A inveja e a justiça na sociedade bem-ordenada[1]
The
envy and the justice in the well-ordered society
Alexsandra
Andrade Santana
alexsandraandrades@hotmail.com
UFS – Universidade Federal de Sergipe
Recebido: 05/11/2023
Received: 05/11/2023
Aprovado: 08/11/2023
Approved: 08/11/2023
Publicado: 25/12/2023
Published: 25/12/2023
RESUMO
John Rawls, ao desenvolver sua teoria da justiça como equidade, dedicou esforços a demonstrar que a sua concepção política de justiça é intrinsecamente estável ao criar as condições para que a “inveja geral desculpável” não se prolifere na sociedade bem-ordenada, justa e desigual. Tal solução foi contestada por Jean-Pierre Dupuy, segundo o qual Rawls teria sido ingênuo ao acreditar que a solução do “problema da justiça” seria capaz de resolver também o “problema da inveja”. O presente trabalho visa investigar a pertinência de tais observações a partir da forma como a solução do “problema da justiça” é capaz, ou não, de lidar com o “problema da inveja”. A tese a ser defendida é a de que, apesar dos esforços de Rawls, os riscos advindos da inveja são apenas parcialmente evitados, uma vez que a inveja que pode desestabilizar a concepção política de justiça não se limita à “inveja geral desculpável”.
Palavras-chave: inveja, estabilidade social, desigualdade, John Rawls, Jean-Pierre Dupuy.
ABSTRACT
John Rawls, in developing
his theory of justice as fairness, devoted efforts to demonstrating that his
political conception of justice is intrinsically stable by creating the
conditions, so that “excusable general envy” does not proliferate in a well-ordered,
just and unequal society. That solution was
contested by Jean-Pierre Dupuy, according to whom Rawls would have been naïve
in believing that the solution of the “problem of justice” would also solve the
“problem of envy”. This paper aims at investigating the relevance of such
observations, considering whether or not the solution to the “problem of
justice” is also an effective way of dealing with the “problem of envy”. The
thesis to be defended is that, despite Rawls's efforts, the risks arising from
envy are only partially avoided, since the envy that can destabilize the
political conception of justice is not limited to “excusable general envy”.
Keywords: envy, social stability,
inequality, John Rawls, Jean-Pierre Dupuy.
Introdução
A inveja surge fundamentalmente do entrecruzamento dos olhares, numa sociedade moderna que está profundamente dividida por desigualdades sociais e econômicas, mas que defende a ideia de que as pessoas são livres e iguais por natureza. A sociedade bem-ordenada, proposta por John Rawls, em Uma teoria da justiça[2], está inserida, exatamente, nesse contexto: é, sem sombra de dúvidas, uma sociedade moderna que busca equacionar as demandas de liberdade e de igualdade, mas que sanciona desigualdades justas, através da adoção do “princípio da diferença”.
Rawls dedicou esforços a demonstrar que a sua concepção política de justiça é intrinsecamente estável ao criar as condições para que a inveja não se prolifere na sociedade bem-ordenada, justa e desigual. Na sua exposição, os perigos da inveja são observados nas duas partes do argumento a favor da concepção de justiça como equidade, tanto na posição original, momento em que sua presença atrapalharia o processo da escolha racional, quanto na sociedade bem-ordenada, na qual a inveja pode representar um fator de instabilidade social.
Apesar da centralidade do “problema da inveja”, o tema aparece pouco na literatura secundária que trata do pensamento rawlsiano, e, quando aparece, é, em geral, tratado como um elemento menor dentro da sua argumentação. Posso pensar em duas possíveis razões para isto. A primeira diz respeito ao fato de que o teste de estabilidade, no qual está inserido a argumentação sobre o “problema da inveja”, recebeu pouca atenção dos comentadores até o momento em que Rawls o retoma em O liberalismo político[3], afirmando que haveria um erro grave na Parte III de Teoria: ali a justiça como equidade é tratada como uma “doutrina abrangente”, e isso seria incompatível com o “fato do pluralismo razoável” da sociedade democrática liberal à qual sua filosofia se destina, o que comprometeria sua estabilidade.[4] A segunda razão é que, apesar das revisões, Rawls (2003, [JER, §55.1], p. 262-263) manteve todos os principais pontos de seu argumento sobre a inveja, advertindo seus leitores de que as inclusões de novos elementos sobre a psicologia moral e sobre o bem da sociedade teriam apenas um caráter suplementar ao que já havia sido apresentado em Teoria. Assim, não havia necessidade para a retomada do “problema da inveja” nas suas obras posteriores.
A manutenção da importância do “problema da inveja” pode, ainda, ser constatado em Justiça como equidade: uma reformulação, na qual Rawls (2003, [JER, §25.5], p. 125) reafirma o que havia dito em Teoria (1997, [TJ, §80], p. 590) a respeito do teste de estabilidade: se for constatado que os cidadãos que nascem e crescem numa sociedade bem-ordenada desenvolvem as características das “psicologias especiais” que incluem a inveja, então será necessário reconsiderar a adoção dos princípios da justiça como equidade.
Apesar de Rawls acreditar que teve bom êxito no seu argumento a favor da concepção de justiça como equidade, Jean-Pierre Dupuy[5] (2020) contesta a solução do “problema da inveja”. Para o francês, Rawls não teria sido bem-sucedido em seu desígnio, muito pelo contrário, ele teria cometido um erro filosófico fundamental ao acreditar que há uma solução para o “problema da justiça” e que tal solução é capaz de resolver o “problema da inveja”. O problema principal é que não há solução para o problema da justiça social numa sociedade moderna marcada pelo individualismo e pela aversão às externalidades, muito menos para a inveja. A ingenuidade de Rawls foi acreditar nas palavras do invejoso que acusa a injustiça social e o acaso da natureza como sendo as causas tanto do seu infortúnio quanto da prosperidade dos mais favorecidos. Para Dupuy (2001), a queixa dos invejosos na sociedade moderna nada mais é do que uma “crença estabilizadora”, uma forma de escapar do sofrimento causado pela concorrência, que lhe é característica. O francês acusa Rawls de ter ignorado as lições de Alexis de Tocqueville (2000), segundo o qual a causa dos problemas da sociedade moderna decorre da “igualdade das condições”, cujas consequências são: a) “ódio à exterioridade”; e b) “o refluxo de todos os valores na esfera individual” (Dupuy, 2020, p. 189-190).
