A natureza agápica da conduta pragmática: ciência como busca ética pela verdade

The agapic nature of pragmatic conduct: science as an ethical search for truth

Renan Henrique Baggio

0000-0002-5387-8162

renanhbaggio@gmail.com

UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná

Recebido: 12/06/2023

Received: 12/06/2023

Aprovado: 29/11/2023

Approved: 29/11/2023

Publicado: 25/12/2023

Published: 25/12/2023

RESUMO

Buscamos compreender neste trabalho o papel do pragmatismo de Peirce enquanto face ética da investigação científica e como instanciação da lei evolucionária do amor criativo, ou Agapismo. Em meio ao cenário informacional contemporâneo no qual as redes se tornam plataformas para a transmissão de crenças por contágio, a desconfiança no método científico se intensifica e promove atitudes negacionistas, bem como o consequente desprezo pela alteridade dos fatos. Nesse contexto, é possível questionar: o método científico está sujeito à dinâmica comunicacional de nosso tempo? Isto é, seus produtos serão, de algum modo, influenciados pela desinformação? Como suporte teórico à análise deste cenário, convocamos o princípio evolutivo agápico defendido por Peirce em seu ensaio Evolutionary love, segundo o qual todo o cosmo evolui, em busca da harmonia como ideal aglutinador. Tal princípio evolutivo, enquanto uma lei geral, apresenta-se por meio de sua instanciação que julgamos estar configurada na conduta pragmática. Sob o ponto de vista do pragmatismo, na medida em que toma a alteridade da realidade como guia corretivo de conduta, o curso da história deverá, malgrado a custos conflitivos altos e de seu próprio retardamento, desmobilizar o desprezo pela ciência e uso irresponsável das plataformas comunicacionais, fazendo com que as novidades resultantes de nosso tempo sejam incorporadas cada vez mais na estrutura de nossos hábitos ao mesmo tempo em que promovem mudanças em nós.

Palavras-Chave: Agapismo. Ciência. Crença. Negacionismo científico. Verdade.

ABSTRACT

The present work aims to understand the role of Peirce's pragmatism as an ethical face of scientific investigation and as an instantiation of the evolutionary law of creative love, or Agapism. In the midst of the contemporary informational scenario in which networks become platforms for the transmission of beliefs by contagion, distrust in the scientific method intensifies and promotes denialist attitudes, as well as the consequent contempt for the otherness of facts. In this context, it is possible to question Is the scientific method subject to the communicational dynamics of our time? That is, will its products be, in some way, influenced by misinformation? As theoretical support for the analysis of this scenario, we invoke the agapic evolutionary principle defended by Peirce in his essay Evolutionary love, according to which the entire cosmos evolves, in search of harmony as a unifying ideal. This evolutionary principle, as a general law, is presented through its instantiation, which we deem to be configured in pragmatic conduct. From the point of view of pragmatism, to the extent that it takes the alterity of reality as a corrective guide to conduct, the course of history should, despite the high conflicting costs and its own retardation, demobilize the contempt for science and the irresponsible use of platforms communications, making the novelties resulting from our time to be incorporated more and more in the structure of our habits at the same time that they promote changes in us.

Keywords: Agapism. Belief. Science. Scientific denialism. Truth.


Introdução

Em 2018, no 18º Encontro Internacional sobre Pragmatismo, o prof. Nathan Houser ministrou uma conferência na qual analisava os fenômenos políticos da atualidade e sua relação direta com os novos modos de conduta que cresciam sob influência das redes, sobretudo, dos memes. A conferência, que se tornou um artigo (Houser, 2019), convidou-nos a pensar como as práticas coletivas para o desenvolvimento humano estavam sob ataque, acarretando, segundo ele, uma espécie de desintegração da mente social[1].

A discussão vinha somar aos esforços para compreender e caracterizar a ascensão no Ocidente de partidos e posições de extrema direita que se intensificou na última década, sobretudo pelo uso das redes e estratégia de disseminação de fake news. A transmissão de crenças por contágio (Baggio, 2021), possibilitada principalmente pela ludicidade dos memes, fez aumentar a desinformação e prosperar ambientes férteis para o crescimento de rivalidades e perseguição aos diferentes.

