A suposta crítica de Leibniz e Espinosa à ‘ideia-quadro’ cartesiana
Leibniz’s and Spinoza’s supposed critique of the Cartesian
‘picture-idea’
William de Jesus Teixeira
UnB – Universidade de Brasília
Recebido: 06/09/2023
Received: 06/09/2023
Aprovado: 10/11/2023
Approved: 10/11/2023
Publicado: 18/11/2023
Published: 18/11/2023
RESUMO
O objetivo desse artigo é tentar responder à crítica feita por alguns comentadores de Leibniz e Espinosa à ‘ideia-quadro’ cartesiana. Na primeira parte do artigo, apresento os argumentos utilizados pelos comentadores de Leibniz e Espinosa para criticar a ideia-quadro cartesiana. Na segunda parte, discuto as razões pelas quais julgo ser possível rejeitar a crítica desses comentadores à ideia-quadro. Em minha visão, três elementos são fundamentais para a responder à crítica dos comentadores de Leibniz e Espinosa: a correta compreensão da definição de idea tanquam rerum imagines, a teoria cartesiana da ‘dessemelhança causal’ entre o objeto da percepção e as sensações por ele ocasionadas e o inatismo de Descartes.
Palavras-Chave: Leibniz. Espinosa. Descartes. Ideia-quadro. Teoria da percepção.
ABSTRACT
This
paper’s aim is to try to answer the critique made by some Leibniz’s and
Spinoza’s scholars against Descartes’s ‘idea-picture’. In the first part of
this paper, I put forward Leibniz’s and Spinoza’s scholars arguments issued in
order to criticize the Cartesian idea-picture. In the second part, I expose the
reasons why I believe that it is possible to reject the critique of these
scholars against the idea-picture. In my view, there are three fundamental
elements which support my thesis: the sound comprehension of the expression
idea tanquam rerum imagines, the Cartesian theory of ‘causal dissimilarity’ between
the object of perception and the sensations brought about by it, and Descartes’
theory of innateness.
Keywords: Leibniz. Spinoza. Descartes. Idea-picture.
Theory of perception.
Há na literatura secundária concernente à filosofia de Leibniz uma opinião, segundo a qual o filósofo alemão teria criticado Descartes por considerar que ele defendeu uma teoria das ideias como imitações pictóricas, as famosas ‘ideias-quadro’. As ideias-quadro são assim designadas pois haveria uma relação mimética entre elas e os objetos ou referentes do ato da percepção dos quais elas seriam a representação mental. Segundo Kontic, fazendo-se o porta-voz da interpretação cartesiana de Leibniz, “se a ideia [para Descartes] é uma imagem, ela é efetivamente uma cópia, uma imitação[1] daquilo que lhe é exterior” (Kontic, 2014, p. 20). Na página seguinte, dando prosseguimento à interpretação leibniziana, Kontic acrescenta que, segundo Descartes, “a ideia [...] é, tal como uma imagem ou um quadro presente na mente, puramente passiva” (Kontic, 2014, p. 20). Kontic, de fato, não estaria defendendo uma tese sem fundamento, visto que seria justamente para se contrapor a essa concepção mimética da representação que Leibniz teria concebido a percepção como uma ‘espécie’ que estaria incluída no ‘gênero’ das relações ‘expressivas’. Assim, segundo o filósofo alemão, como explica Kontic,
[...] a percepção, por ser um modo de expressão, prescinde, rigorosamente falando, de uma relação de imitação ou cópia entre a coisa percebida e a representação que formamos dela; [no entanto,] assim como em todas as relações expressivas, a percepção mantém uma relação regrada com aquilo que ela exprime, independentemente de haver ou não uma imagem em comum (Kontic, 2017, p. 131).
Em carta enviada a Arnauld, Leibniz define sua noção técnica de ‘expressão’ da seguinte maneira: “Uma coisa exprime outra (em minha linguagem) quando há uma relação constante e regrada entre o que pode ser dito de um e [o que pode ser dito] do outro” (Leibniz, 1974, p. 844). Em seu curto texto O que é ideia, Leibniz também explica o que entende por ‘expressão’: “Diz-se que algo exprime alguma [outra] coisa quando tem compleições [habitudines] que correspondem às compleições da coisa que há de ser expressa” (Leibniz, 2015, p. 59). Na sequência dessa mesma passagem, Leibniz cita alguns exemplos para ilustrar a ampla gama de aplicações de seu conceito de expressão nas mais diversas áreas[2]. Em todos os casos, a intenção de Leibniz é tornar manifesto que, entre os elementos envolvidos na expressão, não é preciso haver nenhuma semelhança, ou seja, trata-se de elementos que, de maneira totalmente distinta, se representam ou se significam recíproca e mutuamente. Nas palavras do filósofo alemão: “[...] fica evidente não ser necessário àquilo que exprime que ele seja semelhante à coisa exprimida [...]” (Leibniz, 2015, p. 59). Portanto, a relação expressiva se articula entre elementos totalmente distintos em seu ‘modo de apresentação’, como diria Gottlob Frege, referindo-se, representando ou expressando, entretanto, exatamente a mesma coisa, tal a ‘estrela da manhã’, a ‘estrela da tarde’ e vênus.
Situando as discussões acima no âmbito da temática desse artigo, isto é, explicando a ocorrência da percepção de maneira ‘expressiva’, Leibniz expõe, novamente em carta a Arnauld, a razão de podermos prescindir de imagens miméticas ou ideias-quadro dos objetos nos atos cognitivos:
[...] Na percepção natural e no sentimento [sentiment] basta que aquilo que é divisível e material e se encontra disperso em diversos seres seja expresso ou representado em um só ser indivisível ou em um ser que é dotado de uma verdadeira unidade. Não se pode duvidar da possibilidade de uma bela representação em uma única, visto que nossa alma nos fornece um exemplo disso (Leibniz, 1974, p. 844).
