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COSMOPOLITISMO JURÍDICO ENQUANTO CONDIÇÃO PARA A PAZ MUNDIAL: A SUPERAÇÃO DA DISTÂNCIA HISTÓRICA DO LEGADO COSMOPOLÍTICO KANTIANO EM HABERMAS

JURIDICAL COSMOPOLITANISM AS A CONDITION FOR WORLD PEACE OVERCOMING THE HISTORICAL DISTANCE OF THE KANTIAN COSMOPOLITICAL LEGACY IN HABERMAS

 

Tiago Zúchi

0000-0002-6886-2809

tiagozuchi@yahoo.com.br

UFPR – Universidade Federal do Paraná

 

Recebido: 30/05/2023

Received: 30/05/2023

 

Aprovado: 21/09/2023

Approved: 21/09/2023

 

Publicado: 25/09/2023

Published: 25/09/2023

 

RESUMO

O presente artigo trata de fazer uma relação entre o cosmopolitismo pensado por Kant e aquele revisitado por Habermas, dois séculos mais tarde. Ver-se-á que Kant fundamentou o cosmopolitismo sobre uma compreensão republicana de Estado; diferentemente, Habermas o fundamenta sobre uma legislação internacional de direitos humanos abrangente de todos os Estados democráticos de direito. Embora haja divergências teóricas entre eles, congruem na finalidade do projeto cosmopolítico. Para ambos, uma sociedade universal deve aceder-se ao cosmopolitismo para a paz duradoura poder ser assegurada. E, como a teoria cosmopolita kantiana se demostrou insuficiente ao longo do tempo, a sua releitura, pelo cosmopolitismo jurídico, tornou-se mais atrativa para a efetivação da paz mundial na pós-modernidade.

Palavras-chave: Kant. Habermas. Cosmopolitismo. Direitos humanos. Paz.

ABSTRACT

The present article tries to make a relation between the cosmopolitanism thought by Kant and that revisited by Habermas, two centuries later. It will be seen that Kant grounded cosmopolitanism on a republican understanding of State; differently, Habermas bases it on a comprehensive international human rights law of all democratic constitutional State. Although there are theoretical differences between them, they fit into the purpose of the cosmopolitan project. For both, a universal society must embrace cosmopolitanism so that lasting peace can be assured. And since the Kantian cosmopolitan theory has proved insufficient over time, re-reading it through legal cosmopolitanism has become more attractive for achieving world peace in post-modern times.

Keywords: Kant. Habermas. Cosmopolitanism. Human rights. Peace.

INTRODUÇÃO

Com o avanço inaugurado pela da modernidade – sobretudo com o advento da globalização e do multiculturalismo –, perguntar-se sobre a possibilidade da instauração e garantia da paz, tornou-se uma necessidade filosófica com ensejo de sua efetivação. Neste artigo, tratar-se-á justamente de uma das mais importantes teorizações filosóficas, senão a maior delas, a respeito das condições hodiernas para a paz global. Essa teoria filosófica, encontra-se no filósofo alemão Jürgen Habermas. Inspirado em um texto escrito há dois séculos por outro filósofo alemão, Immanuel Kant, Habermas não só comemora o grande passo reflexivo dado por aquele filósofo, como também tratara de atualizá-lo e, de fato, superando-o na teoria cosmopolítica.

Ao final do século XVIII, mais precisamente entre os anos de 1795 e 1796, Kant escreveu um opúsculo, intitulado: A Paz Perpétua: Um projeto filosófico, no qual expõe toda a sua confiança em uma paz perpétua, isto é, em uma paz jurídico-racional do Estado enquanto pessoa moral. Segundo Kant, seria o direito cosmopolítico – originado do direito público –, que garantiria a paz duradoura entre os Estados republicanos, a fim de uma convivência pacífica entre todos na esfera pública internacional. Entretanto, o projeto filosófico kantiano não se efetivou conforme o esperado. Por isso, voltando-se para as relações internacionais da atualidade, Habermas, em seu texto: A Ideia Kantiana de Paz Perpétua: à distância histórica de 200 anos, trata de retomar o cerne da teoria cosmopolita conjecturada por Kant; agora, com elementos contemporâneos: diversos, portanto, dos kantianos, mas lhes salvaguardando a finalidade.

Este artigo, trata da passagem do cosmopolitismo kantiano para o cosmopolitismo jurídico em Habermas e revela uma evolução significativa na abordagem filosófica do cosmopolitismo, como um todo. Enquanto Kant fundamentou seu cosmopolitismo em uma concepção moral universal, Habermas expande essa visão para incluir a dimensão política e, sobretudo, a jurídica no fundamento do cosmopolitismo. Outrossim, Kant propunha que o cosmopolitismo era baseado em princípios morais de respeito à dignidade humana e na ideia de que todos os indivíduos (morais) são cidadãos do mundo. No entanto, Habermas avança além de esta dimensão moral e argumenta que os princípios do cosmopolitismo devem ser incorporados em uma ordem jurídica global, destacando a necessidade de um marco jurídico transnacional que vá para além das fronteiras territoriais dos Estados-nação.

A teorização jurídico-política concernente ao cosmopolitismo é, talvez, o aspecto mais importante da filosofia habermasiana sobre o tema da paz mundial. Como tal, essa teoria filosófica ocorre interna ao Estado de direito e busca relacionar a teoria dos direitos humanos, da cidadania universal e da jurisdição das instituições internacionais. Notar-se-á que, para Habermas, a transição do direito internacional ao direito cosmopolita seria, fundamentalmente, o caminho sine qua non que conduziria todas as Nações-estado em direção a uma política interna no mundo (Weltinnerpolitik), uma Constituição mundial. Como se verá a seguir, Habermas trata das relações internacionais pautadas pelo direito como meio eficaz para que a pensada paz kantiana possa ser efetivada sob a égide do cosmopolitismo jurídico.

1 DO COSMOPOLITISMO KANTIANO

O cosmopolitismo kantiano é um conceito filosófico que se fundamenta na ideia de uma comunidade global de indivíduos racionais, na qual eles são cidadãos do mundo. Derivado da teleologia intrínseca à filosofia moral de Immanuel Kant, o cosmopolitismo kantiano busca ir além das fronteiras dos Estados nacionais. Segundo Kant, o cosmopolitismo é baseado na ideia de que cada indivíduo é um fim em si mesmo e que este possui uma dignidade intrínseca (GMS, AA 04, 435). Tal dignidade não é condicionada pela nacionalidade do indivíduo, raça, religião ou qualquer outra característica particular, mas pela sua natureza racional que o torna membro da humanidade (Menschheit). Baseando nesta compreensão, o cosmopolitismo kantiano afirma que todos os indivíduos têm direitos e deveres universais, independentemente de sua origem geográfica ou cultural.

E, destacando a importância da razão prática como guia para a ação moral, Kant argumenta que a razão é universal e fornece aqueles princípios práticos objetivos aplicáveis a todos os indivíduos morais. Tendo esta ideia de base, o cosmopolitismo kantiano propõe que as ações individuais devem ser guiadas por princípios racionais que buscam o bem-estar de toda a humanidade, ao invés de se limitarem a interesses particulares ou nacionalistas. Além disso, enfatiza a necessidade de uma legislação internacional justa e de uma estrutura política que promova a paz e a cooperação entre as nações particulares. É sob este legado filosófico que Kant propõe a ideia de uma federação de povos livres (ZeF, AA 08: B 30ss), na qual os Estados se uniriam sob um governo mundial que garantiria a segurança, a liberdade e a igualdade para todos os cidadãos, enfim, a paz perpétua. Pois, essa visão cosmopolita busca superar as rivalidades entre os Estados federados e estabelecer um sistema baseado em princípios morais universais.