Nesse contexto de desconfiança instaurada e apego a crenças sem lastro na realidade, o conhecimento científico, baseado em afirmações sustentadas por inferências experimentais, sofreu, por ocasião dos períodos mais acentuados da recente pandemia, ataques constantes direcionados a seu descredenciamento e baseados em uma avalanche de narrativas impulsionada pela dinâmica imediata e saturadora das redes.

Tal cenário faz suscitar questões importantes: a forma como as redes e plataformas de comunicação digital permitem questionar os resultados da ciência, possibilitando certo desprezo por eles, pode levar à degradação da espécie humana, uma vez que a representação da alteridade ficará comprometida? O aumento expressivo de acesso à informação – um dos fundamentos do estado democrático – poderia, inversamente do esperado, tornar grande parte da opinião pública submetida à desinformação trazida por narrativas e, assim, ao afastamento da realidade? Derivado dessas questões, o problema que guia a discussão deste artigo é: o método científico está sujeito à dinâmica comunicacional de nosso tempo? Isto é, seus produtos serão, de algum modo, influenciados pela desinformação?

A hipótese que defenderemos neste texto consiste em negar a real consolidação de tal cenário. Embora possamos buscar a recusa a esse modo de conduta e suas danosas consequências por meio de uma análise semiótica e averiguar os reais significados implícitos nos conceitos de “informação”, “desinformação”, “ciência” etc., apresentaremos aqui um caminho traçado pelo pragmatismo de C. S. Peirce: o método científico, fundamentado nas inferências abdutiva, dedutiva e indutiva é, justamente, o meio pelo qual a influência da desinformação e procedimentos comunicacionais enviesados será gradualmente anulada. A busca ética pela verdade, delineada no ideal agápico peirciano, caracteriza o principal meio para a pesquisa científica e vê na realidade a real fundamentação de suas afirmações. De modo concreto, a lei do amor criativo se instancia na conduta pragmática, naquela que possibilita o real aprendizado por meio do diálogo constante com o mundo. Tal busca pela representação correta do fato, aquela que dialoga com o real, faz aparecer, no nível da conduta, o compromisso com a verdade enquanto valor moral imprescindível aos conceitos de justiça e bem comum, pilares fundamentais às estruturas democráticas. A busca pela verdade, enquanto fim último da ciência, além de um compromisso epistemológico, é, antes de tudo, uma postura ética cuja empreitada deve considerar o falseamento de qualquer narrativa descolada dos fatos, seja ela construída de maneira intencional ou não.

De modo a defender a hipótese levantada, nosso texto iniciará, na primeira seção, com a abordagem peirciana da lei evolucionária agápica para compreendermos os princípios ontológicos por ela defendidos. Feito isso, apresentaremos, na segunda seção, a conduta pragmática, desvelada no método científico, como intanciação da lei agápica e responsável pelo princípio ético da investigação. Na terceira seção, analisaremos o conceito de verdade diante do posicionamento pragmatista e a forma como esta, para além de um critério de confirmação entre representação e representado, se apresenta como um fim a ser alcançado na conduta ética.

A lei evolucionária agápica

O agapismo é apresentado por Peirce no texto Evolutionary Love (CP, 6.287-317)[2] diante da análise feita pelo autor das teorias acerca da evolução que ganhavam força em sua época, tais como a seleção natural defendida por Darwin (1859) e a lei do uso e desuso concebida por Lamarck (2011). Na concepção peirciana, não há recusa das teorias da evolução vigentes à época, mas o autor entende que nenhuma é capaz de representar com precisão a evolução, que, para além da vida no planeta, deve se estender para todo o Universo.

A ideia de um amor evolucionário aparece como tese cosmológica em Peirce. O filósofo sugere os modos de ser do real com base em três categorias universais, espraiadas pelo cosmos e propostas a partir de recursos da fenomenologia e da semiótica. Uma primeira definição de real dada por Peirce (CP, 8.12) é “aquilo que não é o que pensamos dele, mas o que não é afetado por aquilo que possamos pensar dele”. Há, portanto, um traço de resistência sobre aquilo que pode ser inferido da realidade. Tal resistência configura a existência de um outro, uma alteridade que se impõe. Existência, portanto, configura uma das categorias do real, denominada por Peirce de segundidade (CP, 1.24). 

