Abordagens mecanicista e ecológica das emoções: um estudo comparativo
Mechanistic and Ecological Approaches to Emotion: A Comparative Study
Mariana C. Broens[1]
UNESP – Universidade Estadual Paulista
Recebido: 06/09/2023
Received: 06/09/2023
Aprovado: 20/10/2023
Approved: 20/10/2023
Publicado: 29/12/2023
Published: 29/12/2023
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar e problematizar a perspectiva mecanicista e funcionalista de processos emocionais à luz da teoria ecológica da percepção/ação. Para isso, será apresentada a proposta de máquinas emocionais elaborada por Marvin Minsky (2006), para quem processos emocionais seriam estados cerebrais que operariam segundo princípios defendidos pela teoria clássica computacional da mente. Em contraste, apresentaremos uma proposta de análise de processos emocionais inspirada em teses da teoria ecológica da percepção/ação (Gibson, 2015), especialmente a partir do conceito de affordance social, isto é, das possibilidades de ação que a dinâmica corporal/gestual dos agentes oferece diretamente a outros agentes, sem a necessidade de mediação representacional. Em tal análise, procuraremos realçar a relevância dos processos co-evolucionários segundo o princípio de mutualidade e o papel adaptativo de processos emocionais em agentes sociais, preteridos pela abordagem computacional clássica da mente, mas necessários para efetivamente instanciar emoções e não apenas reconhecê-las-ás ou simulá-las em sistemas robóticos.
Palavras-chave: Abordagem mecanicista da mente; emoções, affordances sociais, mutualidade, nicho, robôs.
Abstract
The aim of this article is to analyze and problematize the mechanistic and functionalist perspective of emotional processes in light of the ecological theory of perception/action. To this end, we present Marvin Minsky's (2006) proposal for emotional machines, for which emotional processes would be brain states that operate according to principles defended by the classical computational theory of mind. In contrast, we will present a proposal for the analysis of emotional processes inspired by the propositions of the ecological theory of perception/action (Gibson, 2015), in particular based on the concept of social affordance, that is, the possibilities of action that the bodily/gestural dynamics of agents offer directly to other agents, without the need for representational mediation. In such an analysis, we will try to highlight the relevance of co-evolutionary processes according to the principle of reciprocity and the adaptive role of emotional processes in social agents, which are overlooked by the classical computational approach to the mind, but are necessary for the effective instantiation of emotions, and not only for their recognition or simulation in robotic systems.
Keywords: Mechanistic approach to the mind; emotions, social affordances, mutuality, niche, robots.
Each of our major "emotional states" results from turning certain resources on while turning certain others off — and thus changing some ways that our brains behave.
Marvin Minsky
No projeto da Inteligência Artificial (IA) que se desenvolve a partir dos anos de 1950, o interesse central dos cientistas cognitivos foi dirigido à elaboração de modelos mecânicos que fossem capazes de simular/instanciar habilidades lógico-matemáticas consideradas de alto nível, mais facilmente quantificáveis. Isso não significa que as habilidades emocionais não fossem consideradas relevantes pelos cientistas da computação, isso antes revelava o reconhecimento da complexidade dessas habilidades e da baixa capacidade de processamento dos primeiros sistemas artificiais.
Mais de 50 anos depois do início do projeto da IA, Marvin Minsky, um dos pioneiros das pesquisas na área, em obra intitulada The emotion machine: Commonsense Thinking, Artificial Intelligence, and the Future of the Human Mind, inicia uma reflexão sobre a possibilidade de haver “máquinas emocionais artificiais”. Minsky (2006) destaca que tal possibilidade seria considerada absurda pela maioria das pessoas, pois, segundo concepções do senso comum, máquinas seriam muito eficientes para a realização de tarefas mecânicas, como cálculos complexos ou a montagem automatizada de veículos, mas seriam incapazes, por exemplo, de amar. Para Minsky (2006), ninguém acha surpreendente que máquinas sejam capazes de efetuar complexas operações lógicas, uma vez que tais operações são realizadas por meio de um conjunto restrito de regras inferenciais mecanicamente realizáveis. Ao contrário, porém, o amor, para a maioria das pessoas, não seria explicável por leis físicas e máquina alguma será capaz de instanciar emoções, sentimentos e consciência.