A única maneira de resolver definitivamente o “problema da inveja” é regressar à sociedade hierárquica, na qual a “natureza” define o lugar de cada um na distribuição social. No entanto, ninguém está realmente disposto a fazer isso. Manter-se na sociedade moderna implica em saber manejar a inveja e outros sentimentos socialmente destrutivos. Para tanto, é necessário investigar: a) “como se pode minimizar ou adiar os [seus] efeitos”; e b) como canalizá-los “frente a formas benignas e mesmo produtivas” etc. (Dupuy, 2020, p. 191). Acreditar que o “problema da inveja” está resolvido é nos colocar numa situação de perigo, por isso, Dupuy defende a recusa completa da proposta de Rawls.
A partir das observações críticas de Dupuy, o presente trabalho visa investigar a pertinência de tais observações a partir da forma como a solução do “problema da justiça” é capaz, ou não, de lidar com o “problema da inveja”, mais precisamente, investiga como, a partir da solução do “problema da justiça”, Rawls acredita resolver o “problema da inveja”. Para alcançar tal objetivo geral, foi preciso compreender as razões que levaram a inveja a ser considerada um problema para a concepção de justiça como equidade e o tratamento da inveja nas duas partes do argumento rawlsiano a favor da concepção de justiça como equidade, dando especial destaque, na primeira parte, ao argumento que leva a escolha da desigualdade justa e, na segunda parte, às soluções das três causas da “inveja geral desculpável”.
A inveja como um problema para a concepção de justiça como equidade
Rawls (1997, [TJ, §73], p. 534-535) estabelece uma distinção entre sentimentos morais e sentimentos não morais. Um sentimento moral exige um tipo de explicação que passa necessariamente pela referência a um conceito moral ou a princípios morais, como, por exemplo, os conceitos do bem e o da justiça. No caso de sentimentos não morais, a explicação será de outra natureza. A partir dessa distinção, Rawls (1997, [TJ, §80], p. 593) adverte que não se deve confundir a inveja com o ressentimento, pois “a inveja não é um sentimento moral”, enquanto “o ressentimento é um sentimento moral”.
Tanto a inveja quanto o ressentimento partem da mesma constatação: há uma desigualdade e o que tem menos sente inveja ou ressentimento em relação ao que tem mais. No caso da inveja é suficiente alegar que a constatação da boa sorte de outro gera um “senso de mágoa e perda”, levando o invejoso a desenvolver um rancor e uma hostilidade contra aquele que está em melhor condição do que ele próprio. No caso do ressentimento, além da constatação da desigualdade, o ressentido precisa recorrer ao princípio moral da justiça para justificar o seu sentimento, seja acusando a injustiça das instituições sociais ou a desonestidade daquele que possui mais. Assim, aqueles “que expressam ressentimento devem estar preparados para demonstrar por que certas instituições são injustas ou como os outros os prejudicaram” (Rawls, 1997, [TJ, §80], p. 593).
Sendo a sociedade bem-ordenada aquela que adota os princípios de justiça como reguladores das suas instituições básicas, então não haveria razão para temer o ressentimento, no entanto, como justificar a preocupação com a inveja, que não decorre da injustiça? Avalio que haja duas razões principais para Rawls ter esse tipo de preocupação ao elaborar uma concepção política de justiça: a) a forte influência que as filosofias de Rousseau e de Kant exercem sobre o seu pensamento; e b) a aceitação, a escolha e a sanção da desigualdade social e econômica pela justiça como equidade, causa principal das origens psicológicas e sociais da inveja.
Quanto à primeira razão, Rawls (1997) se declara como herdeiro da tradição contratualista. A crença de que a solução do “problema da justiça” é capaz de resolver o “problema da inveja” é herdeira de Rousseau, conforme pode ser lido nas Conferências sobre a história da filosofia política (2012) dedicadas ao pensamento do genebrino. No entanto, a sua definição de inveja é claramente kantiana.
Rousseau (1999b), como um crítico da cultura e da civilização, considerou que a história conduziu a humanidade, ao mesmo tempo, à perfeição individual e à “decrepitude da espécie” por causa de um “acidente fatal”. O surgimento do “amor-próprio” é uma dessas causas acidentais. Em resumo, o amor-próprio é resultado da consideração ou estima pública que surge no ambiente social da preferência e distinção diante da observação das diferenças nos talentos naturais Da distinção segue a perda da igualdade civil, que vem acompanhada com os sentimentos de ciúme e de inveja e a consequente destruição da compaixão e a “decrepitude da espécie”. Não se atribui, aqui, qualquer influência decorrente da justiça ou injustiça das relações sociais, mas apenas a observação das diferenças.
A aposta de Rousseau (1999a), que é também a de Rawls, é a de que a justiça das instituições é capaz de recuperar a natureza humana degenerada pelo “amor-próprio”. A diferença entre uma sociedade degenerada e uma sociedade justa, estável e feliz é a constituição de um poder legítimo, por um pacto social legítimo. Para Rawls, a solução dos vícios sociais por via do contrato social só seria viável em razão de duas crenças dedutíveis da afirmação de Rousseau de que a natureza humana é boa, mas que foi corrompida pelas instituições:
(a) As instituições sociais e as condições da vida social influenciam predominantemente o desenvolvimento e a expressão de determinadas inclinações humanas no decorrer do tempo. Quando concretizadas, algumas dessas inclinações são boas e outras más.
(b) Existe pelo memos um sistema possível e razoavelmente viável de instituições políticas legítimas que satisfaz aos princípios do direito político e atende aos requisitos da estabilidade institucional e da felicidade humana (Rawls, 2012, p. 224).
Mais à frente, Rawls (2012, p. 225) acrescenta: “A solução do nosso problema [dos vícios sociais] é um mundo social organizado de tal forma que seja coerente com nossa verdadeira natureza e com o estado natural de nosso amour-propre”. As bases das inclinações são os princípios da natureza humana, mas a sua expressão depende “das condições sociais e históricas”. O desafio é criar as condições que levem a inclinações boas e seria exatamente isso o que ocorreria na sociedade bem-ordenada.
Quanto à definição de inveja, Kant (2013) a define como sendo uma propensão a sentir dor ou desgosto diante do bem-estar de outros, levando o invejoso a desejar destruir a felicidade dos outros, mesmo que isso possa lhe prejudicar e que tal felicidade não diminua em nada o seu próprio bem-estar. Por isso, a inveja seria um sentimento antissocial, que mostra ódio à humanidade de uma maneira secreta e velada.
Kant considera que a propensão à inveja faz parte da natureza humana. Somos incapazes de julgar nosso próprio bem-estar a partir de seu valor interno, sendo, portanto, necessário recorrer à comparação com o bem-estar dos outros. Essa comparação nos causar desgosto se o bem-estar dos outros ofuscar o nosso próprio bem-estar. O problema surge apenas quando a intenção indiretamente má (invídia) leva ao ato propriamente dito (inveja qualificada).[6] O resultado da inveja qualificada é o “esquecimento do dever para com o próximo”, bem como a destruição do “dever para consigo mesmo” (Kant, 2013, p. 273).
