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Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

O papel do corpo no alicerce da mente consciente e a propriocepção: canais de informações corporais e seus papéis na constituição da autossenciência corporal (self-awareness)

The role of the body in the foundation of the conscious mind and proprioception: Body information channels and their role in the constitution of bodily self-awareness

Leonardo Ferreira Almada

0000-0002-9777-5667

umamenteconsciente@gmail.com

UFU – Universidade Federal de Uberlândia

Fabiense Pereira Romão

0000-0002-3615-0153

phabienseromao@gmail.com

UFU – Universidade Federal de Uberlândia

Recebido: 23/07/2020

Received: 23/07/2020

Aprovado: 25/05/2021

Approved: 25/05/2021

Publicado: 28/12/2023

Published: 28/12/2023

RESUMO

O problema sobre o qual nos debruçaremos no presente artigo é o seguinte: à luz dos recursos que dispomos em filosofia da mente, e com base no que sabemos de filogenia e ontogenia, é possível, sustentar o corpo como a base fundamental da constituição da consciência? Se sim, em qual sentido? Com base em um manancial teórico, estrutural, teórico e metodológico fornecido por neurocientistas e filósofos da mente dedicados à abordagem corporificada da mente, dedicaremo-nos a sustentar algumas reflexões acerca da ideia de corpo como alicerce da mente, e de noções tais como autossenciênica (self-awareness) e a propriocepção na constituição de uma autoconsciência corporal. Nosso propósito é o de delimitar algumas bases da nossa posição naturalista e não-redutiva da mente.

Palavras-chave: Abordagem corporificada da mente. Autossenciência e autoconsciência corporal. Imagem e esquema do corpo.

ABSTRACT

The problem we will focus on in this paper is the following: in light of the resources we have in philosophy of mind, and based on what we know about phylogeny and ontogeny, is it possible to support the body as the fundamental basis for the constitution of consciousness? If yes, in what sense? Based on a theoretical, structural, theoretical and methodological source provided by neuroscientists and philosophers of mind dedicated to the embodied approach to the mind, we will dedicate ourselves to supporting some reflections on the idea of the body as the foundation of the mind, and notions such as self-awareness and proprioception in the constitution of bodily self-awareness. Our purpose is to delimit some bases of our naturalistic and non-reductive position on the mind.

Keywords: Embodied approach to the mind. Self-awareness and bodily self-awareness. Body image and body schema.

Introdução

O problema sobre o qual nos debruçaremos no presente artigo é o seguinte: à luz dos recursos que dispomos em filosofia da mente, e com base no que sabemos de filogenia e ontogenia, é possível, sustentar o corpo como a base fundamental da constituição da consciência? Se sim, em qual sentido? Ao penetrar no clássico problema das relações entre a mente e o corpo, asseveramos, de imediato, que a perspectiva da mente corporificada aqui defendida não se propõe tratar a mente como substância em separado do corpo, ainda que não negue a independência qualitativa da mente em relação a este corpo.

Diante deste painel teórico, é preciso ressaltarmos que uma análise apressada pode nos conduzir a uma conclusão equivocada acerca da estrutura da vida mental. Pois, se, por um lado, a constituição da mente consciente é dependente de mecanismos fisiológicos viabilizados pela interação e integração entre o cérebro, corpo e o ambiente, é verdade que, por outro lado, há uma autonomia qualitativa da mente em relação a estes mecanismos de base, manifestada através da subjetividade. Neste caso, nota-se que dependência e autonomia não se excluem mutuamente.

Comprometidos com a exploração das correlações entre a mente corporificada (materialismo não-redutivista) e a fenomenologia no estudo da consciência, somos surpreendidos, no interior de Descartes’s error, com uma noção fenomenológica portentosamente presente:

As representações primordiais do corpo em ação constituiriam um enquadramento espacial e temporal, uma métrica, que poderia servir de base a todas as outras representações. A representação daquilo que construímos como um espaço com três dimensões poderia ser engendrada no cérebro com base na anatomia do corpo e nos padrões de movimento no meio ambiente. Se, por um lado, existe uma realidade externa, por outro, o que dela sabemos chegar-nos-ia pela intervenção do próprio corpo em ação por meio das representações de suas perturbações. Nunca saberemos quão fiel é o nosso conhecimento em relação à realidade “absoluta”. O que precisamos ter, e creio que temos, é uma notável consistência em termos das construções da realidade que os cérebros de cada um de nós efetuam e partilham. Pense por um momento na nossa relação com o conceito de gato: precisamos construir uma imagem da maneira como nossos organismos tendem a ser alterados por uma categoria de entidades que viremos a designar por gatos, e precisamos fazê-lo de forma consistente, tanto individualmente como nas sociedades humanas em que vivemos. Essas representações sistemáticas e consistentes de gatos são reais em si mesmas. Nossas mentes são reais, nossas imagens dos gatos são reais, nossos sentimentos em relação aos gatos são reais. Sucede que essa realidade mental, neural e biológica é a nossa realidade. As rãs e as aves que olham para os gatos veem-nos de maneira diferente, para não falar do modo como os próprios gatos se vêem a si mesmos e a nós (Damásio, 1994, p. 235).

Debruçados sobre a questão dos fenômenos mentais inerentes à espécie humana, vislumbramos os fatores genéticos e/ou mecanismos pré-instalados no organismo e o importante papel desempenhado por eles na consciência. Em sintonia com Damásio (1994), julgamos que as representações primordiais do corpo em ação ora discutidas na seção destinados ao self desempenham papel fundamental na consciência.

