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Memória, tempo e conhecimento em Agostinho de Hipona

Memory, time and knowledge in Augustine of Hippo

Daiane Rodrigues Costa

0000-0003-2007-2303

daiane.rodrigues@notredame.org.br

Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos

 

Recebido: 30/07/2023

Received: 30/07/2023

 

Aprovado: 18/11/2023

Approved: 18/11/2023

 

Publicado: 13/12/2023

Published: 13/12/2023

 

RESUMO

O texto trata do tema da memória para o filósofo Agostinho de Hipona e de como ela torna-se central em sua discussão a respeito do tempo e do conhecimento. No tratado De Trinitate, Agostinho chega à conclusão de que o ser humano, como espelho divino, traz na alma uma imagem da Trindade . Memória, inteligência e vontade correlacionadas formam a mens, estrutura superior da alma humana. A partir dessa constatação, expõe-se o tempo e o conhecimento como oriundos dessa capacidade, que nos permite “armazenar” o que já passou e a fazer projeções futuras.

Palavras-Chave: Memória, Tempo, Conhecimento, Agostinho.

ABSTRACT

This The text deals with the theme of memory for the philosopher Augustine of Hippo and how it becomes central in his discussion about time and knowledge. In the treatise De Trinitate, Augustine comes to the conclusion that the human being, as a divine mirror, is also formed from a trinity. Memory, intelligence and will correlated form the mens, superior structure of the human soul. From this observation, time and knowledge are exposed as coming from this capacity, which allows us to “store” what has already passed and to make future projections.

Keywords: Memory, Time, Knowledge, Augustin.

INTRODUÇÃO

Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados

(Jorge Luís Borges)

O objetivo principal do presente estudo é demonstrar como a faculdade da memória é capaz de conceder ao ser humano o conhecimento e a consciência temporal, isto é, permite-lhe compreender a si e ao mundo que o cerca como seres que se degeneram ao longo do tempo. Isso torna o humano como ser singular na natureza. Para isso, os textos de Agostinho de Hipona tornam-se uma referência, visto a ampla produção filosófica desse pensador em relação à memória e aos temas que aqui se depreendem dela.

Embora escritos em épocas diferentes de sua vida, alguns textos agostinianos parecem complementar uma visão filosófica/religiosa do autor sobre a vida humana e o mundo que a cerca. O De trinitate, ao buscar uma definição sobre a Trindade divina, reconhece no homem o seu reflexo, enquanto “imagem e semelhança” do criador. Ao chegar à conclusão de que a alma é composta por uma tríade de memória, inteligência e vontade, ele também concede o suporte e uma chave de leitura para compreender escritos anteriores ao próprio De Trinitate. Refiro-me as Confissões (397 – 400 d.C) e o De Magistro (389 d.C). Isso acontece porque a memória assume um papel importante tanto na constituição do conhecimento, quanto na assimilação do tempo.

Para uma melhor compreensão, o presente artigo está organizado em duas seções. Na primeira, reconstruímos a argumentação de Agostinho presente no De trinitate, a partir do livro IX. Na segunda, realizamos a conexão com o tema do conhecimento e do tempo e as possíveis conclusões que podemos elaborar a respeito da centralidade do conceito de memória. As citações diretas dos textos de Agostinho estão em latim nas notas de rodapé, conforme a versão da BAC (Biblioteca de autores cristianos).

A descoberta da memória no De Trinitate

Agostinho elaborou este texto entre os anos 400 e 416. Tinha 46 anos quando começou a escrever e acabou o livro por volta dos 62 anos. Esta, portanto, é uma obra de sua maturidade. Isso não significa que ele escreveu apenas o De Trinitate ao longo desse Tempo. Pelo contrário, sua intensa produção filosófica-textual não cessou, trabalhou em diversos outros escritos, além de exercer um vigoroso trabalho pastoral.

A Trindade trata de um importante dogma católico. O mistério da Trindade foi alvo de inúmeras discussões. Cobrava-se da Igreja uma postura que definisse uma proclamação oficial sobre esse assunto. Em 325, portanto, 318 bispos foram convocados para uma reunião. O Concílio de Nicéia definiu a existência de um único Deus em três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo). Depois disso, o Concílio de Constantinopla, de 381 definiu outros detalhes que escaparam ao Concílio de Nicéia. Porém, uma definição oficial da Igreja não excluiu as diversas teorias a respeito do assunto. Assim, Agostinho também se coloca a refletir e a elaborar um documento exaustivo sobre a Trindade.

Esta obra é composta de 15 livros. Do livro 1 ao livro 8, Agostinho faz uma reflexão muito mais no campo da Teologia, do dogma católico. Do livro 9 ao livro 15 é que o pensador adentra ao campo filosófico. Para ele, talvez seja melhor conhecer a Trindade não por ela, mas pelo seu reflexo, isto é, o ser humano. Portanto, Agostinho inicia uma investigação sobre a alma e o corpo, na tentativa de entender melhor o que é a “pessoa” humana.

Comecemos, assim, pelo livro IX, onde estão as bases argumentativas para a constatação da existência da memória como parte da alma humana. Como de costume, Agostinho inicia esse livro com advertências, para que ninguém se iluda ao ponto de presumir que encontrará toda a verdade ou, em suas palavras, o “Verdadeiro, sumo e único Deus”[1] (Trind. IX, i,1). Ele destaca apenas um ponto de partida, cujo dogma é sustentado pela fé, de que a Trindade é formada por três pessoas em relação mútua e que partilham da mesma essência.