Minsky (2006) ressalta que estratégias bem-sucedidas adotadas pela Física – explicar fenômenos complexos utilizando princípios simples – não são capazes de explicar processos cerebrais que instanciam funções complexas, a despeito das tentativas nesse sentido efetuadas por psicólogos e neurocientistas. Ele sugere que o vocabulário mentalista da psicologia popular dá uma falsa sensação de simplicidade e sucesso ao utilizar termos que não têm propriamente um referente, mas efetivamente designam complexos e múltiplos processos cerebrais. Assim, Minsky sugere que: “[…] instead of searching for simple explanations, we need to find more complicated ways to explain our most familiar mental events” (2006, p. 2). A melhor forma de entender em que consistem as emoções será compreender quais processos cerebrais ocorrem quando sentimos cada emoção. Na mesma esteira de Alan Turing (1950), que ressalta a inutilidade de fazer perguntas irrespondíveis, questões do tipo: “o que seriam pensamentos e emoções?” não permitirão avançar na explicação de processos emocionais, pois perguntas a respeito da natureza ou propriedades essenciais de alguma coisa são inapropriadas na perspectiva funcionalista sugerida por Minsky:
[...] behaviour of a complex machine depends only on how its parts interact but no on the ‘stuff’ of which they are made (except for matters of speed and strength). In other words, all that matters is the manner in which each part reacts to the other parts to which it is connected” (p. 22).
O reconhecimento da complexidade dos problemas envolvidos quando se trata de explicar as emoções e a própria consciência, no entanto, ao invés de dificultar a tarefa explanatória, segundo Minsky (2006), efetivamente a facilitaria, pois permitiria aplicar o método de análise e síntese dividindo mistérios complexos em problemas novos e menores, ainda de difícil elucidação, mas não mais irresolúveis. Aplicando o método de análise, Minsky aponta que o cérebro possuiria um grande conjunto de “recursos”, que ele ilustra por meio da imagem abaixo:
Figura 1 – Representação dos “recursos” do cérebro.
Fonte: Minsky, 2006, p. 3.
Combinações específicas desses recursos cerebrais permitiriam explicar, dentre inúmeros outros processos (tais como os envolvidos diretamente na sobrevivência), a grande variedade de emoções. A raiva e o medo, por exemplo, mobilizariam recursos de agressividade e prudência, respectivamente. A piedade envolveria recursos de cuidado, a tristeza, de introspecção, a alegria, de regozijo, e assim por diante, resultando de combinações distintas de recursos cerebrais, como ilustrado por Minsky (2006) em relação às emoções de medo e raiva, mas também às sensações sede e fome:
Figura2 – Combinações de recursos cerebrais responsáveis por distintas funções.
Fonte: Minsky, 2006, p. 4.
Desse modo, Minsky (2006) oferece uma ferramenta analítica que permitiria, segundo ele, compreender e instanciar em máquinas artificiais diferentes recursos cuja combinação permitiria emular emoções presentes nos cérebros, isto é, em máquinas naturais. Para ressaltar a utilidade de seu método analítico, Minsky (2006) volta-se à análise do amor.
Primeiramente, a partir do vocabulário mentalista da psicologia popular, o amor poderia ser caracterizado como um forte apego pessoal a outrem, uma afeição profunda por outra pessoa e assim por diante. Percebe-se que essas e outras caracterizações semelhantes não esclarecem a natureza dos processos envolvidos nessa emoção. Por exemplo, uma pessoa vivenciando uma relação amorosa, descreve sua emoção utilizando o vocabulário da psicologia popular da seguinte maneira:
I've just fallen in love with a wonderful person. I scarcely can think about anything else. My sweetheart is unbelievably perfect — of indescribable beauty, flawless character, and incredible intelligence. There is nothing I would not do for her (p. 10).