As representações primordiais do corpo em ação asseguram o núcleo de representação neural do eu, referenciando o que acontece dentro e fora dos limites do organismo (Damásio, 1994). A referência de base do corpo eliminaria a necessidade de atribuir a um homúnculo a produção da subjetividade. Esclarecendo, o “mal-afamado” homúnculo seria uma espécie de “homenzinho” onisciente localizado no cérebro que vê e pensa por ele sucessivamente (ad infinitum) (Damásio, 2010). O bem identificado problema com esse homúnculo reside na regressão infinita que ele implica. Nas próprias palavras de Damásio (2010, p. 248) “seria preciso que o homenzinho cujo conhecimento nos fizestes conscientes tivesse outro homenzinho dentro de si” fornecendo-lhe o conhecimento necessário, e assim por diante ad infinitum (Damásio, 2011, p. 154). Em vez disso, haveria uma base neural do eu, um estado biológico constantemente reconstituído, cada um neuralmente representado momento a momento, e em múltiplos mapas concertados, ancorando o eu que existe a cada momento (Damásio, 2011).

Ao defender a tese de que o corpo é o alicerce da mente consciente como posto nesta seção, revisitamos a elegante e cientificamente-orientada metáfora de Damásio (2010, p. 26): “o corpo é como a rocha sobre a qual se assenta o protosself, enquanto o protosself é o eixo em torno do qual gira a mente consciente”. Portanto, o corpo como referência de base, deve constituir um tipo especial de imagens (ii) “geradas graças à interação obrigatória entre o corpo e o cérebro; (ii) às características da circuitaria que faz a conexão”, e também pelas (iii) “propriedades dos neurônios” (Damásio, 2011, p. 27).

A partir da ideia de corpo como alicerce da mente consciente, propomos explorar de modo geral, as razões estruturais e fisiológicos em conformidade com o propósito de sustentar a tese de que as noções de mente e consciência são depreendidas das relações de integração e interação entre o cérebro, o corpo e o ambiente. Para endossarmos a perspectiva em questão, aduzimos um interessante trecho produzido por Almada e Mesquita (2017, p. 114):

Para que possamos chegar a uma solução, ainda que parcial, para o problema mente-corpo, é necessária uma significativa mudança de perspectiva (Damásio, 2011, p. 201). Se essa modificação de perspectiva não é suficiente para resolver o problema, ela é, no mínimo, necessária para caminharmos rumo a soluções para o velho problema mente-corpo. É necessário, para tanto, compreender que nossa vida mental (consciente) consiste de um processo emergente que é protagonizado por uma desenvolvida estrutura encefálica situada dentro de um corpo-propriamente-dito em um conjunto de permanente relação bilateral de interação e de integração. Sem essas relações de interação e de integração com o corpo propriamente dito, poderíamos dizer que o conjunto de atividades da estrutura encefálica seria vazio, já que o encéfalo não se pensa a si mesmo. Da mesma forma, sem a inserção do corpo propriamente dito no mundo, o corpo não passaria de uma massa biológica, física e química completamente autômata e cega.

Propomos, agora, expor a relação entre mente e mente consciente a partir do papel do corpo no aporte dos conteúdos que dão origem à atividade mental. Para tanto, recuperamos a seguinte pergunta: Qual a relação entre mente e mente consciente? Em Self comes to mind (2010), Damásio serviu-se do recurso descritivo de certas condições neurológicas em que a mente persiste mesmo na ausência de consciência. Em um dado momento do livro, Damásio expõe casos de pacientes cuja consciência comprometida os tornou incapazes de gerir suas vidas de modo independente, ainda que suas funções básicas tenham se mantido normais. As funções de agenciamento dos conteúdos mentais bem como reconhecimento desses conteúdos mentais foram explicitamente afetadas. Neste caso, a consciência foi temporariamente colapsada em uma das suas mais eminentes atuações, qual seja: a subjetividade que é responsável por dotar o organismo da capacidade de reconhecer sua própria existência. Sistemas nervosos que apresentam mentes sem exibir consciência, sabemos, podem atuar competentemente na gestão e preservação da vida sem a presença desta consciência.

Em acréscimo ao estudo empreendido na distinção da mente e mente consciente, remetemo-nos à tríade vigília-mente-self, auferindo-lhe importância no desenvolvimento desta exposição. Começamos com a advertência dada por Damásio (2010, p. 128): “Vigília e mente não são ‘coisas’ do tipo tudo ou nada. Vigília, mente e self devem ser concebidas como processos, e não como ‘coisas’ rígidas”. O self, por exemplo, é um processo dinâmico o qual se mantém em níveis razoavelmente estáveis em boa parte do tempo quando estamos despertos. No entanto, está sujeito a variações mais ou menos significativas nos extremos do período de vigília. Damásio (2010) ilustrou as condições neurológicas em que a mente persiste mesmo na ausência de consciência através da exposição de um de seus casos vivenciados em seu consultório médico:

O paciente sofrera uma convulsão de ausência (um tipo de convulsão epiléptica), seguida por um período de automatismo. Durante esses momentos, ele pareceu estar fora do ar. Certamente estava acordado e apresentava comportamentos. Mostrava uma atenção parcial, estava presente fisicamente, mas não em posse de sua pessoa. Muitos anos depois descrevi sua situação como “ausente sem ter partido”, e essa descrição permanece apropriada. Sem dúvida aquele homem estava acordado, no pleno sentido do termo. Tinha os olhos abertos, e seu tônus muscular adequado permitia-lhe fazer movimentos. Ele podia inquestionavelmente produzir ações, mas elas não indicavam um plano organizado. Ele não tinha um propósito abrangente e não se dava conta das condições de sua situação; havia uma inadequação, e seus atos eram apenas minimamente coerentes. Sem dúvida seu cérebro estava formando imagens mentais, embora não possamos saber se eram abundantes ou coerentes. Para estender a mão na direção de uma xícara, pegá-la, levá-la aos lábios, devolvê-la à mesa, o cérebro precisa formar imagens, muitas imagens, no mínimo dos tipos visual, cinestésica e tátil; do contrário, a pessoa não pode executar os movimentos corretamente. Mas ainda que isso indique a presença da mente, não revela a do self. Aquele homem não parecia saber quem era, onde estava, quem eu era e por que ele estava ali na minha frente (Damásio, 2010, p. 127).

