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A Inquietude da vida Fática.  A virada aristotélica de Heidegger (1921-1922)[1]

L’inquiétude de la vie facticielle. Le tournant aristotélicien de Heidegger (1921-1922)

Christian Sommer[2]

Tradução: Adriano Beraldi[3] (bolsista FAPES) – UFES

E-mail: adriano.beraldi@gmail.com

ORCID: 0000-0002-8770-8858

 

Recebido: 26/06/2023

Received: 26/06/2023

Aprovado: 11/08/2023

Approved: 11/08/2023

Publicado: 16/08/2023

Published: 16/08/2023

 

O curso friburguense que Heidegger ministra em 1921-1922, Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles[4] é explicitamente colocado sob a autoridade de Lutero[5]. Para indicar reconhecidamente (dankbar) a fonte (Quelle) e a tendência (Tendenz) de sua interpretação, Heidegger cita uma frase de Lutero extraída do Comentário ao Livro do Gênesis (1544): “Tão logo saímos do ventre de nossa mãe começamos a morrer”[6] e um extrato do Prefácio à Epístola de Paulo aos Romanos (1522): “Por essa razão, cuidado para não beberes vinho enquanto és lactente [Hb 5,12-14]. Toda a doutrina possui a sua medida, o seu tempo e a sua idade”[7].

Pretendemos demonstrar que nesse curso Heidegger procura conceptualizar, por intermédio de Aristóteles, os fenômenos “arquicristãos” trazidos à luz anteriormente em suas preleções sobre Paulo (1920-1921) e Agostinho (1921). Essa conceptualização fenomenológica, guiada pela oposição luterana entre a theologia gloriae e a theologia crucis e a ideia de um retorno ao arquicristianismo (Urchristentum) do Novo Testamento, imprime a orientação geral de sua “destruição” de Aristóteles situada no horizonte hermenêutico da vida fática (faktisches Leben) em sua mobilidade (Bewegtheit)[8]. A complexidade do gesto interpretativo de Heidegger tensionado entre Aristóteles e o Novo Testamento (Lutero) é particularmente manifesta nesse período crucial[9]. Testemunhamos aqui, nessa tensão, o esboço da destruição sistemática da “ontologia do mundo”[10], dessa “sabedoria dos sábios” motivada pelo “amor do mundo”.

Ainda que os conceitos de vida e de mobilidade no curso de 1921-1922 pressuponham uma leitura crítica da Física, do De anima e da Ética a Nicômaco, Aristóteles é citado apenas uma vez no texto, ao contrário do que acontece no curso de 1922 que será uma sua exegese direta. Isso se dá porque a referência aristotélica, latente, mas constante, já está integrada, por destruição e transformação, em uma nova “problemática filosófica”[11] que prefigura a analítica existencial de Sein und Zeit (1927). Indicaremos a seguir alguns desses estratos aristotélicos para esclarecer a elaboração heideggeriana das “categorias dinâmicas” da vida fática. Tal elaboração efetua-se em continuidade com a fenomenologia da experiência religiosa, notadamente a experiência agostiniana da tentação no curso de 1921 do qual nos utilizaremos de modo pontual.

O extravio no mundo: inclinação, distância, bloqueio

 É na terceira parte do curso de 1921-1922[12] que Heidegger se dedica à descrição da vida fática em sua mobilidade: “Como determinidade principial do objeto do nosso discurso (vida fática) nós consideramos a mobilidade”[13]. Para identificar o fenômeno dessa Bewegtheit, Heidegger propõe, em uma nota do curso, o termo inquietude (Unruhe) referindo-se à Pascal (Pensées, I-VII): “A mobilidade da vida fática pode ser provisoriamente interpretada e descrita como inquietude. O como dessa inquietude, enquanto um todo fenomênico, determina a facticidade”[14]. Ao final dessa nota elíptica Heidegger se refere a Aristóteles: “quietude-inquietude; fenômeno e movimento (cf. o fenômeno do movimento em Aristóteles)”[15]. E mais à frente o filósofo observa sem maiores esclarecimentos: “Problema da facticidade, problema da kinesis[16]. Explicitemos brevemente tais alusões que nos remetem às matrizes conceituais importantes para a problemática heideggeriana da vida fática.

Antes de tudo é preciso perceber que para articular mobilidade (inquietude) e vida fática Heidegger recorre a uma destruição reiterativa da Física, cujo objeto principal é o movimento e a mudança (kinesis, metabole):

Uma vez que a natureza é princípio de movimento e mudança e que nossa investigação é sobre a natureza, não devemos deixar que nos escape o que é o movimento, pois, se o ignorarmos, ignoramos também necessariamente a natureza[17].

Para compreender que Un-ruhe possa servir de sinônimo à Bewegtheit devemos igualmente recordar que Aristóteles define a natureza (phisis) como “princípio de movimento e repouso”[18]. Os entes do mundo sublunar não são sempre imóveis ou móveis, mas estão por vezes em repouso, por vezes em movimento[19]. A Bewegtheit, como ser do movimento (Bewegung), compreende tanto o movimento quanto o repouso, não sendo este último senão um repouso “inquieto”, uma parada provisória, pois está situado entre dois movimentos[20]. O repouso não é contraditório ao movimento (como seria o caso do imóvel), mas é o seu oposto (é sua ausência, sua privação[21]) e só encontra sentido no interior da mobilidade.

Para elucidar em seguida o “problema” da vida em movimento (kinesis, facticidade) convém notar que, para Aristóteles, o movimento é uma manifestação particular do fenômeno mais geral que é a vida (zoe): o movimento “pertence aos entes como uma espécie de vida”[22]. A vida, como ocorre com o ser, se diz de vários modos:

O termo ‘vida’ recebe várias acepções e basta que apenas uma entre todas se encontre realizada em alguém para que digamos que ele vive: seja, por exemplo, o intelecto, a sensação, o movimento e o repouso segundo o lugar, ou ainda o movimento de nutrição, a diminuição e o aumento[23].

A alma é o princípio desses quatro movimentos (mudanças) do devir da vida e, consequentemente, é definida por quatro poderes correspondentes: o poder motor (transporte), o cognitivo (sensação), o nutritivo e o reprodutor (crescimento, geração)[24]. A Física distingue três espécies de movimento (mudança); mas no De anima, que trata do que é vivo, o crescimento concernente à ousia psíquica não se opõe à diminuição, mas ao declínio que conduz à aniquilação (morte) do que é vivo[25].

Ora, para um vivente humano, a vida não se reduz aos movimentos primordiais da vida “zoológica” (nutrição, crescimento, declínio): “o simples fato de viver é evidentemente algo que o homem compartilha mesmo com os vegetais; mas o que buscamos é o que é próprio dele”[26]. Nessa mesma vida natural se coloca a questão do bem verdadeiro, próprio ao ser humano, do “bem viver” (eu zen)[27] e de uma “vida feliz” (euzoia)[28]. E qual é o tipo de vida, o bios supremo, que permite à zoe humana alcançar a felicidade perfeita, a sua Eigentlichkeit? Conhecemos a resposta de Aristóteles: é o bios theoretikos, cuja excelência ultrapassa a vida prazerosa e a vida política[29]. Por ora, deixemos de lado o exame da resposta de Heidegger, resultado de uma destruição crítica desse primado da vida teorética, e retornemos à descrição da mobilidade fática.

Agora nos é possível compreender a conexão entre mobilidade, vida fática (física) e inquietude. No Natorp Bericht de 1922, contemporâneo do nosso curso, Heidegger escreve: “A mobilidade do cuidado tem o caráter da experiência prática [Umgang] da vida fática em seu mundo”. E mais à frente: “O sentido fundamental da mobilidade fática da vida é o cuidar e o inquietar-se (curare)”[30]. Tal caracterização da mobilidade fática como cura, curare fora elaborada no curso de 1921 sobre Agostinho realçando a importância da solicitude (Bekümmerung, Bekümmertsein)[31] situada ao centro da vida cristã exposta à tentação. A vida fática é dividida entre dois modos primordiais e intersectados da cura que são o medo (timere, fürchten) e o desejo (desiderare, erwünschen). Heidegger encontra a estrutura dinâmica dessa clivagem (Zerissenheit, Zwiespältigkeit) no Livro X das Confissões[32]. A orientação tomada pela vida fática não está nunca estabilizada ou assegurada[33]. Entre as significatividades em meio às quais se desenvolve a vida fática, certas (as prospera) contribuem para levar o movimento em direção ao fim desejado, enquanto outras (as adversa), pelo contrário, inibem o movimento. A clivagem conflituosa desses dois movimentos antagônicos, situada em um horizonte de espera (Erwartungshorizont)[34], define o histórico (das Historische) que reside na própria cura[35]. Essa vida histórico-fática, marcada pela copresença (Miteinander, Mitdasein) conflituosa dos contrários, pela discórdia (Widerstreit)[36] entre “espírito” e “carne”, é a própria tentação, que não oferece qualquer medius locus entre esses contrários[37], que não oferece qualquer repouso ao nosso “coração inquieto”[38], pois, para escapar inteiramente à tentação que estrutura a vida fática, seria necessário “sair desse mundo” (1 Cor 5, 10).   

Ao cruzá-los com a estrutura dinâmica do conflito temporal entre “intelecto” e “apetite”, inerente à orexis aristotélica própria de todo o movimento[39], Heidegger formaliza esses fenômenos neotestamentários e os enxerta na estrutura da intencionalidade husserliana[40]. O ser da vida fática é o cuidado inquieto como orientação primordial da existência para algo: “Viver, tomado em sentido verbal, deve ser interpretado segundo seu sentido referencial como cuidar; cuidar para e de algo, viver de algo cuidando desse algo”[41]. Em um sentido indicativo formal, viver, como conduta orientada, significa “cuidar, inquietar-se com o ‘pão de cada dia’ [sorgen um das ‘tägliche Brot]”[42], como escreve Heidegger, referindo-se assim através desta expressão neotestamentária[43] ao poder “nutritivo”, poder psíquico primordial, que, enquanto reprodutor e conservador do ser, precede e funda os outros poderes[44].

O como fundamental (Grundwie) da orientação e da operação (Vollzug) da vida é a “‘falta’ [Darbung] (privatio, carentia)”[45]. Heidegger utiliza as noções aristotélicas de steresis/hexis para a conceituação deste como existenciário[46] da vida fática. A determinação negativa pela privação (steresis) que é um “não” (Nicht) relaciona diretamente a existência a uma possibilidade que não é ainda, mas que ela poderá possuir (hexis, echein)[47]. A vida fática está sempre em falta de algo, a ponto mesmo de lhe faltar a definição dessa falta[48]. A vida fática é essa falta: ela é seu nada, como Heidegger dirá mais à frente no curso. As três categorias fenomenológicas fundamentais que determinam o cuidar da vida em sua conduta (Verhalten) orientada em relação ao mundo ambiente (Umwelt), aos outros (Mitwelt) e ao si mesmo (Selbstwelt) são a inclinação (Neigung), a distância (Abstand) e o bloqueio (Abriegelung). Examinemos o complexo dinâmico dessas três categorias fundamentais forjadas por Heidegger.

A inclinação confere um peso (Gewicht) e uma pressão (Druck)[49] que carreiam e conduzem a vida fática na dispersão (Zerstreuung)[50]. Tal dispersão deve ser entendida no duplo sentido, pré-construtivo (praestruktiv) e reluzente (reluzent), de um “se dispersar” (sich zerstreuen) e disso que dispersa (das zerstreuende)[51]. A Neigung é o movimento dispersivo que tende à tentação[52]. Nessa categoria de Neigung Heidegger recapitula sua interpretação fenomenológica do defluere e da molestia no curso sobre Agostinho. A vida fática, “essa vida humana sobre a terra” que é “do início ao fim tentação”[53], se dispersa e se aliena na multiplicidade mundana: a vida é “vivida” e “arrastada” pelo mundo no qual é lançada[54]. O movimento do ser-lançado (irruere) é intensificado pelo movimento de um defluere: “dispersamo-nos no múltiplo”[55]. Enquanto “como” do ser da vida a molestia concentra toda a “cruz” e a “gravidade” de minha facticidade. Ela é um fardo (Beschwernis) e uma opressão (Bedrängnis)[56]; é um colocar em perigo (Gefährdung) da minha vida fática. Confrontado com as perturbações e dificuldades, com a luta interior de todos os dias, “sou um peso para mim mesmo”[57].

Em nosso curso de 1921-1922, a segunda categoria dinâmica desenvolvida por Heidegger é aquela da distância (Abstand) ou da abolição da distância (Abstandtilgung). Distância e inclinação estão interligadas: o “diante” (pro, Vor) da distância (mais no sentido temporal que espacial), que pressupõe qualquer pro-posição (Vorhabe) e projeto de ser si mesmo, é ocultado (verdekt), reprimido (abgedrängt) e disperso (zerstreut) pela inclinação. A vida fática, seguindo suas inclinações, não consegue ver a si (versieht sich) nem ter a si propriamente porque está exclusivamente fixada na multiplicidade de significatividades mundanas que, proporcionando-lhe prazeres mundanos, ditam a orientação de sua existência[58].

Com a Abstand, Heidegger traduzira em 1921 o termo agostiniano da distantia, descrevendo a experiência da clivagem entre dois “eus[59] da tentação. Em sua glosa, Heidegger mostrara que, sujeita a um aumento repetitivo das significatividades objetivas geradas pelo mundo, assaltada pelo “zumbido de milhares de objetos”, a vida fática, diluída na realidade mundana, reprimindo ou calculando qualquer “possibilidade”[60], encontra-se levada num circuito compulsivo e autossuficiente que ocupa, a partir daí, a função de doação de sentido (Sinngebung) à facticidade[61]. Associando assim o motivo neotestamentário do pecado excessivamente pecaminoso (Rm 7,13) ao do excesso na doutrina aristotélica do justo meio, Heidegger cunha a noção de hiperbólico (das Hyperbolische) para qualificar esse modo de ser da vida em que a multiplicidade enquanto tal se torna objeto de um cuidado inquieto[62]: a vida sedenta de novidade aumenta constantemente, “hiperbolicamente”, as possibilidades mundanas, produzindo um perpétuo excedente de significatividades.