Ainda que o real resista àquilo que dele pode ser dito, conseguimos representar com certo grau de certeza as condições pelas quais ele aparece. Essa experiência caracteriza o traço da realidade em se deixar representar, isto é, manter uma regularidade que pode ser prevista. A insistência do real, além de configurar a alteridade, traz à tona o elemento de permanência, portanto, a tendência em constituir hábitos, o modo de ser da natureza de uma lei, que garante a possibilidade de representação e correção. Lei, enquanto categoria do real, recebe o nome de terceiridade (CP, 1.26). 

Dada a condição de existência e de lei nos modos de ser do real, é preciso pensar de que modo a novidade surge. Um mundo de exclusiva regularidade não permitiria nenhum desvio diante de suas leis. Como, então, poderíamos pensar em qualquer diversidade em meio à regularidade? Tal fato configura um modo de ser do real caracterizado pela aleatoriedade, pelos desvios face às regras que promovem novidade. O acaso, como categoria do real, foi nomeado por Peirce como primeiridade. 

Primeiridade, segundidade e terceiridade são as categorias universais através das quais Peirce estrutura seu realismo, isto é, sua concepção sobre as condições metafísicas da realidade. A este princípio do real, vem somar a concepção peirciana de continuidade, ou sinequismo, segundo a qual, matéria e mente não são elementos de natureza distintas, mas aspectos de um mesmo contínuo. Peirce pretende, com essa abordagem, eliminar qualquer resquício dualista de sua doutrina que separe os indivíduos (EP, 2:1). A chave da relação entre mente e matéria tal como defendida pelo sinequismo encontra-se na admissão de que o universo material é uma forma de mente, uma vez que é provido de hábitos de conduta, o que configura a doutrina do Idealismo Objetivo segundo a qual, matéria é mente esgotada, hábitos inveterados tornando-se leis físicas (CP, 6.25). 

É com base nessa cosmologia evolucionista e realista que Peirce apresenta o princípio agápico que se propõe como uma resposta ao problema de explicar como surgem as leis naturais e a regularidade que não são explicadas, segundo Peirce, nem pelo determinismo e nem pelo acaso, pedras angulares das teorias evolucionistas contemporâneas de Peirce. 

Longe de ser compreendido como um elemento humano de natureza estritamente psíquica e incorrer, desse modo, em um psicologismo, o amor perpassa qualquer condição da humanidade, pois configura-se na teoria peirciana como um princípio lógico e, portanto, condição norteadora da organização. Ele se torna, no viés peirciano, um princípio regente, uma força diretora que pode ser entendida como “[...] uma tendência em direção à harmoniosa inclusão, cujo destino é conduzir as divergentes tensões evolucionárias hostis, deflagradas pelo acaso inicial, a um acordo mútuo” (Oliver, 1964, p. 298). Peirce encontra lugar em suas discussões para os princípios evolutivos defendidos em sua época, mas os supera em virtude de suas exigências filosóficas, principalmente, decorrentes da elaboração das categorias fenomenológicas (CP, 6.302).

As dimensões mediadora e generalizadora do agapismo o tornam um princípio harmonizador e redutor da força bruta, colocando-o sob o domínio da terceiridade. Tal natureza categorial aparece com clareza na afirmação de Ibri (2020, p. 184): “No seu caráter aglutinador e contínuo, o agapismo não é um princípio que concilia oposições que, de gênese têm uma unidade básica que garante sua conaturalidade”, pois, nas palavras de Peirce (EP, 1:362): “O amor não pode ter um contrário, mas deve incluir aquilo que lhe é um extremo oposto”. 

O evolucionismo marca um importante papel na filosofia de Peirce. O autor trata de um evolucionismo cósmico, de um movimento de natureza mental que se desenvolve pela lei do hábito, processo que ganha significado expressivo ao ser chamado de aprendizagem, correção de erros e busca por equilíbrio, ou harmonia. Nessa busca, o princípio do amor criativo mostra-se operante no universo e leva Peirce a formular aquilo que chamou de regra de ouro do amor: “O movimento do amor é circular, num único e mesmo impulso, lança suas criações ruma à independência e as atrai de volta para a harmonia” (CP, 6.288)[3]

De fundamental importância é notar como as ideias de independência e harmonia não são tomadas em uma relação de contrariedade que poderiam sugerir. A força aglutinadora do amor é suficiente para deixar ser o que é ao mesmo tempo em que participa de um todo maior. “Independência e harmonia são, desse modo, princípios básicos da própria aprendizagem que se mostra como um convite para que a experiência singular só encontre sua real fundamentação ao participar de – e colabora com – um todo harmônico” (Baggio, 2021, p. 184). 