Parte do raciocínio da necessidade de três “elementos” no ato do amor, isto é, do próprio amor, do ser que ama e do ser que é amado. No entanto, se o ser que é amado é de natureza diferente do ser que ama, então há uma disparidade de natureza. O amor para com outro ser não pode corresponder à Trindade. Mas o caso de quem ama a si mesmo há somente dois elementos, visto que o ser que ama e o ser que é amado são um só. Chega-se aí a uma igualdade de substâncias.

Esse “ser que é amado” e o “ser que ama”, visto serem os mesmos, Agostinho os chama de mens. Oliveira (1984) esclarece a importância desse termo dentro da concepção de alma de Agostinho:

Santo Agostinho concebe a alma espiritual como ordenada hierarquicamente, em suas partes: uma porção inferior e outra superior. A palavra “mens” exprime, geralmente, a porção superior: ‘principale mentis humanae(XIV, 8, 11); ‘quod excellit in anima, mens vocatur(XV, 7,11). Logo recebe o nome de mente, não a alma mas o que nela é superior – a sua fina ponta.

Cada pessoa humana, por si, assemelha-se a Deus em sua mente, e constitui uma imagem da Trindade, ainda que imagem inadequada de sua essência. Agostinho empenha-se em descobrir em que a mente é imagem e reflete algo de Deus (p. 626).

A alma, também tem uma parte inferior, que se relaciona com as sensações e com o corpo. Chama-se “inferior” pois é uma parte da vida humana que não se distingue do restante do mundo natural. Não faz com que o ser humano seja visto como um ser privilegiado e a “imagem e semelhança” de seu criador. Mais adiante, veremos como Agostinho muda o sentido do termo mens.

O amor e o ser que ama/amado não são coisas diferentes em termos de essência e estão em relação recíproca. “o que ama diz referência ao amor e o amor ao que ama. Pois o que ama, ama por amor, e o amor é possuído pelo que ama[2]” (Trind. IX, ii, 2). Agostinho, como já mencionamos, parte do princípio de que a alma humana espelha a Trindade criadora. Por isso, o  amor e o ser que ama correspondem ao mesmo espírito (diferenciando-se apenas em sua relação recíproca), mas onde encontrar o terceiro elemento dessa trindade?

O terceiro elemento da trindade humana é o conhecimento que a alma tem de si mesma. Visto ser inviável amar o que é desconhecido, para que a alma possa amar a si ela precisa necessariamente conhecer-se. Todavia, afirma Agostinho, que esse amor não advém da experiência ou observação que uma alma particular tem com outras almas (daí a possibilidade de formar um conhecimento genérico). Mas, sim, da própria presença da alma a si mesma. Aliás, O bispo hiponense ressalta que diferente dos olhos corporais, que não conseguem ver a si mesmo sem a ajuda de um espelho, os “olhos da alma” conseguem “dobrar-se” a si próprios e se verem reflexivamente. A alma pode, assim, saber o que ela mesma é. Portanto, uma primeira trindade humana é reconhecida pelo bispo hiponense, a saber, mens, amor e conhecimento.

Assim como são duas as realidades: a mente e seu amor, quando a mente ama a si mesma, também são duas: a mente e seu conhecimento, quando ela se conhece a si mesma. Portanto, a mente, o seu amor e o seu conhecimento formam três realidades. Essas três coisas, porém, são uma única unidade. E quando perfeitas, são também iguais[3] (Trind. IX, iv, 4).

De forma semelhante à Trindade divina, mens, notitia e amor formam uma unidade “espiritual”, isto é, uma realidade incorpórea. É, ainda, uma relação de igualdade, visto que uma “instância” depende da outra para cumprir sua “função”.

Mente, notitia e amor não são substâncias acidentais no ser humano, de modo que este poderia ter ou não ter. Pelo contrário, eles formam a própria estrutura que concede vida ao corpo. Como no exemplo elaborado por Agostinho, a cor é acidental em qualquer objeto, mas o amor e conhecimento não o são no ser humano, pois se esse não tivesse tais substância não seria o que é.

Também não é possível separar essas três substâncias que formam a alma. Agostinho cita o exemplo do corpo, que vive em estreita relação com a cabeça. No entanto, os dois podem ser separados por um corte. Mas em relação a essas três substâncias corporais (mens, notitia e amor) isso não é possível. Não há existência de uma sema outra (Trind. IX, iv, 7). Entretanto, ainda assim parece ficar uma lacuna no entendimento de como essa trindade se estrutura, pois seria a mens o todo da alma e o amor e o conhecimento partes desse todo? Agostinho apenas afirma que essas três realidades espirituais possuem a mesma essência, embora sejam distintas, e estão em relação recíproca entre si (uma não é superior a outra por desempenhar um papel superior, mas tem relações de igualdade[4]). 