Minsky (2006) ressalta que, embora o relato acima pareça positivo, benéfico e auspicioso, as sentenças são superlativas e várias qualidades atribuídas à pessoa amada começam com prefixos de negação (“inacreditável”, “indescritível”, “incrível”). Minsky, então, faz uma espécie de tradução do que de fato cada uma dessas sentenças significaria:
Wonderful. Indescribable. (I can't figure out what attracts me to her.) I scarcely can think of anything else. (Most of my mind has stopped working.) Unbelievably perfect. Incredible. (No sensible person believes such things.) She has a flawless character. (I've abandoned my critical faculties.) There is nothing I would not do for her. (I've forsaken most of my usual goals) (2006, p. 10).
Ao ler esta tradução do relato amoroso proposta por Minsky (2006), muitas pessoas possivelmente fiquem surpresas e chocadas por sua aparente rudeza e simplismo reducionista. Afinal, será legítimo considerar o amor, uma das emoções humanas mais profundas e estimadas, como um processo que desligaria recursos cerebrais referentes a capacidades inferenciais, prudência, raciocínio crítico e propósitos existenciais? E como admitir que as emoções operem de acordo com um conjunto de regras lógicas conjuntivas, disjuntivas e de negação?
Mas, deixando de lado nossa surpresa inicial e assumindo uma postura mais objetiva, parece que temos que reconhecer, com Minsky (2006), que pode haver muito de maquinal e reativo em condutas associadas a estados amorosos. Além disso, parece necessário ressaltar que mecanismos bioquímicos estariam associados a estados emocionais como amor, medo e raiva, por exemplo, e às condutas correlatas a tais estados. Em especial, tal natureza reativa e mecânica de estados emocionais em geral é evidenciada pelo modo como certas substâncias aditivas afetam padrões de conduta de seus consumidores, especialmente em casos que envolvem dependência química.
A interação causal dos mecanismos biológicos e nossos recursos cerebrais (entre eles, os emocionais) permite a Minsky (2006) sugerir que “amar”, assim como inúmeros outros termos de nosso vocabulário emocional, possui inúmeros sentidos diferentes e se refere não apenas a um, mas a diversos estados e processos: trata-se de uma palavra do tipo “guarda-chuva”, que engloba, por exemplo, o amor materno, a mais ardente paixão e o sentimento que alicerça longas amizades. Para ele, porém, todos os sentidos do termo amor teriam em comum que eles levam as pessoas a pensarem de modo diferente. Em outros termos, estados emocionais seriam tipos particulares de “modos de pensar”, entendidos como processamento de informação recebida, ou inputs, que permitiria ativar certos recursos cerebrais e inibir outros (Minsky, 2006, p. 12). Em síntese, os seres humanos seriam máquinas naturais portadoras de sofisticado sistema processador de informação, o cérebro, operando causalmente. Mas, dada a capacidade humana de operar com pensamentos de segunda ordem, ou seja, de refletir sobre a natureza de seus próprios processos de pensamento, a constatação de sermos máquinas complexas não necessariamente afetaria nosso autorrespeito humano, e poderia aprimorar nosso senso de responsabilidade (Minsky, 2006, p. 2).
Como ressaltado, a explicação dos distintos processos emocionais depende de investigar quais recursos cerebrais, ou programas, seriam ativados no cérebro como resultado dos inputs recebidos. O que interessa na perspectiva funcionalista assumida por Marvin Minsky, serão as capacidades de interação entre as partes do sistema e não o substrato material que as instancia. Mas será que qualquer substrato material seria capaz indistintamente de instanciar interações equivalentes? Como apontado, Minsky reconhece duas exceções ao funcionalismo quando se trata de velocidade e força (2006, p. 22). Nesses dois casos, a instância material, ou “do quê” é feito o artefato seria relevante, sob pena de o mecanismo ser incapaz de instanciar a performance esperada (por exemplo, um motor feito de papel não seria capaz de movimentar um automóvel). Na mesma direção, podemos perguntar: o que nos garante que instanciar emoções não exija também um substrato físico-químico específico capaz de efetuar interações também específicas? Se assim for, quais seriam essas interações e em que poderia consistir sua especificidade? Até podemos concordar com Minsky quando ele ressalta a relevância das interações entre as partes nas máquinas complexas, como seria o caso dos recursos cerebrais a que se refere, uma vez que instâncias físicas com propriedades diferentes podem eventualmente desempenhar funções com resultados semelhantes. Mas isso não significa que qualquer substrato físico seja capaz de instanciar o tipo de interação envolvendo diferentes camadas de complexidade de que resultaram as emoções nos agentes naturais.