1.1 O conceito de direito em Kant

A investigação do conceito de direito em Kant passa pela noção kantiana de constituição civil perfeita. E isso significa tratar daquela constituição com força moral suficiente para agir de modo a legitimar o poder coercitivo[1] sobre os cidadãos. Estes últimos, devido à natureza daquela constituição, submeter-se-iam a ela, até mesmo abdicando da sua própria liberdade natural. Nessa legitimação dada à constituição civil, o próprio Estado seria instituído segundo o direito que o conduziria ao Estado Republicano[2], inclusive ultrapassando as suas fronteiras ao ponto de se ter um ordenamento jurídico mundial, isto é, uma constituição civil que englobaria todos os Estados.

A primeira vez que Kant trata sistematicamente do direito[3] será na primeira parte de A Metafísica dos Costumes, denominada: A doutrina do direito. Logo no parágrafo A, Kant dirá que a doutrina do direito trata do “conjunto de leis para as quais é possível uma legislação externa” (MS/R, AA 06: 229). A essa doutrina, Kant a chama de jurisprudência (iurisprudentia) ou, ainda, ciência jurídica (iurissciencia). Na primeira, exige-se o conhecimento das leis externas e da sua correta aplicação aos casos específicos, ao passo que, na segunda, o conhecimento sistemático do direito está diretamente ligado ao direito natural (ius naturae) de tal modo que o direito seja “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade.” (MS/R, AA 06: 230).   

Para compreendermos o direito (positivo) em Kant, precisamos lembrar que, para o filósofo, ao contrário do positivo está o direito natural em que as instituições jurídicas se encontram ausentes. Pois, no estado natural apenas vigora o direito natural ou, então, o direito inato que o indivíduo possui. Por se tratar de uma igualdade inata entre indivíduos, o direito inato desobriga o indivíduo a se submeter a algo que, porventura, vá além da sua autodeterminação. Não obstante, será a razão que possibilitará a passagem de um estado para outro. Se no estado natural não se tem um ordenamento jurídico entre os indivíduos, no direito positivo (ou público) tem-se a positivação das leis que compensarão a ausência do aparato jurídico no primeiro estado.

Devido à razão e a sua autodeterminação, o direito não é algo definido empiricamente. Antes disso, a sua definição baseia-se no direito positivo. Para Kant, é necessário atrelar a obrigação moral ao conceito de direito de tal modo que ele sempre seja uma expressão prática oriunda de entes morais[4] e, portanto, entes aptos a agirem moralmente. O direito que daqui decorre, visa obrigar aqueles entes a perseguirem as leis jurídicas[5], dado que Kant compreende o direito como sendo algo puramente racional que ocorre na interação externa entre indivíduos e que, nele, há uma obrigatoriedade que está de acordo com a liberdade positiva (ou externa) que transforma “a forma da aptidão da máxima do arbítrio em lei universal, ou mesmo em lei suprema e fundamento de determinação do arbítrio” (MS/R, AA 06: 214) que emana da razão, não de máximas baseadas em causas sensíveis. Em Kant, o auge dessa compreensão de direito ocorre naquilo que ele compreenderá como sendo o direito cosmopolítico, ou cosmopolitismo.

Para o filósofo, o cosmopolitismo, por ser uma exigência normativa e jurídica que vai além do direito dos Estados, daria origem a uma constituição perfeita que engloba todas as vontades dos cidadãos particulares em uma única vontade geral. Sob essa constituição – que é republicana –, a liberdade do estado de natureza cederia seu lugar à liberdade civil. Todos, indistintamente, estariam obrigados às leis jurídicas comuns, inclusive o soberano exerceria sua função de governo sempre seguindo leis que poderiam ser universalizadas. Aliás, essa é a vindicação imperativa para que o Estado possa ser conforme ao direito público e, assim, garanta a liberdade civil de seus cidadãos. Com efeito, devido à sua legalidade, o estado civil apresenta-se como sendo melhor e mais perfeito que o estado de natureza. Desse modo, o primeiro, por encontrar sustentação legal na constituição republicana[6], é um estado direcionado à paz perpétua.

1.2 Cosmopolitismo e paz no projeto kantiano

O cosmopolitismo proposto por Kant se refere à aceitação do direito internacional fundado na razão e que, por isso, segue os seus ditames, como: a liberdade, a autonomia e o imperativo categórico. O ápice do direito, conforme já fora afirmado, ocorre no direito cosmopolítico justamente pelo fato de esse ser o único possível capaz de perseguir o ideal da paz perpétua. Este ideal, além ser uma garantia inerente à constituição perfeita, é expressão direta do progresso do gênero humano, pois “o homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas disposições naturais” (IaG, A 392). O direito cosmopolita, segundo Kant, é o que possibilita uma federação de nações, um “Estado universal dos povos” (TP, AA 08: 283). E, a sua estrutura, vincula-se a uma multilateralidade de Estados que buscariam assegurar a paz. 

Pela natureza pacífica do ordenamento jurídico do cosmopolitismo, as instituições republicanas fomentam a realização da paz perpétua como uma exigência do progresso da razão humana. Vale lembrar que o direito internacional, na filosofia kantiana, não garante a paz perpétua pelo fato de ele apenas expressar certa trégua de guerras[7], isto é, uma paz temporária (um determinado período entre guerras). Para que a paz perpétua seja garantida é necessária a instituição de uma jurisdição que vá além daquela própria de cada Estado individual, ou seja, é imperiosa uma condição cosmopolita. Pois, segundo Kant, “uma constituição segundo o direito cosmopolita (Weltbürgerrecht), enquanto importa considerar os homens e os Estados, na sua relação externa de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum)” (ZeF, nota B 19, grifo do autor). Logo, o direito cosmopolita é entendido como sendo aquele que diz respeito à possibilidade de união de todos os Estados-nações sob certas leis universais.

Ainda no que concerne ao direito cosmopolita, Kant definirá o que é necessário para que a paz perpétua possa ser efetivada. Segundo ele, deve ocorrer o fim das guerras e a criação de uma comunidade global que seja guiada pela constituição a priori, isto é, aquela oriunda da razão prática e que considera a autonomia da vontade e a liberdade de todos os entes racionais como sua parte fundante. Assim, tal constituição republicana seria deduzida do ideal da razão. A paz que desponta dessa constituição é justamente a paz perpétua ou, então, a paz como um ideal jurídico-moral, por levar em conta os agentes morais e o direito natural[8] em sua legalidade.

Se quisermos, a ideia fundamental da doutrina do direito de Kant é a necessária exigência de um direito que, por ser justo e imutável, origina-se nos postulados da razão prática. A forma jurídica dele é a priori e é contemplada no direito cosmopolita. Esse direito cosmopolita, conforme já exposto, é a base em que Kant busca constituir uma sociedade internacional com princípios para a paz perpétua. Entretanto, a realização da sociedade internacional (cosmopolita) e, assim, garantia da paz perpétua, não é algo que possa ser considerado provável. Para Kant, dado que a legitimidade daquela sociedade não depende da sua realização, senão da sua validade para a teoria política kantiana, os Estados deveriam sempre agir como se essa paz perpétua fosse presumível.