Uma vez que o agapismo aparece como lei operante no cosmos, já é possível delinear a possibilidade real de crescimento harmônico no acesso a informações confiáveis e ressignificação da conduta nas redes. A tendência, fundamentada no ideal agápico, é que o uso constante e cada vez mais expressivo das redes nos possibilite a real aprendizagem de como utilizá-las, de modo que seus resultados estejam atrelados ao real e não distantes dele. 

O que devemos pensar, então, é como a lei agápica, sendo de natureza geral, pode exercer influência direta na conduta e auxiliar em seus avanços, gerando assim aprendizagem. Nossa hipótese afirma encontrar tal influência agápica em sua instanciação através da conduta pragmática, uma vez que é na busca pelo significado pragmático, isto é, o alcance de nossas concepções de maneira efetiva na conduta e mediada pela forma como o real corrobora ou não com tais concepções, que somos levados a desconsiderar, de maneira progressiva, a influência da desinformação na prática científica, ao mesmo tempo em que tal prática auxilia na nulidade da desinformação. 

Pragmatismo: a face ética da investigação científica

Em How to make our ideas clear (CP, 5.388-410), Peirce introduz os efeitos práticos de uma ideia como elemento que deve conduzir qualquer investigação. É através dessa discussão que o autor apresenta a primeira formulação da máxima pragmática: “Considere quais efeitos, que concebivelmente poderiam ter consequências práticas, concebemos ter o objeto de nossa concepção. Então, a concepção desses efeitos é o todo de nossa concepção do objeto” (CP, 5.402). Tal máxima, embora redigida em 1878, apresenta o cerne de toda investigação de cunho peirciano, pois assume a natureza hipotética das inferências e a necessidade de testes indutivos das consequências que delas extraímos por dedução. As consequências práticas de uma concepção são estabelecidas por meio desse processo de investigação e confirmadas através da conduta.

O processo de investigação requerido na máxima pragmática é uma das importantes contribuições de Peirce para a história da ciência. Em The fixation of belif (CP, 5.358-387), Peirce já apresenta o método científico como o mais seguro para estabelecer crenças confiáveis sobre o real visto sua natureza dialogante e corretiva diante dos fatos. Ao longo dos anos, o pensador configura a natureza do método científico na tríade abdução-dedução-indução. A abdução aparece no texto peirciano como o processo de formação de hipóteses explanatórias, enquanto a dedução desenvolve as consequências necessárias da hipótese pura e a indução determina um valor a partir da experimentação das hipóteses (CP, 5.171).

A ideia de efeitos práticos ou consequências práticas extraídas da máxima pragmática acarretou uma série de imprecisões em sua interpretação cometidas por pensadores como Willian James. A crítica de Peirce a James centra-se na compreensão deste acerca da expressão consequências pragmáticas que reduz o significado de uma proposição ou de um corpo teórico de uma doutrina positiva a um conjunto de ações ou de experimentos singulares por elas engendrados (Ibri, 2021, p. 235). 

É imprescindível que qualquer consideração acerca da conduta seja elaborada no escopo das três categorias, quais sejam, primeiridade, segundidade e terceiridade, que correspondem respectivamente a qualidade, alteridade e pensamento, no nível fenomenológico, e a acaso, existência e lei, no nível ontológico. Sem considerar tal caráter triádico, o significado se reduziria a uma série finita de ações ou de experimentos a ela legados, o que reduziria sua estrutura categorial a um dualismo insustentável no sistema peirciano. 

Sob o prisma das categorias, a questão do significado não se reduz à instância particular, ou da segundidade, mas sim à generalidade, remetendo-o à terceira categoria. Tal movimento permite compreender a questão das consequências práticas diante da ação em geral, aquela que visa um fim in futuro, como um engendramento lógico e harmônico de possibilidades, e exclui da estrutura do Pragmatismo, portanto, qualquer flerte ao utilitarismo: 

Admitindo-se [...] que a ação requer um fim, e que este fim deve ser algo similar a uma descrição geral, então o espírito da máxima de que devemos olhar para os resultados finais de nossos conceitos a fim de apreendê-los corretamente direcionar-nos-ia para alguma coisa diferente dos fatos práticos, a saber: para ideias gerais, como as verdadeiras intérpretes de nosso pensamento (CP, 5.3).