Quando as emoções são explicadas como “formas de pensar”, em que diferentes recursos, ou programas, são ativados ou inibidos, elas estão sendo dissociadas do longo caminho evolutivo que as constituiu, isto é, do próprio processo de longa duração que levou a sua emergência em agentes naturais. O amor, evolutivamente falando, permaneceria como termo polissêmico que designa processos complexos, mas, em geral, passaria a ser descrito como uma emoção que desempenha um papel adaptativo e agregador de agentes ecologicamente situados e os aproxima em torno de objetivos comuns ligados à preservação ou sobrevivência de um grupo.
Da mesma forma, a biologia evolucionária indica que as manifestações fisiológicas associadas por Minsky (2006) ao medo, como sinais de alarme diante de um perigo, teriam decorrido de processos adaptativos da espécie como instrumentos para permitir a sobrevivência do indivíduo frente à dinâmica, nem sempre favorável, das condições ambientais, especialmente frente a ameaças de predadores. Diante da relevância dos processos ecológicos que propiciaram a emergência das emoções nas diferentes espécies de seres vivos, um modelo explanatório mecanicista e centrado em processos cerebrais será satisfatório? Será correto dissociar explicações sobre a natureza de processos emocionais do complexo e longo fluxo co-evolucionário responsável pelo seu próprio aparecimento e desenvolvimento? Como alternativa ao modelo explanatório dos processos emocionais proposto por Marvin Minsky (2006), na próxima seção apresentaremos uma perspectiva ecológica e contextualmente situada sobre as interações envolvendo emoções nos seres vivos.
A teoria da percepção direta é profundamente crítica da abordagem cognitivista, mecanicista, da percepção e dos processos cognitivos em geral, como a proposta por Marvin Minsky. Um dos principais postuladores da teoria da percepção direta, ou teoria da percepção/ação, foi James J. Gibson na obra “Ecological approach of visual perception” (2015). Em tal obra, Gibson problematiza a concepção cognitivista da percepção, a qual pode ser sintetizada como considerando os dados sensíveis como inputs, em seguida processados pelo cérebro (ou por um processador de informação artificial) para, posteriormente, terem como saída outputs comportamentais. Para Gibson, ao contrário, os nichos ecológicos oferecem diretamente possibilidades de ação para os agentes, humanos ou não, por meio de informação intrinsecamente significativa nele disponível. A informação presente nos nichos permitiria, segundo Gibson (2015), guiar o fluxo dinâmico da conduta dos agentes que interagem entre si e com o contexto ecológico de que fazem parte.
Gibson (2015) propõe o conceito de affordance para designar possibilidades de ação presentes nos nichos ecológicos. Aponta Gibson (2015):
The affordances of the environment are what it offers the animal, what it provides or furnishes, either for good or ill. The verb to afford is found in the dictionary, but the noun affordance is not. I have made it up. I mean by it something that refers to both the environment and the animal in a way that no existing term does. It implies the complementarity of the animal and the environment (p. 119).
Desse modo, as affordances seriam diretamente perceptíveis pelos agentes situados e incorporados em seus contextos ecológicos ou nichos, pois compartilham uma história adaptativa co-evolucionária de complementariedade, ou mutualidade. A relação de mutualidade agente/nicho pode ser formulada da seguinte forma: “A situation or event X affords an activity Y for an organism Z only if certain mutual compatibility relations between X and Z obtain” (Alley, 1985, p. 419).