Para articular a terceira categoria, o “bloqueio”, Heidegger também retoma um fenômeno identificado a partir das Confissões[63]. Na orientação decadente (Abfallsrichtung) para o gozo mundano, que os distancia da vita beata, fixados no apelo do prazer imediato, aqueles que se desviam bloqueiam a si mesmos (Sich-selbst-abriegeln) contra a verdade, mas desejando não estarem enganados[64]; em outro ponto, quanto ao fenômeno da autoindulgência, Heidegger havia demonstrado que o si mesmo, pro-pondo a si seu próprio mundo, protegia-se da possibilidade de ser ele mesmo[65]. 

A vida fática se “tranca” para defender-se de si mesma, mas, ao fazê-lo, esquece de si e se omite (lässt sich aus), evitando a possibilidade de “encontrar a si mesma”[66]. Incrementando excessivamente (“hipérbole”) as possibilidades mundanas, a vida aumenta no mesmo movimento as possibilidades de se enganar (sich vergreifen), ou seja, de faltar e se omitir (“elipse”). A infinidade (Unendlichkeit) significativa de possibilidades de autoengano não é senão “a máscara [Maske] que a vida fática impõe, faticamente, a si mesma, a seu mundo, apresentando-a para si”[67]: a vida fática extraviada representa o mundo para si como o bem verdadeiro que ele não é. Através da formação hiperbólica (hyperbolisches Ausbilden)[68] de novas possibilidades mundanas, a vida evita a si mesma e só encontra sua máscara, aquilo que, empregando um termo de Lutero, Heidegger chama de “larvância” (Larvanz):

No cuidado inquieto, a vida se fecha contra si mesma e, nesse bloqueio, não consegue se desvencilhar dela mesma. Sempre desviando o olhar de si mesma ela está constantemente à procura de si e se encontra precisamente lá onde não espera estar, e muito frequentemente em sua máscara (larvância)[69].

Resumamos com Heidegger o complexo dinâmico da vida fática: “a vida fática abre seu próprio caminho inclinando, repelindo a distância, bloqueando-se, orientada para a facilidade”[70]. Essas três categorias possuem um modo comum de produção temporal (Zeitigung): a facilitação e o alívio (Erleichterung), uma categoria que Heidegger extrai de uma destruição reiterativa da doutrina da virtude da Ética a Nicômaco de Aristóteles.

Exortação à filosofia

Oscilando entre “elipse” (falta) e “hipérbole” (excesso), a vida fática busca a facilidade e a segurança:

Viver é cuidar, e isto através da inclinação para o facilitar-as-coisas-para-si [Es-sich-leicht-Machen] da fuga. Assim se produz a orientação para o “falível” [Verfehlbare] enquanto tal, a possibilidade de errar o alvo, a queda [Abfall], o facilitar-as-coisas-para-si[71].

Heidegger refere-se, então, ao Livro II da Ética a Nicômaco, onde Aristóteles define a virtude como justa medida:

Além disso, o erro é multiforme (pois o mal resulta do ilimitado, como conjecturavam os pitagóricos, e o bem do limitado), ao passo que a regra correta só pode ser observada de um único modo: também por estas razões, o primeiro é fácil, e o outro difícil; é fácil errar o objetivo e difícil atingi-lo. E é por isso que o vício tem como características o excesso e a falta, e a virtude a mediania[72].

Vamos reconstituir o contexto da citação para compreender a sua função dentro da problemática da vida fática. Se a virtude (arete) ou a excelência ética, sendo “uma espécie de mediania, no sentido em que visa o meio”[73], atinge o alvo somente de um modo, as formas de engano e de errar esse alvo são múltiplas. Para Aristóteles, a excelência ética reside na mediania (mesotes), ou seja, no justo meio entre dois extremos (dois vícios simétricos)[74], como o indica a definição geral de virtude: “Virtude é uma disposição para agir de forma deliberada, consistindo em uma mediania relativa a nós, que é racionalmente determinada e como a determinaria o homem prudente”[75]. A virtude ética é uma disposição adquirida, ou seja, um hábito e, como tal, pode ser fixada pelo exercício, pela repetição. Ela atua de acordo com o justo meio, cujo critério é a regra correta (orthos logos)[76] fornecida pelo juízo do prudente, e esta regra correta determina a conformidade da ação às circunstâncias: agir “como se deve”, no momento propício, eis o que há de mais difícil na virtude[77]. Portanto, para alcançar o justo meio é necessário agir segundo a regra correta, determinada pela sabedoria prática ou prudência (phronesis), “virtude dianoética” que fundamenta e guia as “virtudes éticas”. O prudente sabe fazer a escolha do bem agir, pois sabe deliberar corretamente sobre os meios que conduzem à vida feliz[78], à felicidade ou ao bem supremo[79]. Assim, com o olhar fixo neste objetivo proporcionado pela sua virtude e na posse da regra correta, ele está em condições de tomar uma decisão que iluminará a ação que atingirá o alvo: o justo meio entre o excesso e a falta[80].

Em seu caráter de descuido (Sorglosigkeit) disperso, o ser-aí humano perde o justo meio, decai em relação a sua possível “virtude”, sua “excelência própria”[81], oscilando entre falta e excesso, os dois traços simétricos do “vício”. O movimento do extravio (o “vício”), em que a vida “boa” se perde, aparece como uma contrapossibilidade da virtude ética, mediania entre a hipérbole e a elipse, justo meio em que a vida coincidiria com ela mesma na verdade de sua bem-aventurada Eigentlichkeit. Falhar na possibilidade de uma vida (bios) excelente é o que a partir de 1921-1922 Heidegger caracteriza com a noção de culpa (Schuld)[82]. As possibilidades infinitas de cometer erros multiformes tornam o ser-aí humano “culpável” e “responsável” por perder sua possibilidade mais própria. Há que se agir “como se deve”: mas essa exigência do “se deve” do bem agir, condição do bem viver, abriga justamente a possibilidade para o ser-aí de fracassar. O ser-aí falha porque em vez de atingir o alvo em linha reta e alcançar a felicidade perfeita que é sempre simples, volta-se, na maior parte das vezes, para o falível enquanto tal, pelo que o ser-aí falha em relação a si mesmo omitindo-se de escolher a si mesmo, deslizando para longe de si na inclinação da facilidade. Assim, escreve Heidegger, o ser-aí humano “evita o difícil, o que é monachos, simples (sem desvios), não se propõe um objetivo, não quer estar disposto [gestellt] a [auf] nem em [in] (repetindo-a [sie wiederholend]) uma decisão originária [Urentscheidung]”[83].  

Essa “decisão originária” nos conduz à dimensão “existenciária” e “psicagógica” inerente ao método heideggeriano posto em marcha em sua fenomenologia da vida fática. Detenhamo-nos um instante no exame da gênese desse método que encontraremos desenvolvido em todas as suas implicações na obra de 1927. Tal como um “pedaço de madeira torto”, a vida fática, tendendo ao “vício”, inclinando-se ao erro, deve ser constantemente endireitada, por uma decisão, orientada para seu justo meio. Aristóteles notara no Livro II da Ética a Nicômaco:

Devemos considerar quais são as faltas em relação às quais nós mesmos temos a mais forte inclinação, sendo que uns são naturalmente atraídos para um defeito e outros, para outro. Reconheceremos isso pelo prazer e pela dor que sentimos. Devemos nos retirar na direção oposta, pois somente nos afastando das faltas que cometemos é que chegaremos à posição intermediária, como fazem aqueles que endireitam o pedaço de madeira torto[84].

Para que esta vida fática que é “toda tentação” se torne excelente e virtuosa, deve ser sempre “retomada” no sentido de uma sua re-petição (Wieder-holung) pela filosofia:

A filosofia é um como fundamental da própria vida, de tal modo que ela a re-pete propriamente à cada vez [eigentlich je wieder-holt], que a recupera à de-cadência [Abfall], uma retomada [Zurücknahme] que, enquanto busca radical, é ela mesma vida[85].

A repetição é a decisão, difícil de tomar, sempre a se retomar, de romper com os hábitos do extravio, com os “vícios”, para, progressivamente, se adquirir a excelência. A filosofia tem o poder da exortação para que se puxe a madeira retorcida que é a vida fática no sentido contrário à curvatura, de modo que, retornando, através da repetição regular, ela se habitue a permanecer na posição intermediária e excelente da sua existência.

Filosofar é, assim, contrariar a tendência para a facilitação tornando a existência ainda mais difícil, pesada de suportar, mas “bela”: a filosofia, como carga lúcida (wache Erschwerung), reflete sobre a inquietude e o peso (molestia) da vida fática, a fim de fazer pender a balança da existência para a sua excelência própria: para a Eigentlichkeit do seu ser[86]. A decisão concreta pela existência, por um bios excelente, não pode ser ensinada diretamente, mas pode ser provocada e formalmente indicada por uma encarnação exemplar dessa mesma decisão, ou seja, pelo compromisso concreto do filósofo já decidido. Com efeito, o compromisso filosófico “pressupõe”, para ser autêntico, um “ser-decidido fático [faktisches Entschiedensein]”, uma “resolução [Entschlossenheit] para o conhecimento filosófico”[87], disposição que encontraremos em 1927 no conceito existencial da resolução antecipadora e precursiva [vorlaufende Entschlossenheit] como Arete ethike e hexis prohairetike.   

São as categorias que “vivem” na vida concreta de quem interpreta, neste caso, as categorias dinâmicas da vida fática que abrigam a possibilidade fática de provocar esta decisão[88]: É a interpretação existenciária da mobilidade que o filósofo Heidegger opera hic et nunc em seu curso na universidade[89], e que ele performativamente dirige aos seus ouvintes ou leitores (“nós”, “vocês”), que pode conduzir “na situação da autêntica arquidecisão [genuine Urentscheidung]”[90] para a filosofia. Trata-se de induzir uma transformação ou uma mutação (Umwandlung)[91] da vida fática: uma conversão à filosofia.

A própria interpretação só é tal, insiste Heidegger, se estiver explicitamente enraizada na vida fática do intérprete: “A investigação filosófica só é propriamente ela mesma e, por isso, inteiramente fática, elaborando ela própria na sua realização a existência específica do ser que busca e questiona”[92]. A investigação encontra a sua origem e o seu fim na vida fática do investigador: na investigação, cumpre-se ir “às raízes da facticidade própria da sua vida concreta[93]. A filosofia da vida fática é a vida fática do filósofo, mas trazida explicitamente para o conceito: de acordo com seu objeto, o ato filosófico que interpreta a facticidade é, ele mesmo, fático; a interpretação da mobilidade é ela mesma a “expressão de uma mobilidade fundamental da vida”[94]. Se a operação do filosofar é ela própria uma expressão da vida fática tendencialmente errática e “ruinante”, ela implica uma luta (Kampf) incessante “contra a sua própria ruína fática”[95]. Pois a interpretação fenomenológica é sempre também uma autointerpretação que pretende destruir o si inautêntico e mundano para fazer surgir o si autêntico e filosófico.

Com o objetivo de trazer ao fenômeno a vida fática em sua hecceidade[96] (Diesigkeit)[97], em sua individualidade[98], para tematizar a mobilidade como o ser da vida fática, Heidegger, renovando “uma tendência implicitamente viva na filosofia da vida”[99], recorre a categorias “vividas” no próprio ato de uma “interpretação existenciária[100]. Estas categorias interpretativas que estão “vivas na própria vida [im Leben selbst am Leben]”[101] devem obrigar (zwingen)[102] a vida fática a exprimir-se através de categorias diferentes daquelas ditadas por essa lingua aliena que é o discurso do mundo (die Sprache der Welt)[103].  

Para formar a lucidez da vida fática e fazê-la falar a linguagem da filosofia é necessário distinguir um “ponto fixo”[104] no movimento do extravio para dar lugar a uma decisão que antecipará a possibilidade de um bios excelente[105]. Em 1923 Heidegger especifica: “A mobilidade só pode ser verdadeiramente vista a partir de um ‘ponto de paragem’ [Aufenthalt] a cada vez particular”[106]. Tal ponto de paragem é existenciário, “físico”, não o repouso de uma intelecção teórica ou “metafísica”: ele está explicitamente ancorado na vida fática e não esquece a sua gênese, sua “aquisição inicial”. Também aqui, Heidegger parece destruir e transformar uma ideia aristotélica. Enquanto motora, a alma é, ela própria, imóvel; não pode estar em movimento: “É completamente impossível que o movimento pertença à alma”[107]. Carreada no movimento, privada de estabilidade, ela não poderia mais conhecer cientificamente, pois, segundo Aristóteles, a intelecção é necessariamente um repouso e uma paragem no movimento:

Quanto à aquisição inicial da ciência, ela não é uma geração nem uma alteração, pois dizemos conhecer cientificamente e refletir sabiamente na ação devido ao fato de que o pensamento discursivo está em repouso e paragem[108].

O ponto de paragem existenciário é:

o ponto de paragem antes do possível salto da decisão inquieta [Sprung der bekümmerten Entscheidung]; esta nunca está explicitamente em questão, mas está constantemente aí. Na permanência, o movimento é visível e, assim, a partir dessa permanência, na medida em que autêntica, é visível a possibilidade do contramovimento[109].