Na sequência do mesmo texto, Leibniz continua explorando seu modelo de percepção expressiva:
Ora, visto que nós não nos apercebemos dos outros corpos senão pela relação [rapport] que eles estabelecem com o nosso, eu tenho razão em dizer que a alma exprime melhor aquilo que pertence ao nosso corpo; assim, conhecemos os satélites de Saturno ou Júpiter apenas conforme os movimentos que são produzidos [por eles] em nossos olhos[3] (Leibniz, 1974, p. 844).
No parágrafo 15, do capítulo 8, do livro II dos Novos ensaios sobre o entendimento humano, pressupondo novamente uma relação expressiva entre elementos totalmente diversos, Leibniz defende que “é verdade que [a sensação de] dor não se assemelha aos movimentos de um alfinete, mas ela pode certamente se assemelhar aos movimentos que esse alfinete causa em nosso corpo e representar esses movimentos na alma, como eu de modo algum duvido que se faça” (Leibniz, 1974, p. 232). Nas Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as ideias (1684), Leibniz teria, pela primeira vez, apresentado sua concepção expressiva de percepção (porém, nessa ocasião, sem usar o termo ‘expressar’, ainda que o sentido das citações anteriores seja mantido). Eis o que ele diz:
[...] Ao percebermos as cores ou odores, […] não percebemos nenhuma outra coisa senão as figuras e os movimentos, mas tão complexos e tão pequenos que nosso espírito, em seu estado presente, não é capaz de os distinguir um por um; por isso, ele não percebe que sua apercepção é somente composta de figuras e de percepções de movimentos minúsculos (Leibniz, 1974, p. 81).
Em vista das passagens citadas acima, parece manifesto em todos esses exemplos que na percepção expressiva estão envolvidos certos elementos corpóreos-materiais, de natureza mecânico-geométricos (movimentos, figuras), por um lado, e certas representações de qualidades sensíveis (cor, sons) e sensações (dor), por outro. Apesar de serem elementos ontologicamente distintos e sem nenhuma semelhança entre si, estabelece-se uma relação expressiva entre eles, pois, para Leibniz, há uma correspondência ‘constante e regrada’ entre eles[4]. Em outras palavras, pode-se dizer sinteticamente que, através de sua percepção expressiva, Leibniz reduziu as qualidades sensíveis ou secundárias às mecânico-geométricas ou primárias[5]. Seria, então, dessa maneira que, conforme a leitura de Kontic, Leibniz teria não somente criticado a ideia-quadro cartesiana, mas também proposto, através de sua ‘teoria da expressão’, um modelo alternativo para explicar a representação do mundo exterior à mente que torna desnecessária a postulação das ideias-quadro.
Parece que Espinosa teria igualmente criticado Descartes por defender a noção de ideia-quadro. Com efeito, no escólio da proposição 48 da Segunda Parte da Ética, Espinosa sustenta, aparentemente em oposição a Descartes, que “[...] por ideias compreendo não as imagens, [...] mas os conceitos do pensamento” (Espinosa, 2007, p. 147). Nesse sentido, como afirma o filósofo holandês no escólio da proposição 43 da Segunda Parte da Ética, a ideia não é “[...] algo mudo, como uma pintura numa tela”, mas, ao contrário, “[...] um modo de pensar, ou seja, o próprio ato de compreender” (Espinosa, 2007, p. 137). Dessa maneira, como explicado no escólio da proposição 49 da Segunda Parte da Ética, aqueles que “vêem as ideias [...] como pinturas mudas em um tela [...]” são “[...] aqueles que julgam que as ideias consistem nas imagens que em nós se formam pelo encontro dos corpos” e, por isso, acreditam que “[...] as ideias das coisas das quais não podemos formar nenhuma imagem que se lhes assemelhe não são ideias [...]” (Espinosa, 2007, p. 149).
Essa suposição de que Espinosa teria igualmente criticado
a ideia-quadro de Descartes encontra respaldo na interpretação do professor
Marcos Gleizer, o qual, em seu artigo intitulado Espinosa e a ideia-quadro
cartesiana afirma que “[...] ao tomar a ideia-quadro como paradigma
da representação, Descartes é conduzido a pensar a relação entre a ideia e seu
objeto segundo o modelo cópia/original, com toda a preeminência ontológica que
este modelo atribui, segundo ele, ao original em relação à cópia” (Gleizer, 1998,
p. 77). O ‘original’, na leitura de Gleizer/Espinosa, seria as realidades
materiais e a cópia seria a ideia na mente. Outra comentadora que endossa essa
opinião é Daisie Radner, que em seu artigo Spinoza’s theory of ideas,
sustenta que “Descartes seems to consider representation as a kind of
resemblance or likeness between an idea and its object. An idea represents its object by
resembling it in some way” (Radner, 1971, p. 345).
Essa crítica dos comentadores de Espinosa e Leibniz à ‘ideia-quadro’ não é de modo algum despropositada. Ao contrário, ela teria o seu fundamento na suposta “[...] definição canônica de ideia, formulada por Descartes na 3ª Meditação [...]” (Landim, 2019, p. 23). Trata-se da definição de idea tanquam rerum imagines, isto é, “ideia como imagens das coisas”. Eis o que Descartes afirma na referida passagem: “Entre meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e somente a estes convém o nome de ideia[6]” (Descartes, 1996, AT[7] 7, p. 37). Ou seja, o problema é decorrente do fato de Descartes ter empregado o equívoco termo ‘imagens’ (imagines) para definir a noção de ‘ideia’ na Terceira Meditação. Por isso, os comentadores de Leibniz e Espinosa julgam estarem justificados em atribuir a ‘ideia-quadro’ à teoria da percepção de Descartes.