O texto em que Kant melhor expõe a defesa de uma república constitucional formada pela liberdade dos cidadãos, pela igualdade e dependência de uma lei comum e pela separação entre os poderes legislativo e executivo, é o texto de A Paz Perpétua – um projeto filosófico[9]. Kant o divide em seis artigos preliminares e outros três artigos definitivos. Os preliminares[10] não são originais de Kant: eles já haviam sido tratados por outros autores, como os alemães: Samuel von Pufendorf (jurista) e Christian Freiherr von Wolff (filósofo). O que é original de Kant são os três artigos definitivos. Enquanto os seis preliminares tratam das condições necessárias, mas não suficientes para a paz, os definitivos[11] reúnem as condições necessárias e suficientes para a paz perpétua. 

Nos artigos definitivos, Kant defende que o Estado não pode ser um estado de natureza que é análogo ao estado de guerra. Mas, tem de ser um Estado instituído, isto é, um Estado Civil em que a paz seja asseverada pelas estruturas jurídicas institucionais. Assim, compreende-se que o estado de paz – enquanto projeto filosófico – deve ser fundado por meio do direito público. Por conseguinte, esse estado deve ser entendido como um processo para o qual todos, e cada um, precisam ser preparados, educados... Pois, o processo de constituição da paz perpétua inicia no cultivo da razão no ente moral, tanto individualmente como cidadão, quanto coletivamente de um povo e dos povos. Por isso mesmo é que Kant defende que é a constituição cosmopolita[12] que assegurará a paz perpétua: uma paz jurídico-racional instituída, cosmopoliticamente[13].

2 HABERMAS NA SUA DISTÂNCIA HISTÓRICA DE A PAZ PERPÉTUA DE KANT

Até este ponto, tratou-se dos elementos fundamentais que formam a teoria política kantiana à paz perpétua. Conforme fora visto, a filosofia política de Kant – ou, a doutrina normativa aplicada do Direito –, tem seu ápice no ordenamento jurídico que ocorre entre os Estados republicanos. Este ordenamento é caracterizado pelo cosmopolitismo[14] de ordem racional. Historicamente, esse era o ideário kantiano – no século XVIII – influenciado pelo Iluminismo. E isso significa que se trata de uma teoria política de dois séculos atrás. A tarefa, por agora, será a de tentar trazer aquela teoria para mais perto da atualidade. E, para tal, far-se-á uso da teoria habermasiana em diálogo com a kantiana.

Habermas, por ocasião dos duzentos anos do texto A Paz Perpétua de Kant, escreveu um outro, intitulado: A ideia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos, celebrando o kantiano. Nesta distância histórica de duzentos anos grandes mudanças ocorreram na configuração geopolítica do mundo; talvez, os dois fatos mais expressivos, sejam as duas guerras mundiais. Dadas expressivas mudanças, Habermas, naquele texto, observa que se faz necessária a reformulação daquele primeiro ideário cosmopolita[15] com fins de assegurar a paz duradoura e, assim, a extinção da guerra que, para Kant, segundo Habermas, era entendida como um conflito “espacialmente delimitado entre Estados e alianças particulares” (HABERMAS, 2002b, p. 187) sem, contudo, tratar-se de guerras mundiais por serem localizadas. Tal era essa compreensão que “para Kant ainda não há o crime da guerra”[16] (HABERMAS, 2002b, p. 188, grifo do autor), senão o crime de guerra: aqueles crimes cometidos na guerra. Para Habermas, Kant se deparou apenas com o problema da conceituação e da concretização do cosmopolitismo quando tratou da paz perpétua. Pois,

“a paz perpétua é um elemento característico importante, mas não passa de um sintoma da condição cosmopolita. O problema conceitual que Kant precisa resolver é a concretização jurídica de uma condição como essa. Ele precisa indicar a diferença entre o direito cosmopolita e o direito internacional clássico, manifestar o elemento específico desse ius cosmopoliticum.” (HABERMAS, 2002b, p. 188, grifo do autor)

Ou seja, Habermas não encontra em Kant respostas plausíveis sobre como os Estados saem do seu estado de natureza a um direito internacional[17]. E, embora Habermas mencione três “tendências naturais” que ele encontra em Kant e que estão conforme a razão para fomentar uma aliança entre os povos que, segundo o próprio Habermas, são: “a natureza pacífica das repúblicas (1), a força regadora de comunidade (2) e a função de cunho político da opinião pública (3)” (HABERMAS, 2002b, p. 192), também observa que elas não tratam de como deva ser a configuração da comunidade cosmopolita. Dada essa falta, Habermas nota que o mundo mudou muito desde A Paz Perpétua e que, agora, faz-se necessária uma reformulação crível dos critérios – ou, do ordenamento jurídico – que levariam ao cosmopolitismo. Para tal, urge a necessidade de analisar e ressignificar, cosmopoliticamente, aquelas três “tendências naturais” sob uma nova leitura, a habermasiana.

A primeira “tendência natural” é a da natureza pacífica dos Estados republicanos. Essa tendência trata da deliberação pública, por parte dos cidadãos, sobre a guerra. Devido à falta do conceito de “nação” na filosofia kantiana, tal tendência kantiana é pouco plausível na leitura de Habermas. A sua quase improbabilidade, dá-se uma vez que os cidadãos – partícipes da deliberação, isto é, “que se identificam com o Estado a que pertencem” (HABERMAS, 2002b, p. 193) – não irão compactuar com um possível prejuízo. No entanto, Habermas nota “que não está totalmente errada a noção de que uma condição democrática no interior do Estado sugere para ele um comportamento externo pacifista” (HABERMAS, 2002b, p. 193). Isso porque um comportamento democrático no interior do Estado consegue encontrar alguma saída para o debate com os Estados, ao seu redor. O Estado social europeu é, para Habermas, um exemplo da reformulação daquela tendência a uma constituição comunitária civil que se orienta ao cosmopolitismo.

A segunda “tendência natural” trata do comércio internacional e da sua força nos Estados pelo fato de os obrigar a se manterem em certa dependência. Essa dependência poderia contribuir para que alianças entre eles fossem possíveis. Para Habermas, “Kant viu na crescente interdependência das sociedades [...] uma tendência que favorece a união pacífica dos povos” (HABERMAS, 2002b, p. 194). Afinal, a guerra sempre é sinônimo de algum prejuízo nas relações interestaduais. Porém, Habermas ainda nota que a evolução econômica, originária das alianças pacíficas entre os Estados, não ocorreu quando essa evolução fosse vista com fins de uma paz perpétua. Claramente, Kant não pôde prever o surgimento de inúmeros movimentos sociais reivindicatórios na era pós-industrial com o advento da modernização[18]. A implementação do capitalismo (industrial) liberal resultou na globalização econômica que, no que lhe concerne, afeta diretamente a soberania dos Estados. Por isso mesmo é que Habermas notara que a ascensão da globalização também acarretou inúmeros questionamentos aos princípios do direito público internacional[19].

Por fim, a terceira “tendência natural” – do cunho político da opinião pública – tem seu valor ao demostrar que a união dos povos em prol da paz, além de parecer ser algo natural, demostra o seu esclarecimento. Segundo Habermas, “o que mais importa aqui é que Kant naturalmente ainda contava com a transparência de uma opinião pública visível em seu todo” (HABERMAS, 2002b, p. 197). Pensada assim, a opinião pública de Kant transpareceria nas ações dos governos em seus Estados. Contudo, “ele não pôde prever a transformação estrutural dessa opinião pública burguesa em um outra, denominada pelos meios eletrônicos de comunicação” (HABERMAS, 2002b, p. 197) e que fez com que a opinião pública, pensada por Kant, tomasse proporções inimagináveis a ele. Por isso, a opinião pública kantiana deve ser pensada na “esfera pública” que, para Habermas, “não é mais um agregado de indivíduos que formam o público, mas formada por grupos auto organizados (sic) em uma arena para a exposição de problemas que necessitam ser elaborados pelo sistema político” (BARROS, 2008, p. 29).