Se analisada dentro do aspecto das Ciências Normativas – estética, ética e lógica (ou semiótica) – a conduta pragmática pode ser tomada como uma postura que revela o que devemos fazer, dizendo de outro modo, revela, a partir daquilo que o real é, como deve ser o bem agir. Santaella (2000, p. 96) nos diz: “Como uma doutrina lógica ou um método para determinar o significado dos conceitos intelectuais, o pragmatismo aponta diretamente para a importância da ética”. Ao insistir na análise das consequências práticas de uma concepção, o pragmatismo assume a conduta como elemento pelo qual a verdade deve ser buscada. Nesse sentido, a investigação científica é o meio pelo qual a máxima pragmática é efetivada. Do mesmo modo, a investigação científica é produto da própria ciência garantida por aquilo que Peirce chamou de espírito científico: 

O que é ciência? O dicionário dirá que é um conhecimento sistematizado. As definições dos dicionários, contudo, são demasiado propensas a basear-se em derivações; o que equivale a dizer que negligenciam demasiado os passos posteriores na evolução dos significados. O mero conhecimento, embora sistematizado, pode ser uma memória morta; enquanto por ciência todos nós habitualmente entendemos um corpo vivo e crescente de verdade. Poderíamos até dizer que o conhecimento não é necessário para a ciência. As pesquisas astronômicas de Ptolomeu, embora sejam em grande medida falsas, devem ser reconhecidas por todo matemático moderno que as lê como sendo verdadeira e genuinamente científicas. O que constitui a ciência, então, não são tanto conclusões corretas, mas um método correto. Mas o método da ciência é em si um resultado científico. Não surgiu do cérebro de um iniciante: foi uma conquista histórica e uma conquista científica. De modo que nem mesmo este método deve ser considerado essencial para os primórdios da ciência. O que é essencial, porém, é o espírito científico, que está determinado a não ficar satisfeito com as opiniões existentes, mas a avançar para a verdade real da natureza (CP, 6.428).

Dito de outro modo, o espírito científico pode ser caracterizado como espírito pragmático e advém da busca pela verdade das representações. Não obstante, tal procura pela verdade é guiada pelo ideal agápico enquanto princípio aglutinador e redutor da força bruta. Queremos encontrar a verdade, pois isso equivale ao bem representar do real e nos conduz à harmonia, ou ao equilíbrio.

Isto posto, a relação entre pragmatismo, investigação científica e agapismo começa a aparecer com maior clareza: o teste de hipóteses e suas correções se consolidam como princípios de aprendizagem e, ao aceitar a natureza da mente científica – aquela capaz de aprender com a experiência – e sua tendência à construção de boas representações do real, estamos sujeitos à lei evolucionária do amor criativo. Pode parecer ilícito convocar o princípio do Amor, uma vez que tal assunto se constitui matéria filosófica dos antigos e da metafísica teológica, e desaguar num excessivo antropomorfismo. Imune a tal acusação[4], a filosofia peirciana explora todos os atributos que são da natureza da mente. 

É válido afirmar, portanto, que o Agapismo constitui um princípio fundamental acerca da estrutura do Universo e se relaciona diretamente com a heurística presente no pensamento peirciano, isto é, o impulso para criação de hipóteses configurada na estrutura da abdução. A heurística, guiada pelo princípio agápico, consolida-se como novas formas de conjecturar, de busca de representações verdadeiras, mas, principalmente, como formação e crescimento da terceiridade, caracterizando a doutrina do Idealismo Objetivo.

A conduta pragmática produz relações aglutinadoras que levam os investigadores ao consenso. Nesses termos, a noção de verdade aparece fundamentada em um princípio lógico evolucionário que a vê como um impulso que nos convida a conhecer o que o real é ao mesmo tempo em que participamos dele.