Todavia, apesar de haver essa manifesta evidência em favor da tese da ‘ideia-quadro’, julgo haver diversas outras razões textuais que tornam lícita a suposição de que talvez os comentadores de Leibniz e Espinosa tenham se equivocado em sua interpretação acerca da ‘ideia-quadro’ de Descartes. Na sequência desse artigo, apresento as razões que me persuadem de que os comentadores de Leibniz e Espinosa cometeram um erro ao criticar a suposta ideia-quadro cartesiana.
Em primeiro lugar, julgo que os comentadores de Leibniz e Espinosa se equivocaram na compreensão da definição de ideia tanquam rerum imagines. No meu entender, a maneira correta de compreender essa ‘definição canônica’, a qual, aliás, encontra respaldo não apenas no próprio texto das Meditações, mas sobretudo nos trabalhos de filosofia natural de Descartes, como será visto na sequência, é a seguinte, apresentada pelo professor Enéias Forlin. Ao discutir as consequências ontológicas da ‘dúvida metódica’ nas Meditações, Forlin afirma:
[...] Com a dúvida metódica, a realidade exterior foi reduzida a uma realidade meramente percebida pela alma, isto é, de coisas materiais exteriores, elas se converteram em objetos na mente. Ora, isso significou uma redução da realidade formal à mera realidade objetiva: as coisas deixaram de ser consideradas coisas materiais existentes e passaram a ser consideradas imagens de coisas. Note-se: não se trata de imagens das coisas, porque isso seria ainda pressupor a existência das coisas exteriores, mas de imagens de coisas, isto é, de coisas enquanto imagens, de coisas como imagens. O que houve não foi uma duplicação da realidade em coisas em si mesmas e as imagens das coisas , mas, ao contrário, foi uma redução da realidade material exterior a imagens na mente. As coisas exteriores perderam seu estatuto ontológico de existências materiais e ficaram com aquele meramente epistemológico de coisas imagens (Forlin, 2005, p. 295).
Nessa explicação de Forlin, torna-se manifesto o abandono por Descartes da ontologia realista propugnada pelos seguidores medievais de Aristóteles, na qual era atribuída existência própria, isto é, independente da mente, aos entes materiais ou ‘substâncias sensíveis’[8]. Como resultado, tem-se a proposição de uma concepção ‘idealista-fenomenalista’, na qual esses mesmos objetos existem apenas enquanto ideias na mente, uma espécie de ‘antecipação’ do esse percipi est de George Berkeley, sem, entretanto, a negação da existência da matéria[9]. Nesse novo cenário ontológico, os objetos foram, por assim dizer, ‘alojados’ na própria mente sob a forma de conteúdos representacionais, isto é, ideias. É dessa maneira, com o recurso à dúvida metódica, que o realismo escolástico é rejeitado por Descartes, assim como a ontologia hilemórfica que o embasava é substituída pelo dualismo substancial. Em uma palavra, após a ‘dúvida metódica’, não há uma realidade de fenômenos exteriores independentes da mente da qual as ideias produzidas nesta poderiam ser a cópia ou a imitação, como parece ser pressuposto pelo comentadores de Leibniz e Espinosa que criticam a ideia-quadro cartesiana.
Além da própria compreensão da definição de ideia tanquam rerum imagines, julgo haver evidências adicionais de que os comentadores de Leibniz e Espinosa possam efetivamente ter se equivocado em seu julgamento acerca da ‘ideia-quadro’ na teoria da percepção de Descartes. Na Dioptrique[10], obra na qual o filósofo francês se opõe aberta e diretamente à teoria da percepção intromissionista[11] das espécies intencionais defendida pelos escolásticos[12], contra qual o próprio Leibniz vai igualmente se opor[13], a rejeição da ‘ideia-quadro’ parece ser sugerida com bastante vigor. Segundo Descartes, em virtude de sua proposta de uma nova ‘imagem de natureza’[14] mecanicista em oposição à concepção hilemórfica dos peripatéticos, é inaceitável e improvável que o processo de percepção, como propunham os escolásticos através de suas ‘espécies intencionais’, possa envolver imagens transmitidas dos objetos até o cérebro. Em suas palavras: “É necessário [...] tomar o cuidado de não supor que, para sentir, a alma precise contemplar certas imagens que seriam enviadas pelos objetos até o cérebro, como fazem comumente nossos filósofos [escolásticos]” (Descartes, 1996, AT 6, p. 112). Com efeito, segundo Descartes, agora nas suas Meditações de filosofia primeira, corroborando a leitura de Forlin, se acreditamos que existem coisas exteriores a nós que nos enviam suas imagens, isso se dá antes “por algum impulso espontâneo” do que pela evidência proveniente de alguma “luz natural” (Descartes, 1996, AT 7, pp. 38-9). Nesse sentido, de acordo com as concepções científicas expostas na Dioptrique, para explicar o processo de percepção humana, ao contrário do que era postulado pelos escolásticos, “não há necessidade de supor que passe qualquer coisa material dos objetos aos nossos olhos para nos fazer ver as cores e a luz, nem mesmo que haja algo nesses objetos que seja semelhante às ideias ou aos sentimentos que nós temos deles” (Descartes, 1996, AT 6, p. 85). Uma análise atenta dessa passagem talvez possa contribuir para evidenciar o erro interpretativo dos comentadores de Leibniz e Espinosa no que diz respeito às ideias cartesianas serem ‘cópias’ ou ‘quadros’ de seus respectivos objetos.
