Freud e as alterações da personalidade: considerações sobre a histeria[1]
Freud and personality alterations: considerations on histeria
Yago A. de Oliveira Morais
yagomorais@estudante.ufscar.br
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Recebido: 27/09/2023
Received: 27/09/2023
Aprovado: 12/01/2024
Approved: 12/01/2024
Publicado: 22/01/2024
Published: 22/01/2024
RESUMO
Freud propôs uma teoria da personalidade a partir do estabelecimento da psicanálise. Nosso objetivo é percorrer alguns de seus primeiros textos, os quais foram escritos em conjunto com Breuer, buscando delimitar o que Freud compreendeu a respeito de alterações da personalidade, tal como a múltipla personalidade. Este fenômeno ganhou um importante destaque no século XIX, gerando discussões no campo da psicologia e da filosofia, uma vez que implicava ruptura da unidade da personalidade. Freud, por sua vez, ofereceu uma interpretação original de tais alterações à luz de suas investigações sobre a histeria. Para explicar os desdobramentos da personalidade, Freud focou numa teoria da defesa, colocando o recalque (Verdrängung) como um mecanismo modelo para compreender a personalidade e suas patologias.
Palavras-chave:
Freud.
Personalidade. Janet. Teoria psicanalítica.
Histeria.
ABSTRACT
Freud
proposed a theory of personality based on the establishment of psychoanalysis.
Our goal is to go through some of his early texts, which were written together
with Breuer, trying to delimit what Freud understood about personality
alterations, such as dual personality. This phenomenon gained an important
prominence in the 19th century, generating discussions in the fields of
psychology and philosophy, since it implied a rupture of the personality unit.
Freud offered an original interpretation of such changes in light of his investigations
of hysteria. To explain the unfoldings of personality, Freud focused on a
theory of defense, placing the repression (Verdrängung) as a model mechanism to
understand personality and its pathologies.
Keywords: Freud. Personality. Janet. Psychoanalytic theory. Hysteria.
Introdução
Seguramente, o século XIX foi muito importante para o desenvolvimento da psicologia científica. Além de ter sido um momento crucial no qual se deu a separação efetiva entre filosofia e psicologia, resultando, assim, na independência desta como disciplina autônoma[2], também foi palco de inúmeras discussões sobre a personalidade humana, sendo uma delas – bastante pertinente na França – a respeito da múltipla personalidade[3]. Sobre este fenômeno, seu próprio nome já parece ser, num certo sentido, sugestivo: a existência de duas personalidades independentes que se alteram num mesmo corpo físico. Evidentemente, trata-se de um fenômeno complexo, cuja história atravessou um longo período, no qual estavam presentes, por exemplo, discussões sobre a cisão do Eu, instância da vida psíquica que foi tematizada por filósofos como Descartes, mas que também ganhou espaço nas discussões oriundas da psicologia, na medida em que se deslocou do ideário filosófico[4]. Falar em múltipla personalidade, especificamente naquele período, significava inserir-se num contexto de problematização da unidade e identidade[5] do Eu, questão que, ao mesmo tempo, não deixou de ser pertinente no campo da filosofia[6].
É fundamental notar que as observações e a compreensão sobre casos de alterações da personalidade, especialmente a múltipla personalidade, repercutiram nas pesquisas sobre a histeria, patologia que foi objeto de estudos sobretudo de pensadores dos círculos acadêmicos franceses. Com efeito, levando em conta a psicologia francesa do século XIX, Ian Hacking observou em seu livro de fôlego, Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory, que a múltipla personalidade nasceu neste país sob o signo da histeria[7]. Ou seja, trata-se de pensar que diversos elementos que caracterizavam essas alterações da personalidade – tanto corporais quanto psicológicos – eram identificados como sendo manifestações de um quadro histérico.
Sobre o fenômeno da múltipla personalidade, podemos mencionar o nome de Eugène Azam, por exemplo, um dos mais conhecidos a respeito do tema. Em 1875, ele escreveu sobre o caso Félida, uma mulher diagnosticada com duas personalidades, num texto intitulado Hypnotisme, double conscience et altérations de la personnalité: le cas de Félida X. Félida alternava sua personalidade constantemente ao longo do dia: pela manhã aparecia uma personalidade totalmente feliz, enquanto que no período da noite uma personalidade agressiva surgia, machucando partes de seu próprio corpo[8]. Curiosamente, no dia seguinte, Félida não era capaz de lembrar de sua noite anterior, ficando totalmente confusa, visto que ela acordava pela manhã como se nada lhe tivesse acontecido. Azam observou, portanto, a presença de duas personalidades distintas num mesmo corpo, ou antes, estados mentais opostos que se alternavam, sendo um feliz e outro agressivo, por exemplo. Segundo observam alguns autores (2006), um de seus encaminhamentos para este caso foi compreensão de que a alternância dos estados mentais poderia estar ligada à histeria, patologia que seria capaz de explicar a amnésia periódica da paciente Félida, isto é, sua incapacidade de se lembrar de momentos agressivos.
Ian Hacking também escreveu em seu livro citado acima que esses casos de alterações da personalidade estavam ligados às alterações que ocorriam na memória, na sensibilidade e na identidade dos indivíduos. Vinculado a esses casos, o autor também cita o sonambulismo como elemento fundamental para pensar a história dessas alterações da personalidade, uma vez que aquele fenômeno indicava a capacidade de executar ações inteligentes sem estar efetivamente consciente delas[9]. De acordo com Carroy, em torno do fenômeno dos múltiplos “[...] coloca-se a questão de um desdobramento involuntário e inconsciente de si mesmo, simultâneo, como a escrita automática, mas também sucessivo, como a alternância entre sono e vigília ou aquela do eu (moi) hipnotizado ou normal” (Carroy, 1993, p. XII, tradução nossa). Em suma, podemos observar que tanto o sonambulismo quanto a histeria apareciam como pano de fundo das investigações e discussões relativas à múltipla personalidade. Trata-se de um momento em que o psiquismo passou a ser visto de uma maneira diferente, sobretudo porque as descobertas sobre o “automatismo psicológico”, a consciência dupla, e o inconsciente, por exemplo, estavam sendo debatidas nos ambientes acadêmicos.