Aplicar a máxima pragmática na curadoria das hipóteses implica manter o compromisso com a verdade, conduzindo-nos, de um ponto de vista ético, a relações harmônicas com o todo, isto é, ao equilíbrio com o meio através das representações corretas acerca do real. A natureza agápica da conduta pragmática nos impele ao bem representar, ou seja, a buscar formas corretas de dizer o que o real é e corrigir aquilo que dele é dito, mas que não extrapola sua natureza. Desse modo, apresenta também sua dimensão estética, pois a boa representação deve ter como fim o summum bonum, uma ciência de fins ideais (Liszka, 2018). É por esse viés que as doutrinas do pragmatismo e do agapismo estão em perfeita sintonia, pois a busca pela verdade permite estabelecer conexões que estimulam a aprendizagem enquanto projetam para a evolução.

A verdade como horizonte ético

O curso de nosso trabalho nos leva agora a abordar a temática da verdade e sua imbricada construção conceitual na epistemologia de Peirce. O que deve ser notado já de início na abordagem dessa temática é o modo como, embora possa ser considerada através de sua natureza lógica dentro do âmbito das Ciências Normativas, o cerne da verdade não deve ser buscado apenas no diálogo entre objeto e sua representação, mas deve munir-se de aparato ético capaz de conduzir ao fim último, ao summum bonum estético, que permeia o processo evolucionário, distinguindo-o da mera faticidade, da finitude da temporalidade. Conforme se lê em Ibri (2020, p. 71): “A evolução caminha para um summum bonum, um ponto tendencial coagulante da beleza, do bem e da inteligência, que por si já́ requer uma conduta em que predomina o universal em detrimento do individual”.

Na concepção peirciana, a concepção de verdade está necessariamente ligada a uma comunidade de investigadores configurada na opinião final destes, opinião esta que precisa estar necessariamente ancorada na realidade fática (CP, 5.407). Portanto, a verdade não pode ser fruto do pensamento individual, pois esse possui grande tendência ao erro (CP, 8.12). 

No entanto, não há espaço no sistema peirciano para uma concepção de verdade que seja acabada e imutável, tal como o termo é compreendido em parte da tradição filosófica. A categoria ontológica de primeiridade pressupõe a realidade do acaso, portanto, não é lícito presumir a possibilidade de exatidão num mundo de pungentes desvios frente aos determinismos da lei. Como postura epistemológica, portanto, Peirce assume o Falibilismo, doutrina segundo a qual o conhecimento nunca é absoluto e sempre está sujeito à incerteza e indeterminação (CP, 1.171). 

A verdade para o Falibilismo é “[...] o fim para onde tende indefinidamente a representação da comunidade de investigação, numa fixação inabalável de seu sistema de crenças” (Ibri, 2020, p. 194). Pensar a verdade como um critério comunitário é a solução que Peirce encontra para o problema da incognoscibilidade do real, pois pressupõe que a longo prazo, em meio às tentativas coletivas, a representação correta do real tende a aparecer, em menor ou maior grau de exatidão, mas nunca absoluta. Tal concepção convida à discussão critérios de ordem ética e política, pois vê a busca pela verdade como res publica

Peirce (EP, 2:457) diz: “Chamo de ‘verdade’ a opinião predestinada, a qual eu deveria ter significado aquilo que em última instância prevaleceria se a investigação fosse levada suficientemente adiante nessa direção particular”. Dessa afirmação podemos extrair algumas consequências relevantes: 

Por “opinião predestinada”, além de sua natureza pública e sua determinação pelo real, podemos compreender sua diferenciação de uma noção corriqueira de opinião que a concebe como o posicionamento particular de alguém, pois diz respeito à independência da verdade frente a qualquer fator individual, uma vez que é produto de elucubrações e experimentações coletivas. A citação demonstra ainda o caráter in futuro da verdade, pois é pela investigação, sempre levada adiante, que a condição da dúvida se encerra. Mesmo que tenha se estabelecido a certeza, é no futuro que saberemos até quando contar com ela. Portanto, entende-se a verdade como limite até o qual conseguimos chegar na busca pelo real (Baggio, 2021, p. 104).

A verdade como algo in futuro corrobora com a concepção evolucionista do autor e ainda, pelo viés pragmatista, define uma postura ética diante do real, pois, para além do conhecimento a que se chega, é necessário pensar até onde ele pode ir e como poderá ser aplicado, isso tudo com olhar atento para as exigências da alteridade. Sob este aspecto, a prática científica enquanto genuína busca de interpretações verdadeiras da realidade oferece a possibilidade de acordo de opiniões faticamente ancoradas e por assim ser está apta a descredenciar opiniões formadas apenas por interesses particulares de instâncias de poder. 

