AMOR: PAIXÃO DA ALMA, TRANSTORNO OBSESSIVO OU DISPOSIÇÃO EVOLUTIVA?

Love: a passion of the soul, an obsession, or an evolutionary disposition?

Maria Borges

0000-0002-4606-7919

mariaborges@yahoo.com

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/CNPq

Recebido: 01/08/2023

Received: 01/08/2023

Aprovado: 28/09/2023

Approved: 28/09/2023

Publicado: 29/12/2023

Published: 29/12/2023

Resumo

O que é o amor? Cantado por poetas e músicos, causas das maiores alegrias e tormentos, o amor é difícil de ser definido. Neste texto, apresento algumas possibilidades de compreensão do amor, iniciando pela tradição de pensar o amor como uma paixão da alma. Num segundo momento, vou apresentar a concepção fisiológica do amor, tal como foi defendida no livro Love is the drug. Abordarei também uma terceira possibilidade, na qual o amor está relacionado a estratégias evolutivas.

Palavras-chave: amor, paixão da alma, transtorno obsessivo, disposição evolutiva.

Abstract

What is love? Sung by poets and musicians, the cause of the greatest joys and sorrows, love is difficult to define. In this text, I will present some ways of understanding love, beginning with the tradition of thinking of love as a passion of the soul. Second, I will present the physiological conception of love as defended in the book Love is the Drug. I will also consider a third way in which love is related to evolutionary strategies.

Keywords: love, passion of the soul, obsessive disorder, evolutionary disposition.

A amor como paixão da alma

Descartes que nos fala do amor como uma das paixões da alma, que são modos da união substancial entre corpo e espírito. Ou seja, ainda que a res extensa e a res cogitans, nosso corpo e nosso eu pensante, possam ser concebidas distintamente, segundo seus predicados de extensão e de pensamento, há uma união dessas substâncias que forma propriamente o ser humano. As paixões não são assim meramente pensamentos, mas incluem movimentos e agitações corporais.

Ao falar do amor, ele descreve a relação entre essa emoção e os órgãos vitais, intermediada pela trajetória dos “espíritos animais”, substâncias rarefeitas que corresponderiam ao que hoje chamamos de impulsos neuroquímicos. 

Estas observações e tantas outras que seria demasiado longo descrever, me fizeram crer que, na medida em que o entendimento se representa algum objeto de amor, a impressão que este pensamento causa no cérebro conduz os espíritos animais, pelos nervos do sexto par, em direção aos músculos que circundam os intestinos e o estômago, de forma a fazer com que o suco das carnes, que se converteu em sangue novo, passe rapidamente em direção ao coração sem se deter no fígado. Sendo conduzido ao coração com mais força do que aquele sangue que está em outras partes do corpo, ele aí penetra em maior abundância e excita um maior calor, visto que ele é mais espesso do que aquele que já foi rarefeito várias vezes ao passar e tornar a passar pelo coração. Tal faz com que ele envie os espíritos ao cérebro, espíritos cujas partes são mais espessas e mais agitadas do que o normal, e estes espíritos, fortalecendo a impressão feita pelo primeiro pensamento sobre o objeto amado, obrigam a alma a deter-se neste pensamento, e é nisto que consiste a paixão do amor  (Descartes, Paixões da Alma, art. 102).

A descrição da paixão do amor por Descartes indica que o apaixonado se detém no pensamento do amado, mas além disso, a paixão é uma disposição à ação. Aquele que é acometido pela paixão do amor tem uma propensão a unir-se ao amado. Por essa razão, a separação dos amantes causa tanto sofrimento.

Se a paixão do amor pode levar ao prazer e ao êxtase amoroso, ela também pode ser responsável pelo sofrimento causado pela desmedida. A peça Fedra de Sêneca nos apresenta o tumulto, a dor e o tormento da personagem principal, que se apaixona perdidamente por Hippolito, seu enteado.