Um dos autores que soube sistematizar e explorar muito bem esse “estado psicológico especial”, que é característico da múltipla personalidade, problematizando igualmente, sobretudo, a histeria, foi Pierre Janet, filósofo e psicólogo com uma obra de grande reconhecimento na França[10]. Em textos, como, por exemplo, L’automatisme psychologique, encontra-se uma importante teoria psicológica que, conforme aponta Pereira, “[...] é o ponto de partida para a elaboração de sua teoria do automatismo psicológico, criada originalmente para dar conta dos fenômenos amnésicos observados nos quadros histéricos de desdobramentos da personalidade” (Pereira, 2008, p. 303). Já em sua tese de medicina, L’état mental des hystériques, publicada alguns anos depois, Janet considera que no sonambulismo podemos observar uma espécie de esquecimento do que se passou seguido de um retorno periódico das lembranças. Textualmente, ele assevera o seguinte:
Um indivíduo que é verdadeiramente sonâmbulo vive de duas maneiras diferentes, há “duas existências psicológicas alternando-se sucessivamente”; há em uma sensações, lembranças, movimentos que não se encontram na outra, e por consequência apresenta de uma maneira mais ou menos clara, conforme o caso, dois caracteres e em algum sentido duas personalidades (Janet, 1911, p. 417, tradução nossa).
Ao falar em “duas existências psicológicas”, Janet refere-se a “duas personalidades” que se alternam num mesmo corpo físico, o que parece indicar uma compreensão sobre a temática das alterações da personalidade em seu texto[11]. Entretanto, vale assinalar que Janet foi crítico de Azam, de modo que ele contestou a validade das observações feitas sobre o caso Félida, por exemplo. No entanto, embora haja uma distância entre os autores, é curioso notar que, na perspectiva de Janet, o sonambulismo já apresenta um “dédoublement de la personnalité”, enquanto que para Azam, segundo Hacking (1998), o “segundo estado” de Félida poderia ser lido como sendo um “sonambulismo total”. Assim como no sonambulismo, também podemos identificar um desdobramento da personalidade na histeria, visto que Janet a interpretou no sentido de um “estreitamento da consciência” ou “clivagem da personalidade”. Mais especificamente, neste caso, significa dizer que a personalidade perde uma coesão interna para dar lugar ao funcionamento autônomo de certos elementos psicológicos, os quais operariam independentemente do resto do psiquismo. A partir de uma fraqueza na capacidade de síntese psíquica, ou insuficiência psicológica[12], para utilizar o termo do próprio autor, o sujeito passaria a ser submetido a diversas desordens, situação em que se vê a predominância de estados inconscientes, por exemplo.
Com efeito, nosso objetivo não é aprofundar as teorias de Janet, tampouco explorar as contribuições de Azam e pensar a diferença entre ambos autores, mas justamente notar que uma parte importante do século XIX estabeleceu uma investigação profunda sobre as patologias da personalidade, especialmente, os casos de múltipla personalidade[13]. Contudo, ao falarmos deste período e desta temática sobre a histeria, não podemos deixar de considerar a psicanálise freudiana, cujo estabelecimento se deu na mesma época em que essas discussões estavam em curso. Seguramente, a psicanálise de Freud se esforçou constantemente para compreender o fenômeno da histeria, propondo, assim, uma teoria da personalidade que foi construída a partir de influências de sua época. A influência do ambiente acadêmico francês no pensamento freudiano é notável, por exemplo, de modo que os estudos de Charcot e Janet são fundamentais para o início de sua formação intelectual. Neste sentido, nosso objetivo é tentar analisar a seguinte questão: como a psicanálise de Freud compreendeu o fenômeno da múltipla personalidade? Para tanto, iremos nos concentrar particularmente no exame de alguns dos primeiros escritos de Freud, isto é, aqueles que compreendem um período em que sua metapsicologia ainda não estava totalmente desenvolvida. Mais especificamente, trata-se de analisar apenas o período entre 1893-1895[14], no qual as investigações sobre a histeria estavam se consolidando sistematicamente a partir da teoria do recalque, a qual vinha sendo esboçada pouco a pouco por Freud.
Freud: histeria, consciência e personalidade
A psicanálise estabeleceu-se, inicialmente, como uma via alternativa para tratar e curar a histeria, sendo bastante influenciada pelos trabalhos de Charcot, principalmente no período em que Freud esteve em Salpêtrière, no inverno de 1885. Porém, enquanto este relacionou fortemente a histeria à sexualidade, aquele recusou tal aproximação, o que acabou resultando no distanciamento entre os dois pensadores[15]. As investigações freudianas sobre a histeria consolidaram-se como sendo intimamente ligadas a uma noção muito cara à psicanálise, qual seja, o recalque (Verdrängung), termo que pode ser entendido como eixo central no qual gravita a teoria de Freud sobre a personalidade, sobretudo no período entre 1893-1895. Sendo assim, a histeria é o tema capital que aparece como pano de fundo da constituição da psicanálise.