No caso acima descrito, Damásio (2010) pressupôs com segurança que a vigília estava “intacta” e que um processo mental estava presente. Todavia, diante das limitações daquele homem, era possível afirmar que a consciência no sentido relevante, instanciada com sentido de agência e propriedade dos conteúdos mentais, não funcionava plenamente. O paciente, sob o prisma de Damásio (2010), perdeu a capacidade de fazer, momento a momento, a maioria das operações do self que lhe permitia fazer o exame da mente que lhe pertencia. Deste modo, “ficou este paciente restrito a um agora sem propósito e sem contexto” (Damásio, 2010).

Ter uma mente e ter um self são processos distintos os quais são arquitetados pelo funcionamento de diferentes componentes cerebrais (Damásio, 2010). Sua natureza estratificada não aponta para uma compreensão compartimentalizada, uma vez que os processos biológicos são interdependentes. Aqui, a visão adotada é a de multiníveis da vida mental inextricavelmente associados. Portanto, esses processos se fundem em um contínuo funcionamento do cérebro graças os quais nos permitem revelar os mais variados comportamentos, desde os não-conscientes até os conscientes (Damásio, 2010).

A cristalina conclusão a qual Damásio (2010) chega é de que, se estamos acordados, e se há conteúdo mental, o resultado da adição do self à mente é a consciência. A consciência é orientada pelos conteúdos mentais para as necessidades do organismo através da subjetividade, eminente característica da consciência, aqui compreendida como o ápice da vida mental.

Com base nessa compreensão, tomamos que apenas os termos consciência e mente consciente devem ser considerados sinônimos (Damásio, 2010). Em consonância com Damásio (2010), sustentamos que consciência se distingue da mente no tanto quanto consciência é um processo de nível superior dedicado a organizar conteúdos mentais básicos, auferindo-lhes um sentido de pertença ao sujeito. A estrutura desta organização neurofisiológica, de tal modo arranjado, “converte” os conteúdos mentais básicos e não-conscientes em conteúdos mentais conscientes e organizados. Esta matriz neural do eu figura no que denominamos de processo de self.

Em uma análise empreendida por Almada e Mesquita (2017, p. 110), segue-se a questão: Onde se situa o corpo no interior dessa relação entre uma mente básica e não-consciente e uma mente consciente (consciência)? Almada e Mesquita (2017, p. 110), alinhavados com Damásio (2010), oferecem a seguinte resposta:

Ora, mais do que considerar que a consciência é uma organização de conteúdos mentais básicos e não conscientes transformados em conteúdos complexos e conscientes, devemos considerar que a “fonte” de onde a consciência depreende esses conteúdos é o organismo, que, como diz Damásio, “produz e motiva esses conteúdos”. Eis, portanto, o papel do corpo na relação entre a mente e a consciência: é o organismo, em sua atividade nervosa, que dá origem aos conteúdos mentais, e a consciência, que é típica de animais com sistema nervoso altamente complexo, consiste primariamente em ordenar conteúdos mentais e, em segundo lugar, consiste também em saber que “tal organismo vivo e atuante existe” (Almada; Mesquita, 2017, p. 110). 

No que diz respeito a todos os processos orgânicos que podem ser chamados de “processos mentais não-conscientes”, esta perspectiva fundacional acerca do papel do corpo na relação entre a mente e a consciência permitiu que Damásio (1994, 2010) coligisse robustas evidências a favor da tese de que a emergência da mente consciente remonta à atividade encefálica dedicada à formação de imagens a partir de padrões neurais que mapeiam o corpo. Destarte, o que é experienciado por nosso organismo em sua singularidade e nos limites de seu ambiente circundante por meio desses padrões neurais a partir da atividade de mapeamento do corpo viabiliza processos graças os quais o sujeito é capaz de compor sua autossenciência, determinando para si mesmo o limite do self e do não-self (Almada; Mesquita, 2017, p. 110).

Importante destacar que o mapeamento neural do corpo sob a forma de imagens faz deferência ao corpo por tê-lo como referência de base na constituição de substratos neurofisiológicos propiciadores do sentimento de identidade pessoal a partir de uma perspectiva de primeira pessoa. Tais processos nos asseguram o reconhecimento de nós mesmos como organismos conscientes e únicos, de onde se segue a compreensão de que somos distintos de todos os objetos do mundo, apontando veementemente para natureza corporal da mente consciente.