Sêneca nos mostra um retrato do Cupido mais perigoso do que o Eros do Banquete. Nesta obra de Platão, Diotima nos ensina que Eros foi concebido no aniversário de Afrodite, sendo filho de Penia (a pobreza) e de Poros (o esperto). Já víamos aí a humilhação e as súplicas que os que amam dirigem àqueles que são amados, pois “por ter herdado a natureza da mãe, perambula às portas, perdido nas ruas, inquilino da miséria” (O Banquete, 204b; Platão, 2008, p.95). O cupido de Diotima também é esperto como o pai Poros e vive pensando em estratagemas para conquistar o amado. Em meio a estrepolias e súplicas, o pequeno Eros causava alguns estragos, mas não era um Deus torpe, ainda que com suas flechadas pudesse se divertir à custa dos humanos distraídos.

Para Sêneca, o Cupido, versão romana de Eros, não era tão inofensivo e seus danos àquele que ama vão bem mais além do que a humilhação das súplicas. Assim o descreve a Ama de Fedra, na peça homônima:

Que o amor seja um Deus, a libido torpe e favorável ao vício

o inventou, e para que fosse mais livre,

Deu à sua loucura o falso pretexto de divindade.

Ericina envia, sem dúvida, o filho a vagar

Por todas as terras, e ele, voando pelo ceu,

Com a mão delicada, lascivas flechas atiram

E, de todos os deuses o mais jovem, possui tamanho reino (Fedra, 195, 200).

(Sêneca, 2007, p. 35)

Cupido representa a libido torpe, a lascívia tornada um Deus. Ele atira suas flechas livremente e incendeia os humanos, que se tornam incapazes de seguir a razão.

Um aspecto importante da paixão do amor erótico é a incapacidade de o apaixonado fazer o que decide. Aqui a escolha de nada vale, pois o agente é impelido à ação. A ama relembra Fedra da monstruosidade dos amores de sua mãe pelo touro sagrado, insinuando que essa monstruosidade também se manifesta no amor proibido da madrasta pelo enteado. Fedra concorda com as advertências da ama, mas sente-se impotente para opor-se aos desígnios do Cupido.

Fedra:

O que rememoras,

sei-o verdadeiro, ama, mas a paixão me obriga

a seguir o pior. Ciente, meu espírito marcha para o precipício,

e tenta inutilmente retornar em busca de conselhos sãos.

Do mesmo modo, quando a pesada embarcação o navegante

Impele contra a onda adversa, em vão seu esforço cede

E, vencida, a popa é arrebatada pela inclinada correnteza.

Que poderia a razão? Venceu e reina o furor

E um poderoso deus domina toda a minha alma (Fedra, 177-185).

(Sêneca, 2007, p. 35)

Fedra admite que não decide seus atos pela razão e que o amor a impele a ações temerárias, assim como o marinheiro, em vão, tenta vencer a onda adversa que arrasta seu barco. Seria o amor uma doença, uma loucura transitória? Ou seria uma droga?

O amor é uma droga

No livro Love is the drug, escrito por Savulescu e Earp, ligados ao Uehiro Centre for Practical Ethics da University of Oxford, é investigada a possibilidade de usarmos substâncias químicas tanto para produzir, quanto para extinguir a paixão do amor. Tal intervenção, segundo os autores, ampara-se numa série de evidências das alterações químicas cerebrais sofridas pelos serem humanos quando amam. Um dos comportamentos peculiares de quem sofreu de uma decepção amorosa é, passado o período de cura, voltar àquele amor que o fazia sofrer. Qual a razão desse movimento? Alguns pensadores têm frisado que o comportamento do apaixonado é semelhante ao do viciado em drogas. John Elster, no livro Strong Feelings, Emotion, Addiction and Human behavior (Elster, 2000) foi um dos primeiros a relacionar emoções intensas e vício, afirmando que o funcionamento da mente dos apaixonados funciona como a do viciado em drogas, e sua dependência amorosa possui um fundamento nos neurotransmissores. Por essa razão, o viciado no amor tem dificuldade de separar-se da pessoa amada, por mais reprovável ou impossível que seja sua paixão.