Vejamos mais detalhadamente este contramovimento (Gegenbewegung) tal como se desdobra em 1921-1922: “A interpretação fenomenológica, enquanto existenciária, manifesta essencialmente uma ‘contra’-mobilidade [‘Gegen’-bewegtheit]”[110]. A mobilidade filosófica se contrapõe e contém a mobilidade da ruinância: “Filosofar é existenciariamente contrarruinante [gegenruinant]”[111]. Heidegger havia encontrado a estrutura fenomenológica desta “continência [Enthalten] da mobilidade ruinante[112] em 1921 nas Confissões, X, 29, 40 (“Tu Ordenas à continência [...]. Sim, a continência nos reúne e nos traz de volta à unidade que tínhamos perdido ao resvalarmos para o múltiplo”), que ele glosou da seguinte forma:

Porque in multa defluximus, afundamos no múltiplo e nos dissipamos na distração [Zerstreutheit]. Tu ordenas o movimento contrário [Gegenbewegung] à dispersão [Zerstreuung], à desagregação [Auseinanderfallen] da vida[113].

Para se subtrair ao movimento de defluxo que precipita no múltiplo é necessário o movimento contrário que é a “continência” dada por Deus, em que a vida se recupera mantendo sua unidade[114]. Esse contramovimento existenciário da continência (Zusammen-halten) “con-tém” e “concentra” a vida fática dispersa no múltiplo retirando-a da “defluxão”, do “escoamento”[115], para conduzi-la à unidade de Deus. A “concentração” da continência está orientada para Deus, ao contrário da concentração da concupiscência (con-cupiscere, zusammen-begehren), orientada para os objetos mundanos[116].

Assim, a dinâmica da vida fática na tentação é clivada e separada por dois movimentos antagônicos que são igualmente modos da cura. Esse conflito marca o rompimento da vida fática: “Pois a carne cobiça contra o espírito e o espírito contra a carne; existe antagonismo entre eles, de modo que não fazeis o que quereis” (Ga 5,17). Portanto, há que se deixar conduzir pelo “espírito” empregando o desvio de um movimento contrário à “carne”, uma vez que é preciso partir do oposto para ir na direção contrária. No Natorp Bericht de 1922, Heidegger observa: “O ser da vida em si mesmo acessível na própria facticidade é constituído de modo a ser visível e alcançável somente através do desvio do contramovimento oposto ao cuidar disperso [verfallende Sorgen]”[117].

Engajar-se no contramovimento filosófico é decidir não ceder à tentação do movimento dispersivo, é dizer não ao extravio e à ruinância que é a vida fática por principiar e na maioria das vezes. O contramovimento filosófico é uma negação do que a vida toma por ser; ele contradiz a inautenticidade da vida que se perdeu. Ao negar o ser mundano, o contramovimento orienta o cuidado para o ser autêntico da vida:

O “contra” [Gegen], enquanto “não” [Nicht], manifesta assim uma realização originariamente constitutiva do ser. Tendo em conta o seu sentido constitutivo, a negação tem originariamente precedência sobre a posição. E isto porque o caráter de ser do homem é faticamente determinado por uma queda [Fallen], por uma inclinação [Hang] mundana[118].

O não do contramovimento filosófico não opera a partir de fora da vida fática; é a vida fática, na sua própria dispersão, que alberga a sua possibilidade[119]. O movimento de dispersão, enquanto privação do movimento filosófico, deve ser explicitamente apreendido, articulado e invertido na Gegenbewegung: o discurso filosófico não é outra coisa senão a verdade do discurso mundano. Em outros termos, o “discurso implícito faticamente ruinante da compreensão de si da vida faticamente cuidadosa”[120], o “não-realizador”, que em 1920-1921 Heidegger havia visto em 2 Ts 2,10 (“eles não acolheram o amor da verdade”), encontra-se negado e transformado pela “tendência elucidativa, faticamente interpretativa, isto é, contrarruinante, do conhecimento filosófico das mobilidades categoriais da vida fática”[121], em que o contramovimento filosófico se liga à negação paulina que vive a realidade da vida mundana como se esta não fosse[122].

O contramovimento não é uma fuga da vida fática (Welt flucht); a negação existenciária não é uma abnegação. Como Heidegger havia sublinhado no seu comentário a Paulo[123], a transformação (Umbildung) da vida fática após a conversão se dá na própria facticidade mundana que permanece a mesma: são as significatividades do “mundo”, consideradas a partir do ter-se-tornado (Gewordensein) da vida convertida, que se tornam bens temporais. Assim, Heidegger pode escrever no Natorp Bericht:  

Pela solicitude [Bekümmernis] para com a existência, nada é alterado na situação fática da vida em cada caso particular. O que é alterado é o como da mobilidade da vida, que nunca pode tornar-se um caso para o espaço público e para o “Se”[124].

“Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,34): o cuidado ocupado da experiência prática (“o cuidado com os assuntos do mundo”) é concretamente transformado em cuidado do si mesmo (“o cuidado com os assuntos do Senhor”, 1 Cor 7,32-34): “A ocupação [Besorgnis] na experiência prática [Umgang] agora cuida do si mesmo”[125]. O cuidado de si é o cuidado com a existência (Sorge der Existenz): “Designamos como existência o ser que é acessível a si mesmo na vida fática”[126]. Reorientando o cuidado mundano, o contramovimento é, assim, “a apreensão [Ergreifen] da existência [...] como objeto do cuidado”[127].

O cuidado de si mesmo, enquanto cuidado existenciário do ser da vida fática, está longe de ser uma “reflexão egocêntrica”[128]; ao contrário, é o abalo de todo o ego, tanto empírico quanto transcendental, através de um “colocar em questão [Fraglichmachen] da facticidade”[129]. Quando “me tornei uma questão para mim mesmo”[130], tornei-me uma questão radicalmente indeterminada para mim, uma pura possibilidade em oposição à realidade do mundo: Eu sou? bin ich? Ou não sou? oder bin ich nicht? Este ser-questão (Fraglichkeit)[131] da minha vida fática gera insegurança (Unsicherheit) e inquietude (Unruhe)[132]. Sou um peso para mim mesmo e este fardo é uma pergunta sem resposta: não posso me apoiar em qualquer certeza, exceto aquela da inquietude fundamental da minha vida fática.

Contrariando o discurso mundano e apaziguador que pretende ter uma resposta para tudo, a filosofia provoca e sustenta o caráter enigmático e inquietante da vida que não cessa de questionar: “O fundamento autêntico da filosofia é a radical apreensão existenciária e a produção do ser-questão [Zeitigung der Fraglichkeit]”[133]. Filosofar contra a ruinância da vida fática equivale, assim, a “manter-se no ser-questão autêntico [Sichhalten in echter Fraglichkeit]” para permanecer um ser do possível.

A queda para o nada: reluzência, pré-construção, ruinância

O contramovimento performativamente adotado por Heidegger traduz a intenção diretriz de sua interpretação da vida fática; ele indica a sua situação hermenêutica. Depois de termos delineado o método existenciário próprio da interpretação da vida fática, vejamos como Heidegger põe em evidência a característica dinâmica inerente a cada uma de suas três categorias fundamentais, já designadas como “existenciais” (Existentialen)[134], de modo a evidenciar o seu sentido fundamental que é a mobilidade. Cada categoria é marcada pela reluzência (Reluzenz, Zurückleuchtung) e pela pré-construção (Praestruktion, Vorbau)[135]. Enquanto expressões da intencionalidade, reluzência e pré-construção constituem a “arquiestrutura [Urstruktur] formal da facticidade”[136]: o sentido de ser (Seinssinn) da vida.

A inclinação, primeira categoria dinâmica da vida fática, move-se num circuito autorreferencial:

A inclinação se mostra como algo que se move em direção a si mesma. A vida, que cuida nessa relação, reluz sobre si mesma, forma a iluminação do entorno [Umgebungserhellung] para os contextos particulares do cuidado que irão se apresentar[137].

Em Sein und Zeit, Heidegger chamará a este fenômeno a re-flexão (Rückstrahlung) ontológica da compreensão do mundo sobre a interpretação do ser-aí: o ser-aí interpreta espontaneamente seu ser a partir do ente mundano[138]. A vida extrai do mundo reluzente as direções do seu cuidado, o seu Vor-nahme e o seu Vor-habe, “ela pré-constrói a partir deste mundo e para este mundo”[139].

Para descrever o circuito da inclinação para a dispersão, Heidegger se inspira, mais uma vez, em suas análises da vida dispersiva em Agostinho: na defluxio, a vida fática extraviada, guiada por “uma certa imagem de alegria”, por um certo ideal (Ideal)[140], pré-constrói uma direção intencional determinada: delectatio finis curae. Assim, na categoria da inclinação a pré-construção domina, comandando a orientação da vida fática. Em todos os seus movimentos reluzentes e pré-construtivos a vida se preocupa, sobretudo, em se manter (sich erhalten) e se fixar (sich festleben) em seu mundo[141].

No fenômeno da distância, a reluzência pré-construtiva manifesta-se em um movimento de fazer recuar e retorno. Através do próprio recuo, a distância (o “projeto” ou a “proposição” que a vida tem “perante” ela: a possibilidade de autenticidade, Eigentlichkeit) é transferida para o mundo: ela regressa (kehrt wieder) e emerge (taucht [...] auf) numa forma mundana[142]. A referência intencional do cuidado volta para refletir-se no mundo que, a partir de agora, magnetiza toda a atenção do cuidado exclusivamente motivado pela ambitio saeculi. Monopolizada pelo cuidado com coisas do mundo, levada pelo “turbilhão” do “amor do mundo”[143], a vida pré-constrói hiperbolicamente as possibilidades mundanas que lhe cabem.

No bloqueio, é a reluzência que determina precipuamente a mobilidade: o sentido motivador da reluzência compele a vida a afastar-se e alienar-se de si mesma. O sentido fundamental da mobilidade do bloqueio na reluzência é indicado pela expressão “‘afastar-se de si [Von-sich-weg]’ no ‘sair de si’ [Aus-sich-hinaus]”[144]. Neste distanciamento, a vida empreende ao mesmo tempo um movimento “contra si mesma [Gegen-es]”[145] e no qual ela vive, no qual ela “é”. A vida se instala nesta mobilidade e dela retira a orientação das suas pré-construções: a fuga (Flucht) regula a sua relação com o mundo e consigo mesma através de uma exclusão de qualquer possibilidade de se encontrar, isto é, de se perder para se encontrar.

A estrutura primordial da facticidade, que alberga as três categorias dinâmicas em conexão recíproca, é levada por uma tendência geral para a segurança. Quanto mais a vida se inquieta com o mundo, menos se inquieta consigo mesma. Este descuido (Unbekümmerung, Sorglosigkeit)[146], um modo privativo do cuidado inquieto, denuncia um desejo de segurança:

A vida procura assegurar-se e tranquilizar-se desviando o seu olhar de si mesma. Esta visão [Sicht] é primária e fornece a imagem fundamental [Grundbild] que determina como a vida é vista por si mesma. A vida forma nela mesma a sua própria tentação que, na queda [Fallen], se transforma em descuido (securitas)[147].

A vida que pré-constrói o seu mundo, o qual reluz sobre ela, fica endurecida (Verhärtung) contra a insegurança (Unsicherheit) inerente à facticidade[148]. Heidegger conceitua esta tendência securizante (Sicherungstendenz) da vida recorrendo implicitamente ao motivo neotestamentário da busca e do abandono de qualquer segurança mundana (1 Ts. 5,3) e à crítica luterana da securitas nas teses 7 a 12 da Controvérsia de Heidelberg, instaurada pelo “teólogo da glória” endurecido e cego pela sabedoria dos sábios, limitado ao circuito de sua concupiscência[149].

Mais adiante no curso, Heidegger indica quatro características em interação na mobilidade fática: “1. O sedutor [das Verführerische] (tentativo); 2. o tranquilizador [das Beruhigende] (quietivo); 3. o alienante [das Entfremdende] (alienativo); 4. o nadificante [das Vernichtende] (negativo; ativo, transitivo)”[150]. A vida seduz a si mesma e falta a si mesma ao ceder a sua inclinação para a dispersão mundana que a apazigua, pela reluzência, assegurando seu mundo pré-construído; mas encontrando sempre apenas a sua máscara, aliena-se da possibilidade de ser ela mesma, comprazendo-se na vacuidade do mundo. Em suma, na ruinância, a vida fática evita a si própria, fugindo do nada que já sempre é. Essas quatro características da mobilidade ruinante já estavam implicitamente presentes na análise das categorias dinâmicas; assim, Heidegger não as detalhará, à exceção do “nadificante” que descreverá mais tarde. Todas estas características são existenciais no sentido de que não são propriedades amovíveis e acidentais, exteriores à vida fática, mas modos de ser que constituem a facticidade enquanto tal: são modos operativos da vida.

Explorando a sua análise da temporalidade escatológica em Paulo levada a cabo no curso de 1920-1921, mas também a “percepção do tempo” própria do viver humano no De an. III, 10, Heidegger nota que estes modos de ser da facticidade, estas operações fáticas, são maneiras que a vida tem de acontecer (Vorkommensweisen), possuindo cada uma delas um modo temporal específico que não é cronológico, mas kairológico, ou seja, “histórico”: “Cada modo de acontecer possui o seu caráter kairológico [kairologischer Charakter] (kairos - tempo) determinado (fático), a sua relação determinada com o tempo, isto é, com o seu tempo”[151]. Este tempo kairológico é um modo de ter, quer dizer, de ser seu tempo; vimos que a filosofia como contramovimento é o que pode desvelar o kairos da vida fática. Mas em sua mobilidade quotidiana, a vida fática tende a subtrair este tempo de si (nimmt die Zeit weg), a privar-se dele: ela não se dá tempo, não tem tempo (para esperar e para filosofar à vontade)[152].