Diante do discutido até aqui, aduzimos o debate acerca do papel da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999 [1945]), o qual inspirou o ambicioso programa de pesquisa da mente corporificada edificado por Varela, Thompson e Rosch no início dos anos 1990. A reunião de Varela, Thompson e Rosch (1991) no programa de pesquisa da mente e/ou cognição corporificada decerto primou por romper com fronteiras teóricas e práticas impostas pelas ciências cognitivas tradicionais. Ao projetar a ampliação dos horizontes das ciências cognitivas, os autores de The Embodied Mind partilharam a convicção de que as ciências cognitivas figuravam incompletas por não ter sido capazes de oferecer uma posição frente ao que significa ser uma pessoa humana do ponto de vista da nossa experiência de primeira pessoa no interior de nossas situações vividas e cognitivas.

A partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999 [1945]) dirigida ao movimento de incorporação da experiência humana e das possibilidades de transformação humana atreladas às formas de experiência humana vivida; Varela, Thompson e Rosch (1991) foram cordatos quanto à consideração de que nossos corpos não podem ser restringidos ao estatuto de estruturas físicas, mas, sim, e ao mesmo tempo, devem ser tomados dinamicamente como estruturas experenciais vivas.

Tratando da dimensão da experiência e da estrutura física do corpo, os autores, ainda na introdução da obra The Embodied Mind, expuseram: “Essas duas dimensões obviamente não são opostas” e tampouco concorrentes (Varela; Thompson; Rosch; 1991 p. 13). Trata-se da consideração de que o corpo para o seu portador é mais que uma estrutura biológica; o corpo é, em sentido direto e sem intermediação, o portador da experiência a partir de uma perspectiva de primeira pessoa que traz a marca da intransferibilidade em sua vivência singular.

No que diz respeito à transição da dimensão física para a dimensão fenomenológica em The Embodied Mind, é possível pensar que talvez seus autores tenham sido imprecisos quando afirmam que essas duas dimensões não são opostas porque continuamente transitamos entre elas (Almada; Mesquita, 2016).

Essa imprecisão talvez se explique pelo recurso empregado por Varela, Thompson e Rosch (1991) à noção de trânsito, “cujo atrelamento a uma dimensão espaço-temporal não abarca o sentido da ideia de que o corpo é, a um só tempo, e sem exclusão recíproca”, uma estrutura física que é experienciada a partir de uma perspectiva de primeira pessoa (Almada; Mesquita, 2016, p. 19-20). Para Almada e Mesquita (2016, p. 19-20) esses dois aspectos são duas dimensões independentes (ainda que coexistentes) de sistemas corporais dotados de subjetividade. Portanto, em nós, não há movimento da biologia para fenomenologia e vice-versa.

Para além desta controvérsia pontual, posicionamo-nos a favor da tese da mente corporificada, com base na qual nos comprometemos com o enfrentamento do problema difícil (hard problem; cf. Levine, 1983; Chalmers, 1996). Sintonizamo-nos, aqui, com Varela, Thompson e Rosch (1991) e Almada e Mesquita (2016) na proposta de redirecionamento de um novo modelo de ciências cognitivas, caracterizado pela incorporação da abordagem fenomenológica. Ao buscar os correlatos entre a mente corporificada e a fenomenologia, somos conduzidos à fundamental compreensão de que estados mentais são sempre pertencentes a um corpo vivo, dinâmico e em funcionamento. Deste modo, não existe estado mental para além de um sujeito que o experencie e lhe imprima significado.

A abordagem da cognição corporificada alicerçada no corpo no sentido mais amplo do termo deve ocupar-se com investigações seriamente dirigidas para uma perspectiva ecológica, a qual leve em conta as relações de integração e interação entre o sujeito e o objeto e, ademais, entre o cérebro, o corpo e o ambiente. Da fenomenologia, fortalecemos a convicção de que o corpo deve ocupar uma posição de destaque em uma ciência da mente.

Em prol desta tese, revisitamos a seguinte ideia: na ausência das relações recíprocas envolvendo indissociavelmente o corpo e o cérebro integrado e em permanente relação com ambiente; (i) o conjunto da estrutura encefálica seria vazia, já que o cérebro não pensa a si mesmo, e, (ii) da mesma forma, se o corpo não estivesse inserido no mundo, não passaria de uma massa biológica, física e química completamente autômata e cega (Almada; Mesquita, 2017, p. 110).

Self-awareness (autossenciência) e propriocepção: canais de informações corporais e seus papéis na constituição da autossenciência corporal (self-awareness)

Esta seção que se inicia tem como enfoque a apresentação da relação que se estabelece entre os canais de informações corporais (propriocepção, interocepção e exterocepção) e a composição de um quadro multidimensional do corpo no cérebro. Tais processos de base corroboram a tese da constituição da autossenciência corporal. Neste sentido, buscaremos enfatizar o papel desenvolvido pelos canais de informações corporais no que diz respeito aos nossos processos de senciência (awareness), incluindo na agenda investigativa a percepção não-propriamente consciente em relação ao que é transmitido por tais canais de informação. Ademais, no âmbito dos canais de informações corporais, concentraremos nossos esforços no estudo do papel da propriocepção, a fim de averiguar sua contribuição em nível pré-reflexivo na constituição da autossenciência corporal (self-awareness).

Dada a intenção de oferecer explicações complementares acerca das formas pelas quais nosso corpo modela nossa vida mental, remeteremos, no decorrer do desenvolvimento desta seção, às distinções entre a imagem do corpo (body image) e esquema corporal (body schema), tecidas nas produções de Gallagher (1986, 1995, 2003, 2005) intituladas, respectivamente, Body image and body schema: a conceptual clarification, Body schema and intentionality, Bodily self-awareness and object-perception e Dinamic models body schematic processes. Gallagher (1986, 1995, 2003, 2005), nestas produções, se dedica a pormenorizar as principais características que distinguem a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema).