Concentrando-nos apenas em dois escritos iniciais da carreira de Freud – “Comunicação preliminar”, de 1893, e “Neuropsicoses de defesa”, de 1894, – podemos perceber que, no primeiro texto, ele identifica a manifestação de fenômenos histéricos aos traumas psíquicos, sendo esses, por sua vez, ligados às lembranças que permanecem dissociadas do afeto, o que acaba trazendo sofrimento ao sujeito. Ou seja, o sofrimento advém efetivamente do trauma, uma vez que ele é o responsável pela dissociação. Nesse sentido, trauma, memória e afetos são noções que se conectam fortemente neste período de seus escritos, visto que Freud começa a pensá-las em conformidade com suas investigações sobre a histeria. De acordo com este mesmo texto – o qual vale lembrar fora escrito em conjunto com Breuer –, as lembranças traumáticas, as quais são responsáveis por causar sofrimento, só poderiam ser encontradas no paciente hipnotizado, o que significa dizer que em estado “normal” elas permaneceriam “escondidas”, ou seja, inacessíveis ao sujeito adoecido[16], embora continuem existindo. Desse modo, Freud e Breuer buscam oferecer uma explicação do porquê essas lembranças são resistentes e conseguem sobreviver aos desgastes do tempo, bem como as razões pelas quais elas são causa de sofrimento.
Ao considerar o modo de funcionamento da histeria, investigando a relação que se estabelece entre afeto e lembrança, Freud e Breuer chegaram a uma conclusão capital, a qual parece demonstrar o interesse de ambos na temática das alterações da personalidade. Textualmente, lemos o seguinte:
“[...] a divisão da consciência [splitting of consciousness], tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de “double conscience”, é presente em grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação, e com ela o surgimento dos estados anormais da consciência que (reuniremos sob a designação de “hipnóides”), constitui o fenômeno básico dessa neurose” (Freud, 1955, p. 12)[17].
Essa passagem contém um termo curioso para pensar o fenômeno de múltipla personalidade, qual seja, “splitting”, o qual pode significar “divisão”[18] ou “cisão”. Com efeito, o termo em francês utilizado por Freud – double conscience – chama a atenção porque é exatamente o mesmo utilizado pelo francês Azam ao descrever os casos de múltipla personalidade[19]. Em relação à teoria freudiana, nota-se que a “double conscience” é característica da histeria, o que nos leva a pensar numa questão que se impõe: este trecho, portanto, revela-nos que Freud estava lidando com o mesmo horizonte teórico em relação ao dédoublement de la personnalité de Azam, sobretudo se levarmos em conta tal “divisão da consciência” na teoria freudiana sobre a histeria? A questão, certamente, passa pela consideração sobre se haveria uma etiologia comum entre os primeiros escritos de Freud e a etiologia dos casos de múltipla personalidade. Contudo, não será nosso objetivo percorrer todo esse caminho, mas apenas apontar para algumas direções possíveis sobre esta questão em Freud.
Em primeiro lugar, vale notar que Ian Hacking, ao comentar sobre os casos de múltipla personalidade na França, destaca a falta de um termo específico naquele país, no sentido diagnóstico, de modo que a utilização do termo “double conscience”, que veio a ser adotada por parte dos franceses, refere-se especificamente à “consciousness”, no inglês, sendo “conscience” um termo menos apropriado[20]. Segundo Hacking, o uso do termo por Freud e Breuer, mencionado acima, estaria então vinculado à apropriação feita pelos franceses da tradução do inglês, double conscience. No entanto, em segundo lugar, levando em conta que há uma profunda diferença entre “double conscience”, tradução francesa feita do termo inglês, e a múltipla personalidade descrita por Azam, tal como Hacking sublinha em seu livro, então talvez seja seguro afirmar que Freud e Breuer não estivessem entendendo o fenômeno da mesma maneira que o psicólogo de Bordeaux. É importante sublinhar que Azam teve algumas dificuldades para nomear as desordens que atingiram Félida. Seu editor, por exemplo, chegou a lhe recomendar a utilização do termo double conscience, embora Azam tenha optado pelo uso de um termo que parece ser ainda mais abrangente, qual seja, dédoublement de la personnalité[21]. Freud e Breuer, por outro lado, utilizaram o termo “double conscience”, inicialmente, como indicador de uma “alteração da personalidade”, um fenômeno que causa uma cisão que não é resultado de um processo normal, mas patológico.
Assim como nosso recorte se dá no período inicial da obra freudiana, estas questões devem ser pensadas no contexto das investigações sobre a histeria, visto que esta patologia movimentou as primeiras inquietações de Freud. No caso de seus primeiros escritos sobre a histeria, é possível perceber que há uma compreensão de que a “divisão (cisão) da consciência” é fonte dessa patologia, o que nos leva a indagar o que tal processo significa efetivamente. Vale notar que, enquanto que para alguém como Janet, a divisão da consciência estava ligada a uma insuficiência psíquica, Freud compreendeu-a numa direção totalmente diferente. Inicialmente, sua posição implica pensar a divisão da consciência em relação ao trauma, sendo este um elemento chave para entender o processo em que uma personalidade sofre/adoece e, consequentemente, vem a “desdobrar-se”. Evidentemente, falar em trauma exige pensar a ação do recalque e no advento da noção de inconsciente, a qual já estava sendo engendrada, ainda que timidamente, ali naquele período.
É o trauma o elemento principal que ajuda a esclarecer a histeria, sobretudo nos primeiros escritos de Freud. Sobre o trauma psíquico[22], lemos, na Comunicação preliminar, que ele “[...] age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação” (Freud, 1955, p. 6). Pensá-lo como “corpo estranho” implica colocá-lo no âmbito das excitações, as quais em quantidades excessivas ficam gravadas no aparelho psíquico, exigindo do sujeito, consequentemente, uma capacidade enorme de significação. Vale notar que neste texto de 1893, os autores ainda adotavam a hipnose como método para tratar o sofrimento de seus pacientes. Acreditava-se na época que esta ferramenta era capaz de acessar a origem do trauma do paciente, de modo que, a partir daí, abria-se a possibilidade para aliviá-lo de seu sofrimento após o despertar do estado hipnótico[23]. Freud pensava, naquele momento, numa relação importante entre lembrança e trauma, entendendo que este seria a fonte do sofrimento psíquico dos seus pacientes, na medida em que provocava afetos dolorosos. Sendo assim, o início da psicanálise, portanto, é caracterizado pela consideração do trauma psíquico como modelo para pensar a etiologia da neurose, sendo a prática psicanalítica – embora ainda nascente na época – aquela que visa justamente buscar regredir até a origem do evento traumático.