Na primeira parte da citação acima, ao afirmar que “não há necessidade de supor que passe qualquer coisa material[15] dos objetos aos nossos olhos para nos fazer ver as cores e a luz”, Descartes está claramente rejeitando que haja no processo perceptivo uma atividade de ‘intercâmbio’ ou de transmissão-recepção de qualquer elemento entre os seres envolvidos. Assim, aparentemente antecipando algo que terá, em minha interpretação, uma importância capital para o sistema filosófico que será construído por Leibniz, em particular para a noção de mônada ‘sem janelas’, Descartes sustenta que nada proveniente do exterior semelhante a uma espécie adentra a mente para nela produzir representações do que a ela é extrínseco. Portanto, parece não ser errôneo sugerir que, assim como Leibniz, Descartes não aceita a possibilidade de que as substâncias possam compartilhar acidentes ou propriedades de qualquer natureza[16].
Na segunda parte da mesma citação, Descartes defende claramente a ‘dessemelhança’ entre o objeto percebido e a representação mental do mesmo, ao afirmar não ser preciso “nem mesmo que haja algo nesses objetos que seja semelhante às ideias ou aos sentimentos que nós temos deles”. Essa mesma tese apresentada na Dioptrique acerca da dessemelhança entre as ideias da sensação e os objetos da percepção já tinha sido defendida por Descartes no Le Monde (1633), trabalho sobre filosofia da natureza com orientação copernicana que seu autor se recusou a publicar em virtude da condenação de Galileu pela Santa Inquisição. Colocando-se mais uma vez em franca oposição à teoria da percepção escolástica vigente em sua época, na qual a noção de semelhança (similitudo) era essencial, Descartes se pronuncia da seguinte maneira, no Capítulo Primeiro daquela obra: “[...] Ainda que comumente cada um se persuada que as ideias que nós temos em nosso pensamento sejam inteiramente semelhantes aos objetos dos quais elas procedem, eu, todavia, não vejo razão que nos assegure que assim o seja” (Descartes, 1996, AT 11, p. 3). Na sequência do mesmo capítulo, para reforçar essa tese da ‘dessemelhança causal’, Descartes apresenta os seguintes exemplos: “[...] as ideias das cócegas e da dor, que se formam em nosso pensamento à ocasião dos corpos externos que nos tocam, não têm nenhuma semelhança com eles” (Descartes, 1996, AT 11, p. 5-6).
Em vista dessas considerações, parece ser possível afirmar que, de acordo com Descartes, as ideias produzidas pela percepção não poderiam ser ‘cópias’ ou ‘quadros’ dos objetos que elas supostamente estariam representando na mente, já que as mesmas não têm absolutamente nada em comum com aqueles objetos. Uma consequência disso para a própria teoria da percepção cartesiana – e não apenas para a rejeição do intromissionismo escolástico – é o colapso da noção de ‘ideia adventícia’, juntamente com aquela de espécie intencional. Com efeito, a partir das discussões acima, segue-se que “ideias sensíveis não podem ser adventícias – e devem, portanto, ser inatas – porque não há nenhuma similaridade entre tais ideias e os movimentos corpóreos”[17] (Jolley, 1998, p. 42).
A razão de não haver semelhança entre os movimentos que produzem a ideia e a mesma é, como dito acima, resultante da nova ‘imagem de natureza’ estritamente mecanicista proposta por Descartes. Em substituição à concepção hilemórfica e finalista da natureza defendida pelos peripatéticos, Descartes propõe que a totalidade do universo – tanto o mundo ‘sub-lunar’, quanto o mundo ‘supra-lunar’ – é constituída apenas por um único e singular elemento. No Le Monde (1633), obra na qual elabora pela primeira vez sua física mecanicista, ao invés dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo) e suas respectivas qualidades (quente, frio, seco e úmido), que entravam na composição das substâncias sub-lunares, e o éter, elemento dos corpos celestes, segundo a concepção aristotélica, Descartes sustenta que todo o universo é constituído por um único tipo de matéria, a qual é inerte, homogênea e qualitativamente indiferenciada (cf. Descartes, 1996, AT 11, p. 31-36). Nesse novo universo, estruturado exclusivamente pelas leis da mecânica e da geometria, onde só a causa eficiente é admitida, os limites de cada corpo são determinados pelo movimento relativo dos corpos adjacentes e qualquer variação em suas propriedades ocorre, não pela recepção de uma nova forma, como defendia Aquino[18], mas exclusivamente em função da grandeza, do movimento e da figura dos corpos que estão interagindo entre si.
É com essa noção de matéria que Descartes se propõe a explicar a totalidade dos fenômenos que compõe a natureza. Dentre esses fenômenos, se inclui naturalmente o processo de percepção humana. Com efeito, é com base nessa concepção de matéria, que se limita à tridimensionalidade da extensão, que preenche todo o espaço e acaba por ser assimilada nele[19], que Descartes afirma nas Sextas Respostas que “todas as qualidades que experimentamos nos corpos consistem apenas no movimento, na privação de movimento e na configuração e disposição das partes” (Descartes, 1996, AT 7, p. 440). Ou seja, para Descartes, visto que o objeto da percepção se limita às propriedades mecânico-geométricas, nenhuma qualidade sensível se encontra nele, nem poderia ser produzida por elas ou nelas mesmas. Antoine Arnauld (1612-1696), em suas Quartas Objeções às Meditações, expõe essa tese de Descartes com bastante clareza. Eis o que o Monsieur de Port-Royal diz:
Descartes considera que não existem qualidades sensíveis [nos corpos], mas apenas os vários movimentos dos corpúsculos adjacentes a nós, pelos quais percebemos aquelas impressões variadas que designamos de cor, sabor, odor, de modo que resta [na natureza] apenas figura, extensão e movimento (Descartes, 1996, AT 7, p. 217).