A trajetória co-evolucionária agente/nicho teria permitido a constituição de invariantes ecológicas, isto é, de invariantes dinâmicas, de longa duração, decorrentes das mudanças ambientais e das interações agente/ambiente, ou seja, permitindo tanto a permanência quanto a mudança nos sistemas ecológicos (Gibson, 2015). Exemplos de tais invariantes seriam o movimento aparente do sol, o qual instaura ciclos locais de luz e sombra, o modo como a luz é refletida ou absorvida pelas superfícies das substâncias; as superfícies dos componentes dos nichos com os quais os agentes interagem; as substâncias, ou partes do ambiente que não permitem a locomoção de seres vivos; os meios terrestre, aéreo ou líquido pelos quais diferentes espécies se movimentam e propiciam os diferentes padrões de locomoção e assim por diante. Desse modo, a estabilidade dinâmica, não mecânica, dos nichos, ou conjunto de affordances que indicam como os animais vivem (Gibson, 2015, p. 120), decorre de invariantes estruturais, como substâncias e superfícies, e de invariantes transformacionais, referentes aos diferentes padrões de locomoção dos organismos nos diferentes meios (terrestre, líquido, aéreo).
Assim, o ambiente pode ser descrito em termos de meios, substâncias e superfícies, os quais permitem simultaneamente a persistência e a mudança. Para Gibson, a descrição do ambiente por meio de seus componentes ecológicos seria superior às descrições físicas (feitas em termos de espaço, tempo, matéria e corpo) porque: “[...] it is appropriate to the study of the perception and behavior of animals and men as a function of what the environment affords, that is, to psychology” (2015, p. 18).
Desse modo, entre as superfícies dinâmicas com diferentes layouts presentes nos nichos estariam as superfícies dos próprios organismos, cuja dinâmica de interações mútuas e com o ambiente produz um subtipo de affordances denominado de affordances sociais, uma vez que:
What the other animal affords the observer is not only behavior but also social interaction. As one moves so does the other, the one sequence of action being suited to the other in a kind of behavioral loop. All social interaction is of this sort—sexual, maternal, competitive, cooperative—or it may be social grooming, play, and even human conversation (Gibson, 2015, p. 36, destaque nosso).
Em artigo intitulado “Toward an Ecological Theory of Social Perception”, Leslie Z. McArthur e Reuben M. Baron (1983) utilizam o conceito de affordance social para designar especificamente as possibilidades de ação que os organismos, da mesma espécie ou mesmo de espécies diferentes, oferecem diretamente uns aos outros por meio de gestos próprios da dinâmica corporal, expressões faciais, vocalizações, toques, interações mútuas em geral, como a dança ou a marcha, entre muitas outras. Do mesmo modo como as affordances em geral, as affordances sociais são diretamente perceptíveis e intrinsecamente significativas na dinâmica corporal dos organismos e apresentariam uma permanência sob mudança em conformidade a (1) invariantes dinâmicos estruturais, referentes à superfície e layout do corpo de cada espécie, por exemplo, a pele, o pelo, as escamas, as plumas, que apresentam modificações ao longo da vida do organismo (o enrugamento da pele e o embranquecimento dos pelos, por exemplo) e (2) invariantes transformacionais, referentes às várias dinâmicas do movimento e da locomoção dos organismos, uma vez que a estrutura corporal de cada espécie estabelece, simultaneamente, possibilidades de ação e limitações ou constraints[2].
Em especial, a dinâmica gestual, as vocalizações e as expressões faciais oferecem possibilidades de interação emocional entre os agentes, principalmente em relação às emoções consideradas básicas ou primárias, como a alegria, o medo, a tristeza, a surpresa, o nojo e a raiva. Entendemos que a percepção imediata de possibilidades de ação social oferecidas por interações emocionais envolvendo affordances sociais talvez possa ser mais bem compreendida a partir de estudos sobre a capacidade de bebês interagirem socialmente de modo significativo.
Em trabalho intitulado Perceiving Social Affordances: The Development of Emotion Understanding, Arlene S. Walker-Andrews aponta que haveria um consenso de que a habilidade de interagir emocionalmente com outros agentes se desenvolve progressivamente em bebês, mas como se daria tal desenvolvimento e quando os bebês passam a poder interagir habilidosamente reconhecendo emoções específicas são ainda questões muito debatidas na psicologia. Walker-Andrews (2013) aponta que tais questões envolvem um grande número de variáveis, tais como: “[...] fidelity of the expression, the mode (facial, vocal) of expression, the particular emotion that is being expressed, and perhaps who is portraying the emotion” (p. 151). A grande quantidade de variáveis teria dificultado, segundo Walker-Andrews (2013), os estudos sobre o tema, mas ela aponta que uma revisão atenta da literatura permite concluir que a habilidade de reconhecimento da dinâmica de expressões faciais se inicia aproximadamente a partir do terceiro mês de vida, sendo que, em estudos mais conservadores, a habilidade se consolidaria a partir do sétimo mês.