A análise da mobilidade reluzente-pré-construtiva permitiu o acesso ao como do movimento vivo (lebendige Bewegung), mais precisamente ao caráter de um mover-se (sich Bewegen)[153], através do qual Heidegger reativa a definição aristotélica de vida como poder de mover a si mesma[154]. A vida fática é sua mobilidade[155]. Viver é ser: “viver [zen] é, para os vivos, o seu próprio ser [einai]”[156]; “viver = ser-aí [Dasein], ‘ser’ na e através da vida”[157]: ser na e através da vida é poder mover-se por si mesmo.

Heidegger pretende agora realçar a mobilidade própria da vida fática extraviada. Tal mobilidade consiste em fazer com que a vida “saia” de si mesma: não é a vida que produz a sua mobilidade, mas é o mundo que vive a vida, determinando o seu entorno (Worin), seu objetivo (Worauf) e a sua razão (Wofür)[158], com a consequência de que o Sorgen se intensifica (Steigerung) cuidando de si mesmo como um objeto mundano (welthaft). A mobilidade do curare é assumida pela cura: “O cuidar [das Sorgen] toma-se a si mesmo no cuidado [das Sorgen nimmt sich selbst in Sorge]”[159].

Para conceituar este importante fenômeno, Heidegger retoma a ambitio saeculi analisada no curso de 1921. Os dois primeiros movimentos da vida fática em defluxo, a concupiscentia carnis e a concupiscentia oculorum, estão ligados ao mundo circundante (Umwelt): nestas duas formas de concupiscência o si não acessa a si mesmo, está ausente de si, não está aí (nicht da), porque se perde na objetivação do que o rodeia; a meta do seu gozo é o mundo circundante[160]. Mas na terceira forma de concupiscência, que inclui todos os fenômenos da ambição mundana ou do “orgulho da vida”, ao contrário, é o si que é objetivado, porque a significatividade referida ao próprio si (Eigenbedeutsamkeit) torna-se a meta da fruição[161].

O cuidado torna-se cuidado de si, mas este é apenas um si refletido a partir do mundo, mascarado pelo mundo. Este fenômeno da autoreferencialidade objetivante da mobilidade fática é aquilo a que Heidegger chama aqui o ser-cuidadoso (Besorgnis), que se tornará em Sein und Zeit o Besorgen das coisas mundanas, um modo inautêntico da Sorge, isto é, inadequado à apreensão da existência na sua excelência própria (Eigentlichkeit). A Besorgnis precipita a vida em um circuito fechado em que ela corre para a sua ruína e decai de si mesma na crença de poder tomar a cargo sua existência. A fixação obsessiva na vida mundana leva à “loucura” ou à “estupidez”: “A vida fática quer suportar [tragen] a si mesma e, finalmente, ela se torna, explicitamente ou não, louca [toll] ou estúpida [töricht]”[162]. Mas, segundo uma lógica paradoxal que não é outra senão a lógica da “cruz”, é precisamente no coração desta mobilidade da Besorgnis, onde a vida pode se tornar “louca”, que ela também pode se tornar “sábia”: “Se alguém dentre vós se julga sábio à maneira deste mundo, faça-se louco para tornar-se sábio” (1 Cor 3,18).

Heidegger chama a mobilidade que se intensifica no circuito da Besorgnis de “queda” (ruina, Sturz)[163]. A queda é “um movimento que forma a si mesmo [sich selbst bildet], ou melhor, não a si mesmo, mas o vazio [Leere] em que se move; seu vazio é a condição do seu movimento”[164]. Heidegger fornece então a definição de “ruinância” (Ruinanz), a determinação categorial fundamental da mobilidade reluzente-pré-construtiva da vida:

A mobilidade da vida fática que a vida fática “realiza”, ou seja, “é”, em si mesma enquanto si mesma para si mesma fora de si mesma [in ihm selbst als es selbst für sich selbst aus sich hinaus] e, em tudo isso, contra si mesma [gegen sich selbst][165].

Entendamos que esta definição indicativo-formal da ruinância traduz o conceito fenomenológico da “natureza” de um ente vivo, de sua physis, como nascimento e eclosão que se move por si, para fora de si, de um corpo natural que tem, nele mesmo, um princípio de movimento (e de repouso)[166]. O que nasce deve crescer, amadurecer e decair por si mesmo[167]: o ser vivo traz em si, “contra” si mesmo, o princípio de sua própria ruína; ele é por natureza condenado a se corromper e decair. O nascimento implica ruinância, isto é, uma “corrida para a morte”: “Tão logo saímos do ventre de nossa mãe, começamos a morrer”[168]. Assim, o movimento é espontaneamente “ruinante” e “extático”, pois expõe o ente sublunar à mudança, ao tempo, à destruição[169].

Qual é a destinação final (Wohin) da ruinância? Qual é ponto da queda (Aufschlag), o local de chegada do que decai? Evidentemente a mobilidade da ruinância não deve ser entendida segundo o movimento espacial (räumliche Bewegung) que obedece às coordenadas do espaço objetivo, ou seja, a mobilidade fática não deve ser reduzida ao mero movimento segundo a translação no espaço, mas compreendida como Bewegtheit = kinesis, metabolé. O fim da queda é, portanto, nada (de objetivo): “A destinação da queda não lhe é alheia; ela possui, ela mesma, o caráter da vida fática, a saber, ‘o nada da vida fática’”[170].

De um ponto de vista formal, este nada (Nichts) não é coisa nenhuma; não é nulla res (nicht etwas), mas “algo” (etwas), ele é interpretado mais exatamente “segundo seu sentido de ser [Seinssinn] respectivo que nele se encontra negado”[171]: em suma, o “nada”, tal como o ser, “se diz em vários sentidos”[172], estando qualquer definição do nada em relação recíproca com a definição do ser[173]. O “nada” da vida fática não coincide com o vazio físico, pois,

[...] este nada é uma possibilidade que não oferece precisamente nenhum apoio, nenhuma esteio, nenhum abrigo que, por assim dizer, bloquearia a queda, pondo-lhe fim; mas o nada da vida fática é algo que coproduz [mitzeitigt] faticamente a queda[174].

O traço característico do movimento de decadência como queda (ruinância) é aquilo a que Heidegger chama “aniquilação” (Vernichtung)[175].

 A aniquilação é o desdobramento operativo (Vollzug) do nada da vida fática: “Aniquilação, a nadificação [Nichtung] – o nada da vida enquanto produzido por uma nadificação determinada, por um dizer não implícito, por uma operação da mobilidade”[176]. É o “negativo” (o “nadificante”), um dos traços característicos da mobilidade fática, que produz a ruinância:

O caráter ruinante do negativo [das Negative] reside no fato de produzir precisamente o nada da vida fática como possibilidade propriamente fática da ruinância, e isto de tal modo que esta possibilidade produzida, em sua própria produção, reluz na queda que lhe advém. Trata-se de uma intensificação da queda, a tal ponto que essa intensificação se realiza na direção oposta a da queda no interior da própria queda; e isso a ponto de, atravessando a mobilidade da queda, a intensificação fazer com que a mobilidade se encontre com o nada e se forme na sua própria queda[177].

Então, por um lado, devemos ver que a queda da facticidade é um aniquilamento constante no sentido da decadência que afeta toda a vida fática, cujo movimento possui em si mesmo, como sabemos, se tomarmos como fonte a física aristotélica, sua arche e seu telos. Apanhado no movimento da sua própria aniquilação, o animal inteligente e temporal “foge ou persegue” esta aniquilação que ele é desde seu nascimento, fixando o seu desejo ou no mundo imediato e real, intensificando a ruinância, ou no possível do futuro, contrapondo-a. Contudo, por outro lado, há que se notar que, para trazer ao fenômeno o aniquilamento da vida fática dotada de palavra, e os dois movimentos primordiais do desejo que a afetam, Heidegger também lança mão dos recursos hauridos da experiência agostiniana da tentatio, bem como dos teologúmenos luteranos da justificação que são a corruptio radical do pecador e a annihilatio como opus alienum Dei.

De fato, na sua interpretação das Confissões de 1921, Heidegger havia acentuado o fenômeno da queda (Sturz) nesta forma “maligna” da tentação que é a complacência mundana que nos torna “seres ocos”: “Nesta forma de tentação, há uma possibilidade de decadência tal que, nela, o si mesmo, e consequentemente o ser-aí do indivíduo, se torna vão em geral e se dissipa no vazio e no nada”[178]. Por ele mesmo, o homem, pecador, reduzido a si mesmo (auf sich selbst gestellt)[179] no amor de si (Liebe um sich selbst), não possui nada de que se possa vangloriar e pelo qual possa ser louvado. Os seus eventuais méritos e, de um modo geral, sua existência, só podem vir de Deus: “Diante de Deus, ser homem significa ser nada”[180]. Heidegger observa:

Na última, mais decisiva e mais pura solicitude de si [Selbstbekümmerung] está a possibilidade da queda mais abissal e da mais autêntica perda de si [Sichselbstverlieren]. (Abissal porque já não pode estar em lugar nenhum, e a queda já não pode ser realizada diante do que quer que seja que pudesse se tornar, em última análise, uma ambição mundana [weltliche Wichtigkeit]. Aqui reside o que é propriamente satânico na tentação! [...])[181].

Atinjo o grau máximo de afastamento de mim mesmo uma vez que “tornei-me para mim mesmo uma questão”, quando me tornei para mim mesmo a “terra de minhas dificuldades”. Este colocar em questão radical da minha vida fática, em que “sou um fardo para mim mesmo”, constitui a tentação propriamente dita, a tribulação (tentatio tribulationis, Anfechtung). Mas se a molestia, no coração da vida fática, abriga a ameaça (experiência, perigo; Erfahrung, Gefahr) do perder-se, alberga também a oportunidade da tomada de posse da existência através da própria provação que se contrapõe ao seu desdobramento[182]: “Quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa a encontrará”[183]. Agostinho exprime assim o aspecto angustiante último da existência (das letzlich "beängstigende" des Daseins): “Em meio a todos estes perigos, labutas e coisas semelhantes, tu vês que o meu coração treme; e, o sinto, tu preferiste curar minhas feridas, a cada vez, ao invés de me poupares”[184].

Heidegger também alimenta a sua conceituação fenomenológica do aniquilamento da vida fática com aquilo a que chamará, na sua conferência de 1924, a mobilidade do pecado (Bewegtheit der Sünde) como modo de ser (Weise des Seins) na sua exegese do comentário de Lutero de Gn 3, 8-10 sobre o “pecado original” (Ursünde)[185]. A estrutura dinâmica haurida da problemática luterana do pecado, que aprofunda os fenômenos agostinianos sob o signo da theologia crucis, parece ter sido adquirida já no curso de 1921-1922; um dos “lemas” (Motto) citados acima para indicar a orientação geral da interpretação foi um excerto deste comentário. A “queda” (Fall, Sündenfall) implica a incredulidade da aversio Dei. No estar-distante de Deus (Abgekehrtsein) o homem foge de Dele, refugiando-se no mundo; mas não há fuga possível diante de Deus. O pecado afasta de Deus e fixa o desejo (cupiditas, concupiscentia) do pecador, a sua Besorgnis, nas coisas criadas e, finalmente, no objeto supremo da vaidade: ele mesmo.

O pecado está diretamente relacionado com o nada: o pecador em fuga é nada perante Deus de quem depende, ele é nihil per se; pelo pecado, o homem fez-se “nada e vão, mortal, transitório, temporal”[186]. São a paixão e a cruz que aniquilam o amor perverso: o aniquilamento significa a ruína do “velho homem” pecador[187]. Através da dejeção da vangloria do seu ser, com a qual se ensoberbecia, o pecador é colocado em situação de compreender que não é nada por si mesmo e torna-se apto a receber o amor de Deus. A segurança da vida fática, presa no circuito reluzente-pré-construtivo da solicitude mundana, é aniquilada pela intervenção da obra “estranha” de Deus para produzir a sua obra “própria”. A vida fática “vã e mentirosa”, assim humilhada, torna-se nada dentro da verdade de Deus.

É na paixão e na cruz que a vida fática pode reconhecer o seu próprio nada e ter acesso ao seu ser, não através de uma consideração metafísica do mundo (metaphysische Weltbetrachtung)[188] que neutralize a inquietude fundamental da vida fática. Para romper o circuito patogênico da concupiscência, que só vê Deus pela “reluzência” em suas obras mundanas, Lutero prescreve, com Paulo, a destruição desta sabedoria “pagã” que gera “hiperbolicamente” as significatividades mundanas bloqueando “elipticamente” Deus. Para o jovem Heidegger, “fenomenólogo da cruz” e “teó-logo cristão”[189], a “consideração metafísica” do mundo, própria da teologia da glória, se enraíza na “atitude teórica”, produtora de ciência, pela preclusão de sua própria gênese existenciária[190]. Esta atitude, ligada ao orgulho de onde procede e que ela faz aumentar (1 Cor 8,1), contempla os fantasmas que ela mesma suscitou. É preciso inquietar a quietude da atitude teórica paralisada em sua “tendência securizante” através de um contramovimento, atingindo com a loucura a “pré-construção reluzente” que é a conceptualidade grega (griechische Begrifflichkeit) a qual, segundo Heidegger, infesta e configura tanto a tradição teológico-filosófica, quanto a autocompreensão da vida cotidiana[191]. O arquiteto desta pré-construção (Vorbau) a ser submetida à desmontagem ou à desconstrução (Abbau) não é outro senão Aristóteles, o “grande mestre cego e pagão”[192].