Seguindo as três tendências kantianas que foram observadas por Habermas, este último nota que o direito cosmopolita, à maneira kantiana, é individualista. Visto que Kant define o direito cosmopolita muito mais como uma relação entre indivíduos que entre Estados: os protagonistas do cosmopolitismo são os sujeitos, não os Estados[20]. Tanto é que o direito cosmopolita garante tanto o direito de visita, quanto o direito de comércio entre os indivíduos e entre os povos. Neste sentido, uma vez que as tendências da globalização “não dizem nada quanto ao dano das condições de funcionamento e de legitimação do processo democrático enquanto tal. Mas representam um perigo para a forma nacional de sua institucionalização”[21] (HABERMAS, 2001b, p. 86), faz-se precisa uma análise da contribuição configurativa do cosmopolitismo habermasiano pós-globalização.

3 DO COSMOPOLITISMO JURÍDICO EM HABERMAS

O cosmopolitismo jurídico de Jürgen Habermas emerge como um importante conceito no campo da filosofia política e jurídica contemporânea. Fundamentado na ideia de uma ordem jurídica global, Habermas propõe uma abordagem cosmopolita que busca a reconciliação entre a soberania dos Estados e os direitos universais dos indivíduos. Neste tópico, analisar-se-á os principais elementos do cosmopolitismo jurídico de Habermas, com ênfase em sua visão normativa e suas implicações para a justiça global.

O cosmopolitismo jurídico habermasiano se encontra fundamentado na noção de que a humanidade compartilha uma base comum de direitos e dignidade enquanto “fonte moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo” (HABERMAS, 2012, p. 11). Habermas argumenta que as instituições políticas e jurídicas devem ser desenvolvidas para além dos limites territoriais dos Estados-nação, de modo a alcançarem uma ordem jurídica global. Para ele, a ideia de soberania estatal não deve ser incompatível com a proteção dos direitos humanos e a promoção da justiça global.

Em sua teoria, Habermas propõe a criação de espaços deliberativos transnacionais, nos quais atores políticos e cidadãos possam engajar-se em um diálogo racional e inclusivo sobre questões tanto de ordem quanto de interesse global. Pois, para ele, “só se pode aspirar realisticamente à meta ambiciosa de uma política mundial, se a organização mundial se restringir a duas funções precípuas – a garantia da paz e a realização global dos direitos humanos” (HABERMAS, 2006, p. 110). Para tal, não descarta a importância da participação ativa dos cidadãos; sendo ela essencial para a legitimação democrática das decisões políticas e jurídicas. Além disso, Habermas destaca a importância do uso da linguagem pública e argumentativa como base para a tomada de decisões legítimas em uma ordem jurídica cosmopolita. E, como ele bem ressalta, sua visão cosmopolítica não implica na supressão completa das identidades nacionais, mas sim em uma reconfiguração da soberania estatal em um contexto globalizado.

O cosmopolitismo jurídico de Habermas oferece uma visão crítica e normativa para repensar as relações políticas e jurídicas em uma era de interdependência global. Sua abordagem visa superar as limitações do sistema internacional baseado na soberania dos Estados e promover uma ordem jurídica global mais justa, inclusiva e de natureza jurídica. No entanto, a implementação do cosmopolitismo jurídico enfrenta desafios significativos, como a resistência dos Estados-nação e a questão da representatividade em espaços deliberativos transnacionais. Não obstante, as contribuições de Habermas atualizam a herança cosmopolita kantiana e fornecem um ponto de partida crucial para o debate contemporâneo sobre a justiça global e a proteção dos direitos humanos em uma era de interconexão crescente.

3.1 Cosmopolitismo enquanto alternativa diante da globalização

Habermas, em seus escritos, nota que a globalização carrega consigo dois grandes problemas que precisam ser solucionados em vista ao cosmopolitismo. Para ele, em primeiro lugar, a globalização deve responder a uma coesão social que ocorre no interior dos Estados que é resultado do compartilhamento tanto da cultura quanto da linguagem; e, em segundo lugar, a globalização esbarra na tentativa de englobar a cultura e a linguagem a um ideal multicultural (ao nível mundial). Diante desses desafios impostos pelo avanço da globalização, a própria Organização das Nações Unidas (ONU) é desafiada justamente pelo fato dela ser a instituição-símbolo da aliança entre todos os Estados nacionais – para Habermas, Estados constitucionais democráticos. Afinal, “a Organização Mundial abriga hoje praticamente todos os Estados sob um mesmo teto, e independentemente de serem republicanos e de respeitarem ou não os direitos humanos”[22] (HABERMAS, 2002b, p. 206, grifo do autor). Diante disso, talvez o maior dos desafios – neste panorama mundial – seja a inclusão dos elementos que formam o direito cosmopolita pensado por Kant. Por isso, Habermas dirá que

“hoje como ontem persiste uma grande discrepância entre a letra e o cumprimento das normas. A situação mundial da atualidade pode ser entendida, na melhor das hipóteses, como transição do direito internacional ao direito cosmopolita. Muitas coisas parecem indicar, mais que isso, uma reincidência no nacionalismo.” (HABERMAS, 2002b, p. 206)

Para Habermas, as Nações Unidas parecem cada vez mais enfraquecidas no cenário mundial quando está em jogo a deliberação pública de ordem mundial. A sua capacidade (força motriz) que se encontra em sua origem, não condiz com sua práxis deliberativa. Porquanto que a “globalização divide o mundo e ao mesmo o desafia, enquanto comunidade de risco, ao agir cooperativo” (HABERMAS, 2002b, p. 206), sua envergadura ultrapassa as próprias capacidades de instituições mundiais, como a ONU. Para o filósofo, somente a União Europeia parece lidar com a globalização no interior de sua aliança. As demais alianças econômicas, tais como: North American Free Trade Agreement (NAFTA) e Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC), não têm o poder de responder ao avanço do multiculturalismo no mundo, senão limitar-se ao controle do capital entre seus Estados-membros.

Porém, o avanço desenfreado da globalização não deveria ditar as regras do multiculturalismo. Acima dela, Habermas defende a necessidade de instituir uma sociedade tal que, ao nível mundial, estivesse para diante dos ditames da globalização. Isso seria possível à medida que houvesse uma ressignificação do conceito jurídico de nação[23]. Por conseguinte, se isso ocorresse na prática, há de se dizer que haveria a firmação de uma coesão social no interior das comunidades, pois seus membros compartilhariam dos mesmos valores: “coexistir com os mesmos direitos no interior de uma mesma coletividade, e não apenas lado a lado, mas também umas com as outras” (HABERMAS, 2002d, p. 135, grifo do autor), formaria uma cultura política que seria compartilhada por todos. Assim, não haveria o “lado de lá” e o “lado de cá” fomentado pelo multiculturalismo abastecido pela globalização, mas somente o “lado a lado” próprio de uma comunidade cosmopolita.