Merece destaque que tal habilidade em bebês precede o período em que se desenvolvem as habilidades propriamente linguísticas de comunicação, contrariamente ao que defendem Lindquist, Satpute & Gendron (2015), para quem o papel da linguagem iria além da comunicação de emoções, pois ela aglutinaria e categorizaria sensações utilizando termos emocionais. Mas a habilidade de interação emocional de bebês antecedendo a aquisição da habilidade linguística parece indicar pelo menos uma certa autonomia da primeira em relação à segunda.
Walker-Andrews (2013) ressalta, ainda, que perceber emoções implica uma série de habilidades interrelacionadas e interdependentes, quais sejam: (a) a percepção de informação de uma emoção específica, (b) a distinção de expressões emocionais distintas e (c) a percepção do significado da expressão emocional (p. 152). Considerando tais habilidades, a autora vai defender que as habilidades dos bebês interagirem emocionalmente com outrem resultam da percepção de affordances socias emocionais multimodais, isto é, envolvendo interações visuais, táteis, vocais e assim por diante.
Na esteira da teoria da percepção/ação, Walker-Andrews (2013) também indica a significativa relevância do contexto em que as interações emocionais dos bebês ocorrem. Ela aponta que: “[...] as a person displays an emotional expression, the voice is synchronized with the facial movements, the intensity of voice, face, and touch are likely to be correlated, and information specific to emotion is present in all modes” (2013, p. 156). Em especial, a autora enfatiza o papel da dinâmica multimodal das interações emocionais dos bebês uma vez que o reconhecimento de expressões emocionais descontextualizadas e estáticas em fotografias, por exemplo, ocorre mais tardiamente, segundo experimentos conduzidos por Ekman & Oster (1979). A relevância do contexto na dinâmica multimodal das interações resultaria, especialmente, de que as interações emocionais entre agentes sociais, inclusive bebês, desempenham uma clara tarefa de comunicação entre eles. A dinâmica de percepção de um sorriso da cuidadora, por exemplo, vem frequentemente acompanhada de todo um conjunto de ações intrinsecamente significativas de bem-estar para o bebê.
Desse modo, a habilidade de agentes interagirem emocionalmente resultaria da percepção de affordances sociais multimodais (as quais compreendem, além de expressões faciais, gestos em geral, vocalizações, toques, por exemplo) que comunicariam informação intrinsecamente significativa entre si sobre alegria, tristeza, raiva, nojo, surpresa ou medo, entre outras emoções. Como apontamos, as interações diretas entre os agentes sociais, da mesma ou de outras espécies, envolvendo affordances sociais, assumem significado nos nichos ecológicos devido a uma trajetória co-evolucionária adaptativa de longa duração que envolve invariantes de permanência sob mudança, ajustes, constraints e o acaso, este último manifestando-se em vários processos, por exemplo, mutações genéticas e modificações ambientais bruscas.
Podemos perceber que há significativas diferenças entre a abordagem mecanicista e ecológica das emoções. Para a abordagem mecanicista, funcionalista, internalista e cerebrocêntrica proposta por Minsky (2006), as emoções, assim como quaisquer outros estados mentais, poderiam ser concebidas como “formas de pensar” resultantes da combinação e processamento de distintos recursos celebrais, ativando uns e inibindo outros em função dos estímulos sensoriais recebidos. Na perspectiva ecológica, por outro lado, a percepção de affordances sociais de expressões faciais e outras gestualidades corporais multimodais de agentes ecologicamente situados em seus nichos seriam (1) intrinsecamente significativas devido à trajetória co-evolucionária e mutualista da espécie e à aprendizagem dos agentes situados em seus nichos e (2) possibilitariam diretamente a outros agentes ações de fuga, imobilidade, congraçamento, cuidado, defesa, agressividade, altruísmo ou náusea, as quais são referidas como emoções no vocabulário comum.