Ou seja, aquilo que é percebido não possui em si as qualidades sensíveis que nós percebemos nele. Portanto, não há na relação perceptiva absolutamente nada que possibilite a existência de qualquer cópia ou imitação.
Evidências adicionais para rejeitar a postulação das ideias-quadro na teoria da percepção de Descartes se encontram nas Notae in programma quoddam[20]. Nesse curto texto, publicado nos últimos de vida de seu autor (1648), Descartes, ecoando as concepções sobre a percepção sensorial apresentadas na Dioptrique, afirma:
[...] qualquer um que corretamente observe até onde a capacidade de nossos sentidos se estende e o que é precisamente que pode através dos sentidos chegar à nossa faculdade de pensar deve admitir que eles [os sentidos] não nos apresentam as ideias das coisas tal como nós as formamos pelo pensamento (Descartes, 1996, AT 8B, 358).
Ora, se os sentidos, em sua materialidade, não nos apresentam as ideias tal como nós as formamos pelo pensamento, a consequência tirada desse fato por Descartes é, novamente nas Notae in programma quoddam, que “[…] as ideias da dor, dos sons, das cores e de coisas similares devem ser inatas, para que nossa mente possa as representar à ocasião de alguns movimentos corpóreos” (Descartes, 1996, AT 8B, 359). Portanto, se as ideias das qualidades sensíveis nos são inatas, elas não podem ser cópias ou imitações de seus objetos, visto que os mesmos se restringem à mera extensão. Por isso, novamente nas Notae in progamma quoddam, Descartes afirma que
[...] não há nada em nossas ideias que não seja inato à mente ou à faculdade de pensar, exceptuando-se apenas essas circunstâncias que se referem à experiência: a saber, que julguemos que essas ideias que agora temos presentes em nosso pensamento refiram-se a certas coisas situadas fora de nós (Descartes, 1996, AT 8B, p. 358).
Ou seja, apesar de julgarmos que as qualidades sensíveis existem no mundo exterior à mente, as mesmas, por serem inatas, só têm existência em nosso pensamento[21].
Por conseguinte, segundo Descartes, a ‘causa eficiente’ das ideias é a própria mente, através de sua ‘faculdade de pensar’, sua capacidade inerente de representação – e não os próprios objetos dos quais as ideias seriam as cópias ou imitações. Assim, em conformidade com a rejeição da teoria da percepção intromissionista dos escolásticos, percebemos ou julgamos haver qualidades sensíveis nos objetos, conforme a visão cartesiana,
não porque essas coisas [os objetos sensíveis] enviaram as próprias [ideias] através dos órgãos dos sentidos à nossa mente, mas, todavia, porque enviaram algo que lhe [à mente] deu ocasião para formá-las [as ideias] nesse momento preferencialmente do que em outro através de sua faculdade inata[22] (Descartes, 1996, AT 8 B, p. 359).
Segue-se disto que entre essas propriedades mecânico-geométricas dos objetos e as sensações ou ideias sensíveis que se formam na mente, não há, nem precisa haver, nenhuma semelhança. Ou, nas palavras do próprio Descartes, não há ‘imitação’, nem ‘cópia’ nesse processo, visto que “[...] as ideias [...] não têm nenhuma semelhança com os movimentos corpóreos” (Descartes, 1996, AT 8B, 359) Assim, contrariando a opinião dos comentadores de Espinosa e Leibniz, pode-se dizer que há uma espécie de ‘dessemelhança causal’ entre o objeto da percepção e sua representação mental, a qual, em minha visão, elimina qualquer possibilidade de haver ‘ideia-quadro’ na teoria da percepção de Descartes.
Portanto, julgo que a crítica dos comentadores de Leibniz e Espinosa à ‘ideia-quadro’ pode ser respondida por meio da proposta cartesiana da ‘dessemelhança causal’ entre o objeto mecânico-geométrico e sua representação mental, consequência do dualismo substancial, que faz das ideias ‘imagens de coisas’ e não ‘imagem das coisas’. Com efeito, supor que as ideias, para Descartes, seriam imagem ‘das’ coisas, seria de certo modo defender que ele estaria defendendo um modelo de percepção e representação à maneira das espécies intencionais escolásticas, algo que o filósofo francês recusa veementemente. Os comentadores de Leibniz e Espinosa compreenderam o tanquam rerum imagines de forma errônea, a saber, como “imagem das coisas” e não como “imagem de coisas”. Assim, ao se equivocarem na interpretação da expressão latina – o que não é, em minha visão, senão uma demonstração de um ‘mau entendimento hermenêutico’ e não um ‘problema filológico’ – acabaram por atribuir a Descartes uma concepção teórica totalmente em desacordo com aquilo que estava sendo proposto pelo filósofo francês nas Meditações, através do dualismo substancial, e que já vinha sendo claramente defendido em seus trabalhos de filosofia natural (i. e., Le monde, Dioptrique). Portanto, o fato de a língua latina não possuir artigo definido não poderia de modo algum servir para justificar o erro interpretativo dos comentadores de Leibniz e Espinosa.