Habermas, inspirado no cosmopolitismo kantiano, trata-o, hodiernamente, pela via do que compreende por Estado pluricultural – uma sociedade mundial. Logo, para ele, aparece uma questão decisiva que é a de que “se pode surgir uma consciência da obrigatoriedade da solidariedade cosmopolita nas sociedades civis e nas esferas públicas políticas dos regimes geograficamente amplos que estão se desenvolvendo” (HABERMAS, 2001a, p. 73) na atualidade, a globalização deveria promover essa consciência de obrigatoriedade na solidariedade cosmopolita. Mas, por não fazer isso, Habermas pensa ser preciso que os Estados devam encontrar uma maneira de se vincular a algum modo de cooperação que pudesse dar origem a uma sociedade de Estados que, por sua vez, estivesse comprometida com os ideais do cosmopolitismo.

Em vista disso, a efetivação dos ideais cosmopolitas buscados pela sociedade de Estados, dar-se-ia sob o ponto de vista jurídico (abstrato[24]), não naturalmente. Nesta condição em que vigoraria a matriz cosmopolita nas relações entre os Estados, cada cidadão seria compreendido como “cidadão do mundo”[25] – a noção de cidadania não estaria restrita às fronteiras do Estado na qual o cidadão se encontra, mas as ultrapassaria. O problema é que “o modelo normativo para uma comunidade que existe sem a possibilidade de exclusão é o universo das pessoas morais – o ‘reino dos fins’ de Kant” (HABERMAS, 2001b, p. 136); e haveria, portanto, o imperativo abandono da pertença solidária fundada naturalmente na pertença de uma solidariedade abstrata do cosmopolitismo jurídico. 

3.2 A governança mundial 

Conforme visto anteriormente, a filosofia kantiana, sobretudo no que diz respeito à sua proposta cosmopolita, exerceu forte influência sobre a teoria habermasiana no tocante à compreensão da cidadania universal e do papel desempenhado pelas instituições internacionais, no âmbito cosmopolita. Apesar de encontrar inúmeras lacunas na teoria cosmopolita kantiana para a contemporaneidade, Habermas radicaliza o ordenamento jurídico mundial daquela proposta kantiana (HABERMAS, 2002b) a fim de que se possa pensar um modelo cosmopolita capaz de absorver a independência de todos os Estados particulares[26] (ou, nacionais) sob uma jurisdição mundial.

Neste ímpeto, a única instituição à qual se poderia atribuir o papel de guardiã da Constituição mundial, seriam as Nações Unidas[27]. Contudo, dado que as Nações Unidas perderam espaço nas decisões internacionais e até mesmo a originalidade da sua fundação, haveria a necessidade de uma reforma que se concentrasse “em três pontos: na instalação de um parlamento mundial, na ampliação da estrutura jurídica mundial e na reorganização do Conselho de Segurança” (HABERMAS, 2002b, p. 210). Ora, isso significa atribuir um novo papel às Nações Unidas, incorporando-lhe os três poderes de um Estado democrático de direito, ou seja, transformá-la em uma instituição com competências legislativas, executivas e judiciárias, como um Estado qualquer. Pois,

“[...] não é consistente o conceito kantiano de uma aliança dos povos firmada de forma duradoura e capaz de respeitar, ao mesmo tempo, a soberania dos Estados. O direito cosmopolita tem de ser institucionalizado de tal modo que vincule os governos em particular. A comunidade dos povos tem ao menos de poder garantir um comportamento juridicamente adequado por parte de seus membros, sob pena de sanções.” (HABERMAS, 2002b, pp. 200-201, grifo nosso)

Por conseguinte, as Nações Unidas deveriam funcionar, inclusive, como funcionam as forças armadas nos Estados nacionais. Este poderio seria fundamental para a Organização poder interver nos Estados – desde o menor perigo – de modo a garantir a ordem cosmopolita. Assim, a ONU possuiria um direito cosmopolita capaz de impor sanções sobre aqueles Estados que, porventura, opusesse-se às normas internacionais compactuadas. Uma Constituição internacional justa, e com ensejo pacífico, dependeria de uma força maior sobre os Estados; visto que ela seria capaz de limitar a soberania deles em prol da soberania da governança mundial, isto é, de uma política mundial sem, contudo, de um governo mundial – a soberania dos Estados nacionais estaria subjacente e subordinada à soberania da constitucionalização do direito internacional.

Em vista do governo mundial, Habermas evoca os direitos humanos “justamente como direitos fundamentais garantidos no âmbito de uma ordem jurídica nacional [...]. [Eles] são já a partir de sua origem de natureza jurídica”[28] (HABERMAS, 2002b, pp. 213-214 grifo do autor). Para uma ordem cosmopolita de fato, os direitos humanos precisam ultrapassar a circunscrição da ordem jurídica nacional, a fim de também serem garantidos e salvaguardados pela esfera internacional – passagem da ordem jurídico-nacional à ordem jurídico-internacional[29]. Sendo assim, eles devem ser universalizados a tal ponto que todos, indistintamente, fossem seus sujeitos. A violação dos direitos humanos seria algo punível[30] por parte das Nações Unidas – em seu tribunal internacional, como: o Tribunal de Haia – que, conforme visto, exerceria um papel de guardiã e defensora do direito cosmopolita no qual os direitos humanos estariam consignados.

A eficácia da jurisdição emanada dos direitos humanos internacionais seria possível graças à comunidade cosmopolita amparada pela constituição das Nações Unidas[31]. “Em tal medida, é inerente ao sentido dos direitos humanos o fato de exigirem para si o status de direitos fundamentais” (HABERMAS, 2002b, p. 217), observa Habermas. E, como tal, os direitos humanos não somente são superiores a um Estado nacional qualquer, como também podem se voltarem contra o Estado[32], dada a sua violação por parte deste último. Portanto, a defesa habermasiana de uma governança mundial também é a defesa dos direitos humanos ao nível mundial: isso constituiria a noção de cidadania universal sob a égide do direito cosmopolita. Assim sendo, a ordem institucional cosmopolita, enquanto garantidora daquela cidadania universal, seria a reinvenção habermasiana da Federação de Estados[33] com fins de uma paz perpétua, augurada por Kant.

3.3 Direito cosmopolita como garantia para a paz

Seguindo a exposição, diante dos desafios suscitados pela globalização, o cosmopolitismo habermasiano desponta como uma alternativa para se ter uma governança mundial. Essa governança, uma vez formada pelas instituições internacionais, funda-se na passagem do velho direito internacional ao novo direito cosmopolita reformulado para garantir uma sociedade justa e pacífica. Devido à globalização, Habermas nota que “[...] a sociedade mundial torna-se cada vez mais interdependente e complexa; os problemas que os Estados têm que resolver de modo cooperativo são cada vez mais amplos” (HABERMAS, 2003, p. 45). Por isso, o novo direito não pode ignorar a interdependência que assola todos os Estados nacionais[34].