A despeito das significativas diferenças teóricas entre as duas abordagens, a mecanicista/funcionalista e a ecológica/co-evolucionária, há atualmente um esforço na robótica (Chemero & Turvey, 2007, Sahin et al. 2007, Ridge & Ude, 2013, Ardón et al., 2019) de construir robôs capazes de detectar affordances, especialmente os sociais, e atuar em ambientes não controlados em conformidade às affordances detectadas.
Em um relevante e exaustivo trabalho de compilação das tentativas de construir robôs capazes de detectar affordances, Ardón et al. (2019) apontam que a definição de affordance proposta por Gibson (2015), segundo a interpretação minimalista que sugerem: “[...] an affordance refers to the ability to perform a certain action with an object in a given environment” gerou controvérsias entre psicólogos e cientistas da computação que teriam, posteriormente, proposto alguns limites na definição original.
Como exemplo dessas novas definições, Ardón el al. (2019) citam a sugerida por McGrenere & Ho (2000), segundo a qual “[…] an object’s affordance exists independently of the individual’s ability to perceive its possibility of action”, a qual deixa de lado a dimensão relacional agente/ambiente, central para a caracterização gibsoniana. Ademais, Ardón et al. (2019) apontam que a divisão proposta por Gaver (1991, p. 80) em três tipos de affordances teria sido fundamental para a possibilidade de robôs detectarem affordances devido a que a maioria dos agentes robóticos depende de seus sensores para reconhecerem o ambiente. A caracterização de affordance proposta por William W. Gaver sugere que haveria:
[...] (i) false affordance which is a perceived affordance that does not have a real function (e.g. a placebo button), (ii) hidden affordances which are those that are not evident for the agent but they exist, and (iii) perceptible affordance which are the ones where the information is available such that the agent can perceive them and act on them (Ardón et al., p. 2).
Entendemos que as caracterizações de affordances, porém, ao serem limitadas e adaptadas às necessidades de sua simulação robótica, passam a pressupor teses funcionalistas (na melhor tradição cognitivista) e deixam de lado os aspectos propriamente ecológicos de mutualidade co-evolucionária agente/nicho, os quais pressupõem uma concepção ecológica de informação e a percepção direta de possibilidades de ação no ambiente.
Por outro lado, sistemas inteligentes de reconhecimento automatizado e multimodal de emoções têm sido propostos nos últimos anos utilizando diferentes metodologias e técnicas (Imani & Montazer, 2019; Maithri et al., 2022), por exemplo, aprendizagem de máquina, processamento de fala, redes bayesianas e redes neurais de múltiplas camadas (deep neural networks). Mas, em estudo sobre o estado da arte em reconhecimento automatizado de emoções (em expressões faciais, voz, sinais vitais, gestos, entre outros), Maithri et al. (2022) apontam que as pesquisas têm revelado progressos, especialmente quando se trata de contextos controlados, mas ainda há limitações significativas que comprometem os resultados. Em especial, Maithri et al. (2022) concluem que seu estudo:
[…] reveals that most of the proposed machine and deep learning-based systems have yielded good performances for automated ER [emotion recognition] in a controlled environment. However, there is a need to obtain high performance for ER even in an uncontrolled environment (p. 1).
Em síntese, dadas as diferenças teóricas entre as perspectivas mecanicista/funcionalista das emoções e a ecológica/co-evolucionária e uma vez que o contexto ecológico social humano é complexo e dinâmico, comportando situações não facilmente previsíveis, a produção de sistemas robóticos que interajam com agentes humanos detectando affordances sociais emocionais ainda parece longe de se concretizar, mesmo adotando princípios mecanicistas e ecológicos mais flexíveis, que permitam uma compatibilização parcial, moderada, entre ambas as perspectivas.