Como exercício de análise dessa constatação, e em meio ao desprezo por informações de fontes confiáveis incentivado pelas plataformas de comunicação digital, podemos questionar: por se tratar de informações totalmente descompromissadas com a realidade fática e que visam a manipulação ou mesmo a inanição da opinião pública, a que tipo de conduta as fake news conduziriam? Segundo Ibri (2021, p. 28-29), as consequências práticas das fake news podem aparecer de dois modos: 

a) Conflituosas com os fatos, pois são geradas por narrativas ficcionais e estão distantes de uma faticidade observável. Esse primeiro tipo contempla condutas que não possuem vínculo nenhum com conceitos minimamente submetidos à experiência e que acabam direcionados a fins diferentes daqueles sustentados pelas narrativas que lhes deram origem. O autor relembra aqui a distinção entre realidade e ficção defendida por Peirce, na qual permanência e insistência diferenciam a primeira da segunda. Nesse contexto, as ações geradas em contraste com os fatos vão em desacordo com aquilo que a narrativa ficcional criou. De um ponto de vista pragmático, a conduta aqui perde seu real propósito, porque não dialoga com fatos futuros com os quais ela deverá se conformar. “Tratando-se de ficção, seu poder preditivo da realidade é simplesmente nulo e, assim, a conduta induzida por ela estará inserta em uma faticidade alheia à contida na narrativa” (Ibri, 2021, p. 28). 

b) Indiferentes aos fatos, tendem a aceitar o conteúdo de narrativas que corroborem com sua própria visão de mundo sem nenhum diálogo real com a experiência. “Crenças dogmáticas, como anteriormente expostas, tendem a aderir seus fins, imunes à observação e, portanto, a recurso de retroanálise corretiva, a fins que uma narrativa encerra e que com eles parecem se harmonizar” (Ibri, 2021, p. 28). Sobre ambas as condutas: 

Enquanto condutas da classe ‘a’, malgrado temporariamente conflituosas com a faticidade em que são lançadas por uma falsa descrição da realidade, possam ser corrigidas e assim buscar sua consistência lógica com a experiência, as de classe ‘b’ se encerram no interior da linguagem, das representações de mundo e tendem a se satisfazer com elas. As razões pelas quais isso assim acontece são múltiplas e parecem exceder a esfera meramente ideológica (Ibri, 2021, p. 28-29). 

O Pragmatismo deve ser evocado nas discussões contemporâneas de desinformação, pois sua capacidade consiste em discernir uma crença de outra diante do modo de ação a que cada uma dá origem (CP, 5.398). É a conduta – modo como a crença aparece – que possibilita pôr à prova as consequências práticas de qualquer concepção e visar sua tendência à verdade. Abandonar os fatos para conduzir inferências próprias tem como consequência o afastamento do real e a vinculação a discursos vazios que guiam a conduta por vieses duvidosos. Nesse sentido, afirma Ibri (2021, p. 30): “Caminhos errados a que uma sociedade é contingentemente conduzida pelo falseamento intencional da realidade resultam em retardamento da História”, mas, é preciso reforçar, sempre serão corrigidos a longo prazo, pois a força bruta da alteridade não permite ser negligenciada.

A conduta pragmática enquanto instanciação da lei agápica, de evolução colaborativa e aglutinadora, tem como fim a verdade, não apenas como representação lógica do real, mas como horizonte ético, como alvo a ser visado. Nessa concepção, não há espaço para narrativas de desinformação que, embora sua ação nunca cesse, serão encobertas pelos fatos. A ciência, não apenas na sua roupagem técnica, mas como forma de vida e conduta diante do mundo, assumirá o lugar que, ao longo da história, sempre foi seu mesmo que, ora ou outra, tenha sido ofuscado pelas tendências da época. 