Neste sentido, é importante notar que Freud utilizava a “ab-reação” como “método” para lidar com um trauma psíquico, isto é, como algo capaz de auxiliar o sujeito em seu processo de cura para se livrar do sofrimento. A lembrança do trauma psíquico, entendendo-o como um “corpo estranho” que, embora seja do “passado” ainda continua agindo no presente, permanece porque não houve uma “ab-reação” ou uma associação significativa. Conforme apontam Laplanche e Pontalis, “[...] ab-reação é assim o caminho normal que permite ao sujeito reagir a um acontecimento e evitar que ele conserve um quantum de afeto demasiado importante” (Laplanche e Pontalis, 2004, p. 1). Entretanto, é fato que Freud compreendeu muito bem que nem sempre a ab-reação acontece, de modo que às vezes o sujeito não consegue impedir que o afeto “demasiado importante” se desprenda da lembrança. Isto acontece porque nem sempre o sujeito é capaz de reagir com uma descarga emocional adequada. Alguns eventos de nossa vida são insuportáveis e incapazes de serem elaborados por nós, de modo que eles não encontram outro caminho senão o de permanecer perturbando e adoecendo constantemente o sujeito, tudo isto graças ao excesso de afluxo de excitações que estes eventos causam[24]. Desse modo, significa pensar que a lembrança do evento traumático permanece no aparelho psíquico, embora o sujeito não seja capaz de acessá-la conscientemente.
Devido ao fato de que a “ab-reação” não pode toda vez se efetivar, uma questão se impõe: por que às vezes não somos capazes de reagir ao evento traumático? Há, ao menos, duas condições objetivas para que isso ocorra, segundo Freud. A primeira diz respeito à natureza do trauma, sendo que é impossível reagir a ele devido a sua estrutura que não comporta reação. Freud refere-se aos casos de perda de um ente querido, às condições sociais que impedem uma reação ou, especialmente, àquilo que o sujeito deseja esquecer, portanto, que ele o faz recalcando-o no “inconsciente”[25]. A segunda condição diz respeito a alguns estados psíquicos em que o paciente recebeu a experiência, e não propriamente ao conteúdo das lembranças traumáticas. Freud fala numa situação em que há a prevalência de afetos paralisantes, tais como o susto, ou até mesmo “[...] durante estados psíquicos positivamente anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a auto-hipnose, etc.” (Freud, 1955, p. 11). Desse modo, estas duas condições são responsáveis por impedir que a descarga emocional ocorra, processo normal que possibilita ao sujeito uma maneira de lidar com seu sofrimento psíquico.
Ao falar da relação entre trauma psíquico, adoecimento e afeto, entendendo, assim, que a lembrança ligada a este permanece isolada da consciência, Freud encontra um caminho para compreender as neuroses, sendo que um dos objetivos centrais da prática psicoterapêutica empregada ali consistia em encontrar o caminho que levou à formação dos sintomas. É a partir daí que podemos identificar o começo do interesse pelos “estados anormais da consciência”, tão marcantes nesse modo específico de sofrer psiquicamente, bem como pelo desdobramento da personalidade, questão que fica implícita aqui nestas discussões. A utilização de um termo que aparece na “Comunicação preliminar”, qual seja, “condition seconde”, é importante para destacar o resultado patológico que Freud e Breuer observaram na histeria. Textualmente, lemos o seguinte:
[...] na histeria estão presentes grupos de ideias com origem em estados hipnóides e estes estão desligados da ligação associativa com as outras ideias, embora possam ser associados entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente organizado de uma segunda consciência, uma condição segunda [condition seconde] (Freud, 1955, p. 15).
Em primeiro lugar, para compreendermos esta passagem, deve-se sublinhar que o uso do termo “estados hipnóides” é de autoria de Breuer, não de Freud. Em segundo lugar, é preciso notar que Freud deu ênfase numa teoria da defesa, visto que esta auxilia a compreensão do processo de como os “estados hipnóides” eram adquiridos. Levando em conta a passagem acima, podemos compreender que, para Breuer, os estados hipnóides indicam a possibilidade da divisão da consciência, visto que eles estão ligados a um grupo diferente de ideias que se encontram separadas da consciência normal. Trata-se de pensar numa “segunda consciência” que passa a ter o controle do sujeito, cujo poder expressa a força patológica da histeria. A diferença entre Freud e Breuer, especificamente neste ponto, dá-se porque este último não acreditava que a dissociação psíquica das ideias, a qual estava ligada aos estados hipnóides, poderia ter relação com a operação de uma defesa psíquica, tal como Freud estava delimitando, pouco a pouco, teoricamente. Num texto denominado A psicoterapia da histeria, lemos um resumo do que Freud vinha expondo e pensando desde a Comunicação preliminar:
[...] a histeria se origina por meio do recalcamento [repression] de uma idéia incompatível a partir de uma motivação de defesa. Segundo esse ponto de vista, a idéia recalcada [repressed idea] persistiria como um traço mnêmico fraco (de pouca intensidade), enquanto que o afeto dela arrancado seria utilizado para uma inervação somática. (Isto é, a excitação é “convertida”.) Portanto, é precisamente por meio de seu recalcamento [repression] que a ideia se torna a causa de sintomas mórbidos - ou seja, torna-se patogênica. À histeria que exibe esse mecanismo psíquico pode ser dado o nome de “histeria de defesa” (Freud, 1955, p. 285).