Ademais, para além dos problemas filológicos e hermenêuticos, outra razão, agora histórica, que desautorizaria a crítica dos comentadores de Leibniz e Espinosa em seu ataque à definição de idea tanquam rerum imagines consiste no fato de que a mesma está presente nas Meditações. Porém, segundo Belaval (1960, p. 16), “[...] o século [dezessete] vai fazer dele [Descartes], em primeiro lugar, o autor do Discurso (com os três tratados que o acompanham) e dos Principios” (Belaval, 1960, p. 16). Em nota de rodapé, na mesma página, Belaval acrescenta que “[...] aos Princípios, deve-se acrescentar toda obra científica de Descartes: o Tratado da Luz ou O Mundo, o Tratado das Paixões”. No Le Monde, por exemplo, vale lembrar que o primeiro capítulo é inteiramente dedicado a ‘sugerir’ a diferença que possa haver entre nossas sensações e os objetos que as produzem (cf. Descartes, 1996, AT 11, p. 3-6). Além disso, tanto Leibniz, quanto Espinosa escreveram comentários aos Princípios a Filosofia[23] [24] e não às Meditações[25], fato que talvez contribua para corroborar a tese de Belaval.
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William de Jesus Teixeira
Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).
Bachelor and Master in Philosophy at University of Brasilia (UnB)
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[1] Ainda segundo Kontic, “[...] Leibniz se opõe à definição cartesiana de ideia ao apontar para a insuficiência da imitação como a única classe possível de ideias” (KONTIC, 2014, p. 22).
[2] Eis os exemplos mencionados por Leibniz: “[...] o módulo da máquina exprime a própria máquina, o desenho em perspectiva de uma coisa em um plano exprime um sólido, um discurso exprime pensamentos e verdades; caracteres exprimem números, uma equação algébrica exprime um círculo ou outra figura” (Leibniz, 2017, p. 57). Um exemplo que não é de Leibniz, mas que permite tornar todas essas explicações compreensíveis, seria dizer que a água expressa H2O e vice-versa.
[3] Com efeito, de acordo com o ‘perspectivismo’ leibniziano, “dizer [...] que o corpo é o ponto de vista (situs) da alma não implica somente que as percepções da alma correspondem aos movimentos que o corpo recebe do exterior [...], como ainda que ela expressa os objetos exteriores através da relação espacial que eles travam com o corpo orgânico que lhe é próprio” (Kontic, 2016, p. 64).
[4] Nesse caso da relação corpo-mente, resultando nas percepções e sensações, é a doutrina da harmonia pré-estabelecida que garante essa correspondência ‘constante e regrada’, visto que a mesma serve, segundo o parágrafo 3 dos Princípios da Natureza e da Graça, para explicar e justificar, como e que “[...] há uma harmonia perfeita entre as percepções da mônada e os movimentos do corpo [...]; seguindo as afecções deste [do corpo] ela [a mônada-alma] representa [...] as coisas que se encontram fora dela [...]” (Leibniz, 1974, p. 714).
[5] Acerca da redução das qualidades secundárias às primárias em Leibniz, Pearce afirma: “[...] Leibniz endossa […] o programa geral mecanicista, segundo o qual a matéria corpórea é a ideia clara e distinta que reside no fundamento da física e a partir da qual deve-se explicar todas as ideias confusas recebidas dos sentidos” (Pearce, 2016, p. 5). Evidências adicionais e uma argumentação mais minuciosa para a defesa dessa tese podem ser encontradas no artigo “Leibniz’s alleged ambivalence about sensible qualities”, no qual seu autor se propõe a apresentar “[...] evidência para atribuir a Leibniz a tese segundo a qual as qualidades sensíveis são redutíveis às qualidades mecânicas dos corpos [...]” (Puryear, 2012, p. 230), evidência essa que, segundo o mesmo autor, “[...] é bastante forte” (Puryear, 2012, p. 230).
[6] “Quaedam ex his [meas cogitationes] tanquam rerum imagines sunt, quibus solis proprie convenit ideae nomen”.
[7] ‘AT’ refere à edição DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes, publicadas por Charles Adam e Paul Tannery em 11 volumes. Paris, Vrin, 1996. O número arábico após ‘AT’ indica o volume.
[8] Trata-se da concepção ‘onto-epistêmica’ que será designa por Kant, na Crítica da Razão Pura, de ‘realismo empírico’.
[9] Ao contrário de Berkeley, para quem as qualidades primárias e secundárias são igualmente ‘propriedades’ da mente, que as percebe e lhes confere, assim, existência (pois esse, segundo o bispo de Cloney, é única e exclusivamente percipi), para Descartes apenas os aspectos fenomênicos e qualitativos (os qualia, na terminologia contemporânea) da percepção são inerentes à substância pensante; a matéria (res extensa), por sua vez, enquanto substância, possui, por definição, existência independente da mente.
[10] Trata-se de um dos ensaios científicos (além dos Meteoros e da Geometria) que foi publicado juntamente com o Discurso do Método em 1637.
[11] Como explicam Hatfield e Epstein, “[…] segundo as teorias intromissionistas, algo procede do objeto até o olho e representa o objeto na [...] alma. [Isto é], alguma coisa vai até o olho e apresenta-se a este como se fosse o objeto, [e por isso,] os atributos espaciais da coisa que é sentida são idênticos aos do objeto” (Hatfield; Epstein, 1979, p. 365).