Considerações finais

É preciso, portanto, sermos otimistas mesmo em tempos de desprezo pela ciência. Saber que há uma lei aglutinadora operante, que busca a harmonia e equilíbrio, é passo fundamental para continuar vislumbrando a verdade como fim da investigação e como componente essencial da conduta. Importante também é observar o modo como a alteridade tem sido implacável com as posturas negacionistas, determinando a relevância da conduta pragmática na busca do significado real das concepções. É certo que a velocidade com que as redes disseminam conteúdo é assustadoramente grande, mas a realidade tem mostrado, em seu próprio ritmo, o que a falta de respaldo nos fatos pode gerar; e se não quisermos nos decepcionar e negar as circunstâncias todas as vezes que nossas crenças forem confrontadas, precisamos estar dispostos a aprender com as mudanças e interjeições que o mundo nos impõe. 

É o método científico que promove a adequação precisa da representação com o mundo. Nenhuma outra forma de fixar crença é mais competente nessa empreitada, pois apenas a ciência está disposta ao diálogo aberto com os fatos, aceitando mudar sua postura sempre que se vê contrariada por eles. A prática científica é a genuína busca de interpretações verdadeiras da realidade e ostenta tal posto, pois envolve o acordo de opiniões ancoradas nos fatos. Tal natureza dialogante a torna apta a descredenciar opiniões formadas por interesses particulares, que, sob um ponto de vista ético, não representam os resultados esperados nos modos de ação respaldados pelo Pragmatismo.

Atentar para o caráter in futuro da verdade, como uma opinião partilhada e concebida a partir de um diálogo falibilista com os fatos, é critério fundamental para assumir o método científico, configurado na conduta pragmática como critério não apenas técnico, mas, sobretudo, como forma de proceder no cotidiano, configurando assim a importância da investigação filosófica nas diversas instâncias da vida.

Por intermédio da conduta pragmática, de correção das concepções – mesmo que forçada – a crítica infundada aos resultados e métodos da ciência tende a perder espaço ou, pelo menos, relevância. Embora a mentira e o engano proposital sejam recorrentes na história e possam causar seu retardamento, o uso das redes é ainda uma novidade e, como tal, precisa ser incorporada em nossos hábitos, ao mesmo tempo em que promovem mudanças em nós cuja tendência é a harmonia com o todo. É por meio da aprendizagem, da real essência do agapismo, que o desprezo pela ciência e o uso irresponsável das plataformas comunicacionais serão corrigidos no longo curso da experiência. Uma prática que deve começar imediatamente por nós, os investigadores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Renan Henrique Baggio

Doutorado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2021). Mestrado pelo Programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Marília, na área de Ciências Cognitivas, Filosofia da Mente e Semiótica (2016). Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2013). Professor QPM de Filosofia na Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Pesquisador do Centro de Estudos de Pragmatismo da PUC/SP. Pesquisador da Rede Brasileira de Pesquisa em Semiótica Peirciana. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Epistemologia, atuando principalmente nos temas de Pragmatismo e Semiótica.

 

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[1] Peirce afirma que “toda comunicação de mente para mente se dá através da continuidade dos seres” (CP, 7.572). Por meio dessa concepção, a ideia da identidade pessoal deve ser ampliada para incluir uma dimensão social da mente ou da consciência. A filosofia não deve começar com um cogito, ou com impressões sensíveis; ela se inicia com a ideia de que sensações são julgamentos, julgamentos são generalizações e generalizações exigem generalidade (Esposito, 2005). Nessas condições, a mente social parte da ideia de uma condição coletiva que garanta a significação. A desintegração da mente social, conforme apresentada por Houser (2019), sugere a prevalência do individualismo sobre o coletivo, fonte das mazelas comunicacionais de nosso tempo.

[2] As citações de Peirce serão feitas conforme as diretrizes internacionais de citação da Obra do autor: The Collected Papers of Charles Sanders Peirce: Iniciais da obra (CP), sucedida pelo número do livro e número dos parágrafos separados por um ponto; Essential Peirce: Iniciais da obra (EP), sucedidas pelo número do volume e número da página separados por dois pontos.

[3] As categorias fenomenológicas são, na perspectiva peirciana, as formas universais da experiência. Os mesmos princípios que encontramos nas categorias ontológicas são aqui representados sob a égide da conduta, isto é, qualidade (primeiridade), reação (segundidade) e pensamento (terceiridade). É válido ainda afirmar que as categorias fenomenológicas não são derivadas da concepção metafísica do pensador, mas é justamente o contrário. A partir da experiência comum, ou modo como o real aparece, Peirce pretende discursar sobre como, então, o real deve ser.

[4] Ver, por exemplo, CP, 1.316 e 6.189.