Destacamos aqui a noção de “defesa”, a qual é fundamental para a compreensão da etiologia das neuroses, mas, principalmente, para entendermos o que Freud pensava a respeito do desdobramento da personalidade. Neste sentido, ao contrário do que pensava Breuer, ele destacou que “[...] o chamado estado hipnóide devia sua separação ao fato de nele haver entrado em vigor um grupo psíquico que antes fora dividido [split off] pela defesa” (Freud, 1955, p. 286). Desse modo, significa dizer que a explicação da divisão da consciência ganha contornos diferentes na concepção freudiana, o que acaba o posicionando numa outra via interpretativa em relação ao seu parceiro de trabalho. Seguramente, sua posição e divergência com seus mestres ganham mais forças num texto de 1894, onde Freud propõe uma leitura aprofundada da etiologia das neuroses, consequentemente, ampliando a interpretação das alterações da personalidade à luz da histeria.
A teoria do recalque, conforme o próprio Freud reconheceu, é a pedra angular da psicanálise, sendo tal teoria a responsável pela tentativa de explicação da etiologia das neuroses. Pensando especificamente nos anos entre 1893-1895, podemos notar que, na teoria da defesa, o recalque aparecia como um processo por meio do qual se buscava repelir as ideias incompatíveis e insuportáveis do campo da consciência. Laplanche e Pontalis argumentam sobre o interesse de Freud em relação à noção de clivagem da consciência (Bewusstseinsspaltung) e reconhecem que ele se interessou pelas alterações da personalidade a partir de observações clínicas de certos casos de histeria. Desse modo, conforme afirmam os autores, ele foi levado a defender a “[...] coexistência no seio do psiquismo de dois grupos de fenômenos, e mesmo de duas personalidades que se podem ignorar mutuamente” (Laplanche e Pontalis, 2004, p. 66). A tese forte a ser destacada aqui é a de que o ego não é capaz de reagir à ideia incompatível, o que leva Freud a argumentar que o “[...] momento traumático real, portanto, é aquele em que a incompatibilidade se impõe sobre o ego e em que este decide repudiar a ideia incompatível” (Freud, 1955, p. 123). De acordo com Freud, é o recalque que opera a exclusão da ideia incompatível da consciência, levando-a para uma outra parte do psiquismo, por assim dizer. Todo esse processo ao qual o sujeito é submetido indica a possibilidade de pensar que ele se separa de uma parte de suas representações, situação em que o desdobramento da personalidade pode ser pensado numa perspectiva freudiana, num sentido diferente do que alvitrou seu parceiro Breuer. A questão levantada por Freud é a de saber como o sujeito se separa de uma parte de suas representações e o que explica a persistência de eventos traumáticos sob forma de lembranças inacessíveis à consciência normal[26].
No texto datado de 1894, “Neuropsicose de defesa”, Freud continua aceitando a hipótese de que as alterações da personalidade podem ser explicadas à luz da investigação sobre a histeria. O que é importante realçar aqui é a menção que ele faz a sua influência intelectual mais evidente naquela época, a saber, Pierre Janet. Textualmente, por exemplo, ele escreve o seguinte:
Desde o bom trabalho realizado por Pierre Janet, Josef Breuer e outros, pode-se considerar geralmente aceito que a síndrome da histeria, tanto quanto é inteligível até o momento, justifica a suposição de que haja uma divisão da consciência [splitting of consciousness], acompanhada da formação de grupos psíquicos separados (Freud, 1964, p. 45-46).
Em primeiro lugar, devemos indicar que é notável a importância de Janet e Breuer para o arcabouço teórico de Freud, sendo que ele foi tributário, até certo ponto, do que esses pensadores escreveram. Janet, especialmente, já era uma referência importante no círculo acadêmico francês, uma vez que sua tese já havia sido defendida em 1892. A menção ao psicólogo francês não é feita e nem deve ser vista apenas lateralmente, mas deve ser compreendida como uma teoria que encontrou eco no arcabouço teórico freudiano. Em segundo lugar, é preciso notar que, segundo a leitura de Freud, Janet acreditava que a divisão da consciência era um traço essencial da histeria, sendo de ordem primária e, desse modo, sinal de degeneração do sujeito. Embora Janet tenha sido fonte de inspiração para sua teoria, isto não durou por muito tempo, uma vez que Freud endereçou algumas críticas ao psicólogo francês, bem como discordou dos estados hipnóides propostos por Breuer. Com a intenção de refutá-los e, consequentemente, esboçar uma explicação sobre a origem da divisão da consciência, Freud passa a fornecer explicações a respeito de outras formas extremas de histeria, momento que começa a esboçar as origens da noção de inconsciente, assim como o momento em que modifica a teoria da neurose histérica.
Sendo assim, no texto de 1894, o fenômeno da divisão da consciência foi considerado à luz de duas outras formas de histeria, denominadas por Freud como “histeria de defesa” e “histeria hipnóide”. Podemos dizer que aqui ele amplia e aprofunda suas análises da “Comunicação preliminar”, na medida em que passa a pensar a divisão da consciência como um fenômeno que ocorre em outros tipos de neurose e, sobretudo, na psicose[27]. Embora Freud considere, ainda que rapidamente, a divisão da consciência nestas outras formas de histeria, sua conclusão, a partir de 1894, agrava ainda mais sua diferença com os postulados de Janet, por exemplo. Ao propor uma nova interpretação sobre a neurose histérica, nota-se a anulação freudiana da concepção janetiana da clivagem da consciência.