Os pesquisadores do Uehiro Center concordam com Elster; o amor é, sim, uma droga. Ao apaixonar-se por Hippolito, Fedra admite que é tão impotente frente aos seus impulsos amorosos, como sua mãe ao apaixonar-se pelo touro dourado. Mãe e filha sentiram a loucura de um amor incontrolável e irracional. Ambas seriam presas de uma armadilha do coração, que na ciência contemporânea é explicada através da fisiologia cerebral.

Uma das experiências que indicam uma modificação neuroquímica no cérebro dos apaixonados foi realizada pela antropóloga e bióloga Helen Fisher, relatada no livro Why we Love, The Nature and Chemistry of romantic love. Os apaixonados foram recrutados na State University of New York (SUNY) com a chamadaHave you just fallen madly in love?” (Você acabou de se apaixonar perdidamente?) Eles eram selecionados, segundo alguns critérios, incluindo o de não estarem deprimidos. Feita a seleção, passavam por um exame de ressonância magnética funcional, para avaliar se havia alguma área no cérebro mais afetada pela paixão do amor. Foi detectado, através do exame, o aumento do fluxo sanguíneo numa determinada área, o centro de recompensa do cérebro. Houve também a confirmação da hipótese de que vários neurotransmissores estão associados à paixão amorosa: há uma alta na dopamina e noradrenalina e uma diminuição da serotonina.

A dopamina é responsável pela energia e foco no ser amado. Ela também dá uma sensação de bem-estar, muitas vezes tirando a fome e o sono. A baixa serotonina, contudo, induz a comportamentos obsessivos e compulsivos. Quando o amor é frustrado, seja por não ser correspondido, seja pelo rompimento, a dor psicológica será o resultado da diminuição do prazer devido à falta de dopamina, aliado ao pensamento muitas vezes constante no ser amado, ainda que o desejo seja de esquecê-lo.

Savulescu e Earp afirmam que temos três sistemas mentais distintos que fazem parte do amor romântico: o desejo, a atração e a ligação: “homens e mulheres podem copular com indivíduos por quem eles não estão apaixonados, podem estar apaixonados por alguém com quem não têm uma relação sexual e podem estar profundamente ligados a alguém por quem não nutram desejo sexual ou paixão romântica” (Earp, Savulescu, 2020, p. 125).

Um transtorno obsessivo-compulsivo?

Seria possível pensar uma forma química que atuasse como uma droga anti-atração? Os autores de Love is the drug se referem ao experimento da neurocientista Danatella Marazziti, segundo a qual a obsessão dos apaixonados, principalmente nos primeiros momentos do romance tem uma semelhança com desordens obsessivo-compulsivas, apresentando os mesmos baixos níveis de serotonina. Os autores sugerem que o mesmo tratamento utilizado nessa patologia poderia ser utilizado para diminuir os aspectos obsessivos de uma relação amorosa. O tratamento utilizado seria feito com base em inibidores seletivos de recaptação de serotonina (SSRIs), os quais provavelmente teriam um efeito de embotamento emocional dos intensos sentimentos envolvidos na paixão romântica, visto que a maioria dos pacientes tratados com esses medicamentos para depressão ou distúrbios obsessivo-compulsivos, “relatam uma menor habilidade para chorar, se preocupar, ficar bravo ou se importar com os sentimentos dos outros” (Earp, Savulescu, p. 129).

Em relação ao apego e ligação, haveria a possibilidade de utilizar drogas bloqueadores de ocitocina e dopamina. Ainda que não tenha sido feito nenhum estudo em humanos por razões éticas, os autores relatam estudos em mamíferos que apresentam uma proximidade no seu comportamento de acasalamento com os humanos, no caso, os ratos da padaria (prairie voles). Num estudo, quando era injetado neles bloqueadores do ocitocina ou dopamina, esses animais perdiam sua tendência monogâmica, não se ligando mais à fêmea com a qual copulavam, como era sua tendência anteriormente.