Rousseau e Kant tomam a inveja como um sentimento negativo que surge da comparação interpessoal, seja em termos de bens, talentos, bem-estar ou qualquer coisa distribuída de forma desigual, e que produz no invejoso (aquele que tem menos) um sentimento de dor ou de desgosto diante do invejado (aquele que tem mais). Para ambos os filósofos, a comparação interpessoal é inevitável e involuntária, bem como identificam no entrecruzamento dos olhares a condição necessária para o surgimento do sentimento de inveja, que é classificado como um dos males da humanidade. Rawls (1997, [TJ, §80], p. 592) se apropria dessa ideia nos seguintes termos:
Podemos então pensar na inveja como a propensão a considerar com hostilidade o maior bem dos outros, mesmo que o fato de eles serem mais privilegiados que nós não diminua nossas vantagens. Invejamos as pessoas cuja situação é superior à nossa [...] e estamos dispostos a privá-los de seus maiores benefícios mesmo que para isso seja necessário renunciarmos a alguma coisa.
Desta forma, a manifestação do sentimento da inveja pressupõe uma situação de desigualdade na qual uns têm mais do que outros, e essa desigualdade é passível de comparação. O que torna a inveja um sentimento socialmente indesejável é o fato de, na maioria dos casos, conduzir todos a uma situação pior, sendo assim classificada como um dos vícios de misantropia; ou seja, como um dos vícios que demonstram ódio à humanidade.
A outra razão para que a inveja pudesse ameaçar a estabilidade da concepção de justiça decorre do fato de a sociedade bem-ordenada ser justa e desigual. Para Rawls (1997), a desigualdade não é um mal inevitável, mas, antes, uma escolha benéfica que é feita pelas partes na posição original. A aceitação da desigualdade, ainda que justa, pode causar a inveja. A aposta é que a concepção de justiça como equidade cria as condições que evita o desenvolvimento de um tipo específico de inveja: a “inveja geral desculpável”.
A inveja geral é aquela que se direciona a tipos de bens e oportunidades, em oposição à inveja particular, que está vinculada à posse de objetos particulares e a cargos determinados. Segundo Rawls (1997), os menos favorecidos sentiriam um tipo de inveja geral em relação à “maior riqueza e oportunidade” dos mais favorecidos, desejando ter para si vantagens semelhantes às que têm os membros das classes mais altas, ou seja, seu grau de riqueza e de oportunidade. Não seria, portanto, caracterizada pela rivalidade ou pela competição que ocorrem tipicamente no caso de inveja particular. Assim, seu problema é “saber se os princípios da justiça, e em particular o princípio da diferença, juntamente com a igualdade equitativa de oportunidades, tendem na prática a engendrar excessos destrutivos de inveja geral” (Rawls, 1997, [TJ, §80], p. 591).
Rawls denomina de “inveja desculpável” o tipo de inveja que ocorre quando o grau de desigualdade permitido pelas instituições é tão grande que abala a autoestima dos menos favorecidos, não deixando outra alternativa além de só sentir inveja dos mais favorecidos. Esse seria o único tipo de inveja que seria racional sentir e, por isso, o único que interessa à concepção política de justiça. O risco social da “inveja geral desculpável” é a geração de uma hostilidade dos menos favorecidos em relação aos mais favorecidos e estes, por sua vez, teriam sentimentos de ciúme, mesquinhez e rancor como uma reação à hostilidade dos invejosos. Tal quadro resultaria no enfraquecimento do sistema de cooperação, e, por consequência, comprometeria a estabilidade social.
As duas partes do argumento contratualista
Rawls adota uma variante do modelo contratualista moderno para justificar a escolha dos princípios da justiça que compõem sua concepção de justiça. O argumento a favor dos dois princípios da justiça está dividido em duas partes.[7] Na primeira, os princípios são “provisoriamente escolhidos”, desconsiderando a influência das “psicologias especiais”, que inclui a inveja. Na segunda, tem-se a análise da estabilidade da concepção de justiça como equidade, escolhida na primeira parte, levando-se em consideração tanto as “psicologias especiais” quanto a descrição da sociedade bem-ordenada.[8]
O “problema da inveja” é uma das razões que justificam tal divisão. Rawls argumenta que a exclusão da inveja na primeira parte simplifica o raciocínio no momento da escolha dos princípios da justiça, em especial no que diz respeito ao caso de “desigualdades sociais e econômicas em que o papel da inveja e do desprezo não pode ser ignorado” (Rawls, 2003, [JER, §54.1], p. 257). No entanto, a suposição de que “a inveja não existe” pode parecer pouco realista, uma vez que tal sentimento acomete as pessoas naturais, daí sua inclusão da segunda parte do argumento. No entanto, mesmo na segunda parte do argumento, a inclusão das psicologias especiais ainda pode ser desafiadora:
[...] parece não haver modo de saber de forma geral, exceto considerando pelo menos as características mais genéricas das principais instituições da estrutura básica existente, o quanto as pessoas são suscetíveis a tais propensões [das psicologias especiais] (Rawls, 2003, [JER, §54.1], p. 257-258).
Para superar a dificuldade da consideração das psicologias especiais, Rawls faz uma associação entre a atitude das pessoas e o tipo de instituições à qual estão submetidas. Sua aposta é de que se as instituições básicas forem justas, não existirá outra razão para que as pessoas não ajam de forma justa. Então, investigar os efeitos das psicologias especiais é antes identificar como as instituições impactam o comportamento dos cidadãos. Assim, a realização da segunda parte do procedimento, necessita que a primeira fase da escolha tenha sido concluída para que, só então, as partes possam avaliar qual “a probabilidade de os cidadãos que crescem nesse pano de fundo [institucional] se deixarem dominar por atitudes especiais desestabilizadoras [como a inveja]” (Rawls, 2003, [JER, §54.2], p. 258). O argumento a favor dos princípios da justiça só se completa[9] uma vez que se consiga mostrar que os cidadãos que nascem e crescem numa sociedade bem-ordenada desenvolvem um forte senso de justiça, capaz de se opor a tendências da psicologia especial de agir contra a justiça (Rawls, 2003, [JER, §54.2], p. 258).