A relação recíproca entre mens, notitia e amor acontece da seguinte forma: a mente que se ama, ama por seu amor tudo aquilo que é. A mente que se conhece, se conhece por seu conhecimento. Para conhecer-se, a mente precisa também amar-se (é o que a move para se conhecer) e para se amar, ela precisa também se conhecer, visto que não é possível amar o desconhecido. É dessa forma que, para operar, a alma precisa “movimentar” todas as suas três realidades espirituais. Uma não realiza sua função própria sem o auxílio da outra.

O ponto central da problemática que Agostinho estabelece é que seu objetivo é encontrar a estrutura da alma humana e não uma realidade relativa sobre ela. Isto significa que não interessa a esses propósitos o que cada um ama ou conhece, em maior ou menor intensidade, mas sim aquilo que pode ser reconhecido em qualquer alma.

Ainda sobre a igualdade do conhecimento que é gerado pela mente e é igualmente idêntico a ela (e só é gerado devido ao amor que a alma sente por si mesma), no capítulo 11 do livro IX diz:

Do exposto se conclui que: quando a alma se conhece e aprova o conhecimento que tem de si mesma, esse conhecimento que é seu verbo, lhe é perfeitamente igual e adequado, e isso a cada instante. Pois ela não é de uma natureza inferior, como o corpo, nem superior, como Deus. E como o conhecimento assemelha-se ao que ela conhece, essa semelhança é adequada e perfeita, igual à própria mente que é conhecida. Esse conhecimento é ao mesmo tempo sua imagem e verbo, visto que ao se expressar iguala-se a ela pelo conhecimento. O conhecimento gerado é igual à mente que gera (Trind. IX, xi, 16)[5].

A igualdade do verbo interior que é gerado na mente em relação a própria mente equivale-se a um reflexo no espelho. As imagens que a alma tem dentro de si (na memória, como veremos adiante) ou são inferiores ao que ela mesma é (imagens corpóreas) ou são superiores a ela (o conhecimento que ela tem de Deus). Mas o verbo interior (a imagem) que a alma gera de si mesma é igual a ela. Não lhe é superior ou inferior, mas exatamente igual a si. Esse verbo só pode ser gerado com a força do amor, que também é igual ao conhecimento que é gerado da/pela mente.

O conhecimento gerado pela mente, como já afirmamos, é igual a mente que o gerou. Ele, assim, é como um filho da mente, pois não existia antes dela dedicar-se a encontrá-lo. Em relação ao amor, esse é antecedente ao conhecimento, pois foi necessário aquilo que Agostinho chama de “desejo” para que a mente pudesse iniciar a busca de seu saber sobre si. Ao final do livro IX (Trind.) o filósofo faz uma breve compilação do que foi exposto até então. A mente, movida por seu amor (também tomada como vontade, isto é, desejo de saber algo que não sabe) vislumbra a si como um reflexo e é capaz de produzir o conhecimento de si. Esse conhecimento é prole da mente. Daí forma-se o primeiro reflexo da imagem trinitária no ser humano: mens, notitia e amor.

Apesar dessa descoberta, Agostinho ainda precisa esclarecer alguns pontos fundamentais. Um deles, se refere a questão do amor ao desconhecido. Se não é possível amar aquilo que é desconhecido, então como o conhecimento faz parte da trindade humana naqueles que ainda buscam esse conhecimento? Em outras palavras, o que amam aqueles que ainda não se conhecem? Agostinho considera que em alguns casos é possível, não amar o desconhecido, mas amar aquilo que sabemos, mesmo sabendo pouco, sobre algo: “por exemplo, quem despenderia cuidados e esforços para aprender retórica, se não soubesse que se trata da arte do bem falar?”[6] Oliveira ( 1984) afirma que essa discussão já está presente nos diálogos platônicos O Banquete e o Mênon, pois o paradoxo do conhecimento é que se buscamos algo que é ignorado, este não pode ser ignorado completamente, pois se fosse ninguém o buscaria.

No que se refere ao conhecimento de coisas externas (que estão fora do indivíduo), não é possível amar ou desejar conhecer algo que já não se conheça. Por isso, pode acontecer de sabermos, de antemão, algumas características do objeto conhecido e isso nos impele a conhecermos melhor. A questão que Agostinho persegue aí é: O que a alma procura quando busca a si? Pois se já não se conhecesse, não iria se procurar. Ele aponta algumas alternativas: a alma pode não amar a si, mas amar a imagem que faz de si, pode amar a felicidade de conhecer-se, mas não o conhecer da própria alma. O filósofo chega à conclusão então que a alma conhece a si, senão, nem sequer iria se procurar. Além disso, como pode a alma conhecer objetos exteriores e ignorar-se se ela está presente a si mesma? Não há nada mais presente a alma do que sua própria existência. Daí, Agostinho conclui que a alma já se conhece.

A alma também não pode se conhecer de forma parcial, conforme o argumento abaixo:

Finalmente, quando a alma procura conhecer-se, já sabe que é alma; caso contrário, ignoraria se se procura a si mesma e correria o risco de procurar uma coisa por outra. Haveria a possibilidade de que ela não fosse alma e assim, ao procurar conhecer-se, não procurasse a si mesma? Ora, a alma ao investigar o que seja a alma, fica sabendo ao mesmo tempo em que se procura e por isso fica conhecendo que ela mesma é alma. Se, pois, sabe em si mesma que é alma, e é alma inteira, conclui-se que se conhece totalmente (Trind. X, iv, 6). [7]

Nesse caso, a alma descobre-se na própria atividade de buscar a si. O que ela é, torna o movimento da busca e do conhecer serem possíveis. Ao imaginar que a alma não saiba o que ela é, então apenas se buscaria. Mas, nesse caso, o que ela buscaria se não sabe o que é? Se isso acontece, ela poderia se confundir com outras coisas. Por isso, ela já deve saber aquilo que procura, e se sabe, então a alma não se procura.