No seu Natorp Bericht de 1922, Heidegger delineará em segundo plano o programa desta destruição crítica de Aristóteles e, mais especificamente, do primado da vida teorética que oculta o movimento mortal da vida fática:

Aristóteles obtém assim o sentido de “filosofia” através da interpretação de uma mobilidade fática do cuidado até sua tendência última. Ora, esta experiência prática [Umgang], puramente considerativa, é manifestamente tal que, ao perseguir sua meta [Worauf], já não vê mais precisamente a própria vida em que se encontra. No entanto, na medida em que essa conduta, enquanto puro compreender, é geradora de vida ela gera a vida por intermédio de sua mobilidade enquanto tal. / Suas possibilidades concretas de operação, o puro compreender as possui através da liberdade em relação às preocupações da conduta prática; esta possibilidade é o como no qual a vida se estabelece [Aufenthalt] em relação a uma das suas tendências fundamentais. O theorein é a mobilidade mais pura de que dispõe a vida. É o que a torna “divina”. Mas para Aristóteles, a ideia do divino não procede da explicitação de um objeto que se tornou acessível através de uma experiência religiosa fundamental; o theion é, antes, a expressão do caráter mais elevado de ser que resulta da radicalização ontológica da ideia do ser-movido. Se o theion é noesis noeseos, é apenas porque, tendo em conta o seu caráter de ser, ou seja, a sua mobilidade, tal perceber [Vernehmen] é o mais puramente suficiente para a ideia do ser-movido enquanto tal. Este ente deve ser um puro perceber, isto é, livre de qualquer referência emocional [emotional] a sua meta. O “divino” não poderia ser invejoso, não porque seria bondade absoluta e amor, mas porque, em geral, em seu ser como pura mobilidade, não poderia nem odiar nem amar[193].

As implicações deste delineamento programático são notáveis: a ideia de Deus, no coração da teologia da glória como ontologia do mundo, procede de uma determinada interpretação da mobilidade e se apresenta, portanto, como um problema físico. É o que Heidegger dirá no curso de 1922: “O conceito do divino provém do problema da física: do conceito de kinesis[194]. O theorein, o ato da “parte mais divina de nós mesmos”[195], é condicionado pelo seu paradigma que é a ideia de um primeiro motor imóvel “externo a qualquer mudança”[196], esse ente divino e supremo que pensa a si mesmo fora de toda “emotividade”, de qualquer Bewegtheit. A contestação do primado da vida teorética e a conceptualização fenomenológica, sincrônica da vida fática em sua inquietude, em suma, do ser-aí humano contingente e mutável, terá de passar, a partir de então, por uma destruição crítica das doutrinas aristotélicas do movimento, do primeiro motor imóvel e da anterioridade do ato sobre a potência na Física e na Metafísica, mas também, como vimos, por uma destruição da Ética a Nicômaco e do Tratado da alma[197]. A execução deste vasto programa se estenderá de 1922 até Ser e Tempo, esse Aristoteles-Buch virtual que dará lugar a pensar a Bewegtheit como o “enigma” do ser[198].

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Adriano Cesar Rodrigues Beraldi.

Doutorando pelo PPGFIL da Universidade Federal do Espírito Santo. Possui Graduação e Mestrado em Filosofia (UFES), com ênfase em Filosofia Medieval. Atualmente vem se dedicando à Filosofia Contemporânea, especificamente à Hermenêutica fenomenológica de Martin Heidegger. – Bolsista FAPES.

 

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] Artigo originariamente publicado sob o título “L’inquiétude de la vie facticielle. Le tournant aristotélicien de Heidegger (1921-1922)” no periódico Les Études philosophiques, nº 76, 1, p. 1-28 em 2006. A formatação original do artigo traz todas as referências em notas de rodapé. Como em muitas delas, após as referências, o autor apresenta valiosas informações complementares ao texto mantivemos na tradução a formatação original. Também não consta do original uma seção de referências bibliográficas. Todavia, para facilitar a consulta, a presente tradução inclui a referida seção listando a bibliografia extraída das notas, acrescentando para os casos omissos a datação das primeiras edições [N. T.].

[2] Doutor em Filosofia pela Universidade Paris I - Sorbonne. Diretor de pesquisas dos Archives Husserl de Paris / Centre National de la Recherche Scientifique - École Normale Supérieure - PSL. E-mail: christian.sommer@ens.fr. – O tradutor manifesta seus agradecimentos ao Dr. Sommer pela pronta autorização para a tradução do artigo original para o português [N. T.].

[3] Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

[4] Desde 1922, Heidegger tinha a intenção de publicar no Jahrbuch de Husserl (vol. 7, 1924-1925) suas Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles em três partes das quais as duas primeiras, com 15 fólios (240 p.) cada, teriam por objeto a Eth. Nic., VI, Met., I, 1-2, Phys., I, 8; Met. VII, VIII, IX, Mot. an., De an.; são testemunhos desse projeto o Natorp Bericht de 1922 (NB), que deveria constituir a sua introdução, o curso de 1922 (PIA, reproduzido na GA 62) e nosso curso de 1921-1922 (GA 61). As elaborações parciais desse livro abortado sobre Aristóteles (Aristoleles-Buch) irão alimentar a redação de SZ. – Citamos e traduzimos Heidegger aqui segundo a Gesamtausgabe (GA), Frankfurt an. M., Klostermann, 1975, incluindo principalmente GA 60: Einleitung in die Phänomenologie der Religion (WS 1920-1921) / Augustinus und der Neuplatonismus (SS 1921), 1995; GA 61: Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung (WS 1921-1922), 1985; GA 63: Ontologie. Hermeneutik der Faktizität (SS 1923), 1988; GA 18: Grundbegriffe der aristotelischen Philosophie (SS 1924), 2002; GA 19: Platon. Sophistes (WS 1924-1925), 1992; GA 22: Grundbegriffe der antiken Philosophie (SS 1926), 1993; GA 9 [1939]: Vom Wesen und Begriff der Phusis. Aristoteles, Physik B, 1. / NB = Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Natorp-Bericht, 1922), Stuttgart, Reclam, 2003; PIA = Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (SS 1922, reproduzidos na GA 62), Herbert Marcuse-Archiv Frankfurt (0002.01); PSL = Das Problem der Sünde bei Luther (1924); SZ = Sein und Zeit, Tübingen, Niemeyer, 1927, 2001. Para todas as referências, cf. Martin Heidegger: Bibliographie chronologique (1910-1976)/bibliographie des traductions françaises  http://www.umr8547.ens.fr.

[5] GA 61 [WS 1921-1922], p. 182. A outra fonte reivindicada que não analisaremos aqui é Kierkegaard: A alternativa, I (Entweder – Oder I, Diederichs, I, 1911, p. 35) e Prática do cristianismo (Einübung ins Christentum, Diederichs, IX, 1912, p. 70, n. 1).

[6] In primum librum Mose enarrationes in EA 1, 249 (WA 42, 146; LO XVII, 173) sobre Gn 3, 15. Heidegger possuía a edição de Erlangen (Exegetica opera latina [EA], ed. Elsperger, 1829). Citamos Lutero segundo a edição de Weimar (Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe [WA], Weimar, 1883 e s.; reimpress. Graz, Böhlau, 1964-); as traduções são em geral extraídas da edição de Genebra (Œuvres [LO], Labor et Fides, 1957) ou de Paris (Œuvres, t. 1, Gallimard (PL.), 1999). – As traduções mencionadas dizem respeito àquelas utilizadas pelo autor no texto original do artigo [N. T.].

[7] EA 63, 135 (WA DB 7, 24; Œuvres, 1068). Vale notar que Heidegger empregava desde 1919 o comentário de Lutero à Epístola aos Romanos (Divi Pauli Apostoli ad Romanos Epistola, 1515-1516, in WA 56); cf. sua carta de 9 de setembro de 1919 in «Mein liebes Seelchen!». Briefe Martin Heideggers an seine Frau Elfride (1915-1970), München, DVA, 2005, 100: “Desde que li a Epístola aos Romanos de Lutero [sic], muitas coisas que anteriormente me torturavam e me eram obscuras tornaram-se luminosas, libertadoras – passei a compreender a Idade Média e a evolução da religiosidade cristã de um modo completamente novo; perspectivas inteiramente novas sobre a problemática da filosofia da religião se abriram para mim”; cf. também a carta de 12 de agosto de 1920: “A edição de Lutero [EA] já se tornou agora indispensável [unentbehrlich] para mim” (112).

[8] Bewegtheit em geral traduz kinesis; cf. por exe. GA 22 [SS 1926], p. 170: kinesis = “Bewegtheit als Seinsart”; GA 9 [1939], p. 243 (“kinesis, die Bewegtheit”). A palavra alemã Bewegtheit deve também ser entendida no sentido de "emotividade", de “ser-movido”: Heidegger radicalizará esse sentido “patético”. Não devemos esquecer que “mobilidade” pode também significar a inconstância, a alteração de humor, etc.

[9] GA 63 [SS 1923], p. 5: “Aquele que me acompanhou em minhas investigações [Begleiter im Suchen] foi o jovem Lutero e o meu modelo [Vorbild] Aristóteles, que o primeiro detestava”. Sobre a ambivalência dessa abordagem cf. J.-F. Courtine, Une difficile transaction: Heidegger entre Aristote et Luther, in B. Cassin (éd.), Nos Grecs et leurs Modernes, Paris, Le Seuil, 1992, p. 337-362; H.-G. Gadamer, Die religiöse Dimension (1981), in Gesammelte Werke, Bd. 3, Tübingen, Mohr/Siebeck, 1987, p. 310, p. 313, p. 315; Vom Anfang des Denkens (1986), in GW, Bd. 3, p. 390; Heideggers “theologische” Jugendschrift, in NB [1922], p. 80, p. 86. Sobre a reapropriação neoaristotélica e fenomenológica dos theologoumena da theologia crucis, que não será aprofundada aqui, e, de modo mais geral, sobre a fonte luterana no primeiro Heidegger permitimo-nos remeter a nosso estudo Heidegger, Aristote, Luther. Les sources aristotéliciennes et néotestamentaires d’Être et Temps, Paris, PUF, 2005.

[10] GA 17 [WS 1923-1924], p. 51-52; cf. GA 64 [1924], p. 77: “A Física (ontologia do mundo)”; p. 101.

[11] GA 61 [WS 1921-1922], p. 11: “As interpretações dos tratados e cursos aristotélicos procedem [...] de uma problemática filosófica concreta, mas de modo que essa exploração da filosofia aristotélica [...] constitua, em si mesma, uma parte fundamental dessa problemática” (grifos do autor).

[12] GA 61 [WS 1921-1922], p. 79-155. Sobre esse percurso exegético cf. C. F. Gethmann, Philosophie als Vollzug und als Begriff [1985], in id., Dasein: Erkennen und Handeln, Berlin, De Gruyter, 1993, p. 247-280; J. Greisch, L’Arbre de vie et l’Arbre du savoir, Paris, Cerf, 2000, p. 262- 273; M. Riedel, Seinsverständnis und Sinn für das Tunliche [1988], in id., Hören auf die Sprache, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1990, p. 131-162; J. Taminiaux, The interpretation of Aristotle’s notion of Aretê in Heidegger’s first courses, in F. Raffoul et al. (ed.), Heidegger and Practical Philosophy, Albany, SUNY Press, 2002, p. 13-27; H. Vetter, Grundbewegtheit des faktischen Lebens und Theoria, in id. (ed.), Heidegger und das Mittelalter, Wien, Lang, 1999, p. 81-99.

[13] GA 61 [WS 1921-1922], p. 116.

[14] GA 61 [WS 1921-1922], p. 93. Heidegger diz levar em conta a “descrição” de Pascal, não sua “teoria” ou sua “proposição intencional” (Vorhabe). Cf. Pensées, 127 (Br.): “Condição do homem: / Inconstância. / Aborrecimento. / Inquietude”; cf. igualmente 406, 427, 431, 465. – Também é lícito pensar em Kierkegaard: “Temor e tremor [Ef. 2, 12] não são o primus motor da vida cristã, pois este é o amor; mas são isso que o movimento é para a relojoaria – eles são a inquietude  [Uro] da vida cristã” (16 de fevereiro de 1839, Journal, I, 1834-1846 [Pap. II A 370], tr. mod., Paris, Gallimard, 1963).

[15] GA 61 [WS 1921-1922], p. 93.

[16] GA 61 [WS 1921-1922], p. 117.

[17] Phys., III, 1, 200 b 12-15; Phys., I, 2, 185 a 12: “Quanto a  nós, partimos do princípio de que os seres da natureza, no todo ou em parte, são movidos”. As traduções de Aristóteles são em geral extraídas das traduções de J. Tricot, Paris, Vrin, 1951-1970, daquelas da CUF (bilíngue, Paris, Les Belles Lettres) ou de GF (Paris, Flammarion, col. “Garnier”).

[18] Phys., II, 1, 192 b 21; cf. também 192 b 14; De an., II, 2, 412 b 17.

[19] Phys., VIII, 3.

[20] GA 22 [SS 1926], p. 323: “uma coisa em repouso – este é um aspecto essencial que Aristóteles foi o primeiro a ver com tal acuidade – não está apartada de qualquer caráter de movimento. O repouso não é senão um caso limite do movimento”; cf. p. 171 sobre a Phys., IV, 1-3; GA 18 [SS 1924], p. 314; HW [1935-1936], p. 37; GA 9 [1939], p. 247-248, p. 284; WHD [1951-52], p. 144; SVG [WS 1955-1956], p. 143-144.

[21] Phys., VIII, 1, 225 a 27.