A escolha da desigualdade justa
Na primeira parte do argumento, Rawls (1997, [TJ, §25]) descreve as condições para a dedução dos princípios da justiça. Dentre essas condições estão as limitações das informações pela adoção do véu de ignorância e a exclusão da inveja e de outras “psicologias especiais”[10] do cálculo racional. Rawls considera que a inveja seria irracional ao levar as pessoas a preferirem uma situação pior para todos, ou seja, os invejosos não se importam em receber menos, desde que o outro receba menos ainda. Como as partes seriam racionais na posição original, elas não deveriam ser guiadas pela inveja. O resultado da deliberação são os dois princípios da justiça, de acordo com os quais se tem “as desigualdades sancionadas pelo princípio da diferença” (Rawls, 1997, [TJ, §80], p. 591), com a condição de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade.
É justamente a exclusão da inveja na primeira parte do argumento o que viabiliza a escolha da situação de desigualdade de renda e riqueza a partir do procedimento contratualista. De fato, a escolha mais racional na posição original seria a igualdade absoluta dada a condição de igualdade entre as partes e a restrição de informações imposta pela adoção do véu de ignorância. Levando-se em consideração tais características, nenhuma das partes estaria disposta a aceitar menos do que as outras ou esperar que alguma aceitasse tal condição, bem como não poderiam garantir benefícios maiores para aqueles que representam uma vez que se ignora os fatores contingentes que os determinam. O raciocínio que leva à desigualdade deve ser, portanto, um raciocínio secundário.
A desigualdade de renda e riqueza é fundamentada no argumento de que nem sempre a escolha pela igualdade absoluta colocaria a todos na melhor situação possível, principalmente considerando que haveria uma função econômica que justificaria as desigualdades como um modo de estimular e compensar o investimento em treinamento e a maior responsabilidade exigidos por cargos de liderança que seriam importantes para o aumento da eficiência econômica e, por consequência, para o aumento do montante produzido a ser distribuído. Assim, até mesmo aqueles que recebem menos, isto é, os menos favorecidos, receberiam mais na situação desigual e justa do que na situação hipotética inicial de igualdade absoluta.
Rawls responde à questão sobre o que poderia não permitir a desigualdade benéfica para todos como sendo a frustração decorrente da inveja:
[...] as partes discordariam da existência dessas diferenças apenas se ficassem frustradas simplesmente porque percebem ou sabem que os outros estão em melhor situação; mas suponho que elas [as partes] decidem [na posição original] como quem não é motivado pela inveja (Rawls, 1997, [TJ, §26], p. 163).
Então, ao excluir o sentimento de inveja do cálculo da escolha racional, a desigualdade justa acabaria tendo maior probabilidade de ser escolhida. Digo “maior probabilidade” porque o argumento continua. Além da vantagem econômica da desigualdade e da exclusão do sentimento de inveja, Rawls inclui um terceiro elemento: o poder de veto dos menos favorecidos. Conforme suas próprias palavras:
Devido ao fato de as partes começarem a partir de uma divisão igual de todos os bens sociais primários, aqueles que se beneficiam menos têm, por assim dizer, um poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a igualdade como a base de comparação, aqueles que ganharam mais devem tê-lo feito em termos que são justificáveis aos olhos daqueles que ganharam o mínimo (Rawls, 1997, [TJ, §26], p. 163, grifo nosso).
Portanto, partindo-se da igualdade absoluta, o raciocínio que leva à escolha da desigualdade deve ser algo com que todos devem concordar, em especial aqueles que estejam na posição menos favorecida. A escolha da desigualdade seria compatível com a racionalidade quando se considera que, não sendo possível identificar quem serão os mais e os menos favorecidos de forma apriorística, em razão do véu de ignorância, todos se colocam no lugar do menos favorecido. É desta forma que os menos favorecidos exercem seu poder de veto. Nem toda desigualdade é aceitável, mas apenas aquela que seja justificável a partir do ponto de vista dos menos favorecidos. Segundo Rawls, é exatamente isso o que ocorre na posição original. Os princípios da justiça terminam refletindo isso ao comportar tanto a igualdade absoluta, no primeiro princípio, quanto a desigualdade justa, no segundo princípio.[11]
Ao admitir a desigualdade justa, só resta a Rawls lidar com a possibilidade da inveja na sociedade bem-ordenada. Isso é feito na segunda parte do argumento, em especial, nos §§80-81 de Teoria.
A sociedade bem-ordenada e as condições da inveja
Rawls (1997, [TJ, §81]) elenca três condições que podem estimular o desenvolvimento da “inveja geral desculpável”: a) condição psicológica: em especial a baixa autoestima e o sentimento de inferioridade; b) primeira condição social: a estrutura social e o estilo de vida que permitam à condição psicológica ser experimentada de forma dolorosa e humilhante diante da constatação da desigualdade; e c) segunda condição social: falta de alternativa construtiva para lidar com as desigualdades aceitáveis. Todos esses fatores têm como causa principal as instituições básicas da sociedade e, por essa razão, podem ter seu efeito anulado ou diminuído substancialmente pela adoção da concepção de justiça como equidade, visto que as instituições básicas são o alvo da concepção da justiça.
Primeira condição: autoestima, solidariedade e mérito
Como primeira condição, Rawls supõe que a principal raiz psicológica para o desenvolvimento da “inveja geral desculpável” é a falta de autoconfiança (baixa autoestima), acompanhada por um sentimento de impotência (inferioridade). Apesar de se tratar de uma causa psicológica, Rawls (1997, [TJ, §81], p. 596) supõe que as instituições básicas da sociedade são a sua “causa instigadora básica”, e não as propensões e inclinações naturais como se poderia esperar. Dito de outra forma, Rawls supõe que a maneira como a sociedade é estruturada pode conduzir a uma situação na qual “as pessoas não têm uma sólida confiança em seu próprio valor e na sua habilidade de fazer alguma coisa que valha a pena” (Rawls, 1997, [TJ, §81], p. 595) e isso constitui um problema ao criar o cenário perfeito para a proliferação da “inveja geral desculpável”.
Poderíamos, assim, dizer que Rawls considera que o fato de a pessoa ter uma inclinação ou propensão para a inveja é uma condição necessária, mas não suficiente, para torná-la invejosa. As instituições básicas são condição indispensável para que essas inclinações e propensões possam ou não se manifestar, e a concepção de justiça como equidade, ao promover instituições básicas justas, termina propiciando uma maior autoconfiança nos cidadãos e um menor sentimento de impotência “em relação à sua perspectiva” (Rawls, 1997, [TJ, §81], p. 595).
Rawls defende que a concepção da justiça como equidade seria mais eficiente em alcançar tais objetivos do que outros princípios políticos por se tratar de uma concepção contratualista da justiça. Como a concepção de justiça da sociedade bem-ordenada advém de um procedimento contratualista, Rawls deduz que, no fórum público da sociedade bem-ordenada, todos os cidadãos seriam tratados como iguais e soberanos, isto é, como fontes iguais de onde emana o poder político. A adoção de uma concepção contratualista faria com que todos os cidadãos tivessem por princípio os mesmos direitos básicos, que seriam reconhecidos durante o procedimento contratualista. Esse tratamento igual reforçaria a autoestima dos cidadãos, em especial a dos menos favorecidos.