Ora, a conclusão de que a alma não se procura pois já tem o conhecimento de si, faz com que Agostinho estabeleça a distinção entre conhecer e pensar (nosse e cogitare[8]). A alma, como algo que está presente a si, já conhece o que ela mesma é. No entanto, as vezes esquece o que é e age ou cumpre o seu papel de forma equivocada. Assim, quando a alma esquece o que ela mesma é, ela também se desvia de sua função, que é buscar e se aproximar cada vez mais do Ser, tornando-se, desse modo, semelhante a ele.

Pois a alma algumas coisas intrinsecamente belas numa natureza superior, que é Deus. E quando deveria estar permanecendo no gozo desse bem, ao querer atribuí-lo a si mesma não quer fazer-se semelhante a Deus, com o auxílio de Deus, mas ser o que ela é por si própria, afastando-se dele e resvalando. Firma-se cada vez menos, porque se ilude, pensando subir cada vez mais alto. Não se basta a si mesma, e nem lhe basta bem algum, ao se afastar daquele que unicamente se basta. Por isso devido à sua pobreza e às dificuldades sem conta, entrega-se excessivamente às suas próprias atividades e aos prazeres misturados a inquietações insaciáveis que suscita. E então, pelo ávido desejo de adquirir conhecimentos do mundo exterior, cujas delícias ama e teme perder, caso não as retiver com muito cuidado, perde a tranquilidade, e tanto menos pensa em si mesma quanto mais segura está de que não pode perder-se a si mesma. (Só se preocupa com o que pode perder, não consigo mesma).

Assim são coisas diferentes: não conhecer e não pensar em si mesma (Trind. X, v, 7).

Não é possível pensar, no presente, em todas as coisas que já conhecemos. Esses conhecimentos estão no ser humano mesmo que ele não esteja pensando presentemente neles. É aí que surge a memória, como um vasto “palácio”, de muitos quartos e salas. Às vezes, para lembrar, é necessário muito esforço, averiguar cada cômodo de sua imensidão. Mas isso não significa não “saber”, mas sim, não “pensar”. A memória entra aqui como a primeira faculdade do novo reflexo da Trindade no ser humano.

A distinção entre conhecer e pensar é importante no processo de definição do que seja a alma humana. Levada por seu amor (desejo) as coisas materiais, a alma se confunde com tais realidades, acreditando ser ela algo material. Mas o engano está no seu pensamento e não no seu conhecimento. Nas palavras de Oliveira:

Vemos Agostinho assinalar aqui a origem dos principais erros psicológicos. Eis as questões que os atormentavam: Como é possível ser doido, isto é, não mais saber que existe? Como é possível não saber que se sabe? Se a alma é, por essência, a presença a si mesma, como pode ela não estar presente à sua própria presença? De certa forma, estar fora de si a ponto de se tomar por outra coisa que não é? (1984, p. 641).

Agostinho retoma a discussão sobre a substância da alma, recordando o que alguns pensadores afirmaram a respeito dela. Considerar a alma corporal ou incorporal é uma discussão que permanece ainda em nossos dias. No problema mente-cérebro[9], que encontra-se presente em toda história da filosofia, já foi cogitado, como relembra Agostinho, que a alma poderia ser um órgão corporal (como o cérebro ou o coração), poderia estar diluída nos incontáveis átomos que compõe o corpo humano ou sendo ela o próprio corpo humano. As teorias a esse respeito são longas, complexas e variadas. Agostinho visa solucionar o problema ao propor que a alma já sabe o que ela é. Sua tarefa, portanto, é se despir das imagens corporais que colocou em excesso na frente do seu conhecimento. Retirar essa densa nuvem de imagens corporais em que se acreditou é a possibilidade de a alma vislumbrar novamente o que ela mesma é. O “autoconhecimento” (conhece-te a ti mesmo), preceito filosófico desde a época de Sócrates, não quer dizer que a alma tenha que partir por uma busca de conhecimento sobre si, mas significa, em Agostinho, o despojamento do que está em excesso e realizar a purificação dela (Oliveira, 1984).

Ainda que alguns filósofos da antiguidade pensassem que a alma poderia ser o fogo, o ar ou alguma parte do corpo, todos, porém teriam que admitir que:

Do mesmo modo toda alma humana sabe que quer. Sabe igualmente que para querer é preciso ser, é preciso viver. Mas desta vez ainda, ele refere o ato de querer ao objeto que a vontade lhe faz querer. A alma sabe igualmente que se recorda, mas aí ainda, ela sabe que para se recordar é preciso ser, é preciso viver. Mas até a memória nós referimos ao que nós recordamos graças a ela.