[12] Para Tomás de Aquino, o autor que tomo como referência sempre que mencionar a teoria intromissionista das espécies intencionais nesse artigo, em conformidade com o hilemorfismo de Aristóteles e em oposição a Platão, as Formas devem estar instanciadas nas coisas naturais e a espécie, o representante cognitivo daquelas, deve ser idêntica em seu conteúdo à Forma da coisa, ou seja, o conteúdo de uma espécie não é nada além do que a natureza ou Forma da coisa material. Ou seja, a semelhança (similitudo) entre a Forma do objeto do conhecimento e a espécie que atua como seu vetor nos sentidos e no intelecto é pressuposto fundamental da teoria da percepção escolástica. As consequências dessa ontologia para a teoria da percepção intromissionista das espécies intencionais são discutidas por Aquino nas Questões 84 a 89, da Parte I, da Suma Teológica. Trata-se da abordagem mais completa dessa temática em toda a obra de Aquino.
[13] A rejeição das espécies intencionais, julgo, na esteira e sem o devido tributo a Descartes, me parece poder ser considerada crucial para o estabelecimento da famosa doutrina das mônadas ‘sem portas e janelas’, para a tese da não-interação entre as substâncias e também para a epistemologia inatista de Leibniz. Eis o que ele escreve a respeito disso no prefácio aos Novos Ensaios: “[...] As espécies intencionais [dos escolásticos] vão dos objetos até nós e encontram meios de entrar em nossa alma” (Leibniz, 1974, p. 200). Como é bem sabido, esse ‘intercâmbio’, por assim dizer, entre os meios externo e interno, no qual algo é transmitido por uma substância e recebido por outra, é enfaticamente negado nas teorias leibnizianas acerca da mônada, da interação causal entre as substâncias e também em sua concepção de inatismo. Por outro lado, a negação desse mesmo ‘intercâmbio’ entre as substâncias, visto por seu aspecto ‘positivo’, talvez esteja na origem dessas mesmas teorias ou seja mesmo a motivação primeira para a sua postulação. O filósofo alemão se opõe ao intromissionismo escolástico, porque, de acordo com o que ele escreve no parágrafo 26 do Discurso de metafísica, “[...] naturalmente nada nos adentra no espírito a partir do exterior e é um mau hábito pensar que nossa alma recebe espécies mensageiras como se ela tivesse portas e janelas” (Leibniz, 1974, p. 828). Quase três décadas mais tarde, no parágrafo 7 da Monadologia (1714), Leibniz volta a relembrar de maneira bem mais explícita a imagem que empregara no Discurso de metafísica (1686) para anunciar sua adesão, aparentemente inabalável, ao anti-intromissionismo (cartesiano). Eis o que ele afirma: “As mônadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair delas. Os acidentes não podem se separar, nem se mover para fora da substância, como faziam outrora as espécies sensíveis dos escolásticos” (Leibniz, 1974, p. 705).
[14] Sobre as imbricações entre as ‘imagens de natureza’ e as ‘imagens de ciência’ na história da filosofia e da ciência, cf. Abrantes (2016).
[15] Embora a interpretação cartesiana acerca da teoria da percepção escolástica esteja, em linhas gerais, correta, é simplesmente errado dizer que seja algo ‘material’ que passa do objeto aos órgãos da sensação. A ‘forma’, para a tradição peripatética, não é uma entidade material. Segundo Aquino, a forma recebida nos órgãos sensoriais está ‘sujeita às condições materiais’, mas não é ela mesma um ente material, como sugere a afirmação de Descartes. Eis as palavras de Aquino: “[...] Os sentidos [...] recebem a forma do objeto do conhecimento sem a matéria certamente, mas submetida [cum] às condições materiais” (Aquino, Summa theologiae, I, q. 84, art. 2). A razão da forma, quando de sua recepção nos sentidos, estar “submetida às condições materiais” se deve ao fato que, no momento de sua recepção, ela, além de ser proveniente de um objeto material, não sofreu ainda o processo de abstração realizado pelo intelecto agente. O intelecto agente (intellectus agens) é, segundo Aquino, “[...] a propriedade do intelecto que produz o inteligível em ato através da abstração das espécies das condições materiais” (Aquino, Summa theologiae, I, q. 79, a. 3). Trata-se, pois, de uma faculdade indispensável para a teoria da percepção de Aquino, visto que “[...] é impossível que nosso intelecto [...] entenda qualquer coisa, a não ser a transformando em uma noção abstrata” (Aquino, Summa theologiae, I, q. 84, a. 7).
[16] No parágrafo 17 do Système Nouveau de la Nature, em conformidade com sua rejeição do intromissionismo escolástico, Leibniz sustenta que “[...] a ação de uma substância sobre outra não é uma emissão, nem uma transplantação de uma entidade, como vulgarmente concebida [...]” (Leibniz, 1974, p. 128). No que concerne à teoria da percepção, isto significa – Leibniz o explica no parágrafo 14 do mesmo texto – que “[...] não é possível que a alma ou qualquer outra verdadeira substância possa receber qualquer coisa do exterior [...]” (Leibniz, 1974, p. 127). Desse modo, como afirmado no parágrafo 16, ainda no Système Nouveau, a alma está “[...] ao abrigo de todos os acidentes do exterior [...]” (Leibniz, 1974, p. 128).
[17] Essa tese, à qual eu aquiesço, segundo a qual todas as ideias sensíveis seriam inatas, inclusive as ‘adventícias’, é defendida por Geoffrey Gorham, em seu artigo Descartes on the innateness of all ideas (2002). Evidências adicionais para o embasamento dessa teses serão apresentados a seguir.