Cabe destacar que o bem primário das bases sociais do autorrespeito é, sem sombra de dúvidas, o antídoto perfeito para a causa psicológica da “inveja geral desculpável”. Se a inveja resulta da perda da autoconfiança ou um sentimento de impotência, o autorrespeito é justamente a confiança na sua própria capacidade de realizar seu plano de vida. O autorrespeito implica um desejo de ser reconhecido como “membros normais e plenamente cooperativos da sociedade” (Rawls, 2011, [LP, II, §7.1], p. 97). Além disso, o bem primário da base social do autorrespeito pressupõe a distribuição igual das liberdades e a atribuição do igual status social, através do tratamento igualitário no ambiente público e da atribuição do mérito moral à posse do senso de justiça, que, por definição, é igual para todos, mas não da distribuição desigual das riquezas, como comumente acontece.[12] Desta forma, Rawls pretende quebrar a distinção pública que causa o ciúme e a inveja.
Outra herança da filiação contratualista é o desenvolvimento da aptidão moral, do senso de justiça e, com ele, o laço de civismo que une os cidadãos da sociedade bem-ordenada. Rawls deixa claro que o senso de justiça é fundamental para a estabilidade por constituir uma força contrária a qualquer inclinação para a injustiça, dentre outros motivos, por produzir o laço de civismo, que tem por consequência um sentimento de pertencimento[13], colaborando para a autoestima dos cidadãos.
Outro aspecto importante é que, na sociedade bem-ordenada, aqueles que possuem maior renda e riqueza não são considerados possuidores de algum valor intrínseco superior aos que recebem menos. Essa discrepância de rendimento seria decorrente de uma expectativa legítima fundada em regras publicamente reconhecidas: “Tendo feito várias coisas, incentivados pelas organizações existentes, essas pessoas e grupos [que participam de organizações justas] têm agora certos direitos, e a distribuição justa das partes honra essas reivindicações” (Rawls, 1997, [TJ, §48], p. 343). Dessa forma, o que justifica a diferença de rendimento seria a expectativa legítima e não o mérito moral.[14] Se não há mérito em ter mais, também não haveria demérito em ter menos. Assim, se preveniria o sentimento de inferioridade.
Vale observar que para Rawls (1997, [TJ, §17], p. 115) os dotes naturais não podem ser considerados origem de mérito moral, mas antes como “fato[s] da natureza” distribuídos ao acaso, sem qualquer valor moral. Uma vez que não há mérito nas maiores habilidades, e que o “princípio da diferença” é considerado um princípio justo, os benefícios advindos dos maiores dotes naturais devem ser usados para a melhoria da qualidade de vida de todos e não apenas daqueles que foram beneficiados pela sorte. Dito de outra forma, os dotes naturais são um bem social e não um bem individual.[15] Rawls (1997, [TJ, §48], p. 344) defende que a maior remuneração dos mais favorecidos não se deve aos seus talentos naturais, mas a uma forma de recompensar “os custos de especialização e estimular os esforços de aprendizado, assim como dirigir a habilidade para onde ela favoreça da melhor forma o interesse comum”.
Além de todos serem tratados igualmente no fórum público, possuírem um laço de civismo decorrente do senso de justiça e terem sua remuneração definida pela expectativa legítima, Rawls acrescenta que a concepção da justiça como equidade seria incompatível com os princípios de perfeição e de utilidade. Enquanto aquela busca assegurar direitos e oportunidades iguais para todos, estes buscam maximizar algumas capacidades consideradas socialmente como bens em detrimento de outras. Isto afetaria a autoestima daqueles que não foram agraciados pela sorte de possuir tais capacidades, levando-os a experimentar o sentimento de inferioridade. Assim, ao analisar a primeira condição para a “inveja geral desculpável”, o princípio de perfeição e de utilidade seriam rejeitados.
A conclusão a que Rawls chega ao analisar a primeira condição da inveja é que as desigualdades, sejam absolutas ou relativas, seriam mais facilmente aceitáveis numa sociedade bem-ordenada. Em tal sociedade, as instituições básicas garantiriam que os menos favorecidos não teriam falta de autoestima, nem se sentiriam inferiorizados, logo, não teriam razão para serem acometidos pela “inveja geral desculpável”.
O problema é que Rawls não observa que a distinção é um procedimento involuntário, e, mesmo que se tenha a estima pública vinculada a uma característica distribuída igualmente, como a liberdade ou o senso de justiça, isso termina se mostrando um procedimento frágil. Ainda que o tratamento público seja igual, isso não significa que não haja comparação entre as pessoas a partir de suas características diferenciadas, ou que não ocorra a distinção segundo outros critérios que não o estabelecido pelo bem primário da base social do autorrespeito, como a posse diferenciada de renda e riqueza.
Além disso, Rawls não observa que há uma comparação entre aqueles que se consideram iguais ou que se pretendam igualados, mesmo diante de suas diferenças. Dupuy (2020), recorrendo a Tocqueville, chama a atenção para o fato de que quanto maior for a igualdade, mais se demandará igualdade. Essa também é a posição adotada por Ben-Ze’ev (2013, p. 543): “Não é um sentimento de inferioridade geral que nos torna invejosos, mas o sentimento de uma inferioridade em relação a pessoas afetivamente próximas de nós”. Rawls vai na direção contrária ao admitir apenas a desigualdade extrema como causa de inveja que interessa à concepção política da justiça.