De fato, há uma íntima relação entre corpo e movimento, movimento e exploração do ambiente, e, sobretudo, é notável o potencial da ação-exploração dos organismos humanos nos nichos ambientais nos quais estão inseridos. A partir de uma relação decisivamente recíproca, o homem altera o ambiente, assim como o ambiente pode promover alterações significativas neste organismo a partir desta interação. Há limites impostos pelo aparelho biológico, mas, ainda assim, as mútuas afecções engendradas através desta bilateral relação não podem ser negligenciadas no estudo da autoconsciência.

As contemporâneas ciências do cérebro nos autorizam a afirmar que, na ausência dos neurônios, não há mente (Damásio, 2010, p. 47). Na evolução dos organismos, o surgimento da motilidade possibilitou o desenvolvimento de respostas fisiológicas basilares cada vez mais elaboradas, o que favoreceu a prosperidade biológica. Compreender a motilidade humana e suas relações com os canais de informações corporais é de suma importância para os estudos da constituição da autossenciência corporal (self-awareness). Importante lembrar que, graças ao enriquecimento de possibilidades sensório-motoras os organismos se tornaram capazes de garantir o sucesso das relações reciprocamente estabelecidas entre o interior e o exterior destes organismos (Damásio, 2010, p. 47).

A favor da tese de que a sofisticação das nossas possibilidades sensório-motoras contribuiu significativamente para o desenvolvimento da consciência, sublinho a característica distintiva do animal humano exibida pela capacidade de “saber que conhece”. Há fortes indícios de que a interação do cérebro com os processos basais não-conscientes passou por progressivas alterações graças as quais as representações corporais e informações corporais conquistaram um grau de aperfeiçoamento ao longo da história evolutiva da espécie humana. Processos pré-conceituais (não-reflexivos) se confirmaram como a base fundacional de processos elaborados e “sutis” passíveis de serem experenciados em estratos conscientes da vida mental.

A partir deste introito, sentimo-nos credenciados a refletir acerca dos processos de propriocepção no contexto da motilidade e suas repercussões no âmbito dos processos conscientes da vida mental. Os animais que se movem de alguma maneira, o fazem guiados pela valoração biológica. Essencialmente, a motilidade cumpre o papel de explorar o ambiente e garantir a sobrevivência. Para tanto, a motricidade permite manter o corpo em posição a despeito da força gravitacional exercida para aproximá-lo do chão. Permite também que o corpo busque alimentos, e que fuja das ameaças. No entanto, a motricidade e suas variáveis não podem ser encaradas com trivialidade, uma vez que assumiu grande complexidade com a automatização de grande parte de mecanismos posturais, diminuindo, por exemplo, a dependência das mãos em relação às necessidades posturais, podendo assim ser utilizadas para fins como a fabricação de utensílios e instrumentos (Lent, 2010, p. 387). Outra questão apresentada por Lent (2010, p. 387) diz respeito à associação do desenvolvimento dos processos posturais em relação às expressões faciais que promoveram a sofisticação do sistema de comunicações de ideias e sentimentos (Lent, 2010, p. 387).

Portanto, a justificativa para debruçar-nos sobre os canais de informações corporais é a de que os movimentos não dependem exclusivamente dos músculos, como poderíamos ser induzidos a pensar. São, pelo contrário, processos complexos que envolvem representações corporais, percepções não-conscientes (pré-conceituais) e experiências corporais conscientes, decorrentes de processos emergentes oriundos da integração e interação do corpo, cérebro e do ambiente.

A partir de agora, tratando especificamente dos mecanismos proprioceptivos, procederemos a um balizamento de controvérsias que inerem à discussão do papel da propriocepção no âmbito da senciência e/ou autoconsciência corporal. Gallagher (2003), por exemplo, propõe que termo propriocepção apresenta uma ampla gama de significados conforme o tratamento teórico e conceitual que recebe.

Para Sherrington (1953) e Fourneret e Jeannerod (1998), por exemplo, a propriocepção cumpre a função de informar sobre a postura corporal e posição dos membros, a partir de condições fisiológicas (mecânicas) em que os proprioceptores desempenham tais funções localizadas em todo corpo. Neste caso, a propriocepção é concebida como uma função não-consciente inteiramente subpessoal.

Para O’Shaughnessy (1995), em contraste, a propriocepção é tratada como uma “forma” de awareness, aproximando-se da sugestão de Sheets-Jonhstone (1998) para a qual o papel da consciência proprioceptiva reside na função de tomar senciência do próprio corpo em relação aos seus membros a cada momento. Na análise empreendida por Gallagher (2003), a proposta é a de que todos estes autores guardam uma forte semelhança entre si, sublinhando o fato de como se voltam para o termo propriocepção, o que parece refletir a intuição de uma conexão do corpo consigo mesmo. Gallagher (2003) recorre a uma delimitação conceitual das variáveis das propriedades proprioceptivas, distinguindo informações proprioceptivas de consciência proprioceptiva sem deixar de considerar que estas propriedades estão intimamente relacionadas, de modo que, juntas, definem um padrão capaz de abarcar processos não-conscientes e subpessoais, bem como processos conscientes e pessoais.

Nesse mesmo artigo, Gallagher (2003) faz alusão a uma produção de Neisser (1998), A curva ascendente: ganhos de longo prazo em QI e medidas relacionadas, a qual Neisser (1998) assinala que geralmente a experiência perceptiva vem acompanhada de uma sensação de postura corporal e de dimensão espacial do movimento em relação ao ambiente. No interior de um contexto em que a propriocepção somática aponta para a correspondência dos seus mecanismos com o corpo-próprio e com ambiente o qual Neisser (1998) denominou “eu ecológico”. De fato, autores como Bermudez (1998) também se defrontou com a frequente questão de tratar a senciência proprioceptiva como uma forma de percepção a qual o corpo é identificado como um objeto cognoscível na dimensão da senciência.