[22] Phys., VIII, 1, 250 b 14.

[23] De an. II, 2, 413 a 22-25; GA 22 [SS 1926], p. 185.

[24] De an., I, 406 a 10-15; II, 413 b 10-15 e respectivamente 403 b 26, 432 a 17; 415 b 24, 416 b 33; 415 a 25.

[25] Heidegger não lê o De anima como uma “psicologia”, mas como uma ontologia da vida (Ontologie des Lebens) no mundo; cf. GA 22 [SS 1926], p. 184; GA 17 [WS 1923-1924], p. 6; p. 293; GA 18 [SS 1924], p. 197; GA 32 [WS 1930-1931], p. 206; GA 33 [SS 1931], p. 150. O primeiro seminário (inédito) sobre o Tratado da alma data de 1921. – Quanto ao texto desse seminário, ainda inédito na data da publicação do artigo, trata-se de Phänomenologische Übungen für Anfänger im Anschluss an Aristoteles, de anima [SS 1921], publicado no Heidegger-Jahrbuch 3 em 2007 [N. T.].

[26] Eth. Nic., I, 6, 1097 b 33; GA 22 [SS 1926], p. 312: “Qual é o bios mais elevado, a possibilidade mais sublime da existência, o modo de ser pelo qual o homem se basta no mais alto grau quanto ao seu poder específico de ser pelo qual o homem é propriamente [eigentlich] ele mesmo?”

[27] De part. an., X, 655 b 5-7: “Em vez disso, os seres que, além da vida, possuem ainda a sensibilidade têm uma forma muito mais variada, e em alguns essa variedade é maior que em outros; essa forma é também mais complexa naqueles cuja natureza participa, não apenas da vida, mas também do bem viver”.

[28] Eth. Nic. I, 8, 1098 b 21.

[29] Eth. Nic., I, 3, 1095 b 18.

[30] NB [1922], p. 14. Em SZ o movimento imanente à praxis será marcado pela fórmula bem conhecida que atravessa a obra: o ser-aí humano é este para o qual “em seu ser está em questão seu próprio ser [um dieses Sein selbst geht]”. (SZ [1927] 12 e passim). Um...geht: o Um-gang heideggeriano transpõe praxis. – É importante compreender que, no caso do animal inteligente e “temporal” que é o ser-aí humano, é a decisão (proairesis), combinação de desejo e intelecto, que pode estar no princípio do movimento: “O princípio da ação (moral) é a decisão, princípio sendo aqui o ponto de origem do movimento” (Eth. Nic., VI, 2, 1139 a 31-32). Cf. também Eth. Eud. , II, 6, 1222 b 29: “O homem é princípio de um movimento pois a ação é movimento”; Eth. Eud., 1214 a 28-30 assimila praxis e genesis: em Met., IX, 6, 1048 b 21, a praxis é igualmente nomeada kinesis.

[31] Há que se notar que Bekümmerung (Bekümmernis) traduz, segundo o uso alemão (que também dispõe de Sorge), merimna (sollicitudo na Vulgata); cf. por ex. 2 Co 11, 28; 1 Co 7, 32- 34 ; 1 P 5, 6-7; Mt 6, 24-34.

[32] Cf. Conf., X, 28, 39: “Há uma luta entre minhas alegrias dignas de lágrimas e tristezas dignas de alegria; de que lado se encontra a vitória eu não sei [...]. Na adversidade, desejo a prosperidade; na prosperidade, temo a adversidade. Qual é o meio termo entre os dois, onde a vida humana não seja uma tentação uma tentação?”; GA 60 [SS 1921], p. 207-209. Heidegger cita o texto das Confissões na edição Migne, Patrologia Latina [PL], Paris, 1861-1962, vol. 32. Usamos aqui a tradução ocasionalmente modificada da Bibliothèque augustinienne [BA] 13-14, Paris.

[33] Cf. Conf. X, 32, 48: Ninguém deve estar seguro [securus] durante esta vida que é toda ela denominada tentação: aquele que, de pior, tornou-se melhor não poderá também passar de melhor para pior?” (grifos do autor); GA 60 [SS 1921], p. 217.

[34] GA 60 [SS 1921], p. 207.

[35] GA 60 [SS 1921], p. 207, n. 14: “Aqui, na exposição, ainda não colocar em relevo o ‘histórico’; caracterizá-lo objetivamente como ‘dinâmico’ e clivagem”; p. 208: “Motivo fundamental: o histórico na cura em si mesma”. Sobre cura, curare nesse curso, cf. também p. 222: “Toda experiência como curare é acompanhada pela tendência fundamental da delectatio (uti-frui), isto é, por um curare diversamente caracterizado e, portanto, sempre um determinado appetitus, uma tendência conativa [Anstreben] para algo”; p. 207-208 com ref. à Enarrationes in Psalmos, VII, 9 (PL 36, 103: Finis enim curae delectatio est); p. 271-273.

[36] GA 60 [SS 1921], p. 250.

[37] GA 60 [SS 1921], p. 208-209, p. 213-214.

[38] Conf., I, 1, 1. Cf. GA 58 [WS 1919-1920], p. 62: inquietudo cordis = “a grande e incessante inquietude [Unruhe] da vida”; p. 205. Cf. também Pascal, Pensées, 127, 406, 427, 431, 465 (Br.).

[39] De an., III, 10, 433 b 18: “O desejo é uma espécie de movimento”; 433 b 28-29: “É na medida em que o animal é dotado de desejo que ele é o seu próprio motor”. Se o intelecto não se move sem desejo, “o desejo pode mover-se contra a razão, pois o apetite é uma espécie de desejo” (433 a 25). O intelecto é sempre correto, enquanto o desejo e a imaginação podem ser corretos ou errados. Assim, o princípio motor que é o desejo pode dar lugar, no ser humano, a um conflito: “Ele nasce de desejos contrários uns aos outros, o que acontece quando a razão e os apetites são contrários [...], fato que, de resto, só se produz nos seres que possuem a percepção do tempo: com efeito, o intelecto ordena a resistir tendo em conta o futuro, enquanto o apetite é dirigido somente ao imediato, pois o prazer presente aparece como absolutamente agradável e absolutamente bom porque não se tem em vista o futuro”. (433 b 5-10). Cf. a glosa do De an., III, 9-10 em GA 22 [SS 1926], p. 182-188, p. 308-311; GA 33 [SS 1931], p. 123-124, p. 150-151.

[40] NB [1922], p. 30: Sorgen = Intentionalität. Sobre Bezugssinn, Vollzugssinn, Gehaltssinn, cf. GA 61 [WS 1921-1922], p. 52-56.

[41] GA 61 [WS 1921-1922], p. 90.

[42] GA 61 [WS 1921-1922], p. 90.

[43] Mt 6, 11; Lc 11, 3; Mt 6, 25-34.

[44] De an., II, 1, 412 a 14; III, 12, 434 a 22-25; II, 4, 415 a 23 - 415 b 7; 416 b 14-15, 17.18.

[45] GA 61 [WS 1921-1922], p. 90.

[46] A palavra francesa utilizada pelo autor é existentiel que traduz a alemã Existenziell adotada por Heidegger. “Existenciário” (Existenziell) nesse primeiro período friburguense abordado pelo artigo designa o existencial-ôntico, concreto, mas que tende, na gênese da conceptualidade fenomenológica, ao ontológico. Ainda não está estabelecida, portanto, a distinção clara entre o plano ontológico (Existenzial), cujas determinações fundamentais, posteriormente, dirão respeito ao ser da existência do Dasein, e o plano ôntico (Existenziell) que é singular, concernente a cada indivíduo particular diante da pluralidade de possibilidades que estão em jogo em seu existir. Essa clivagem técnica só ocorrerá a partir do período marburguense. É importante assinalar que no Brasil não há uma uniformidade nas traduções para o português dos termos Existenziell e Existenzial. De nossa parte, nessa tradução, optamos por existenciário para o francês existentiel, isto é, no sentido ôntico (ou existencial-ôntico) e existencial para o francês existential, ou seja, no sentido ontológico [N. T.].

[47] GA 61 [WS 1921-1922], p. 148; GA 20 [SS 1925], p. 408.

[48] GA 61 [WS 1921-1922], p. 155.

[49] GA 61 [WS 1921-1922], p. 101; p. 119: “a vida possui ‘em si mesma’ um peso particular”.

[50] GA 61 [WS 1921-1922], p. 102.

[51] GA 61 [WS 1921-1922], p. 119.

[52] No NB [1922], p. 19, Heidegger relaciona explicitamente o fenômeno da Neigung à queda, falando da inclinação à queda (Verfallensgeneigtheit) da vida fática como mobilidade do cuidado.

[53] Conf., X, 32, 48; Jó 7, 1; GA 60 [SS 1921], p. 217.

[54] GA 60 [SS 1921], p. 228 (Gelebtwerden); p. 206 (Gezogenwerden); p. 250-251 (Geworfenwerden = irruere).

[55] Conf., X, 29, 40; GA 60 [SS 1921], p. 205-206; p. 250.

[56] GA 60 [SS 1921], p. 244 e p. 294. Em seu curso de 1920-1921, Heidegger emprega Bedrängnis, segundo o uso corrente, para traduzir thlipsis (opressão, aflição, tribulação); cf. GA 60 [WS 1920-1921], p. 97 sobre 1 Ts 3, 7.

[57] Conf., X, 28, 39.

[58] GA 61 [WS 1921-1922], p. 102-103.

[59] Cf. GA 60 [SS 1921], p. 213; Conf. X, 30, 41: “A própria distância entre os dois estados revela-nos que não fomos nós que fizemos isso; no entanto, isso se fez em nós de alguma forma, e o lamentamos”; Rm 7, 14-23. Cf. também GA 61 [WS 1921-1922], p. 263, p. 283.

[60] Conf., X, 23, 33; GA 60 [SS 1921], p. 218-219. Os que se desviam não visam a alegria da verdade, isto é, uma alegria “existenciariamente referida” (p. 201) à vita beata, mas uma alegria mundana que se satisfaz com objetos reais. Cf. Conf. X, 23, 33: “Talvez todos a queiram [a felicidade], mas como a carne cobiça em sentido oposto ao espírito e o espírito em sentido oposto à carne, de modo que não fazem o que querem [Gl 5, 17], recaem [cadere = caem] no que podem e se satisfazem com isso” (grifos do autor); GA 60 [SS 1921], p. 197. Eles recusam o que não está diretamente disponível, pois, “o que não podem, não querem tanto quanto é necessário para o poderem” (X, 23, 33); na sua glosa (GA 60 [SS 1921], p. 198), Heidegger insiste sobre o recuo ante a possibilidade já utilizando o vocabulário do Entwurf e da Geworfenheit de SZ; cf. também GA 60 [SS 1921], p. 248-249, p. 253-254.

[61] GA 60 [SS 1921], p. 218-220, p. 256. Sobre a autossuficiência (Selbstgenügsamkeit) e significatividade (Bedeutsamkeit) como traços característicos da vida fática, cf. GA 58 [WS 1919- 1920], p. 137 sq.; GA 60 [WS 1920-1921], p. 12-13.

[62] GA 61 [WS 1921-1922], p. 104.

[63] Conf., X, 23, 34: a verdade “os desvendará sem que eles o queiram, e ela mesma permanecerá velada para eles”.

[64] GA 60 [SS 1921], 200-201; 252: “Se ocultar [Verbergen] dentro da própria vida – o bloqueio”.

[65] Conf., X, 39; GA 60 [SS 1921], p. 240.

[66] GA 61 [WS 1921-1922], p. 106; cf. também p. 107-108; NB [1922], p. 22.

[67] GA 61 [WS 1921-1922], p. 107-108; NB [1922], p. 19-20: “Ao fazê-lo, a vida, fechando os olhos ao seu caráter  dinâmico mais próprio, é vista mundanamente como um objeto de manipulação prática cuja forma ideal pode ser produzida” (GA 60 [SS 1921], 220).

[68] GA 61 [WS 1921-1922], p. 107; p. 121.

[69] GA 61 [WS 1921-1922], p. 107. Sobre a “máscara” e a “larva”, cf. o comentário de Lutero (1531) à Gl 2, 6 (WA 40, I, 174; LO XV, 109). – Cf. Pascal, Pensées, 183 (Br.): “Corremos despreocupadamente para o precipício, depois de termos posto à nossa frente algo que nos impeça que o vejamos”.

[70] GA 61 [WS 1921-1922], p. 108.

[71] GA 61 [WS 1921-1922], p. 109. Sobre o caráter de facilidade-leveza (Leichtigkeit) oposto à dificuldade-peso (Schwere), cf. GA 58 [WS 1919-1920], p. 142; GA 60 [WS 1920-1921], p. 113, p. 120-121, p. 121; GA 60 [SS 1921], p. 206, p. 242, p. 249, p. 250 e p. 263; PIA [SS 1922], p. 15-16; GA 63 [SS 1923], p. 109; GA 64 [1924], p. 27; GA 19 [WS 1924-1925], p. 97-98 (sobre Met., I, 2, 982 a 24). Em SZ, Heidegger reinscreve a tendência “facilitadora” na analítica do ser-aí cotidiano: “Assim, o Se alivia a carga do ser-aí particular em sua cotidianidade. Mais do que isso; através desse alívio da carga do ser [Seinsentlastung], o Se presta um serviço ao ser-aí se neste reside a tendência para facilitar as coisas para si e tomá-las com leveza [Leichtnehmen und Leichtmachen]”. (SZ [1927], p. 127-128) (grifos do autor); cf. também p. 256, p. 284, p. 384. Notemos que por volta de 1933-1934, podemos observar no segundo Heidegger uma inflação do vocabulário da dureza, da dificuldade e do perigo; cf. por exe. “hartes Geschlecht” (GA 16 [1933], p. 763; GA 66 [1938-1939], p. 61), expressão que não deixa de ser involuntariamente burlesca; GA 16 [1933], p. 94, p. 759; GA 36/37 [WS 1934], p. 264, etc.