Quanto ao senso de justiça, é difícil negar que o “desejo de agir com justiça” surja como efeito da reciprocidade em uma sociedade justa, no entanto, a inveja, não sendo resultado da injustiça, pode facilmente persistir, mesmo que socialmente negada. A pergunta mais adequada a se fazer nesse ponto da argumentação é: deixa-se de desejar a sorte do outro ou de a ele se comparar porque o sistema social é justo? A solução de Rawls é considerar tais comparações como politicamente insignificantes, não podendo ser objeto de demanda pública por não se basear na violação de algum dos bens primários que consta na lista da teoria fraca do bem, único critério admitido por Rawls para a comparação interpessoal.[16]
No final, Rawls (2003, [JER, §21.4], p. 108) não consegue escapar da influência dos fatores arbitrários e teve que admitir que, mesmo sem merecer, os mais talentosos são os mais favorecidos. Diante do inevitável, a alternativa foi considerar as desigualdades naturais como politicamente irrelevantes, uma vez que todos os cidadãos têm as faculdades morais, intelectuais e físicas no grau mínimo essencial que lhes possibilita ser membros plenamente cooperadores da sociedade ao longo da vida inteira e as variações que elevem ou abaixem tais capacidades são enfrentadas “mediante as práticas sociais”. Rawls (2011, [LP, V, §3.5], p. 217) destaca dentre elas a “igualdade equitativa de oportunidade” que equalizaria as habilidades naturalmente desiguais e garantiria o resultado justo da competição. Mesmo assim, tal solução esbarra em outra dificuldade: a justiça garante a “igualdade equitativa de oportunidade”, mas não a igualdade de resultados. Para Dupuy (2020), Rawls não resolve o “problema da inveja” porque sua solução além de excluir a possibilidade dos menos favorecidos culpar a injustiça social pelo seu fracasso, ainda escancara para todos que o lugar que estes ocupam na distribuição social é decorrente da sua “natureza degenerada”, ou do seu azar ao longo da vida. Isso seria, para Dupuy, a causa de um grande sofrimento que tornaria a sociedade bem-ordenada insuportável (invivable[17]).[18]
Segunda condição: grau de desigualdade, estrutura social e estilo de vida
Se na primeira condição o foco estava nas “condições psicológicas” da inveja, na segunda Rawls (1997, [TJ, §81]) analisa as “condições sociais” que podem potencializar as “condições psicológicas” conforme os menos favorecidos experimentam sua posição social diante da constatação da discrepância na distribuição de renda e riqueza. A ideia básica é que a visibilidade constante dessas discrepâncias, provocada por certas estruturas sociais e certos estilos de vida na sociedade, faz com que os menos favorecidos sejam lembrados constantemente de sua condição social, gerando uma experiência dolorosa e humilhante que pode levar a uma insatisfação dos menos favorecidos com seu próprio estilo de vida e consigo mesmos. A defesa de Rawls é que, na sociedade bem-ordenada, tanto as estruturas sociais quanto os estilos de vida são constituídos de tal forma que tais experiências não têm lugar. Logo, os menos favorecidos não teriam motivos para se sentirem humilhados em razão de seu lugar social.
No que se refere à estrutura social, Rawls (1997, [TJ, §81], p. 596-597) trata dos impactos sociais das desigualdades absolutas e relativas aceitáveis na sociedade bem-ordenada. Recordando que, para o filósofo, a fonte do sentimento da inveja é a aversão causada pela observação da disparidade social entre os cidadãos, e que, quanto maior for essa desigualdade, maior será o sentimento de aversão, cabe perguntar: Qual seria o grau de desigualdade compatível com a justiça?
Em uma sociedade considerada publicamente justa, as desigualdades sociais e econômicas podem ser admitidas, com a ressalva de que essa permissão está limitada às desigualdades que tornem a vida de todos, e em especial a dos menos favorecidos, a melhor possível. No entanto, Rawls (2003, [JER, §19.2], p. 96n) reconhece que no modelo não há qualquer restrição ao grau de desigualdade que uma sociedade pode assumir. Essa falta de critério para julgar o grau de desigualdade pode gerar uma diferença que resulte em uma consequência indesejável: uma sociedade justa, porém com uma desigualdade percebida como injusta, em especial pelos menos favorecidos, e que, por isso, incomoda e “nos fazer pensar” (Rawls, 2003, [JER, §19.2], p. 96n). Esse incômodo é o mesmo que potencialmente conduz à “inveja geral desculpável”, a qual suscita uma experiência dolorosa e humilhante. No final, só resta a esperança de que, após a aplicação dos dois princípios da justiça seguindo a ordem lexical, as instituições básicas da sociedade limitem a desigualdade observável a um nível que não gere tal incômodo.
Para Rawls (2003, [JER, § 13.1], p. 60), a aplicação dos princípios da justiça deve ocorrer segundo uma ordem lexical, de forma que a aplicação do “princípio da diferença” só seria feita após a garantia da liberdade igual para todos e da “igualdade equitativa de oportunidade”. Esta teria um papel decisivo na limitação das desigualdades ao garantir uma ampla habilitação especializada e, por consequência, o aumento das oportunidades para ocupação dos melhores postos de trabalho. Além disso, as expectativas maiores dos mais favorecidos estariam condicionadas a “formas necessárias para que se melhore a situação dos menos privilegiados”, bem como tais expectativas maiores “presumivelmente cobrem os custos de treinamento ou respondem a exigências organizacionais, contribuindo dessa forma para o benefício geral” (Rawls, 1997, [TJ, §26], p. 170). O aumento da expectativa dos mais favorecidos seria limitado por outros critérios além do expresso no “princípio da diferença”. Então, se Rawls estiver certo, a estrutura social da sociedade bem-ordenada, apesar de permitir a desigualdade, não permitiria que ela fosse grande o suficiente a ponto de incomodar.
Quanto ao estilo de vida, Rawls (1997, [TJ, §81], p. 597) considera que na sociedade bem-ordenada tal estilo não promoveria situações em que as desigualdades seriam sentidas de forma dolorosa e humilhante em razão de dois pressupostos: 1) em uma sociedade composta por uma pluralidade de associações – no sentido de pertencimento a grupos – as desigualdades maiores não seriam tão visíveis, e as comparações seriam feitas entre aqueles que, de certa forma, não seriam tão distantes em termos de renda e riqueza; e 2) uma vez que se supõe que os deveres naturais da justiça são observados em tal sociedade, os mais favorecidos não teriam motivos para ostentar.
Rawls (1997, [TJ, §81], p. 597) argumenta que na sociedade bem-ordenada as desigualdades não gerariam inveja, pois haveria uma “ignorância das diferenças de renda e circunstâncias”, uma vez que tal sociedade seria composta de várias associações divididas em inúmeros grupos, fazendo com que a diferença entre os membros dos grupos não seja tão notada. Para ele, fazer parte de associações pode ser entendido como fazer parte de grupos: família (enquanto uma pequena associação), escola, vizinhança, associação profissional, associações religiosas, dentre outras. A ideia é que a desigualdade só é sentida de forma dolorosa e humilhante quando os menos favorecidos são constantemente lembrados de sua condição. A divisão social em grupos faria com que as pessoas convivessem mais com outras do mesmo nível de renda e riqueza. Segundo Rawls (1997, [TJ, §81], p. 597): “tendemos a comparar nossas circunstâncias com as das pessoas que pertencem ao nosso grupo ou a algum outro semelhante, ou que ocupam posições que consideramos adequadas para nossas aspirações”. Além de o estilo de vida dificultar a comparação interpessoal, Rawls supõe que, quando os cidadãos da sociedade bem-ordenada estão no ambiente público, isto é, um ambiente frequentado por cidadãos de outros grupos sociais, o fato de todos serem tratados igualmente faria com que ninguém se sentisse humilhado em razão de sua situação social.