Gallagher (2003) elege como argumento central de seu trabalho a defesa de que a propriocepção é predominantemente não-perceptiva, incluindo os aspectos somáticos e ecológicos, ou seja: se estabelece em um nível pré-conceitual ou pré-reflexiva. O aspecto de que a propriocepção é preponderantemente não-perceptiva ganhou notoriedade filosófica na publicação de Shoemaker (1968), quando trata do princípio de imunidade ao erro por identificação equívoca em relação ao pronome de primeira pessoa Eu.

O princípio de imunidade ao erro por identificação equívoca em relação ao pronome de primeira pessoa, elaborado por Shoemaker (1968), está a serviço da investigação acerca do papel desempenhado pela senciência corporal na constituição da autoconsciência. Em tal princípio, autoriza-se a conceber que determinadas fontes corporais de informação, dentre elas, a exterocepção, a interocepção e a propriocepção são imunes ao erro por identificação equívoca em relação ao pronome de primeira pessoa, uma vez que as informações fornecidas por estas fontes corporais são sobre o sujeito que as recebe. Logo, não há possibilidade de identificar equivocadamente a fonte de informação.

Como bem salientado por Almada e Mesquita (2018, p. 31), trata-se de uma propriedade de juízos. Recorrendo a um exemplo distinto do utilizado por Almada e Mesquita (2018, p. 31), a propriedade de juízos seria a emissão do juízo, por exemplo, de que neste momento em que escrevo aparece um passarinho em meu jardim. Viro-me para vê-lo, junto minhas mãos e entrecruzo os dedos. De acordo com o princípio de imunidade ao erro por identificação equívoca em relação ao pronome de primeira pessoa, embora haja chances dos meus juízos se apresentarem equivocado posso estar enganado quanto à posição dos meus dedos e à posição do pescoço ao me virar para observar o passarinho. Mas não posso conceber que esses juízos possam ser enganosos em relação a quem é o proprietário das fontes corporais que endereçaram estas informações ao sujeito que as recebeu. Juízos imunes ao erro por identificação equívoca são vias de verificação de formas primitivas de autoconsciência, formas de averiguação de nossos próprios estados intero-, extero- e proprioceptivas fontes de referência a si mesmo (self-reference) e de autossenciência (self-awareness) (Shoemaker, 1968).

Compondo as formas primitivas de autoconsciência, aparecem o (i) sentido de movimento, (ii) o senso de posição, (iii) a interocepção e (iv) a propriocepção visual como formas privilegiadas de informações pré-conceituais (Bermúdez, 2011). Nesta perspectiva, as formas de senciência corporal de primeira pessoa estão atrelados fortemente aos juízos com a propriedade de imunidade ao erro por identificação equívoca em relação ao pronome de primeira pessoa.

Infere-se, a partir da existência de privilegiadas formas de informações pré-reflexivas, que estas formas primitivas de autossenciência prescindem dos domínios linguísticos, supondo que não há, nos domínios destas informações primordiais, a capacidade, por exemplo, de reconhecer-se no espelho ou a capacidade de averiguar atentamente a própria experiência. Trata-se, por conseguinte, de uma forma de autoconsciência primitiva, pré-conceitual, pré-reflexiva e primária, que é compartilhada com os recém-nascidos e com animais não-humanos.

É nesse sentido, e em consonância com Bermudez (1998) e Almada e Mesquita (2018), que suponho que as formas superiores da autoconsciência têm origens relevantes em uma gama de formas não-reflexivas de conteúdos autoconscientes, as quais são obviamente e ontogeneticamente mais primitivas. Com efeito, em sintonia com Bermudez (1998), posso atribuir conteúdo não-conceitual a um pensador sem que, para isso, este pensador possua conceitos necessários para especificação destes conteúdos. Sobre isso, Almada e Mesquita (2018, p. 32) dizem:

Esses conteúdos não-conceptuais são relevantes para a constituição da autoconsciência na medida em que nossas fontes de informações não-conceptuais estão na base de uma grande e relevante quantidade de estados mentais capazes de representar o mundo de maneira não-conceptual.

No seio desta discussão que envolve conteúdos não-conceituias e conteúdos conceituais, é possível distinguir por um lado, a mente básica e não-consciente, e, por outro, a consciência, com a vantagem de incluir eventos mentais não-conscientes e senciência não-perceptual do corpo no que denominaremos, neste momento, de vida integral da mente (Almada; Mesquita, 2017, p. 116). Esta divisão deve ser pautada pela cautela, contanto que seja apenas utilizada em termos didáticos, e atentando para o fato de reforçar que esta distinção não dicotomiza a vida mental. Pelo contrário, aponta de modo relevante para incessantes relações entre o corpo-próprio, cérebro e o ambiente, cujas interrelações abarca a vida mental como um “todo”. De acordo com exposto, admitimos a existência de multiníveis na vida mental; entretanto, rechaçamos qualquer possibilidade de isolamento funcional, estrutural e fisiológico em relação aos agentes inextricavelmente (corpo, cérebro e ambiente) envolvidos na constituição da mente consciente.