[18] Em total coerência com a ontologia hilemórfica, Aquino sustentava que as mudanças e as interações entre os objetos e os fenômenos eram decorrentes da aquisição de uma nova forma pelos entes envolvidos no processo em questão. No caso da percepção humana, o processo de aquisição de uma nova forma é designado de ‘espiritual’; por outro lado, quando se trata de outros processos envolvendo agentes não-humanos, a aquisição da nova forma é designada de ‘natural’. Eis como Aquino explica esses dois tipos de processos de aquisição de uma nova forma, o qual, em sua terminologia, é denominado ‘imutação’ (immutatio): “A imutação é de dois tipos: uma é natural e a outra é espiritual. O tipo natural é aquele segundo o qual a forma do agente que realiza a imutação [immutantis] é recebida na coisa que sofre a imutação [immutato] conforme o ser natural [esse naturale], como [a forma d]o calor na coisa aquecida. O tipo espiritual, por outro lado, é aquele segundo o qual a forma do agente que realiza a imutação [immutantis] é recebida na coisa que sofre a imutação [immutato] conforme o ser espiritual, como a forma da cor na pupila, que nem por isso se torna colorida. Para a operação dos sentidos, é requerida a imutação espiritual, pela qual a intenção da forma sensível é produzida nos órgãos dos sentidos. Caso contrário, se apenas a imutação natural fosse requerida para que houvesse sensação, todos os corpos naturais teriam sensação ao sofrerem imutação” (Aquino, Summa Theologiae, I, q. 78, art. 3).
[19] No Le Monde, ele se refere a ela da seguinte maneira: “[...] concebamo-la como um verdadeiro corpo, perfeitamente sólido, que preenche igualmente todos os comprimentos, larguras e profundidades desse grande espaço” (Descartes, 1996, AT 11, p. 33).
[20] Com o título Observações de René Descartes sobre um certo panfleto [...], a primeira tradução integral e a partir do original desse texto para a língua portuguesa foi recentemente publicada no número 45, de 2021, dos Cadernos Espinosanos (p. 257-283). A tradução foi realizada pelo autor desse artigo.
[21] Em carta a Mersenne de 22 de julho de 1641, Descartes já defendia, de forma sintética, uma tese muito semelhante à tese apresentada nesse parágrafo.: “[...] considero que todas aquelas [ideias] que não envolvem nenhuma afirmação ou negação nos são inatas, pois os órgãos dos sentidos não nos fornecem nada que seja tal como a ideia que desperta em nós nessa ocasião e, assim, essa ideia deveria estar em nós previamente” (Descartes, 1996, AT 3, p. 418). Em ambos os texto, julgo que Descartes está eliminando a noção de ‘ideia adventícia’.
[22] Essa tese parece antecipar aquela que será consagrada a partir dos Novos ensaios de Leibniz como ‘inatismo disposicional’. Eis as palavras do filósofo alemão no prefácio da obra mencionada: “[...] a alma contém originariamente princípios de várias noções e doutrinas que os objetos despertam na [devida] ocasião [...]” (Leibniz, 1974, p. 194). Ora, como vimos acima, em se tratando de uma relação expressiva, a harmonia pré-estabelecida garante que as percepções da mônada corresponderão e serão uma decorrência dos movimentos presentes no seu corpo próprio. Esses movimentos, como Descartes afirmara claramente nas Notae in programma quoddam, servirão como a ‘ocasião’ para que a substância monâdica ‘desperte’, ‘tire de seu próprio fundo’ os conteúdos representativos que correspondem com exatidão, devido justamente à harmonia pré-estabelecida, aos objetos exteriores que deram ocasião aos movimentos que resultaram naquelas percepções.
[23] No caso de Leibniz, trata-se das Animadversiones in partem generalem principiorum cartesianorum. Uma tradução possível para o português desse título poderia ser “Observações ou Reflexões (críticas) sobre a parte geral dos ‘Princípios [da Filosofia]’ de Descartes”. No Extrait d’une lettre à mr. l’abbé Nicaise sur la philosophie de mr. Descartes (1693), na qual realiza uma apreciação geral – e negativa, como era de se esperar – sobre a filosofia de Descartes, Leibniz faz referência às Animadversiones, que tinham sido redigidas no ano anterior (1692). Em um trecho daquela carta, ele expõe sua atitude em relação aos Princípios, de Descartes, assim como a razão de não ter comentado todos os quatro livros dessa obra nas Animadversiones. Eis o que ele diz: “Fiz outrora algumas observações sobre a Primeira e a Segunda Partes de seus Princípios. Essas partes contêm um resumo de sua filosofia geral, da qual eu fui o mais das vezes obrigado a me afastar dele. As partes seguintes [i.e. as partes 3 e 4] tratam de detalhes da natureza, os quais não se pode ainda explicar com facilidade, razão pela qual eu ainda não as abordei” (Leibniz, 1974, p. 121). A intenção de Leibniz era publicar suas Animadversiones juntamente com a obra comentada de Descartes, mais ou menos da mesma maneira que fará mais tarde em relação ao Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke, propósito que foi recusado pelo editor. Assim, essa obra permaneceu inédita até o ano de 1844. Os Novos ensaios sobre o entendimento humano também não foram publicados em vida do autor, em virtude da morte de Locke no mesmo ano em que Leibniz pretendia publicá-los (1704). Por isso, essa obra permaneceu inédita até 1765.
[24] No que concerne a Espinosa, em 1663, ele publica em Amsterdã uma exposição do sistema cartesiano com o título Partes I e II dos Princípios de Filosofia de René Descartes demonstradas à maneira geométrica.
[25] As Meditações só vão se tornam a obra principal de Descartes a partir da leitura e interpretação de Kant, na Crítica da Razão Pura (1781).