O último elemento associado ao estilo de vida é que, na sociedade bem-ordenada, os mais favorecidos não sentiriam necessidade de ostentar com o objetivo de menosprezar os menos favorecidos, pelo fato de não haver inveja geral na sociedade bem-ordenada. Rawls (1997, [TJ, §81], p. 597) acredita que a atitude de ostentação teria origem no inverso da inveja, ou seja, nos sentimentos de ciúme, mesquinhez e rancor, que surgiriam como forma de defesa diante da hostilidade dos invejosos. Logo, se não há sentimento de inveja geral, não haveria, também, o seu contrário.
Além disso, os mais favorecidos não teriam razões para promover situações que geram sentimento de humilhação nos menos favorecidos, porque haveria uma relação de comprometimento daqueles com o esquema de cooperação. Rawls (1997, [TJ, §19], p. 123) apresenta dois princípios para indivíduos: a) o “dever natural da justiça”, segundo o qual “todos têm um dever natural de fazer a sua parte no esquema existente”; e b) o “princípio da equidade”, que vincula aqueles que estão em melhor situação a promoverem o bem-estar social a partir de seus cargos e posições privilegiadas. Para Rawls (1997, [TJ, §19], p. 124), haveria “um outro sentido de noblesse oblige [nobreza obriga]: ou seja, que os mais privilegiados provavelmente terão obrigações que os vinculam de um modo mais forte a um esquema justo”. Esse vínculo os impediria de se ostentar sem razão.
Uma vez que Rawls parte do pressuposto de que a inveja se limita à “inveja geral desculpável” que decorre da desigualdade extrema, e reconhecendo que não há limitação do grau de desigualdade admitida pela justiça como equidade, sua preocupação na segunda condição da inveja foi a de lidar com o entrecruzamento dos olhares. Boa parte da argumentação se pauta na esperança: a) de que a desigualdade não seja extrema por causa da ordem lexical da aplicação dos princípios da justiça; b) de que as pessoas vivam em ambientes mais homogêneos; e c) de que os mais favorecidos não sentiriam necessidade de se ostentar. Tais esperanças seriam inadequadas se considerarmos que a inveja ocorre mesmo diante de pequenas desigualdades numa sociedade que prega a igualdade de todos.
Terceira condição: alternativas construtivas à hostilidade da inveja
A terceira condição que levaria à inveja seria que os menos favorecidos acreditariam que não haveria “alternativas construtivas de oposição às circunstâncias melhores dos mais privilegiados” (Rawls, 1997, [TJ, §81], p. 595), de forma que os sentimentos de inferioridade e de angústia gerados pela desigualdade só poderiam ser amenizados com a imposição de uma perda aos mais favorecidos, mesmo resultando numa situação pior para todos.
Ao contrário dos fatores anteriores, Rawls (1997, [TJ, §81], p. 597) não apresenta qualquer justificativa para sua crença de que “uma sociedade bem-organizada, tanto quanto qualquer outra, oferece alternativas construtivas para explosões hostis de inveja”. Quais “alternativas construtivas” seriam essas? Rawls não se preocupa em detalhar quais seriam e ainda afirma que a possibilidade da construção de tais alternativas não seria nem uma exclusividade da sociedade bem-ordenada, nem esta possuiria qualquer vantagem em relação a alguma outra. Assim sendo, parece que as “alternativas construtivas” não estariam vinculadas a uma doutrina construtivista como a teoria da justiça como equidade.
Considerações finais
A comparação interpessoal é, sem sombra de dúvidas, o elemento catalisador para a inveja geral, seja ela desculpável ou não. Como vimos, as comparações surgem involuntariamente, sem depender de uma atitude voluntária ou dela nos darmos conta. Se a inveja decorre fundamentalmente do entrecruzamento de olhares e na justiça como equidade, em razão de sua origem contratualista, as pessoas precisam se olhar e se comprometer umas com as outras, como, então, evitar a inveja e manter o entrecruzamento dos olhares na sociedade bem-ordenada?
Rawls propôs que a passagem da desigualdade justa para a “inveja geral desculpável” seria evitada: a) se as instituições básicas do sociedade fossem justas; b) se as pessoas que nascem e crescem na sociedade bem-ordenada desenvolvessem um forte senso de justiça; c) se a estima pública estivesse vinculada ao mesmo status social de cidadania igual para todos, segundo o bem-primário da bases sociais do autorrespeito; d) se o lugar que cada um ocupa na distribuição dos benefícios e ônus sociais fosse decorrente da expectativa legítima e não de fatores arbitrários ou da atribuição de mérito moral, em sentido estrito; e) se a desigualdade justa não fosse extrema; e f) se a vida social fosse mais homogênea. Assim, Rawls acredita que não haveria condições para o desenvolvimento da “inveja geral desculpável” e a queixa dos invejosos contra as desigualdades justas seria aplacada.
Minha conclusão é de que a solução que Rawls apresenta para o “problema da inveja”, que passa pela solução do “problema da justiça”, só é adequada se aceitarmos que apenas a “inveja geral desculpável” é politicamente relevante. No entanto, assim como Dupuy, considero que tal delimitação é inadequada por ignorar que a natureza da inveja é fundamentalmente o entrecruzamento dos olhares, e que tal sentimento pode resultar em queixas políticas por mais igualdade numa sociedade marcada pela diferença, mas que prega a igualdade política.
Concordo também com Dupuy que Rawls, na sua busca em lidar com o “problema da inveja”, teve dificuldade em lidar com o “acaso”. Isso fica evidente na forma como Rawls trata as diferenças entre os talentos naturais numa sociedade que garante a “igualdade equitativa de oportunidade” sem, no entanto, garantir resultados iguais. Não se trata nem do mérito dos valores individuais, nem da injustiça, mas de uma arbitrariedade natural. Rawls tenta excluir a externalidade, contudo, o “fracasso” dos menos favorecidos se deve unicamente à sua condição natural inferior, ou a seu azar ao longo da vida.
Diferentemente do autor francês, considero que a adoção do status de cidadania igual para todos, vinculado ao bem primário das bases sociais do autorrespeito, e o desenvolvimento do senso de justiça forte, vinculado com a psicologia moral, são os principais elementos apresentados por Rawls para solucionar o “problema da inveja” delimitado a partir da “inveja geral desculpável”, que falham diante de outras formas de inveja.
No final das contas, a “inveja geral desculpável” é apenas uma das facetas da inveja, e a solução de Rawls é apenas parcialmente bem-sucedida, sendo considerada pelo filósofo como adequada para os objetivos da concepção política da justiça. No entanto, não reconhecer a faceta da inveja que advém da comparação, mesmo em condições de igualdade política e de justiça, é ficar em uma posição vulnerável de não ter o que fazer diante do incômodo que persiste diante da desigualdade.