Ora, a questão que intriga Freud aqui neste contexto é a respeito da natureza dessa divisão. Contrariamente ao que seus mestres postularam, Freud assevera que a divisão da consciência resulta de um ato voluntário do sujeito, no caso específico da “histeria hipnóide”, ao passo em que, no caso da “histeria de defesa”, para ilustrar o conflito que se instaura na vida de alguém, causando-lhe sofrimento, ele escreve que é preciso que haja uma:
[...] ocorrência de incompatibilidade em sua vida ideacional - ou seja, até que seu ego fosse confrontado com uma experiência, uma idéia ou um sentimento que despertou um afeto tão angustiante que o sujeito decidiu esquecê-la porque não tinha confiança em seu poder para resolver a contradição entre aquela idéia incompatível e seu ego por meio de uma atividade de pensamento (Freud, 1964, p. 47).
Freud concentra sua explicação numa espécie de fracasso do “eu”, fracasso este que o impossibilita de realizar uma resolução, de modo consciente, de sua experiência insuportável, por assim dizer. O eu, também traduzido por vezes como “ego”, é o agente principal capaz de realizar uma operação defensiva. Com efeito, o que o eu é capaz de fazer – no caso de uma incompatibilidade em sua vida representativa – consiste apenas em retirar o afeto ou a soma de excitação de tal representação, cuja ação não implica necessariamente um resultado bem sucedido e positivo. O eu realiza a tarefa de enfraquecer a representação insuportável e, neste caso específico, ocorre que a soma de excitação ganha um outro destino, isto é, passa a ser convertida em algo de ordem somática. Embora a representação não esteja mais em condições de ser associada, Freud assinala que tal soma de excitação deve ser, desse modo, convertida. Sendo assim, a compreensão freudiana passa a ser a de que não é a divisão da consciência o fator característico da histeria, mas sim a “capacidade de conversão”, ou seja, significa dizer que na histeria “[...] a idéia incompatível se torna inócua por sua soma de excitação sendo transformada em algo somático” (Freud, 1964, p. 49). Textualmente, Freud explicita sua nova via interpretativa, a qual, seguramente, não deixa de levantar questões de ordem fisiológica e psicológica:
A conversão pode ser total ou parcial. Ela prossegue na linha da inervação motora ou sensorial que está relacionada – seja intimamente ou mais frouxamente – com a experiência traumática. Com isto, o ego consegue libertar-se da contradição [com a qual é confrontado]; mas em vez disso, ele se sobrecarrega com um símbolo mnêmico que encontra um alojamento na consciência, como uma espécie de parasita, seja na forma de uma inervação motora irresolúvel ou como uma sensação alucinógena constantemente recorrente, e que persiste até que ocorra uma conversão na direção oposta. Consequentemente, o traço da memória da ideia reprimida não foi, afinal, dissolvido; de agora em diante, ela forma o núcleo de um segundo grupo psíquico (Freud, 1964, p. 49).
O “eu” é encarregado do símbolo mnêmico que o persegue como um parasita que retorna constantemente, o que contribui para evidenciar o papel principal que ele assume no processo defensivo, por exemplo. Diferentemente da interpretação de Janet, Freud defende a hipótese de uma transposição de grandes somas de excitação numa inervação corporal[28], afastando-se, assim, da ideia de clivagem janetiana. Efetivamente, o rompimento com a teoria de Janet foi decisiva para colocar o psicanalista num lugar diferente daquele praticado pela psicologia científica.
Com efeito, a teoria da defesa passa a se tornar central para a explicação de Freud sobre as alterações da personalidade. O período que compreende os anos entre 1893-1895 foi fundamental para o pai da psicanálise colocar o recalque como mecanismo de defesa que explica o movimento realizado pelo sujeito no momento em que surgem ideias incompatíveis ao psiquismo. Na medida em que estas ideias são vistas como inaceitáveis, Freud procurou uma maneira de explicar como um conjunto de ideias pode permanecer vivo, ou seja, atuando na formação dos sintomas histéricos de determinados sujeitos. Desse modo, a teoria freudiana entende que o recalque permite ao sujeito “esquecer” um evento traumático, cujos efeitos lhe desperta afetos penosos, embora tal ação defensiva nunca seja totalmente completa[29]. Ao falar da tentativa do ego de expulsar as ideias incompatíveis do campo da consciência, Freud foi levado assim a delinear a noção de inconsciente, dimensão psíquica cuja característica consiste em abrigar aquilo que não foi suportado pela “consciência normal”. Em suma, é esse o pano de fundo em que as alterações da personalidade foram pensadas pela teoria freudiana, sendo a múltipla personalidade um fenômeno que pode ser interpretado à luz das explicações sobre a cisão da consciência, embora Freud nunca o tenha analisado detalhadamente.
Considerações finais
A divisão da consciência foi entendida, inicialmente, à luz das investigações sobre a histeria, sendo que é a partir de tal clivagem que Freud deu início ao esboço de uma teoria da personalidade. A tentativa de explicar a estrutura da histeria, seus mecanismos de funcionamento e sua natureza, conduziu o pai da psicanálise às questões que versam sobre a consciência, o inconsciente e o papel desempenhado pelo eu (ego), temáticas que também fazem parte do escopo da filosofia e movimentam, seguramente, diversas discussões filosóficas. Em relação ao que foi proposto por pensadores como Azam e Janet, no que se refere a compreensão de fenômenos da múltipla personalidade, por exemplo, Freud foi numa direção contrária, propondo uma teoria da defesa inovadora, cujo efeito mais notável foi a possibilidade de propor uma noção de inconsciente. Seguramente, este é um dos eixos centrais da teoria freudiana da personalidade e de toda a psicanálise.