Portanto, dessas três faculdades (a memória, a inteligência e a vontade), duas delas: a memória e a inteligência contêm o conhecimento e a ciência de muitas coisas. E a vontade está lá para nos fazer gozar e usar dessas coisas (Trind. X, x, 13).[10]

Se a alma fosse qualquer desses corpos que pensa ser, ela não os representaria por modo figurativo em sua memória. Nesse caso, a alma tem uma imagem do que seja cada um desses corpos, mas ela não afigura o “lembrar”, o “querer” e o “entender”. Pelo contrário, ela os sente numa presença real e operante. Quando cito as palavras “operante”, quero dizer que a memória não vê a si como um corpo, mas que ela própria é mobilizada ou movimentada quando quer lembrar-se de algo.

Assim, a alma quando quer recordar-se de algo, também movimenta as outras duas faculdades. Quem quer se recordar, deseja e para recordar-se é necessário que a alma vislumbre o que existe dentro de sua própria memória. Ora, a “visão da alma” é a própria inteligência, que é colocada em movimento pela vontade. Assim opera a mente, com a contribuição dessas três faculdades: voluntas, memória e inteligência.

1.    MEMÓRIA, TEMPO E CONHECIMENTO

Pensar em conhecimento e tempo, distinção entre Ser e criatura em Agostinho torna a discussão sobre a memória imprescindível. Ela é a base na argumentação de uma teoria do conhecimento alicerçada na reminiscência[11] e de uma teoria sobre o tempo subjetivo, isto é, uma percepção do ser humano de se entender como algo temporal.

Ao tentar descrever melhor o papel do reflexo trinitário no homem (memória, inteligência e vontade), no livro XI do De Trinitate, Agostinho analisa a tríade da alma e uma certa tríade “externa”, que envolve os sentidos do corpo e os objetos que existem independente do indivíduo. Nos interessa aqui seu raciocínio sobre a trindade “interna”. Essa última tríade humana pode ser compreendida como memória, visão interior e vontade. A visão interior é a inteligência e se desloca pela memória conforme a vontade orienta.

No De Magistro, diálogo que Agostinho discute com seu filho, Adeodato, a origem da linguagem, mostra como a inteligência, enquanto “visão interior” pode operar na mente humana. Nesse escrito, apresenta-se a incapacidade das palavras em ensinar coisas novas. Pois já é preciso que a pessoa tenha um conhecimento prévio dos significados dessas palavras explicativas, para entender o significado de novas palavras. Nesse caso, para ensinar algo novo, é necessário mostrar ao aprendente o que se quer ensinar. Podemos fazer isso com um objeto físico. Para ensinar o que é uma cadeira, posso apontar para um objeto e ensinar o seu nome a alguém. Mas é pela própria visão que se aprende.

Todo aprender e todo conhecimento se dá, assim reza a tese principal do diálogo De Magistro, agora desdobrada, sem as palavras. Muito pelo contrário, foram os objetos que ensinaram as palavras. Supondo-se que a palavra “cabeça” me fosse desconhecida, palavra essa que alguém utiliza numa conversa: nesse caso, aprendo a palavra pelo fato de que apreendo qual objeto conhecido por mim ela designa. A palavra “cabeça” só pode então ser introduzida como designação quando parte do corpo intencionada me é conhecida; posso apreender o objeto intencionado através de uma palavra tão pouco quanto as palavras, para mim, podem abrir o fato da sua função de designação (Horn. 2008, p. 60).

Mas e em relação aos conhecimentos que não dizem respeito a objetos físicos? Como ensinar um conceito, por exemplo, se não podemos “apontar” para onde ele está ou mostrá-lo?

Aprendemos na medida exata em que o objeto a ser aprendido mostra-se em nossa presença gerando assim uma visão exterior (do corpo) ou uma visão interior, da mente (uma lembrança). Desta forma, Agostinho define o sentido de mestre como sendo aquele que mostra a presença da coisa mesma aos sentidos corporais ou a mente do discípulo. O único que pode apresentar a realidade inteligível ao homem interior é Deus, num processo de iluminação das ideias, ou das razões seminais de tudo que é (Costa, 2019, p. 104).

Se o mestre “exterior” pode apontar para os objetos corpóreos e fazer aprender por esse gesto, é um mestre “interior” quem pode “apontar” para a visão da alma vislumbrar dentro de si as realidades incorpóreas.

O mestre interior ilumina o conhecimento que já está presente na memória, mas em alguma região ainda obscura. Iluminado o conhecimento, a inteligência da alma pode finalmente ver por si aquilo que precisava aprender. Assim, apesar do “mestre interior” ter um papel importante na teoria do conhecimento de Agostinho, isso não exime o ser humano de seu próprio esforço e vontade em aprender. É necessária uma boa vontade, que conduz o indivíduo a buscar tais conhecimentos e não se deter por muito tempo nos objetos temporais, visto ser impossível travar conhecimento universal sobre algo que se degenera constantemente. A vontade, assim, também cumpre um papel importante nessa busca. Ela direciona o olhar para dentro da memória e o faz procurar ali o que precisa vislumbrar e aprender.[12]

Sobre as muitas coisas que entendemos consultamos não aquelas cujas palavras soam no exterior, mas a verdade que interiormente preside a própria mente, movidos talvez pelas palavras para que consultemos. E quem é consultado ensina, o qual é Cristo que, como se diz, habita no homem interior, isto é, a virtude incomutável de Deus e a eterna sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada alma o quanto esta possa abranger em função da sua própria boa ou má vontade (mag, X,38)[13].