Tendo em vista que é o direito – cunhado no âmbito nacional – que oferece a legitimidade para um Estado nacional exercer a sua força, quando se trata de um direito cosmopolita, ele passa a integrar uma nova forma de integração social, agora, ao nível internacional como oriundo da equânime garantia da autonomia pública e privada. Assim, as relações internacionais passam a ser pautadas em uma perspectiva de um processo de jurisdição global tal que “o direito cosmopolita é uma consequência da ideia do Estado de direito” (HABERMAS, 2002b, p. 224). O Estado é, então, compreendido como Estado democrático de direito[35]. E, sendo assim, no âmbito internacional, o Estado – agora cosmopolita – é compreendido no âmbito do direito cosmopolita, isto é, no direito que envolve não só os Estados nacionais, como também os cidadãos enquanto sujeitos daquele direito. Logo,

“o direito cosmopolita consiste em que ele se lance por sobre as cabeças dos sujeitos jurídicos coletivos do direito internacional, que se infunda no posicionamento dos sujeitos jurídicos individuais e que fundamente para esses últimos uma condição não-mediatizada de membros de uma associação de cidadãos do mundo livres e iguais.” (HABERMAS, 2002b, p. 203)

Ora, isso retoma o que já fora exposto no que concerne aos direitos humanos. Porquanto que é problemática a integração social entre os diferentes Estados nacionais sob uma mesma jurisdição que “tem de ser plena entre os Estados, embora não igual ao processo interno das repúblicas” (SILVA, 2012, p. 997), Habermas encontra nos direitos humanos a possibilidade de oferecer alguma legitimidade legal sob a qual os Estados possam se integrar. Apesar de a soberania nacional ser mantida, a ela se somaria um conjunto jurídico que a transcenderia com capacidade de uma síntese (à maneira hegeliana) jurisdicional[36]. O direito cosmopolita, neste sentido, seria sustentado pela normatização positiva dos direitos humanos; eles, enquanto princípios à normatização internacional, favoreceriam o resgate daquele ideal cosmopolita kantiano; agora, como um direito cosmopolita assegurador da paz perpétua.

Para Habermas, a constitucionalização do direito internacional tem-se lançado em direção ao direito cosmopolita, antevisto por Kant. O direito internacional não só fez isso, como também foi capaz de se institucionalizar nas constituições internacionais. Assim sendo, a institucionalização do direito internacional é o que promoverá e garantirá o direito cosmopolita entre os Estados nacionais. O mais fundamental pilar do direito cosmopolita são os direitos humanos concretizados como uma figura jurídica, segundo Habermas. A prática deles é o elemento de coalizão entre todas as culturas, povos e, inclusive, entre os diferentes Estados nacionais. Isso ocorre de tal sorte que o direito cosmopolita – ao molde habermasiano – é pensado como uma firme garantia da paz entre as nações.

“Como já dissera Kant, o direito e a moral distinguem-se por qualidades formais de legalidade. [...] não se pode evitar o fundamentalismo dos direitos humanos por meio da renúncia a uma política de direitos humanos, mas apenas por meio da transformação cosmopolita da condição natural entre os Estados em uma condição jurídica entre eles.” (HABERMAS, 2002b, p. 227, grifo do autor)

 Pode-se, então, afirmar que os membros que compõem a sociedade civil cosmopolita não são simplesmente cidadãos de particulares Estados, senão cidadãos sujeitos e sujeitados ao direito cosmopolita. Pois, “a ideia da autonomia jurídica dos cidadãos exige, isso sim, que os destinatários do direito possam ao mesmo tempo ver-se como seus autores” (HABERMAS, 2002e, p. 293). Por seguinte, a sociedade habermasiana é autônoma, pública, política e, em simultâneo, universal. Como tal, consegue ditar quais são os direitos que podem ser universalizados de maneira a garantir a paz. Esses direitos – fundamentalmente, os direitos humanos normatizados (positivos) – promoveriam o ingresso dos povos ao nível normativo de ordem cosmopolita. Esta proposta habermasiana, mante-se fiel à inspiração kantiana de uma federação de povos com fins de garantia da paz perpétua. Todavia, para Habermas, o conteúdo do direito normativo internacional reside no reconhecimento recíproco dos sujeitos de direito internacional. Só assim é que o direito cosmopolita pode garantir a estabilidade da paz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em pleno início do século XXI, retomar às duas teorias filosóficas – de Kant e de Habermas – para a paz mundial, não é das tarefas mais fáceis. Mas, certamente, constitui-se em um dever para todos que anseiam por dias em que vigore a paz em toda a humanidade. Neste sentido, pode-se concluir este artigo afirmando que, seja qual for a natureza do Estado – republicano ou constitucional democrático –, sobressai-se a sua finalidade nos filósofos separados por dois séculos. Ambos tratam de uma reflexão filosófica a respeito do papel do Estado como forma de garantia para a paz duradoura. Contudo, espelhado no cosmopolitismo kantiano, o cosmopolitismo jurídico habermasiano traz luzes para uma constitucionalização do direito internacional capaz de conduzir os Estados democráticos de direito a uma internacionalização solidária entre todos os povos.

Dessa forma, a passagem do cosmopolitismo kantiano ao cosmopolitismo jurídico em Habermas, representa uma ampliação e atualização da abordagem kantiana, incorporando-lhe questões políticas e jurídicas; dado que a instituição jurídica pensada por Kant se demonstrou insuficiente como garantia da estabilidade da paz. Enquanto Kant enfatizou os fundamentos morais do cosmopolitismo, Habermas busca fornecer um arcabouço normativo e institucional que efetive os princípios cosmopolitas no âmbito jurídico. Essa evolução na perspectiva do cosmopolitismo reflete a necessidade de lidar com os desafios contemporâneos da globalização e da interdependência, bem como de estabelecer uma base sólida para a justiça global e a proteção dos direitos humanos.

O projeto cosmopolítico habermasiano, ancorado na legislação internacional de direitos humanos, demonstra-se ser um sistema pluridimensional no qual se pode vislumbrar a possibilidade de efetiva realização da solidariedade cosmopolita rumo à paz. Embora se trate de um projeto filosófico (teórico), portanto, a sua legitimidade ocorre na medida em que serve de apoio às instituições internacionais – em seus discursos sobre sociedade global – para fomentarem a paz global e duradoura. Porquanto que o progresso da globalização carrega consigo as suas mazelas, a teorização cosmopolita habermasiana é sensível em não se abster de encontrar possíveis solavancos aos problemas da pós-modernidade. Diante do exposto, cabe a afirmação de que Habermas, ao se debruçar sobre as questões envoltas ao cosmopolitismo de ordem jurídica, desponta como um intelectual engajado na reflexão sobre os problemas da contemporaneidade que ameaçam a paz mundial.

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Tiago Zúchi

Graduado em Filosofia com bacharelado pelo IFIBE e licenciatura pela UFSC, mestre e doutorando em Filosofia pela UFPR.

 

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] Em A Metafísica dos Costumes, Kant vincula o conceito de direito à coerção da seguinte maneira: “[...] o direito não pode ser pensado como composto de duas partes, a saber, da obrigação segundo uma lei e da competência para coagir daquele que obriga outrem por meio de seu arbítrio, mas pode ter seu conceito imediatamente estabelecido na possibilidade da ligação entre a coerção recíproca universal e a liberdade de cada um. Assim como o direito em geral só tem por objeto o que é externo nas ações, o direito estrito, a saber, aquele que não está mesclado com nada ético, exige apenas os fundamentos externos de determinação do arbítrio” (MS/R, AA 06: 232).

[2] (WOOD, 2008, p. 208) “Do ponto de vista de Kant, a única constituição que verdadeiramente concorda com o direito é aquela que envolve a separação entre os poderes executivo e legislativo, garantindo o direito igual de todos os cidadãos, e na qual o legislativo e os governantes sejam representantes do povo (ZeF 8:352). Essa constituição é aquela de ‘uma república pura’” cujo sistema representativo do povo, em nome da união de todos os cidadãos, cuidaria dos direitos do povo.

[3] Kant já havia oferecido um conceito de direito em um opúsculo escrito antes de A Metafísica do Costumes, o chamado: Sobre a Expressão Corrente: Isso pode ser correto em teoria, mas nada vale na prática. Neste opúsculo, Kant compreendera o direito como “a limitação da liberdade de cada um à condição de sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal” (TP, AA 08: 234).