[72] Eth. Nic., II, 5, 1106 b 28-34; é a única citação direta de Aristóteles no curso. Heidegger recomenda e utiliza (GA 19 [WS 1924-1925], p. 158; GA 27 [WS 1928-1929], p. 172) a edição Aristotelis Ethica Nicomachea, recognovit Franciscus Susemihl, Leipzig, Teubner, 1880 (revista por Apelt, Leipzig, 31912). Heidegger remete também à teoria platônica da virtude em Polit., 248 a-c e Prot., 356 a.  Para a metáfora platônica do arqueiro (Rep., VII, 519 c; Fil., 60 a; Teet., 194 a), cf. também Eth. Nic., I, 1, 1094 a 22: “Para a conduta da vida é de grande peso o conhecimento deste bem [sc. o soberano bem] e assim, à semelhança dos arqueiros que têm um alvo diante dos olhos, podemos mais facilmente atingir o objetivo adequado”. A propósito do “peso”, J. Tricot, p. 34 (n. 2), referindo-se ao Index aristotelicus de Bonitz, nos informa que, em sentido metafórico, ele equivale à dynamis, o que não passou despercebido por Heidegger: “A possibilidade é o ‘peso’ propriamente dito. Difícil, pesado [schwer]” (GA 60 [SS 1921], p. 249) (grifos do autor).

[73] Eth. Nic., II, 5, 1106 b 27.

[74] Eth. Nic., II, 2, 1104 a; II, 5; II, 6, 1107 a 5 sq.; II, 9, 1109 a 20; VI, 1, 1138 b 20- 25; Pol., IV, 11, 1295 b 4. A doutrina do justo meio se aplica às “virtudes éticas”, não às “virtudes dianoéticas”: “Refiro-me aqui à virtude moral, pois é a que diz respeito às afecções e às ações, matérias nas quais há excesso, falta e meio”. (Eth. Nic., II, 5, 1106 b 15).

[75] Eth. Nic., II, 6, 1106 b 36.

[76] Eth. Nic, VI, 1, 1138 b 20.

[77] Eth. Nic., II, 9, 1109 a 25-30: “Entregar-se à raiva é algo ao alcance de qualquer um e muito fácil, assim como dar dinheiro e gastá-lo; mas fazê-lo com a pessoa certa, na medida e no momento convenientes, por um motivo e de uma forma legítimos, eis uma obra que já não é realizada por todos e nem é de fácil execução; e isso é que explica que o bem seja ao mesmo tempo uma coisa rara, louvável e bela”; cf. também 3, 1105 a 8: “A virtude, como a arte, tem sempre por objeto o mais difícil”; 9, 1109 b 14.

[78] Eth. Nic., VI, 5, 1140 a 25-28; cf. também VI, 5, 1140 b 4-10: “A prudência é uma disposição acompanhada de regra verdadeira, capaz de agir na esfera do que é bom ou mau para um ser humano”; VI, 8, 1141 b 29.

[79] Os dois termos são equivalentes (Eth. Nic., I, 2, 1095 a 19; I, 6, 1097 b 22).

[80] Eth. Nic., VI, 1, 1138 b 20-25. Sobre o excesso (“hipérbole”) e a falta (“elipse”) que Aristóteles qualifica como igualmente prejudiciais para a mediania, cf. Eth. Nic., II, 5, 1106 a 29; cf. também Eth. Eud., II, 3, 1220 b 22; II, 5.

[81] Eth. Nic., I, 6, 1098 a 15; II, 5, 1106 a 15-24; IX, 9, 1169 b 33; X, 7, 1178 a 5; GA 19 [WS 1924-1925], p. 169: “A arete é ela própria algo como uma teleiosis; ela é aquilo que traz algo do ente em si mesmo na excelência própria [Eigentlichkeit] do seu ser”.

[82] GA 61 [WS 1921-1922], p. 109; p. 88; GA 60 [SS 1921], p. 257 com ref. a Kierkegaard, Der Begriff der Angst (GW 5, Jena, 1912, p. 107).

[83] GA 61 [WS 1921-1922], 109. Note-se que “[...] gestellt sein” transpõe hexis (cf. por exe. GA 19 [WS 1924-1925], p. 50, p. 52). – Sobre a destruição da hexis na Met., V, 23 e 20 e Eth. Nic., II, 1-5, cf. GA 18 [SS 1924], p. 172-191.

[84] Eth. Nic., II, 9, 1109 b 1-7. Para a metáfora da “madeira torta”, cf. também Platão, Prot., 325 d. E Ecl (Coélet.) 7, 14: “Olhai para a obra de Deus: quem poderá endireitar o que ele curvou?”, etc.

[85] GA 61 [WS 1921-1922], p. 80; p. 88.

[86] GA 61 [WS 1921-1922], p. 109; p. 189.

[87] NB [1922], p. 21; GA 61 [WS 1921-1922], p. 169.

[88] GA 61 [WS 1921-1922], p. 99.

[89] Sobre o efeito provocado pela hexis filosófica de Heidegger nas suas primeiras preleções cf., por exemplo, o testemunho pormenorizado da carta de G. Krüger a F. Gogarten, de 14 de Novembro de 1923, in R. Bultmann e F. Gogarten, Briefwechsel 1921-1967, Mohr/Siebeck, Tübingen, p. 273-278. Recordemos que o ensino do primeiro Heidegger, em Freiburg e Marburg, formou, influenciou ou marcou filósofos tão diferentes quanto G. Anders, H. Arendt, H.-G. Gadamer, H. Jonas, E. Levinas, L. Strauss, K. Löwith, H. Marcuse, W. Szilasi, E. Tugendhat, H. Weiss, etc.

[90] GA 61 [WS 1921-1922], p. 79.

[91] GA 60 [WS 1920-1921], p. 10.

[92] GA 61 [WS 1921-1922], p. 169.

[93] GA 61 [WS 1921-1922], p. 169 (grifos do autor). Cf. SZ [1927], p. 38: “A filosofia é uma ontologia fenomenológica universal, proveniente da hermenêutica do ser-aí, que, enquanto analítica da existência, fixou o fim do fio condutor de todo questionamento filosófico no lugar onde este tem a sua origem [entspringt] e ao qual retorna [zurückschlägt]” (grifos do autor).  (SZ [1927], p. 436).

[94] GA 61 [WS 1921-1922], p. 132.

[95] GA 61 [WS 1921-1922], p. 153.

[96] Do latim haecceitas, literalmente o caráter do que é haec, da máxima proximidade (no tempo e no espaço) do “aqui”, “neste lugar”. Trata-se de uma expressão atribuída a Duns Scotus, indicando a individualidade própria e inexcedível de cada ente. Em sua Habilitationsschrif de 1915 (As categorias e a doutrina da significação de Duns Scotus) Heidegger diz que a haecceitas é a forma da individualidade que confere uma determinação originária (Urbestimmtheit) da realidade e que “O individual é um último irredutível” (GA 1, p. 253) [N. T.].

[97] GA 61 [WS 1921-1922], p. 88, p. 109. O termo Dies(ig)keit parece ser formado a partir de diese(r, -s): haec, tode ti.

[98] GA 1 [1915], p. 253: “tal-aqui-agora” (“Solches-Jetzt-Hier”), “forma da individualidade”.

[99] GA 61 [WS 1921-1922], p. 117; na p. 80, Heidegger cita Nietzsche, Bergson, Dilthey, Scheler como representantes da Lebensphilosophie. Seria necessário estudar a fonte bergsoniana mais de perto; já em 1920, Heidegger “trabalha sistematicamente” sobre Bergson e não hesita em escrever: “Aprendo muito estudando Bergson [...]. Os problemas que Husserl apresenta frequentemente em conversas como absolutamente novos, já foram claramente identificados e resolvidos por Bergson há 20 anos” (carta de 11 de Agosto de 1920, inMein Liebes Seelchen”, p. 105).

[100] GA 61 [WS 1921-1922], p. 57.

[101] GA 61 [WS 1921-1922], p. 88; p. 99.

[102] GA 61 [WS 1921-1922], p. 87. Este gesto hermenêutico prefigura a violência (Gewaltsamkeit) própria à análise existencial. (SZ [1927], p. 311).

[103] NB [1922], p. 21. Cf. Agostinho, Commentaire de la première épître de Saint Jean [Ep. Io. tr.], II, 1(BA 76).

[104] GA 63 [SS 1923], p. 109 que cita Pascal, Pensées, 382, Br. (Heidegger assinala): “Quando tudo se move igualmente, nada parece se mexer, como em um navio. Quando todos se dirigem à dissolução, ninguém parece estar indo para lá. Aquele que para, nota o descontrole dos outros como um ponto fixo”.

[105] GA 27 [WS 1928-1929], p. 168: “Constitutiva para essa bios [i.e., bios = Existenz] é a proairesis, a antecipação [Anticipation], a preferência livre [freie Vorwegnahme] de uma possibilidade determinada do ser-aí. Pertencem ao ser-aí diversos bioi e a possibilidade de escolha [Wahl] entre diferentes direções fundamentais”.

[106] GA 63 [SS 1923], p. 109.

[107] De an., I, 3, 406 a 2.

[108] Phys., VII, 3, 247 b 10-12; cf. também De an., I, 3, 407 a 32-33: “O intelecto se assemelha mais a um repouso ou a uma paragem que a um movimento”; III, 11, 434 a 16: “ Quanto à faculdade intelectiva, ela nunca se move, mas permanece em repouso”.

[109] GA 63 [SS 1923], p. 109 (grifos do autor).

[110] GA 61 [WS 1921-1922], p. 132; cf. também p. 153: “Uma mobilidade contrarruinante é aquela da realização interpretativa filosófica”. Cf. em outro contexto GA 19 [WS 1924- 1925], p. 97-98 sobre Met., I, 2, 982 a 24: a sophia é um contramovimento (Gegenbewegung) que contraria a tendência do ser-aí de apegar-se à aparência (Augenschein) mais imediata, à aisthésis mundana dos polloi (entenda-se, das Man) que estão cegos para o presente (Gegenwart) mais próximo. – Assinalemos, sem que o possamos explorar aqui, que uma das fontes aristotélicas do conceito heideggeriano de Gegenbewegung é a noção de movimento contrário (enantia kinesis) da Phys., V, 5 e 6.

[111] GA 61 [WS 1921-1922], p. 160.

[112] GA 63 [SS 1923], p. 109.

[113] GA 60 [SS 1921], p. 205. Cf. também Conf., II, 1, 1: “Ó doçura de felicidade e de segurança, tu que me recolhes da dispersão [dispersio], onde sem fruto me dissipei, quando me afastei de ti, o Único, para me perder no múltiplo”.

[114] Conf., X, 29, 40, com referência a Sb 8, 21 (“eu sabia que não poderia possuir a continência sem que Deus ma desse”); GA [SS 1921], p. 209. Glosando Conf., X, 37, 61 (“ordenastes não só a continência, que significa do quê devemos afastar nosso amor, mas também a justiça, que significa aquilo para que o devemos dirigir”), Heidegger  nota que na experiência da tentação, a continência, dirigida ao amor de Deus e à justiça, detém o movimento decadente (Aufhalten des Abfalls) dirigido ao amor de si (GA [SS 1921], p. 237).

[115] Pascal, Pensées, 212; 458; 459 (Br.): “Os rios da Babilônia correm, caem e arrastam, ó santa Sião, onde tudo é estável e nada cai!”; Agostinho, Ep. Io. tr., II, 10: “O rio das coisas temporais nos arrasta [...]”; Enarr. in Ps. 136, 3-4 (PL 36- 37).

[116] GA 60 [SS 1921], p. 211. Da p. 210 a 241 Heidegger interpreta como três possibilidades da tentação no mundo, ou seja, três movimentos de defluxo em conflito com o contramovimento da continência, a tripla concupiscência (Begierlichkeit), que estrutura o livro X (“Tu me ordenas, seguramente, a conter-me diante da concupiscência da carne e da concupiscência dos olhos e da ambição do século”, Conf., X, 30, 41) segundo a tripartição de 1 Jo 2, 15-17: “Não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e orgulho  da riqueza – não vem do Pai, mas do mundo. Ora, o mundo passa com as suas concupiscências; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece eternamente”.

[117] NB [1922], p. 25. Cf. GA 20 [SS 1925], p. 179-180.

[118] NB [1922], p. 27.

[119] GA 61 [WS 1921-1922], p. 132.

[120] GA 61 [WS 1921-1922], p. 146.

[121] GA 61 [WS 1921-1922], p. 146.

[122] Cf. 1 Co 7, 29-31: “Digo-vos, irmãos, que o tempo é curto. Que de agora em diante, os que têm mulher, vivam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se não o usassem realmente. Porque a figura deste mundo passa.”; GA 60 [WS 1920-1921], p. 109; p. 117, p. 120-121.

[123] GA 60 [WS 1920-1921], p. 116-119 sobre 1 Co 7, 20: “Que cada um permaneça no estado em que o chamado de Deus o encontrou”.