A memória, no sentido do aprender, tem a função de abrigo do conhecimento, que se desvela na medida em que o ser humano busca encontrá-lo, iluminado pelo auxílio divino.

A memória tem a função de guardar conhecimentos imateriais como retém as imagens exteriores, que advém dos sentidos. É dessa premissa que Agostinho constata a existência do tempo. Tal problema é apresentado no livro XI das Confissões da seguinte forma:

De que modo existem esses dois tempos – passado e futuro –, uma vez que o passado não mais existe e o futuro ainda não existe? E quanto ao presente, se permanecesse sempre presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual deixará de existir? Daí não podermos falar verdadeiramente da existência do tempo, senão enquanto tende a não existir (conf. XI, xiv, 17).[14]

O movimento do tempo é, assim, o próprio problema de sua existência. Se o passado não mais existe, o futuro ainda não existe e o presente tende a desaparecer no instante em que se realiza, como assegurar que ele é algo real? Como saber que assim como as demais criaturas que partilham de uma parte do ser, ele possui uma existência em dado momento? É necessário lembrar que Agostinho discorre sobre o tempo não como algo objetivo, que envelhece e degenera toda criatura, mas sim enquanto uma percepção do ser humano de que ele existe. O tempo passa também para os seres da natureza, mas esses não o percebem, não tem consciência de que são propriamente temporais.

Desse problema, Agostinho aponta que torna-se sem sentido falarmos de um tempo longo ou curto e que torna-se impossível medir o tempo. Afinal, não é possível medi-lo quando já passou, pois não mais existe. Também não podemos medi-lo quando ainda não passou, pois se é futuro, não veio a existir. E também não podemos medir no presente, pois ele é um instante que tende sempre a deixar de existir (conf. XI, xv, 18).

A solução do problema do tempo é apresentada no capítulo 18 do mesmo livro XI, no qual Agostinho recorre a um exemplo prático:

Vejo a aurora e posso predizer que o sol está para surgir. O fenômeno que observo está presente, o que vejo é futuro. Não é futuro o sol, que já existe, mas sim o seu surgimento, que ainda não se realizou. Todavia, se eu não tivesse no espírito uma imagem desse surgimento, como tenho no momento em que falo, não o poderia prever. No entanto, nem essa aurora que vejo, e que também precede o nascer do sol, nem a imagem dela são o próprio nascimento do sol (conf. XI, XVIII, 24).[15]

Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera (conf. XI, xx, 26).[16]

Assim, é possível concluir que a consciência da existência do tempo tornar-se viável devido a faculdade da memória, presente na compreensão da alma enquanto uma tríade humana. A memória concede ao ser humano o conhecimento de compreender a si e ao mundo que o cerca como seres que estão no tempo. A ideia do tempo que se fundamenta a partir da memória é importante para compreender a diferença entre Ser e Criatura. Enquanto a criatura está no tempo, o Ser o precede, em um contínuo instante chamado de eternidade.

CONCLUSÃO

Conhecimento e tempo estão intimamente ligados pela faculdade de memória. A capacidade natural que todo ser humano possui através de sua alma superior é a parte humana que se apresenta como “imagem e semelhança” ao Ser. Ao ser reflexo da Trindade, a alma exerce uma função primordial na busca pelo conhecimento, pois Agostinho compreende que este já está presente no ser humano, mas que precisa ser desvelado. Daí falamos de uma “teoria da reminiscência”, mas que se difere do pensamento de Platão. Agostinho não admite uma pré-existência da alma em relação ao corpo. Para ele, a alma humana traz consigo a verdade, mas acaba por esquecer disso. Ao voltar-se por essa busca novamente, o Mestre interior auxilia “iluminando” o que estava obscuro na memória. A memória, aqui, faz o papel de “guardiã” da verdade, do conhecimento conceitual sempiterno e, também, das imagens momentâneas do mundo contingente, que carece de uma permanência atemporal.

Com a capacidade de reter em si a verdade, mas também as imagens-reflexos dos seres descontínuos, a memória também concede ao ser humano a possibilidade de compreender-se como criatura que se degrada com o tempo. Pois é através dela que se acessa o passado e que se faz projeções de um futuro. Lembrar é a possibilidade de o humano compreender sua identidade (por aquilo que já viveu) e projetar-se, com sua história, na vida futura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AGUSTÍN, San. Las confesiones. Edicion Bilingue. Madrid: Biblioteca de autores cristianos (BAC), 2019. (coleção obras completas de San Agustín).

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COSTA, Daiane Rodrigues. Autoformação como Cultivo da Vontade: uma perspectiva a partir do homem interior em Agostinho de Hipona. 2019. Dissertação (mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2019.. Disponível em: https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/BRCRIS_2a2fce7c662fd62fc68d8f4dd00f3834 Acesso em 17 de Nov. de 2023.

HORN, Christoph. Agostinho: conhecimento, linguagem e ética.  Trad. de Roberto HofmeisterPich. Porto Alegre: Edipuc, 2008.

OLIVEIRA, Nair de Assis. Notas complementares. In: A Trindade. São Paulo: Paulus, 1984. p. 561-723.