Ainda que não haja nenhum estudo em humanos sobre tais bloqueadores de oxitocina ou dopamina, os autores afirmam que álcool é uma droga que pode fomentar sexo sem envolvimento. Quando testado nos ratos da pradaria, o álcool curiosamente fazia com que os machos se tornassem promíscuos e os impedia de criar uma ligação, enquanto com as fêmeas dava-se exatamente o contrário. Que isso se passe dessa forma com os seres humanos, não se tem ainda nenhuma evidência.

Earp e Savulescu sugerem que todas essas experiências podem ser utilizadas para, num futuro próximo, produzir estratégias farmacológicos para diminuir ou bloquear atração, a paixão e a ligação romântica. Estaríamos não muito longe da possibilidade de extinguir uma paixão ou ao menos diminuir sua intensidade.

Amor como uma loucura temporária

Os fármacos sugeridos por Earp e Savulescu no livro Love is the drug remetem a ideia de um transtorno para o qual se busca uma cura. Seria o amor uma doença, uma loucura temporária? Podemos aqui relembrar Kant e sua concepção de afetos e paixões como doenças da mente. Ainda que o filósofo abarcasse uma série de emoções nos conceitos de afetos e paixão, a ideia de amor como doença encontra eco aqui:

Estar submetido a afetos e paixões é sempre uma enfermidade da mente, porque ambas excluem o domínio da razão. Ambas são também violentas segundo o grau, mas, no que diz respeito à qualidade delas, essencialmente diferentes uma da outra, tanto no método de prevenção quanto no de cura a ser empregado pelos médicos (Anth, AA 7: 251).

A fim de explicar em que consiste essa diferença entre a doença do afeto e da paixão, Kant dá exemplos remetendo-nos a doenças físicas, tais como um ataque epilético, dor de cabeça, ou intoxicação resultante da ingestão de bebidas alcoólicas ou veneno:

O afeto atua sobre a saúde como um ataque epiléptico; a paixão, como uma tísica ou definhamento. O afeto pode ser visto como uma bebedeira que se cura dormindo, mas que depois dá dor de cabeça; a paixão, porém, como uma doença causada por ingestão de veneno ou como uma atrofia (Anth, AA 7:252).

O amor como afeto se assemelharia a uma cegueira provisória, uma incapacidade de percepção da realidade, incluindo aí os defeitos do ser amado. O adagio o “amor é cego” é interpretado por Kant como uma cegueira provisória: “a pessoa que está apaixonada é cega em relação aos erros do objeto de amor, ainda que essa recupere sua visão uma semana depois do casamento” (Anth, AA 7:253).

Poderia o amor-afeto transformar-se em amor paixão? O amor afeto não se transformaria em paixão, a não ser que jamais fosse satisfeito através do deleite físico. Nesse caso, o amor poderia então assumir o aspecto obsessivo de outras paixões, como a ambição. E se alguém enlouquece por amor é porque já estava perturbado ao escolher um alvo impossível.

Ao analisar a doença mental, Kant afirma que as pessoas dizem que “ele ficou louco de amor”, mas o fato é que ele já estava louco: “Apaixonar-se por uma pessoa de uma classe da qual esperar o casamento é a maior loucura não foi a causa, mas sim o efeito da loucura” (Anth, AA 7: 217). Este exemplo é analisado na secção relativa à doença mental. Embora a relação entre o amor como paixão e a doença mental fosse muito inespecífica, a ideia de Kant não está muito longe da descoberta de uma instabilidade neuroquímica no amor, o que está de acordo com a referências feitas por Earp e Savulescu. Essa loucura temporária reflete as descobertas já mencionadas da neurocientista italiana Donatella Marazziti, relativa aos baixos níveis de serotonina do amor, que são achados compatíveis com o transtorno obsessivo- compulsivo.

Por que somos sensíveis a essas paixões que se assemelham a distúrbios obsessivo-compulsivos? Há algo na nossa natureza enquanto primatas humanos que nos induzem a essa “loucura temporária”?