Referências
Bibliográficas
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Alexsandra Andrade Santana
Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe, Mestra e Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Substituta junto ao Departamento de Filosofia na Universidade Federal de Sergipe.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] O presente artigo sintetiza o argumento central da minha tese de doutorado intitulada “A inveja na sociedade bem-ordenada, justa e desigual”, defendida publicamente na Universidade Federal de Sergipe. O presente trabalho contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
[2] Utilizar-se-á apenas Teoria para as próximas menções a Uma teoria da justiça.
[3] Utilizar-se-á apenas Liberalismo para as próximas menções a O liberalismo político.
[4] Freeman (2007) elenca três possíveis razões para a pouca repercussão do argumento a favor da congruência entre o justo e o bem, que também está na Parte III de Teoria: 1) o fato de Teoria ser um livro extenso e a congruência ser tratada apenas no §86; 2) a falta de clareza na exposição da última partes, na qual Rawls trata de vários assuntos; e 3) o julgamento do argumento como fraco por alguns dos principais comentadores. Considero que tais fatores também impactaram a repercussão do teste de estabilidade vinculado ao “problema da inveja”. O tema da estabilidade passou a ocupar lugar de centralidade, de forma declarada ou não, após a publicação de Liberalismo, mas vinculado ao argumento revisado. Hill Jr. (1994), Klosko (1994), Hampton (1994) e Barry (1995) são alguns dos autores que tratam da estabilidade, mas não da inveja.
[5] Jean-Pierre Dupuy (1941-) é professor de filosofia social e política na Escola Politécnica de Paris (França) e na Universidade de Stanford (Estados Unidos da América). Suas pesquisas estão focadas na crítica filosófica das bases da teoria da escolha racional (Canto-Sperber, 2013, p. 1.102) e, mais recentemente, nos riscos iminentes de uma catástrofe ambiental ou nuclear.
[6] Kant (2013) considera que existem outros tipos de inveja que não são vícios, como a “inveja benigna” e a “inveja emulativa”, cuja comparação interpessoal não geraria hostilidade. Tais variantes da inveja não são objeto da análise de Rawls por não serem socialmente destrutivas.
[7] Apesar de Rawls (1997) ser claro quanto à divisão do argumento contratualista em duas partes, por vezes, o teste de estabilidade, que constitui a segunda parte do argumento contratualista, é interpretado erroneamente como sendo um “segundo requisito contratual” (Freeman, 2003, p. 24) ou um dos estágios de justificação dos princípios da justiça, separado da posição original (Maffettone, 2010).
[8] Rawls divide o teste de estabilidade em dois estágios. No primeiro, investiga a força do senso de justiça que pessoas que nascem e crescem na sociedade bem-ordenada podem adquirir. O segundo estágio possui duas versões: a) em Teoria, a estabilidade é examinada a partir da congruência entre o senso de justiça, originado da justiça como equidade, e a concepção do bem como racionalidade, adotada pelos membros da sociedade; b) a partir de Liberalismo, a estabilidade é examinada a partir do “consenso sobreposto” entre doutrinas abrangentes razoáveis e irreconciliáveis entre si a favor de uma mesma concepção política de justiça.
[9] A despeito de Rawls (2003, [JER, §54.2], p. 258) afirmar que a constatação do desenvolvimento de um senso de justiça forte conclui o argumento a favor dos dois princípios de justiça, ao mesmo tempo, ele pondera, na segunda fase de sua obra, que isto não é suficiente para garantir a estabilidade da concepção de justiça. A partir do fato do pluralismo razoável e da interpretação da justiça como equidade como uma concepção política, as partes devem considerar, na segunda parte do argumento, não só as psicologias especiais, mas também a possibilidade de apoio das doutrinas abrangentes, a partir de um “consenso sobreposto”. Não tratarei dessa segunda questão neste artigo.
[10] Entre as “psicologias especiais” estão “a propensão à inveja e ao rancor, uma aversão singularmente alta ao risco e à incerteza, e uma forte vontade de dominar e exercer poder sobre os outros” (Rawls, 2003, [JER, § 25.3], p. 123). Nos §§ 80-81 de Teoria, Rawls trata expressamente da inveja e afirma que o mesmo raciocínio pode ser aplicado às outras “psicologias especiais”.
[11] Esta é a última versão dos dois princípios da justiça escolhidos na posição original: “(a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio de diferença)” (Rawls, 2003, [JER, §13.1], p. 60).
[12] Tal solução do problema da estima pública pela identificação do status social a critérios distribuídos de modo igual provavelmente é resultado da leitura que Rawls fez das causas da inveja em Rousseau. Para Rawls (2012), a comparação interpessoal, que está na base do “problema da inveja”, pode levar tanto ao desejo do reconhecimento da igualdade (“amor-próprio natural”), quanto ao da distinção (“amor-próprio inflamado”). Rawls faz a aposta de que o tratamento igual no espaço público e a atribuição de status igual para todos, decorrentes da condição igual de cidadania, seria o suficiente para inviabilizar os mecanismos sociais da distinção.
[13] Rawls não fala de “sentimento de pertencimento”, mas o laço de civismo faz com que cada um se sinta parte do todo no qual coopera.
[14] Apesar da insistência em afastar o mérito moral como critério de distribuição, isso não significa que não haja alguma forma de mérito compatível com a justiça como equidade. Rawls (2003, [JER, § 20.4], p. 104) admite que tanto a expectativa legítima quanto a ideia de merecimento associado a normas públicas são ideias de mérito moral aceitas na justiça como equidade. A ideia de merecimento que é rejeitada é a de sentido estrito por pressupor uma concepção de bem incompatível com o pluralismo razoável.
[15] Rawls (2003, [JER, § 21.3], p. 106-107) faz a ressalva de que não são os talentos individuais considerados individualmente que são bens sociais, mas a sua distribuição.
[16] Segundo Rawls (2003, [JER, §17.2], p. 82-83), a identificação dos menos favorecidos é dada a partir de uma lista de bens primários, Como apenas os bens primários dos poderes e das prerrogativas de autoridade e o bem primário de renda e riqueza são os únicos que seriam distribuídos de forma desigual, logo “os menos favorecidos são os que pertencem à classe de renda com expectativas mais baixas” (Rawls, 2003, [JER, §17.3], p. 83).
[17] Invivable, do francês, numa tradução direta seria “invivível”, termo que não existe em português, no sentido de algum lugar no qual não se consegue viver.
[18] Para um maior detalhamento do argumento de Dupuy, ver Santana (2021).