Para compreender a teoria da personalidade em Freud, é imprescindível levar em conta a influência do contexto histórico em que ele estava inserido. Conforme ressaltam Roudinesco e Plon (1998), as ideias de Spaltung[30], dissociação e discordância foram, no fim do século XIX, pensadas por doutrinas que estavam discursando sobre o automatismo mental (ou psicológico, para dizer com Janet), a hipnose e as personalidades múltiplas. As discussões sobre a consciência dupla, ou “clivagem do eu” (Ichspaltung), abordaram a hipótese da coexistência de duas personalidades que se ignoravam mutuamente numa relação em que uma era, às vezes, oposta da outra. Evidentemente, encontramos uma outra interpretação deste fenômeno na fase tardia de Freud, isto é, a partir do desenvolvimento de sua metapsicologia, momento em que se nota o surgimento de uma nova interpretação sobre a personalidade, pensando-a agora a partir de diferentes instâncias – Id, Ego e Superego. Especialmente nos anos entre 1893-1895, percebe-se que Freud ainda estava ligado às discussões de seus mestres – Janet e Breuer –, os quais pensavam os fenômenos de alterações da personalidade a partir da análise da histeria. Sendo assim, compreender a múltipla personalidade em Freud, fenômeno que fora tão bem descrito por Azam e Janet, exige a consideração de alguns elementos de suas análises da histeria.
Mais tarde, esse fenômeno tão marcante, e que indica uma grave alteração da personalidade, foi apropriado pelo diagnóstico psiquiátrico, vindo a compor pela primeira vez o volumoso DSM-III, em 1980[31]. Serban Ionescu, por exemplo, aponta uma relação importante entre trauma e dissociação de identidade, patologia notadamente conhecida como transtorno dissociativo de personalidade (TDI). Segundo esse mesmo autor, esse transtorno estava ligado, inicialmente, à histeria, podendo ser lido pelas lentes de Freud e Breuer a partir da relação entre trauma e dissociação que, tal como vimos, eles estabeleceram desde a Comunicação preliminar. Embora a múltipla personalidade seja uma noção que tenha sofrido diversas interpretações, para compreendê-la no contexto da teoria freudiana é indispensável evocar suas análises sobre a clivagem da consciência, a qual está ligada à teoria da defesa.
Referências Bibliográficas
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Yago Antonio de Oliveira Morais
Doutorando em Filosofia pela UFSCar. Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), no campus em Marília/SP. Mestre pela mesma instituição. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia Contemporânea, sobretudo na filosofia de Henri Bergson. Desenvolveu pesquisas de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) intituladas "A crítica à psicofísica na filosofia de Bergson" e "Informação e Semiótica". É membro do Grupo de Pesquisa Pensamento Francês Contemporâneo, vinculado ao diretório do CNPq e da Société des amis de Bergson.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] O presente trabalho contou com o apoio
financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. Processo nº
2020/08740-7.
[2] Cf. NICOLAS,
Serge & FERRAND, Ludovic. Histoire de la psychologie scientifique.
Bruxelles: Éditions De Boeck Université, 2008.
[3] Cf. CARROY,
Jacqueline; OHAYON, Annick; PLAS, Régine. Histoire de la psychologie en
France. XIX-XX siècles. Paris: Éditions La Découverte, 2006.
[4] Théodule Ribot, por sua vez, foi fundamental para que a psicologia científica pudesse abandonar de vez a filosofia e toda a metafísica que lhe acompanhava. Suas discussões sobre o Eu, por exemplo, visavam pensá-lo não mais no sentido metafísico, mas do ponto de vista biológico. Ribot tinha como eixo central a “psicologia experimental”, cuja característica consiste em recusar a ideia de alma. Para tanto, cf. RIBOT, Théodule. As doenças da personalidade. São Paulo: Editora Unifesp, 2020.
[5] Carroy Jacqueline. Demi-consciences et double consciences. Un parcours historique. In: L’Évolution Psychiatrique, 2015; 80 (1), p. 41-53.
[6] As discussões que filósofos como Hume e Locke estabeleceram, do lado do empirismo, e Kant, do lado da filosofia crítica, por exemplo, circunscrevem-se na direção de uma problematização sobre a unidade e multiplicidade do Eu.
[7] Cf. HACKING, I. Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. 132.
[8] A respeito do termo “personalidade” utilizado aqui, cabe uma ressalva. O próprio Azam, textualmente, coloca um questionamento que nos leva a indagar sobre se há efetivamente diferenças entre uma mudança de humor, de comportamento e de personalidade. Ou seja, em que medida esses termos seriam sinônimos ou se realmente apontam para coisas distintas. Textualmente, Azam escreve sobre o caso Félida o seguinte: “Será que ela tem uma personalidade dividida, uma vida dupla? Isso é um um caso de dupla consciência? Ou apresenta uma alteração da memória que, por afetar apenas a memória, deixa intactas as outras faculdades da mente?” (Azam, 1887, p. 104). Poderíamos dizer que uma personalidade corresponde exatamente a uma dupla consciência? Os termos que ele mobiliza não ficam claros em relação a esse ponto. O que vale a pena indicar é que o uso de certa terminologia gerou um debate relevante. Conforme nota Hacking, Philip Coons, por exemplo, colocou em questão a consideração de que se trata de “alteração de personalidades”, indicando, assim, que o melhor seria falar em “estados” de personalidade. Cf. HACKING, I. Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. 17.
[9] O sonambulismo, conforme mostra Hacking, também possui uma história atravessada por diversos dilemas. O autor aponta ainda algumas diferenças entre a utilização do termo, as quais se deram em diferentes países. Para tanto, cf. HACKING, Ian. Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. 142-158.
[10] O debate acerca da histeria foi sistematizado
principalmente por Charcot. Este considerava-se o pai da histeria, embora tenha
sido rejeitado por uma boa parte da psiquiatria de sua época. Sobre este ponto,
cf. CARROY, Jacqueline; OHAYON, Annick; PLAS, Régine. Histoire de la psychologie en
France. XIX-XX siècles. Paris: Éditions La Découverte, 2006.
[11] Sem dúvida, há que se levar em conta a atmosfera intelectual da época de Janet, a qual foi marcada por diferentes formas de descrever e observar os fenômenos de “demi-conscience” e “double conscience”, ou seja, estados mentais conscientes e inconscientes, conforme demonstra Carroy (2015).