Notadamente, a mente apresenta íntima correlação com muitas formas pelas quais “nós usamos e representamos nossos corpos e pelas quais nossos corpos se adaptam em suas estreitas relações com ambiente” (Almada; Mesquita, 2017, p. 116). Os canais de informações corporais (incluindo as informações conscientes e não-conscientes), a exemplo da propriocepção, asseguram a todo o momento as informações sobre o estado do corpo e a “performance” do corpo tanto quanto as informações disponíveis que se apresentam no ambiente como possibilidades de ação do animal neste ambiente (affordance) (Gibson, 1986, p. 143). James Gibson (1986, p. 143) definiu: “a affordance é uma propriedade disposicional e relacional que emerge da relação dinâmica entre o organismo e o ambiente ecológico”.

Músculos e tendões, por exemplo, contêm “canais de informações sensíveis” à distensão (ao estiramento), à tensão e à pressão etc. “Estas estruturas”, conhecidas como proprioceptores, “asseguram a todo o momento as informações sobre o estado do corpo e a ‘performance’ do corpo tanto quanto as informações disponíveis no ambiente”. Estas informações corporais predominantemente representam eventos mentais pré-conceituais, mas também são passíveis de ser experenciadas em eventos mentais conscientes. A propriocepção torna possível a incessante representação corporal da progressão sequencial dos movimentos (ainda que em nível pré-noético) e serve para modificar o comportamento subsequente. Daí se segue nossa compreensão: a mente não é o resultado exclusivo de atividades cerebrais, ainda que não exista consciência sem atividades cerebrais; porém, antes, a constituição da consciência aponta para as incessantes relações que envolvem o corpo-propriamente-dito (didaticamente excluindo cérebro), o cérebro e o ambiente.

Ao tratar das formas não-perceptuais e não-conscientes da senciência corporal, Gallagher (2003, p. 55) afirma que estas formas pré-conceituais são capazes de capturar “a ordem espacial diferencial do corpo” sem qualquer suporte de “uma estrutura espacial egocêntrica” (Gallagher, 2003, p. 55). Esses mecanismos não podem subsistir na ausência de informações relacionadas ao ambiente: os receptores desempenham a tarefa de sentir os pés e a posição dos pés sobre a forma momentânea dos pés ou sobre a forma e a textura da bola quando em contato com esta bola no período do jogo (Eilan; Marcel; Bermudez, 1995, p. 13). De modo similar, “receptores nas articulações e nos músculos” (fusos musculares, órgãos tendinosos de golgi) “fornecem informações sobre a distribuição espacial dos membros, o que pode contribuir para exploração tátil dos contornos dos objetos de grandes contornos” (a bola do jogo, por exemplo) (Eilan; Marcel; Bermudez, 1995, p. 13).

Torna-se sumariamente importante salientar que poucas dessas informações são registradas ou processadas conscientemente e, portanto, em acordo com Eilan; Marcel; Bermudez (1995), existe uma significativa diferença entre “possuir informações relativas ao corpo e a ter a experiência do próprio corpo”. Feito o percurso teórico e conceitual até aqui, parece-me plausível tratar de aspectos de transitoriedade dos eventos mentais não-conscientes para os eventos mentais conscientes.

Passamos agora a descrever o processo de transitoriedade por meio dos três eventos subsequentes. Aliamo-nos, mais uma vez, a Damásio (2010): 

(i) O primeiro evento é marcado pela transformação no sentimento primordial, resultando em um sentimento no qual o objeto é distinguido dos demais na simultaneidade do tempo. Damásio classificou este evento como “sentimento de conhecer o objeto” (Damásio, 2010). Ao torcer o tornozelo, esta região do corpo foi distinguida das demais, e o pé passa a ser o objeto da atenção do indivíduo, ensejando então o “sentimento de conhecer o objeto” (Damásio, 2010). A lesão “floresce” enquanto conteúdos mentais conscientes, e doravante passam a concorrer com outras variáveis;

(ii) O segundo evento é marcado pela geração de destaque para o objeto da interação, um processo que inclui o componente da atenção que atua na convergência de recursos de processamento, ampliando o foco de um objeto em específico em detrimento de outros. Em dado momento, apenas os “mapas” corporais específicos do pé passam a compor os conteúdos mentais do indivíduo, fazendo com que ele abandone as outras variáveis da situação e procure meios para solucionar os problemas relativos à lesão a qual foi acometido. Por fim;

(iii) Agora que o objeto se encontra marcado pelo sentimento e destacado pela atenção, a mente atua incluindo as imagens através de uma sequência simples e comum à série de eventos: “o objeto chama atenção do corpo a partir de uma perspectiva específica”, “isso faz o corpo mudar; a presença do objeto é sentida e este objeto ganha destaque” (Damásio, 2010). Perceba claramente que agora os conteúdos mentais residem nos domínios da linguagem. Pode então o indivíduo descrever como foi a entorse, descrever o sentimento em relação à dor etc., e, assim, ampliar as possibilidades de solucionar o problema, uma vez que os conteúdos mentais ficaram acessíveis nos estratos conscientes da vida mental.