SÁEZ, FermínGoñi-;USTÁRROZ; Javier Tirapu. El problema mente-cerebro (I): fundamentos ontoepistemológicos. RevNeuro. 2016; 63: 130-9. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/ibc-154997 . Acesso em: 15 de Mai. 2021.

 

 

Daiane Rodrigues Costa

Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia/UNISINOS, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação/UPF, graduada em Filosofia/ UPF. Desenvolve pesquisas relacionadas à formação humana, filosofia da educação e filosofia na Idade Média, com ênfase na obra filosófica de Agostinho de Hipona, sobretudo em sua ética e metafísica.

 

 

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[1]Verusque ac summus est solus Deus”.

[2]Amans quippe ad amorem refertur, et amor ad amantem. Amans enim aliquo amore amat, et amor alicuius amantis est (Trind. IX, ii, 2).

[3]Sicut autem duo quaedam sunt, mens et amor eius, cum se amat; ita quaedam duo sunt, mens et notitiaeius, cum se novit. Igituripsa mens et amor et notitiaeius , tria quaedam sunt, et haec tria unum sunt; et cum perfecta sunt, aequalia sunt (Trind. IX, iv, 4).

[4] Agostinho cita dois exemplos esclarecedores em relação a essa questão. Os reproduzo abaixo: “Será, então, que acontece com essas três realidade: mente, amor e conhecimento, o mesmo que acontece com o vinho, a água e o mel, quando se convertem em uma única bebida? Cada um dos líquidos está no todo e no entanto permanecem três coisas, pois cada gota dessa bebida contém os três. [...] Tal conclusão valeria para explicar a copresença da mente, seu conhecimento e seu amor? Não, porque a água, o vinho e o mel não pertencem a uma única substância [...]” (Trind. IX, iv, 7). “Se de um mesmo bloco de ouro se fizessem três anéis semelhantes, eles, embora entrelaçados, diriam relação recíproca só por serem semelhantes. [...] Mas se forem fundidos numa só massa, cada anel fica derretido no todo da massa. Cessaria a trindade, a qual deixaria de existir” (Trind. IX, iv, 7).

Num ergo sicutexvino et aqua et melle uma fitpotio, et singula per totum sunt, et tamen tria sunt (nullaenimpars est potionis, quae non habeathaec tria; non enimiuncta, velut si aqua et oleum essent, sedomninocommixta sunt; et substantiae sunt omnes, et totusilleliquor uma quaedam est extribusconfectasubstantia); tale aliquidarbritandum est esse simulhaec tria, mentem, amorem, notitiam? Sed non uniussubstantiae sunt, aqua, vinun, et mel, quamvisexeorumcommixtione fiat uma substantiapotiones. (trind. IX, iv, 7). “Quemadmodum si ex uma eodenque auro três annulos símiles facias, quamvis conexos sibi, referuntur ad invicem, quod símiles sunt; omnis enim similis alicui símiles est; et trinitasannulorum est, et unumaurum: at si misceantursibi, et per totamsinguli massam suam conspergantur, intercidetillatrinitas, omnino non erit; ac non solumunumaurumdicetur, sicut in illis tribusanulisdicebatur, sed iam nullaaurea tria” (Trind. IX, iv, 7).

[5]Ex quo colligitur, quia cum se mens ipsanovitatqueapprobat, sic est aedemnotitia verbum eius, ut ei sit par omnino et aequale, atqueidentidem: quianequeinferiorisessentiaenotitia est, sicutcorporis; neque superiores, sicut Dei. Et cum  habeatnotitiasimilitudinem ad aequalem, qua mens ipsa, quaenovit, est nota. Ideoque et imago et verbum est, quia de illaexprimitur, cum cognoscendo eidemcoaequatur, et est gignentiaequale quod genitum est (Trind. IX, xi, 16).

[6]Quis enimsciendae, verbi gratia, rhetoricaeullam curam et operam impederet, nisi ante scireteamdicendi esse scientiam (Trind. X, i, 1).

[7]Postremo cum se nosse mens quaerit, mentem se esse iamnovit; alioquimutrum se quaeratignorat, et aliud pro alio forsitanquaerat. Fieri enimpotest ut ipsa non sit mens, atque ita dum mentem nossequaerit, non se ipsamquaerat. Quapropter, quoniamcum quaerit mens quid sit mens, novit quod se quaerat, profectonovit quod ipsasit mens. Porro si hoc in se novit quod mens est, et tota mens est, totam se novit (Trind. X, iv, 6).

[8] Antes mesmo de Descartes afirmar sua verdade indubitável pela fórmula “cogito, ergo sum”, Agostinho já apresentara, no início da era Cristã um pensamento semelhante e que se convencionou chamar de “cogito agostiniano” (Horn, 2008). Se o pensar pode conduzir a enganos, algo torna-se certo: a existência de si. O “enganar” pressupõe um “eu” que se engana. Daí a semelhança de raciocínio com o cogito cartesiano.