Amor como estratégia evolutiva

O amor é peculiar apenas aos humanos ou os animais também amam? Segundo Karen Fisher, os animais também exibem comportamentos típicos do amor romântico. Ao analisar o comportamento de raposas, ela afirma: “energia excessiva, atenção concentrada, perseguição obstinada e todas as lambidas e mordidas ternas que as raposas concedem umas às outras são certamente reminiscentes do amor romântico humano. E as raposas são apenas uma das muitas espécies que mostram aspectos de romance” (Fisher, 2004, p 26).

Darwin, no livro The expression of the emotions in Man and animals, também admite que os animais sentem alguma atração que os leva à interação sexual. Ele vai além, afirmando que os animais se apaixonam e que os animais superiores compartilham com os humanos emoções e paixões similares, mesmo as mais complexas, como ciúmes, suspeita, emulação, gratidão e magnanimidade (Darwin, 1872 apud Fisher, 2004, p. 26). Ainda que muitos cientistas admitam que os animais tenham emoções próximas as humanas, poucos aceitariam que o amor estivesse entre essas.

Karen Fisher descreve o processo de acasalamento em vários animais, localizando alguns elementos que fazem parte do amor romântico. Em relação aos elefantes, ela descreve a aproximação do elefante fêmea, Tia, e do elefante Bad Bull, mostrando como não se tratava apenas de um instinto totalmente irracional, mas havia uma escolha do parceiro, uma alegria ao ser correspondido e uma energia intensa, similar aos estados de apaixonamento dos humanos. Poderia haver amor entre esses dois elefantes? Ou um crush temporário? Fisher responde: “Tia e Bad Bull focaram sua atenção inteiramente um no outro. Ambos exibiram intensa energia. Nenhum dos dois comia ou dormia com a mesma regularidade que os elefantes. E eles se tocaram e ‘conversavam’ numa voz baixa, suave, longa e retumbante” (Fisher, 2004, p. 29).

A autora descreve as características de atração em outras espécies, apontando que para algumas, como os castores, a atração e o acasalamento independem da fertilidade da fêmea. Novamente a pergunta: seria amor? Fisher sugere uma resposta positiva: “Há tantas descrições de atração entre os animais que é impossível contá-las todas. Li sobre a vida amorosa de algumas centenas de espécies diferentes e, em todas as sociedades animais, machos e fêmeas que fazem a corte exibem traços que são componentes centrais do amor romântico humano” (Fisher, 2004, p. 31). Esses traços seriam a energia intensa, a persistência, o nervosismo, além de alguns sinais de ternura. Em primatas superiores, como os chimpanzés, esses sinais de ternura, que incluem o beijo, podem ser constatados: “Os chipanzés abraçam, dão tapinhas e beijam as coxas e a barriga um do outro. Eles até se beijam com o profundo ‘beijo francês’, inserindo a língua suavemente na boca de um parceiro de acasalamento” (Fisher, 2004, p. 37).

Um outro sinal importante seria a escolha de um parceiro específico, o que parece ser o caso. Segundo a autora, essa é uma característica essencial do amor romântico, pois não nos apaixonamos por qualquer parceiro, mas por um parceiro específico: “De todas as características do amor romântico humano que outras criaturas exibem, talvez nenhuma seja mais reveladora do que a escolha. Assim como você e eu não estamos dispostos a pular na cama com qualquer um que pisque para nós, nenhuma outra criatura desse planeta gastará tempo e energia preciosa acasalando indiscriminadamente” (Fisher, 2004, p. 39).

Os aspectos analisados na relação entre os animais, tais como a energia dirigida a um foco, euforia, persistência, forte desejo, falta de sono e apetite, são características da dopamina e norepinefrina, que estão presentes no cérebro dos mamíferos.  Isso é possível de ser visto no comportamento das fêmeas dos ratos de laboratório:

As ratas de laboratório expressam suas intenções amorosas pulando e sendo ousadas, comportamentos associados a níveis aumentados de dopamina. Nos ratos da pradaria, pequenas criaturas muito parecidas com camundongos do campo, níveis elevados de dopamina no cérebro estão diretamente associados a uma preferência por um parceiro de acasalamento em particular (Fisher, 2004, p. 47).