Considerações finais

Cumprindo o que fora prometido, trataremos, nessas considerações finais, das distinções entre a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema), dada a intenção de enriquecer a discussão acerca das formas pelas quais nosso corpo modela nossa vida mental. Alinhamo-nos a Gallagher (1986, 1995, 2005), e, também contaremos com o suporte de Almada e Mesquita (2017) no que tange ao tratamento dado às questões relativas à imagem do corpo (body image) e ao esquema do corpo (body schema). Destacaremos e citaremos um trecho no qual Almada e Mesquita (2017) ponderam acerca do papel da imagem do corpo (body image) e do esquema do corpo (body schema) no que diz respeito à manutenção e ao equilíbrio entre o corpo, o meio interno e o meio externo (Almada; Mesquita, 2017, p. 121-122):

Conjuntamente, a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema) concorrem para manter o equilíbrio entre o corpo, o meio interno e o meio externo, alternando entre episódios de consciência atenta ao corpo e de senciência (aware) marginal ao corpo ou a partes do corpo. Graças ao equilíbrio entre imagem do corpo (body image) e esquema do corpo (body schema), podemos manter nossa atenção dirigida ao ambiente e permanecer constantemente sencientes (aware) em relação a nosso corpo, sendo capazes de, a qualquer momento, voltarmos nossa atenção a nossos corpos ou cada uma de suas partes: é nesse sentido que a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema) são processos fisiológicos e fenomenológicos que concorrem, conjuntamente, para a emergência da autoconsciência. O fato de o esquema do corpo (body schema) funcionar em termos pré-noéticos, isto é, pré-reflexivos, não exclui, mas antes, demanda a integração com a imagem do corpo (body image) no que podemos chamar na formação de um organismo autoconsciente no qual está naturalmente integrado o ambiente (Almada; Mesquita, 2017, p. 121-122).

Procedendo brevemente e estritamente às distinções entre imagem do corpo (body image) e esquema do corpo (body schema), Gallagher (1986, 1995, 2003, 2005) gira em torno a três questões centrais as quais lhes apresentamos com as seguintes denominações: (i) sentimento de propriedade e subjetividade, (ii) intencionalidade e (iii) representação corporal (holística ou parcial).

No que diz respeito ao primeiro aspecto, que trata do sentimento de propriedade de si e subjetividade, remeto-nos a Gallagher (1995, p. 228) para abordar as relações entre o cérebro e o corpo: “o corpo é experenciado como um corpo possuído”. Destarte, é por meio da imagem do corpo (body image) que nos é propiciado o sentimento de si, e nos tornamos capazes de experenciar subjetivamente o corpo. Em contrapartida, o esquema do corpo (body schema), no que lhe concerne, não apresenta significativas relações com o sentimento de propriedade de si. O fundamento da participação do esquema do corpo (body schema) se relaciona com os movimentos e dimensões posturais que estão para além do controle consciente. O esquema do corpo (body schema) no contexto de integração e interação entre o corpo, o cérebro e o ambiente, são relevantemente importantes na manutenção global da autossenciência (self-awareness).

Ao proceder a esta primeira distinção entre a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema), habilitamo-nos a tratar com maior clareza da intencionalidade e suas particularidades. A partir do discutido acima, evidencia-se que o esquema do corpo (body schema) pode ser inequivocamente caracterizado por um conjunto de operações corporais situadas antes ou depois de ações ou movimentos corporais intencionais. Enquanto, por outro lado, a imagem do corpo (body image) apresenta um estatuto de intencionalidade, ou potencialmente intencionais, pois, embora não estejamos efetivamente conscientes dos aspectos conceituais, perceptuais e emocionais da imagem do corpo (body image), nossas relações intencionais com esses aspectos sempre permanecem inalterados, já que esses aspectos permanecem como um grupo de crenças ou atitudes que nós temos em relação a nossos corpos.

Neste sentido, um ótimo exemplo é a marcha da caminhada. Quando caminhamos, os braços são movimentados dentro de um determinado padrão que acompanha sincronicamente as pernas sem que estejamos conscientes de tal ação. Entretanto, posso deliberar caminhar com os braços imobilizados tomando consciência cinestésica dos meus braços, e tornando-os objeto da minha atenção. O esquema do corpo (body schema), mesmo sendo neurologicamente estruturado e marcado por um estado não-consciente, tem um papel ativo e verdadeiramente importante nas relações entre o cérebro e o corpo, uma vez que é por meio de suas habilidades adquiridas que monitora e governa a postura e os movimentos do corpo.

O segundo aspecto abordado nos leva ao terceiro com maior clareza ainda. Enquanto o esquema do corpo (body schema) pode ser representado a partir de uma abordagem holística, a imagem do corpo (body image) pode ser representada a partir de uma perspectiva articulada ou parcial. Nesse sentido, para Gallagher (1995, p. 229), a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema) são igualmente importantes, notadamente diferentes e decisivamente complementares formas de senciência corporal (bodily awareness).

Gallagher (2005, p. 229) trata da competente e harmoniosa relação de coexistência, co-evolução e cooperação que envolve a imagem do corpo (body image) e o esquema do corpo (body schema) no âmbito da vida mental. Conforme Almada e Mesquita (2017, p. 121):

É importante ressaltar que, embora a imagem do corpo (body image) tenha por essência um status intencional, ela nem sempre está intencionalmente presente (acrescentaria, mas está sempre potencialmente presente), já que nem sempre estamos intencionalmente conscientes de nosso corpo, ou seja, já que nosso corpo não é, a cada instante, tratado por nós como um objeto intencional. O corpo pode estar, para nós, como que apagado, ou que, em rasura apenas por conta do auxílio do esquema do corpo (body schema), cujo modo de funcionamento faz com sejamos capazes de nos movimentar e de ajustar a postura de modo automático e sem demandar controle consciente (Almada, Mesquita, 2017, p. 221).

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Leonardo Ferreira Almada

Professor Associado III do Instituto de Filosofia e do Programa de Pós Graduação em Filosofia (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal de Uberlândia.

 

Fabiense Pereira Romão

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia.

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