[9] Goñi-Sáez e Tirapu-Ustárroz (2016) mostram que o problema mente-cérebro acompanha a história da filosofia, desde Platão até os dias atuais. Essa questão consiste em responder como a mente (ou alma) se relaciona com o corpo. Assim, como a alma, sendo incorpórea (hipótese) pode interagir com o corpo material? A discussão atual sobre esse tema tem umnovo” marco, o chamado “giro linguístico” do século XX: “Si bien desde un punto de vista filosófico el siglo XX puede ser definido –con los evidentes sesgos que tal reducción implica– como el siglo del lenguaje (giro lingüístico) [3], gran parte de la producción filosófica del siglo XXI dirige su discurso reflexivo al cerebro y a la mente [4]. No en vano la compleja cuestión ha generado una producción intelectual extraordinariamente fecunda –desde um punto de vista cuantitativo– y heterogénea –desde un punto de vista cualitativo–, cuya consecuencia epistémica más notoria ha sido la emergencia de un novedoso marco de reflexión: filosofía de la mente [5]. En tan multidisciplinar área de estudio se inserta un ingente número de especulaciones (algunas de ellas con innegable orientación científica), cuya temática pivota velis nolis sobre la conjunción mente y cerebro y se inserta en los vacíos cognoscitivos que se advierten al explorar los recovecos conceptuales de la psicología clínica, la neurociencia, la neuropsiquiatría, etc. Algunas de las teorías elaboradas desde la filosofía de la mente se centran en la naturaleza de lo mental, la interacción mente-cerebro, el estatus epistémico de las ciencias de la ‘salud mental’, la validez plus validación de la semiología y nosología neuropsiquiátricas, las reflexiones filosóficas sobre las técnicas de neuroimagen, etc.” (2016, p. 130-131).

[10] Item vele se sciunt, neque hoc possequemquam qui non sit et qui non vivat, paritersciunt: itemqueipsamvoluntatemreferunt ad aliquid, quodeavoluntatevolunt. Meminisseetiam se sciunt; simulquesciuntquodnemomeminisset, nisiesset ac viveret: sed et ipsam memoriam ad aliquid referimos, quodeameminimus. Duobusigiturhorumtrium, memoria et intellegentia, multarumrerumnotitiaatquescientiacontinentur; voluntas autem adest, per quamfruamur eis velutamur. Fruimurenimcognitis, in quibus voluntas ipsis propter se ipsadelectataconquiescit(Trind. X, x, 13).

[11] Se faz necessário lembrar aqui, que reminiscência para Agostinho não tem o mesmo sentido que a teoria da reminiscência de Platão. Agostinho, como cristão, não considera que a alma tenha uma existência anterior ao corpo. Embora o filósofo grego, juntamente com os pensadores neoplatônicos terem formado uma das bases filosóficas da formação de Agostinho, é preciso realizar as devidas distinções entre tais pensadores.

[12] Como afirma Horn (2008) palavra nenhuma tem o poder de ensinar algo plenamente novo. A linguagem tem a função de relembrar, de despertar algo interior, que produz propriamente o conhecimento. O “exterior” chama, desperta a consciência para algo que já está dentro de si.

[13]De universis autem, quaeintellegimus, non loquentem, quipersonatforis, sedintusipsi menti praesidentemconsulimusveritatem, verbisfortasse ut consulamusadmoniti. Ille autem, qui consulitur, docet, qui in interiore homine habitare dictus est Christus, id est incommutabilis dei atque sempiterna sapientia. Quam quidem omnis rationalis anima sonsulit, sed tantum cuique panditur, quantum caperepropterpropriamsive malam sivebonamvoluntatempotest (mag, X,38).

[14]fidentertamen dico scire me quod, si nihilpraeteriret, non essetpraeteritum tempus, et si nihiladveniret, non essetfuturum tempus, et si nihilesset, non essetpraesens tempus. duo ergo illatempora, praeteritum et futurum, quomodo sunt, quando et praeteritum iam non est et futurumnondum est? praesens autem si semperessetpraesensnec in praeteritumtransiret, non iam esset tempus, sedaeternitas. si ergo praesens, ut tempus sit, ideofit, quia in praeteritumtransit, quomodo et hoc esse dicimus, cui causa, ut sit, illa est, quia non erit, ut scilicet non veredicamus tempus esse, nisiquiatendit non esse? (conf. XI, xiv, 17).

[15]Loquaturmihialiquod exemplum tanta rerumnumerositas. intueor auroram, oriturum solem praenuntio. quod intueor, praesens est, quod praenuntio, futurum. non sol futurus, qui iam est, sedortuseius, quinondum est; tamenetiamortum ipsum nisi animo imaginarer, sicut modo cum id loquor, non eum possem praedicere. sednecilla aurora quam in caelovideosolisortus est, quamviseumpraecedat, necillaimaginatio in animo meo (conf. XI, XVIII, 24).

[16]Quod autem nunc liquet et claret, nec futura sunt necpraeterita, necpropriedicitur, 'tempora sunt tria, praeteritum, praesens, et futurum,' sedfortassepropriediceretur, 'tempora sunt tria, praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de futuris.' sunt enimhaec in anima tria quaedam et alibiea non video, praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibuscontuitus, praesens de futurisexpectatio. sihaecpermittimur dicere, tria temporavideofateorque, tria sunt. dicaturetiam, 'tempora sunt tria, praeteritum, praesens, et futurum,' sicutabutiturconsuetudo; (conf. XI, xx, 26).