[124] NB [1922], p. 26. – O “Se”, na cunhagem alemã de Heidegger “das Man”, importantíssima categoria com imensa repercussão posterior, faz sua primeira aparição nos escritos do jovem Heidegger justamente no Natorp Bericht citado aqui. Essa substantivação do pronome indefinido indica o caráter do impessoal (e que transparece em expressões corriqueiras como “costuma-se fazer assim” ou “fala-se que”, etc.) em que a vida fática, na tendência para a queda (Verfallenstenzdenz), se move fugindo de si mesma, ocultando-se de si no trato com o mundo mediante a publicidade (Öffentlichkeit) da opinião comum de um sujeito indeterminado. Na impropriedade dessa lida segundo a posição geral de todos e, portanto, de fato, de ninguém, o Dasein do homem, descurado de si, perde-se de si mesmo. [N. T.].

[125] NB [1922], p. 26-27.

[126] NB [1922], p. 25.

[127] NB [1922], p. 21.

[128] NB [1922], p. 27.

[129] NB [1922], p. 26.

[130] Conf., X, 33, 50; IV, 4, 9. Sobre o problema da quaestio, cf. também GA 60 [SS 1921], p. 263: “Quaestio mihi factus sum: insegurança, clivagem, tornar-se-questão, modo autêntico de se tornar uma questão para si mesmo. O que isto exprime? ‘Possibilidade’”; p. 273-274: “Eis a tentatio propriamente dita, a tentatio tribulationis: que o homem se torne uma questão para si mesmo” (p. 178, p. 245-246, p. 280-281).

[131] GA 61 [WS 1921-1922], p. 153.

[132] GA 60 [SS 1921], p. 263: “Quaestio mihi factus sum: insegurança”; GA 61 [WS 1921- 1922], p. 174: “Caráter do ser-questão (‘inquietude’)”.

[133] GA 61 [WS 1921-1922], p. 35; cf. p. 37.

[134] GA 61 [WS 1921-1922], p. 117. Sobre as categorias formais e hermenêuticas como “existenciais”, cf. GA 60 [SS 1921], p. 232; p. 256: “a tentatio é um autêntico existencial [Existenzial]” (grifos do autor).

[135] GA 61 [WS 1921-1922], p. 119 (“leuchtet [...] zurück”); (“baut [...] vor”); 120 (“vor- bauend”); p. 124, p. 130 (“vorbauen”). Tais formas verbais que germanizam praestruere nos levam a traduzir Praestruktion por pré-construção.

[136] GA 61 [WS 1921-1922], p. 131.

[137] GA 61 [WS 1921-1922], p. 119.

[138] SZ [1927], p. 16.

[139] GA 61 [WS 1921-1922], p. 119.

[140] Conf., X, 23, 33; GA 61 [WS 1921-1922], p. 214.

[141] GA 61 [WS 1921-1922], p. 130.

[142] GA 61 [WS 1921-1922], p. 124; p. 121; p. 103.

[143] Agostinho, Ep. Io. tr., II, 10 sobre 1 Jo 2, 16: “O amor do mundo te enreda em seu turbilhão? Apega-te ao Cristo”.

[144] GA 61 [WS 1921-1922], p. 123.

[145] GA 61 [WS 1921-1922], p. 123.

[146] GA 61 [WS 1921-1922], p. 107, p. 109; cf. também GA 63 [SS 1923], p. 103.

[147] GA 61 [WS 1921-1922], p. 109.

[148] GA 61 [WS 1921-1922], p. 120.

[149] Sobre a ilusão de segurança que ignora o “temor de Deus”, cf. Lutero, WA 1, 358-360 (LO I, 130-132); Agostinho, Ep. Io. tr., I, 7: “João, tira de ti esta falsa segurança e semeia em ti um temor salutar. Buscas uma falsa segurança? Inquieta-te!”.

[150] GA 61 [WS 1921-1922], p. 140. Cf. também NB [1922], p. 20-21; GA 64 [1924], p. 41; SZ [1927], p. 177-178.

[151] GA 61 [WS 1921-1922], p. 137. Cf. Ecl 20, 7 citado em GA 64 [1924], p. 81: “O sábio sabe ficar calado até ao momento certo, mas o falador e o tolo perdem a ocasião.”; Si 1, 23.

[152] GA 61 [WS 1921-1922], p. 139.

[153] GA 61 [WS 1921-1922], p. 126.

[154] De an., II, 2, 412 b 17; Phys., II, 1, 192 b 14: os entes naturais possuem “um princípio de movimento e de repouso neles mesmos”.

[155] GA 61 [WS 1921-1922], p. 127.

[156] De an., II, 4, 415 b 14.

[157] GA 61 [WS 1921-1922], p. 85 (grifos do autor).

[158] GA 61 [WS 1921-1922], p. 130.

[159] GA 61 [WS 19211922], p. 136; p. 140.

[160] Conf., X, 35-38; GA 60 [SS 1921], p. 228. Cf. GA 61 [WS 1921-1922], p. 148: ausente de si mesma, a vida está, no entanto, presente ao mundo circundante (Umwelt) segundo a presença da experiência prática (praxis, Umgang) com os objetos mundanos.

[161] GA 60 [SS 1921], p. 228.

[162] Embora no artigo não esteja indicada a referência da citação ela diz respeito à GA 61 [WS 1921-1922], p. 140 [N. T.].

[163] Em SZ, ruina torna-se Absturz, Sturz para caracterizar a Bewegtheit própria do ser-aí perdido: “O ser-aí decai fora de si nele mesmo, na inconsistência [Bodenlosigkeit] e na vacuidade [Nichtigkeit] da cotidianidade inautêntica” (SZ [1927], p. 178).

[164] GA 61 [WS 1921-1922], p. 131. A referência aristotélica implícita para formalizar este “vazio” talvez seja Phys. IV, 6-9.

[165] GA 61 [WS 1921-1922], p. 131 (grifos do autor).

[166] GA 9 [1939], p. 297: “Se – fora de si para si – produzir [Sich aus sich her, auf sich zu herstellen]”. A estrutura formal da “natureza” como possibilidade de ser que é própria de um ente é indicada mais claramente na GA 18 [SS 1924], p. 45- 46 concernente a Pol, I, 2, 1252 b 30: “Physei on é um ente que é o que é a partir de si mesmo [von sich selbst her] em razão das suas próprias possibilidades”; GA 22 [SS 1926], p. 187 sobre De an., II, 1, 412 a 15 (“corpo natural”): “Ser arche e telos em si mesmo a partir de si mesmo, crescer, conservar-se e perecer por si mesmo”.

[167] De an., III, 12, 434 a 24-25; II, 1, 412 a 14 e GA 22 [SS 1926], p. 124, p. 185, p. 187.

[168] Lutero, WA 42, 146 (LO XVII, 173), citado supra. Sobre esse tema clássico da “corrida para a morte”, que se encontra no Vorlaufen de SZ, cf. Sêneca, Consolação à Marcia, XXI, 6; Agostinho, A cidade de Deus, XIII, 10.

[169] Phys., IV, 12, 220 a 30 - 221 b 3: “Há também um afecção devida ao tempo, como costumamos dizer que o tempo consome, que tudo envelhece sob a ação do tempo e que ele traz o esquecimento; mas não dizemos que aprendemos nem que nos tornamos jovens e belos, pois o tempo é, por si só, antes, a causa da destruição; pois é o número do movimento, e o movimento desfaz o que é”.

[170] GA 61 [WS 1921-1922], p.145 (grifos do autor).

[171] GA 61 [WS 1921-1922], p. 147.

[172] Met., XI, 11, 1067 b 25; Phys., V, 1, 225 a 20: “O não-ser se diz em vários sentidos”. Esses são em número de três: o não-ser segundo as categorias, o não-ser como falso e o não-ser como potência (Met., XII, 2, 1069 b 27; XIV, 2, 1089 a 26-28).

[173] Cf. mais tarde GA 9 [1929], p. 120; EIM [SS 1935], p. 18; NI [SS 1937], p. 460; GA 49 [1941], p. 57- 58; GA 68 [1938-1939/1941], p. 49; GA 55 [SS 1944], p. 276.

[174] GA 61 [WS 1921-1922], p. 147 (grifos do autor).

[175] GA 61 [WS 1921-1922], p. 147.

[176] GA 61 [WS 1921-1922], p. 148.

[177] GA 61 [WS 1921-1922], p. 153-154.

[178] GA 60 [SS 1921], p. 237; Conf., X, 39, 64.

[179] GA 60 [SS 1921], p. 294.

[180] GA 60 [SS 1921], p. 235; p. 234, 238-239; Conf., X, 39, 64; 36, 59.

[181] GA 60 [SS 1921], p. 240; p. 253: na solicitude de si mais radical abre-se também “a violência mais inquietante [unheimlichste Gewalt] da tentatio”.

[182] GA 60 [SS 1921], p. 195, p. 208, p. 215, p. 245, p. 248, p. 253, p. 265-266.

[183] Mt 16,25; cf. também Mt 10,39; Mc 8,35; Lc 17,33; Jo 12,25.

[184] Conf., X, 39, 64; GA 60 [SS 1921], p. 241. Sobre a angústia e o timor, cf. GA 60 [SS 1921], p. 268, p. 293-297; GA 18 [SS 1924], p. 261. Em SZ, encontramos a distinção timor servilis / timor castus na distinção temor / angústia.

[185] PSL [1924], p. 31-32.

[186] Lutero, WA 4, 164 (Dictata super Psalterium, 1513-1516).

[187] Cf. nota in GA 60 [SS 1921], p. 215: “Ruina”, cristã-filosoficamente: perecer, passar [Hinscheiden, Vergehen] – em vista da imortalidade; o aspecto objetivamente grego e teórico no conceito da facticidade; depender de..., urgência que está aí em relação a mim e em mim mesmo”. – Cf. Lutero, AWA 2, 305-306 (De spe et passionibus) sobre o Sl 115 (116), 11, onde a experiência do aniquilamento se traduz numa queda (cadere, ruere) em direção ao nada, na mão de Deus. Cf. igualmente o tema pascaliano da queda: “O orgulho contrapesa e carrega consigo todas as misérias. Aqui está um monstro estranho, e um extravio bem visível. Eis que, caído de seu lugar, o procura com inquietude” (Pensées, 406, Br.); “O homem não sabe em que patamar se colocar. Está evidentemente perdido, caiu do seu verdadeiro lugar sem o poder encontrar. Procura-o por toda a parte, com inquietude e sem sucesso, em meio a trevas impenetráveis”(427).

[188] GA 60 [SS 1921], p. 282; Lutero, LO I, 125 (WA 1, 354).

[189] Cf. a carta a K. Löwith de 19 de agosto de 1921, in D. Papenfuss et al. (ed.), Zur philosophischen Aktualität Martin Heideggers, Bd. II, Frankfurt a. M., Klostermann, 1990, p. 29.

[190] GA 61 [WS 1921-1922], p. 122.

[191] GA 61 [WS 1921-1922], p. 120-121.

[192] Lutero, LO II, 142 (WA 6, 457).

[193] NB [1922], p. 61-62 (grifos do autor). Cf. também passagens semelhantes em PIA [SS 1922], p. 25-26. Enquanto primeiro motor imóvel, este deus aristotélico, puro de qualquer mobilidade sublunar, opõe-se diametralmente ao Deus neotestamentário escondido na paixão e na cruz, que é “um Deus de amor” (Pascal, Pensées, Br. 556; Mt 22, 31-32); este Deus, “loucura para os pagãos”, foi objeto de uma “experiência religiosa fundamental” em Paulo, Agostinho, Lutero, Pascal ou Kierkegaard, uma experiência arquicristã que o jovem Heidegger não deixou de explorar para alimentar a sua problemática da vida fática. – Sobre a mobilidade própria do theorein, cf. o comentário mais aprofundado de Met, XII, 6, 1071 b 6-20, e IX, 6, 1048 b 18-36 em PIA [SS 1922], p. 22-26. Sobre a bios theoretikos, cf. GA 18 [SS 1924], p. 44, p. 92, p. 106, p. 246, p. 265, p. 290; GA 64 [1924], p. 101; GA 19 [WS 1924-1925], p. 61; GA 27 [WS 1928-1929], p. 167-179. A crítica à “atitude teórica” é recorrente na obra; cf. por exe. GA 17 [WS 1923-1924], p. 3: trata-se de “libertar-se de uma tradição que foi autêntica na filosofia grega: a atitude científica como teoria”; GA 18 [SS 1924], p. 290 sobre Et. Nic., X, 7, 1177 a 26 (“admite-se que a filosofia contém prazeres maravilhosos em termos de pureza e estabilidade, e é normal que a alegria de conhecer seja uma ocupação mais agradável do que a busca pelo saber”): “A mais alta possibilidade da existência, de modo a que a ameaça [sc. a ameaça do desaparecimento do ser-aí] seja abolida, é o puro theorein; e a autêntica hedone é, portanto, a ciência”.

[194] PIA [SS 1922], p. 22.

[195] Et. Nic., VII, 1177 a 16.

[196] Phys., VIII, 6, 258 b 15; VIII, 10, 267 b 5.

[197] NB [1922] e GA 62 [SS 1922], posteriormente GA 18 [SS 1924], GA 19 [WS 1924-1925], GA 22 [SS 1926]. Cf. também os seminários (inéditos) sobre Aristóteles de 1921 a 1929, listados na Bibliografia cronológica citada mais acima.

[198] SZ [1927], p. 392: “[...] o enigma [Rätsel] do ser e, como agora se tornou evidente, do movimento”; 389 (grifos do autor).

[199] O autor nos informa (n. 17) que as citações de Aristóteles são, em geral, extraídas das traduções de J. Tricot, Paris, Vrin, 1951-1970; CUF (bilíngue, Paris, Les Belles Lettres) e GF (Paris, Flammarion, coleção “Garnier”), não fazendo referência específica às edições utilizadas. Não obstante são indicadas nas citações as referências canônicas [N. T.].

[200] O autor não faz referência às edições; indica nas citações apenas as referências canônicas [N. T.].