[4] Em A Metafísica dos Costumes, Kant afirma que: “O conceito de direito, contanto que se refira a uma obrigação a ele correspondente (isto é, o conceito moral do mesmo), diz respeito [...] à relação externa, e na verdade prática, de uma pessoa com outra na medida em [que] as ações de uma, como facta, podem ter influência sobre as ações da outra (imediata ou mediatamente)” (MS/R, AA 06: 230). Ou seja, o direito é estabelecido e compreendido nas relações externas que ocorrem entrem indivíduos.

[5] Para Kant, “[...] o estado civil, considerado simplesmente como situação jurídica, funda-se nos seguintes princípios a priori: 1. A liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2. A igualdade deste com todos os outros, como súbdito; 3. A independência de cada membro de uma comunidade como cidadão” (TP, AA 08: 235, grifo do autor). Por isso, conforme bem nota Terra, “as leis jurídicas precisam ter condições de obrigar de maneira efetiva, com a possibilidade de forçar com uma situação desagradável aqueles que pretendam infringi-la. O arbítrio é determinado por princípios aversivos; as consequências por não cumprir a lei podem ser penosas, como multas, prisão. Pode-se estar de acordo com a lei por si mesma, mas não é isso que importa, e sim a conformidade da ação com a lei. Dessa forma, no direito não se realiza a autonomia da vontade, como na ética, pois aquele comporta móbiles que restringem a autonomia” (TERRA, 2004, p. 21).

[6] (SILVA, 2012, p. 87) “Enquanto forma política derivada do ideal da paz e do conceito de direito, Kant entende que a constituição republicana é a primeira condição de possibilidade da paz porque ela possibilita aos cidadãos no interior de sua regulamentação a ampla participação política nas decisões referentes ao andamento dos negócios estatais.”

[7] (HARO, 1999, p. 154) “La guerra es el producto de la sociabilidad insociable entre Estados.” Para Kant, vale lembra que ele compreende a sociedade (Gesellschaft) enquanto sociabilidade (Geselligkeit): qualidade natural que os seres humanos têm de serem sociáveis. Na terceira Crítica aparece “como exigência para o ser humano enquanto criatura destinada à sociedade, portanto como propriedade pertencente à humanidade” (KU, AA 05: 296-297, grifo do autor); depois, Kant mostra seu reverso em Ideia de uma História Universal como uma ameaça à sociabilidade que é a chamada “sociabilidade insociável” ou “insociabilidade” (IaG, A 392, 396, 398) e, devido a isso, antecipa na primeira Crítica a necessidade de “uma constituição da maior liberdade humana, no entanto, sob as leis que fazem com que a liberdade de cada um possa coexistir com a liberdade dos demais” (KrV, B 373, grifo do autor).

[8] (CAYGILL, 2000, p, 103) “O direito natural inclui a justiça comutativa que ‘prevalece entre as pessoas e suas trocas recíprocas’ e a justiça distributiva à medida que suas decisões podem ser conhecidas a priori, em conformidade com os princípios da justiça comutativa.” Desse modo, diferente do direito positivo, que é aquele empírico e mutável por ser codificado, o direito natural é aquele formado por princípios a priori cuja fonte é a razão e não a letra escrita.  

[9] Kant escreveu A Paz Perpétua sob o regime da era monarca na Prússia seis anos após o início da Revolução Francesa (1789). Um fato curioso – que leva a pensar que exercera influência sobre o escrito – é que ela foi publicada após alguns meses das comemorações, entre a França e a Prússia, do tratado conhecido como “Paz de Basileia”. Tratado esse que ofereceu um período de paz para a região.

[10] Os artigos preliminares tratam de: 1. Todo tratado de paz deve ser sem obscuridade; 2. O Estado possui um fim em si mesmo e não pode ser tratado como meio; 3. Fim do aparato bélico; 4. Problema do financiamento da guerra e de manter a dependência dos povos conquistados; 5. Princípio da autonomia dos Estados e, 6. Não permissão da hostilidade da confiança mútua entre Estados em guerra.

[11] O primeiro artigo definitivo pede para que o Estado tenha uma constituição republicana; o segundo trata da confederação de Estados e, o terceiro, do direito de visita (hospitalidade). Respectivamente, tratam do direito político (relação indivíduo-Estado), do direito das gentes, ou dos povos, (relação Estado-Estado) e do direito cosmopolita (relação indivíduo-Estado).

[12] (CARANTI, 2018, p. 11) “It is famously difficult to interpret Kant’s notion of a ‘cosmopolitan constitution’ because this concept is destined to follow all the torsions and retreats Kant has regarding the feasibility and desirability of a universal republic. If history is to reach a world government, as at times Kant suggests, then the ‘cosmopolitan constitution’ is obviously the constitutional law of such world government.”

[13] Para Kant, o projeto filosófico da paz perpétua parte da ideia de uma constituição nacional que se completa com a ideia de uma federação mundial de Estados republicanos. Essa federação de Estados é vista como o reflexo do progresso moral dos povos a uma convivência pacífica e justa traduzida na comunidade de paz cosmopolita.

[14] Segundo Habermas, o que Kant faz é a inserção do paradigma cosmopolítico ao direito (HABERMAS, 2002a, pp. 177-184).

[15] Habermas identifica o cosmopolitismo kantiano sob três passos: i. a definição de imediato da paz perpétua; ii. a forma jurídica da aliança entre os povos e, iii. a solução histórico-filosófica da concretização da ideia da condição cosmopolita (HABERMAS, 2002b, p. 186).

[16] Kant entende que, em termos de guerra, há um tríplice direito: o direito à guerra, na guerra e no pós-guerra. Opostamente a ele, Habermas não vislumbra algum desses direitos possíveis. Para ele, a guerra é a suspenção absoluta de qualquer direito, de qualquer aparato legal.

[17] Para Habermas, a saída do estado de natureza se dá pela instituição de direitos. Pois, “o contrato social serve para a institucionalização do direito ‘natural’ a iguais liberdades de ação subjetivas. [Diferentemente,] Kant vê esse direito humano primordial fundamentado na vontade autônoma de indivíduos singulares, os quais dispõem preliminarmente, enquanto pessoas morais, da perspectiva social de uma razão que examina as leis, a partir da qual eles podem fundamentar moralmente, e não apenas pela astúcia, a sua saída do estado de liberdades inseguras” (HABERMAS, 1997, p. 126).

[18] (HABERMAS, 2000, p. 5) “O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à secularização de valores e normas etc.”

[19] (HABERMAS, 2002b, p. 195) “Com a desnacionalização da economia, [...] em especial com a integração da rede de mercados financeiros e da produção industrial em nível global, a política nacional perde o domínio sobre as condições gerais de produção – com isso o leme com que mantém em curso o nível social já alcançado.” Pois, afirma Habermas, em outro texto, “a globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da transferência da tecnologia e poderio bélico, em especial dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual do acordo entre Estados soberanos” (HABERMAS, 2002d, p. 123).

[20] (REPA, 2014, p. 153) “The Kantian project is interpreted by Habermas from the idea of constitutionalization of the international law aiming at guaranteeing the rights of the individuals, regardless of their belonging to the national States, even becoming able to lay legal claims against these States.”

[21] Como bem observa Holanda, “[...] o processo de globalização coloca os países diante da impossibilidade de serem agentes da regulação e da emancipação. [...] Atualmente, a relação e a diferenciação entre países ricos e pobres são de difícil caracterização, pois nossos instrumentos analíticos foram constituídos com base em sociedades nacionais e o mundo está se globalizando” (HOLANDA, 2017, pp. 11-12).

