, 2020c, p. 70).
[26] “La santé ne s’explique pas seulement par l’équilibre interne du corps, mais aussi par les relations harmonieuses qu’il entretient avec son environnement. Parmi ces éléments extérieurs, il faut compter, en premier lieu, tout ce qui pénètre de l’extérieur dans le corps, l’air, les boissons, les aliments. Un traité diététique s’attache à trouver le point d’équilibre entre apports alimentaires et exercices destinés à les brûler : une mauvaise répartition risque en effet de causer la pléthore qui engorgera le corps, incapable de dominer cet afflux d’aliments, ou au contraire de provoquer la vacuité qui entraînera la faiblesse. De plus, conformément à la théorie humorale, les aliments sont pourvus de qualités premières, chaud, froid, sec, humide, en correspondance avec les humeurs. […] En effet, le corps subit l’influence du milieu naturel dans lequel il vit. Les vents ou les eaux utilisées sont eux aussi dotés de qualités premières, tout comme les saisons, souvent dans le cadre d’un système quaternaire en correspondance avec les humeurs” (Jouanna et Magdelaine, 1999, p. 26-27).
[27] “Les hommes doivent savoir que la source de nos plaisirs, de nos joies, de nos rires et de nos plaisanteries n’est autre que cet endroit-là [le cerveau], qui est également la source de nos chagrins, de nos peines, de nos tristesses et de nos pleurs. Et c’est par lui surtout que nous pensons et que nous concevons, regardons, entendons, distinguons le laid et le beau, le mal et le bien, l’agréable et le désagréable, tantôt discernant d’après l’usage, tantôt ressentant selon l’intérêt ; et comme nous distinguons aussi plaisirs et déplaisirs d’après l’opportunité, ce ne sont pas [toujours] les mêmes choses qui nous agréent. C’est encore à cause de lui que nous devenons fous, que nous délirons, que craintes et frayeurs nous arrivent, soit la nuit, soit même le jour, ainsi qu’insomnies, divagations intempestives, anxiétés injustifiées, incapacité à reconnaître le réel, sentiments d’étrangeté devant l’habituel. Et tous ces accidentes nous viennent du cerveau, quand il n’est pas sain, mais est soit plus chaud, soit plus froid, soit plus humide, soit plus sec que dans son état naturel, ou quand il est dans tout autre état contre nature qui ne lui est pas habituel. Nous devenons fous à cause de l’humidité du cerveau ; quand, en effet, il est plus humide que dans l’état naturel, nécessairement il bouge, et du fait qu’il bouge, ni la vue ni l’ouïe ne sont stables, mais l’on voit et l’on entend tantôt une chose tantôt une autre et la langue exprime ce que l’on voit et ce que l’on entend à chaque fois. En revanche, tant que le cerveau est stable, pendant tout ce temps-là l’homme conserve aussi sa raison” (Maladie sacrée, 1999c, p. 160-161).
[28] “De même donc que le cerveau perçoit le premier la pensée venue de l’air avant les autres parties du corps, de même aussi si quelque changement puissant se produit dans l’air sous l’effet des saisons et que l’air devienne différent de ce qu’il était, le cerveau le ressent le premier. Voilà pourquoi j’affirme que les maladies qui s’abattent sur lui sont les plus aiguës, les plus graves, les plus mortelles et les plus difficiles à juger pour les incompétents” (Maladie sacrée, 1999c, p. 163).
[29] “L’une des grandes intuitions du Corpus est que l’homme est indissociable de l’univers qui l’entoure, et cela à plusieurs titres. Dans le cadre de la théorie humorale, on l’a vu, les médecins ont déterminé, entre humeurs et saisons, toute une série d’associations et de correspondances. Tout au long de l’année, les humeurs augmentent ou diminuent, induisant par là même des modifications subtiles de la nature humaine et entraînant, par affinité, certaines maladies de préférence à d’autres. Le corps suit donc le rythme de la nature et des saisons” (Jouanna et Magdelaine, 1999, p. 37).