Esta preferência por um parceiro em particular, em detrimento dos outros, é uma das características da paixão amorosa humana. O amor humano não teria nenhuma diferença em relação ao pretenso amor dos animais? Duas são as principais diferenças. Os seres humanos desenvolveram a fala, que elevou a conquista a um outro patamar. Quantos poemas de amor não foram feitos para seduzir e cortejar o ser amado? O amor romântico humano seria um desenvolvimento do amor animal, com uma duração maior. Se a atração entre os animais pode ser muito breve, o amor romântico humano é mais concentrado num único indivíduo por um tempo maior.

A hipótese evolutiva do desenvolvimento desse tipo de paixão encontra-se, segundo Fisher, na passagem dos nossos ancestrais de criaturas que viviam nas árvores para seres que caminhavam no chão. As fêmeas, que antes podiam carregar seu filhote nas costas, agora andavam sobre dois pés e precisavam segurar sua cria com as mãos. Nesse contexto, ela passa a necessitar de um homem que a proteja. Para o homem, o amor monogâmico é consequência da sua possibilidade de cuidar e proteger apenas uma mulher e suas crias. Fisher afirma que “à medida que nossos antepassados adotaram a vida no terreno plano, a união dos pares tornou-se imperativa para as fêmeas e prática para os machos. E a monogamia, o hábito humano de formar um vínculo de par com um indivíduo de cada vez, evoluiu” (Fisher, 2004, p. 130). A tendência humana seria, portanto, apaixonar-se e formar relações monogâmicas sucessivas.

Seria possível esquecer um amor?

Sendo uma paixão da alma, uma loucura provisória ou uma estratégia evolutiva, o amor é responsável pelo nosso delírio e êxtase, mas também pela nossa dor. E essa dor está ligada à lembrança de um amor que não deu certo e acabou. Seria possível esquecer o amor?

No filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Clementine recorre a uma empresa que apaga as memórias de relacionamento com seu amado. Ele, ao saber disso, pensa em fazer o mesmo, mas não consegue se decidir. Quem de nós, tendo vivido a dor de um amor, não gostaria de apagar todas as memórias relativas ao nosso romance e mesmo da própria existência do ser amado? A nossa mente sem lembranças não nos daria consolo e finalmente alívio e paz? Não sem razão, o filme cita a poesia de Alexandre Pope, que fala do trágico amor de Abelardo e Heloísa. A parte citada refere-se a sua renúncia ao mundo exterior e entrada no convento:

How happy is the blameless vestal lot!

The world forgotten, by the world forgot

Eternal Sunshine of the spotless mind

Each pray accepted, and each wish resigned

Mas quem estaria disposta a renunciar ao êxtase amoroso, mesmo que ele possa causar tanta dor? E estaria a possibilidade do esquecimento em nosso poder? Seja uma paixão da alma, um delírio causado por neurotransmissores em desequilíbrio ou o resquício de nossa parte animal, extinguir o sentimento de amor através da razão - ou mesmo de fármacos - ainda está longe de ser uma possibilidade real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DESCARTES, Réne. Les passions de L´ame, Oeuvres de Descartes. Vol. XI. Edição Adam/ Tannery. Paris: Vrin, 1964-76.

EARP, D; SAVULESCU. Love is the drug. Manchester: Manchester Univeristy Press, 2020.

ELSTER, Jon. Press, Strong Feelings, Emotion, Addiction and Human behavior. Cambridge: MIT Press, 2000

FISCHER, Helen. Why we Love, The Nature and Chemistry of romantic love. New York: Henry Holt and Company, 2004.

KANT, I. Antropologia do ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006

KANT, Immanuel. Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Anth). Kants gesammelte Schriften. Band 7 (Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1900)

PLATÃO. O Banquete. Tradução Donaldo Schuler. 2008.

SENECA. Fedra. São Paulo: Peixoto Neto, 2007.

Maria Borges

Possui mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996). Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Fez pós-doutorado na University of Pennsylvania (1999), na Humboldt Universität (2006) e na Columbia University (2014). Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Kant, Hegel, ética, emoções e filosofia feminista.

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