[22] No texto de A constelação pós-nacional e o futuro da democracia, Habermas afirma que “os Estados singulares deveria vincular-se – de um modo visível para a política interna – a procedimentos cooperativos obrigatórios de uma sociedade de Estados comprometida com o cosmopolitismo” (HABERMAS, 2001b, pp. 72-73).

[23] (HABERMAS, 2002d, p. 121) “Como revela a designação ‘Nações Unidas’, hoje a sociedade mundial é constituída por Estados nacionais. [...] As Nações-estado clássicas no norte e oeste europeus surgiram no interior de estados territoriais já existentes.”

[24]  (CONSANI, 2016, p. 87, grifo da autora) “[No direito abstrato] é o processo democrático que irá estabelecer seu conteúdo. O modo pelo qual os cidadãos participarão desse processo de criação do direito legítimo é detalhado por Habermas quando ele delineia o seu modelo normativo de democracia, denominado política deliberativa, o qual é estruturado como uma proposta intermediária entre o modelo liberal e o republicano, os quais são refutados, em parte, pelo autor.”

[25] O conceito de “cidadão do mundo” é desenvolvido a partir da ideia kantiana do “direito cosmopolítico”. Outra maneira de expressar esse conceito é considerando o cidadão como “coinquilino do planeta”. Segundo Habermas, a legitimidade do direito, seja nacional ou internacional, dá-se na medida em que ele vincula o princípio democrático ao consenso – próprio da formação discursiva – da vontade dos cidadãos do mundo como sujeitos do direito. Isso porque “uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual a autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos são autônomos quando os destinatários do direito podem ao mesmo tempo entender-se a si mesmos como autores do direito. E tais autores só são livres enquanto participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e cumpridos sob tais formas de comunicação que todos possam supor que regras firmadas desse modo mereçam concordância geral e motivada pela razão” (HABERMAS, 2002c, pp. 242-243).

[26] Para Habermas, o próprio papel desempenhado pela ONU deveria ser revisto e reformulado. Pois, no âmbito de uma jurisdição internacional, à ONU reserva-se apenas o direito de manifestação, pura e simplesmente, teórica. A ela, os Estados não possuem a obrigação de curvar-se, senão apenas tê-la como mero símbolo de uma aliança internacional: “Sua jurisdição, além disso, está restrita às relações entre os Estados; ela não se estende a conflitos entre pessoas em particular ou entre cidadãos em particular e seus governos” (HABERMAS, 2002b, p. 210). Vale lembrar que, em sua Carta de Fundação (1945), a ONU deveria possuir força militar justamente para impor-se sobre a “independência” desregrada de Estados dissidentes das suas normas legais. Atualmente, observa Habermas, “as Nações Unidas ainda não dispõem de forças próprias de combate, tampouco de forças que elas pudessem empregar sob comando próprio, nem muito menos de um monopólio do poder. Elas dependem, para fazer valer suas decisões, da cooperação voluntária dos membros capazes de tomar parte nas ações” (HABERMAS, 2002b, p. 202).

[27] De um modo diverso, Zolo nota que “Habermas não pretende propor a instituição de um governo mundial, nem deseja que seja atribuído às Nações Unidas o monopólio do poder militar internacional. Seria, rebus sic stantibus, um desejo não realista. Habermas julga importante e possível, antes, que as grandes potências industriais resolvam consensualmente dotar as Nações Unidas de uma força política e militar considerável e, ao mesmo tempo, se comprometam a manter relações pacíficas entre si” (ZOLO, 2005, p. 51).

[28] (HABERMAS, 2002b, p. 214) “O conceito de direitos humanos é de origem moral, mas também uma manifestação específica do conceito moderno de direitos subjetivos, ou seja, uma manifestação da conceitualidade jurídica.” Logo, “os direitos humanos [habermasianos] são direitos jurídicos positivos, entendidos como uma modalidade específica de direitos subjetivos derivados do direito positivo moderno” (SILVA, 2016, p. 141), porquanto que eles “podem ser deduzidos da própria forma legal das normas, como um espaço de arbítrio mais amplo que aquele permitido pela moral” (DUTRA, 2009, p. 166).

[29] Habermas não ignora as diferentes culturais mundiais. Por isso mesmo, ele propõe que os direitos humanos, para serem equitativos à todas as regiões do planeta, passam por uma convergência dos diferentes princípios morais de acordo com cada geolocalização. Somente assim é que os direitos humanos poderiam ser universais, não se atendo ao casuísmo moral. Para ele, “é justamente a formalização jurídica da condição natural entre os Estados que oferece defesa em face de uma diferenciação e autonomização moral do direito e é ela que garante aos réus [...] total direito de defesa, ou seja, defesa contra uma discriminação moral que se imponha sem mediações” (HABERMAS, 2002b, pp. 217-218, grifo nosso). Outrossim, “somente quando os direitos humanos tiverem encontrado seu ‘lugar’ numa ordem jurídica e democrática mundial, isto é, quando funcionarem da mesma maneira que os direitos fundamentais nas nossas constituições nacionais, poderemos inferir, em nível global, que os destinatários desses direitos podem se considerar também os seus autores” (HABERMAS, 2003, p. 50).

[30] (SILVA, 2016, p. 155) “[...] no âmbito de Tribunal Internacional, os direitos humanos são primeira fonte jurídica para avaliar a responsabilidade dos Estados nacionais perante seus cidadãos, demais Estados e comunidade internacional.”

[31] Por ora, Habermas nota que os direitos humanos “só contam com uma validade atenuada por parte do direito internacional e ainda esperam pela institucionalização no âmbito da ordem cosmopolita concebida apenas como algo que está por subir” (HABERMAS, 2002b, p. 217, grifo nosso).

[32] Habermas é claro ao considerar os Estados como sujeitos do direito internacional. Mas isso não lhes garante a absoluta autonomia quando seu direito se sobrepõe aquele acordado internacionalmente. Pois, “o status de um sujeito no direito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como membro ‘igual’ e ‘independente’ no sistema de Estados; e para isso ele precisa de uma posição de poder suficientemente forte. Soberania interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica estatal; soberania externa, a capacidade de autoafirmação em meio à concorrência “anárquica” pelo poder entre os Estados” (HABERMAS, 2002d, pp. 224-225).

[33] Para Kant, “[...] a aderência dos povos à Federação mundial deve acontecer de maneira republicana, isto é, paulatinamente e sempre respeitando a liberdade dos indivíduos em decidir aderir à uma Liga dos povos que seria ampliada gradativamente através dessas adesões” (BRANCO, 2017, p. 192).

[34] (SILVA 2012, p. 95) “A possibilidade de restrições ao seu Estado de direito por parte de tal república mundial poderia acarretar restrições aos seus direitos individuais conquistados ao longo do processo de formação de sua comunidade política.”

[35] Habermas define o Estado de direito como pressuposto do conceito de direito subjetivo e de pessoa de direito. Para ele, “as constituições modernas devem-se a uma ideia advinda do direito racional, segundo a qual os cidadãos, por decisão própria, se ligam a uma comunidade de jurisconsortes livres e iguais. A constituição faz valer exatamente os direitos que os cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram regular de maneira legítima seu convívio com os meios do direito positivo” (HABERMAS, 2002c, p. 229).

[36] Isso significa que “[...] a almejada instauração de um Estado de cidadania mundial significaria que violações dos direitos humanos não seriam julgadas e combatidas, em primeiro lugar sob pontos de vista morais, porém seriam perseguidas como ações criminais no âmbito de uma ordem jurídica estatal” (HABERMAS, 2003, p. 47).