[12] Cf. JANET, Pierre. L’état mental des hystériques. Paris: Félix Alcan, 1911. Segundo Janet: “[...] o principal é um enfraquecimento da faculdade de síntese psicológica, uma abulia, um estreitamento do campo da consciência que se manifesta de uma maneira particular: um certo número de fenômenos elementares, sensações e imagens cessam de ser percebidos e parecem ser suprimidos da percepção pessoal; disto resulta uma tendência à divisão permanente e completa da personalidade, a formação de diversos grupos independentes uns dos outros” (Janet, 1911, p. 447, tradução nossa).
[13] O trabalho de Ian Hacking, por exemplo, cita autores como Taine, Émile Littré e Ribot, ilustrando assim a riqueza da temática e indicando os diálogos entre psicologia e filosofia. Cf. HACKING, I. Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University Press, 1998.
[14] Este período, portanto, abarca os estudos sobre a histeria, os quais foram realizados em coautoria com Josef Breuer.
[15] Cf. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora., 2009, p. 34.
[16] Textualmente, lemos o seguinte: “Nossa observação mostrou, por outro lado, que as memórias que se tornaram os determinantes dos fenômenos histéricos persistem por muito tempo com uma frescura surpreendente e com toda a sua coloração afetiva. Devemos, entretanto, mencionar outro fato notável, que mais tarde poderemos explicar, a saber, que estas memórias, ao contrário de outras memórias de suas vidas passadas, não estão à disposição dos pacientes. Pelo contrário, essas experiências estão completamente ausentes da memória dos pacientes quando eles estão em um estado psíquico normal, ou estão presentes apenas de uma forma altamente sumária. Só depois de terem sido questionadas sob hipnose é que estas memórias emergem com a vivacidade de um evento recente” (Freud, 1955, p. 9, tradução nossa).
[17] Todas as passagens dos textos de Freud usados aqui serão traduzidas do inglês por nós. Optamos por utilizar a conhecida tradução inglesa feita e organizada por James Strachey, embora saibamos que há algumas dificuldades em relação a alguns conceitos.
[18] Em outras traduções para o português como, por exemplo, a de Laura Barreto, publicada pela Companhia das letras, e revisada por Paulo César de Souza, encontramos o termo “cisão”.
[19] Para descrever tal fenômeno, nota-se que Azam
utilizou inicialmente o termo “dédoublement de la vie”, vindo
posteriormente a utilizar “dédoublement de la personnalité”, “double
personnalité” e, por fim, em 1878, “double conscience”. Para tanto, cf. CARROY,
Jacqueline; OHAYON, Annick; PLAS, Régine. Histoire de la psychologie en France.
XIX-XX siècles. Paris: Éditions La
Découverte, 2006. Hacking, por sua vez, atesta ser o mesmo termo usado por Azam
e apropriado por Breuer e Freud. Cf. HACKING, Ian. Rewriting the soul: multiple
personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University
Press, 1998, p. 129.
[20] HACKING, Ian. Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. 150. A oposição em jogo aqui, entre consciousness e conscience, é dada porque o primeiro termo pode significar “estar consciente de”, enquanto que o segundo refere-se ao “aspecto moral” de uma ação, isto é, a consciência moral de alguém (Gewissen, no alemão, por exemplo) que realiza determinado ato. Sendo assim, “consciousness” abrange um sentido maior, especialmente a noção de vida psíquica ou, ainda, vida psicológica.
[21] Este, por sua vez, não pode mais se referir à consciousness, uma vez que aponta para a vida, a personalidade e tudo aquilo que diz respeito ao que é ativo na alma humana, segundo a leitura de Hacking (1998).
[22] Segundo Freud: “Qualquer experiência que suscite afetos penosos – como o pavor, ansiedade [anxiety], vergonha ou dor física – pode operar como um trauma deste tipo [trauma psíquico]” (Freud, 1955, p. 6).
[23] Freud é enfático sobre este ponto: “É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, imediatamente e permanentemente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. Recordar sem afeto [Recollection without affect] quase invariavelmente não produz nenhum resultado” (Freud, 1955, p. 6).
[24] Cf. LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 522.
[25] Embora essa noção seja capital para a psicanálise, aqui ela ainda não possui um peso conceitual tal como virá adquirir posteriormente. Para tanto, cf. MEZAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. 5º ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 4-9.
[26] Cf. LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 66.
[27] Segundo Laplanche e Pontalis, a expressão usada por Freud – clivagem do ego – serve, especialmente, para a explicitação dos casos de fetichismo e psicose. Embora tenha sido usado, inicialmente, no âmbito da neurose, esta noção foi ampliada com o advento da metapsicologia freudiana em seus textos posteriores, sobretudo os dos anos 20. Cf. LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 65-67.
[28] Conforme ele explica na discussão do caso de Miss Lucy R., o método histérico de defesa, portanto, “[...] reside na conversão da excitação em uma inervação somática” (Freud, 1955, p. 122).
[29] Vale lembrar, sobre o recalque, conforme notam Roudinesco e Plon: “O recalque não lida com as pulsões em si, mas com seus representantes, imagens ou idéias, os quais, apesar de recalcados, continuam ativos no inconsciente, sob a forma de derivados ainda mais prontos a retornar para o consciente, na medida em que se localizam na periferia do inconsciente” (Roudinesco e Plon, 1998, p. 648).
[30] Palavra que refere-se a noção alemã Ichspaltung, cuja tradução pode ser vertida por “clivagem do eu”.
[31] Cf. IONESCU, Serban. Trouble dissociatif de l’identité (personnalité multiple) et conduite délictueuse. In: Bulletîn de Psycholoqie. tome 52 (5), nº 443, 1999, p. 563-564.