Iniciamos este artigo com uma análise crítica da abordagem mecanicista e funcionalista das emoções proposta por Marvin Minsky (2006), segundo a qual as emoções resultariam de recursos cerebrais cujas diferentes combinações, por ativação ou inibição de uns ou outros, resultaria nos diversos estados emocionais de agentes naturais ou artificiais. O exemplo, ultrajante, da descrição de um estado amoroso em linguagem comum sendo traduzida para indicar quais recursos cerebrais estariam sendo ativados ou inibidos, ilustra o princípio geral proposto por Minsky de que as emoções, assim como muitos outros estados mentais, seriam “modos de pensar” e, portanto, instanciáveis em um sistema cognitivo artificial.
Em seguida, apresentamos uma abordagem ecológica das emoções a partir do conceito central de affordance cunhado por James J. Gibson (2015). Ressaltamos que, segundo a perspectiva ecológica da percepção direta ou percepção/ação, os agentes percebem diretamente possibilidades de ação em seu nicho, como resultado de uma longa história co-evolucionária de mutualidade agente-ambiente no âmbito das espécies e da aprendizagem, no âmbito dos indivíduos. Em especial, destacamos que os agentes oferecem uns a outros inúmeras possibilidades de ação por meio das chamadas affordances sociais, as quais envolvem expressões faciais, vocalizações, gestualidades corporais, toques, entre outras formas multimodais de interação, que propiciam a outros agentes ações de fuga, imobilidade, congraçamento, cuidado, defesa, agressividade, altruísmo ou náusea, referidas como emoções na linguagem comum. Ressaltamos, ademais, que dados experimentais obtidos em estudos de psicologia do desenvolvimento em bebês humanos (Walker-Andrews, 2013) parecem corroborar teses ecológicas segundo as quais a informação emocional oferecida por cuidadores seria diretamente perceptível por bebês muito antes da aquisição das habilidades linguísticas e propiciaria diferentes padrões de ação.
Por fim, investigamos se, a despeito das diferenças entre as duas, seria possível compatibilizar a abordagem mecanicista/funcionalista das emoções e a abordagem ecológica/co-evolucionária. Isto é, se seria possível construir sistemas robóticos capazes de interagir ecologicamente com agentes naturais instanciando affordances, especialmente affordances sociais que propiciassem interações emocionais envolvendo cuidado e práticas de cooperação entre agentes naturais e artificiais.
Constatamos que parece haver uma dificuldade de princípios para efetivar essa aproximação, pois a abordagem mecanicista, funcionalista e centrada no cérebro das emoções desconsidera a relevância das substâncias, tanto no sentido ecológico quanto no sentido da física, para a instanciação de affordances. Contrariamente a princípios funcionalistas, cabe ressaltar que as moléculas orgânicas têm qualidades físico-químicas específicas que lhes permitiram gerar as primeiras formas de vida no planeta e, consequentemente, depois de bilhões de anos de processos evolucionários adaptativos complexos, dar origem às espécies naturais que propiciaram a emergência de interações emocionais, como o amor e o medo (Loewenstein, 1999).
A abordagem mecanicista também desconsidera a relevância das relações de mutualidade agente/ambiente, centrais na teoria da percepção/ação. A interdependência entre espécies distintas e o contexto ecológico que criam para si em seus nichos é marcada pela emergência dinâmica de formas de ajuste em benefício geral, no âmbito das espécies e do ambiente, embora frequentemente pareçam pouco caridosas quando se trata de indivíduos (por exemplo, as relações de interdependência predador/presa). Ademais, é importante indicar que a abordagem mecanicista proposta por Minsky (2006) reduz as emoções a modos de pensar, a distintas combinações de recursos cerebrais ativados ou inibidos, tese insustentável do ponto de vista da teoria da percepção direta, para a qual a percepção de affordances dispensa qualquer tipo de mediação representacional efetuada pelo cérebro.
A análise das duas perspectivas aqui apresentadas parece indicar que há diferenças, talvez insuperáveis, entre o projeto de criar máquinas capazes de interagir reconhecendo formas de pensar com conteúdo emocional, o projeto de criar sistemas robóticos capazes de perceber affordances sociais que indiquem possibilidades de ação emocional e sistemas robóticos que efetivamente instanciem affordances sociais, o que propiciaria interações mais robustas com agentes naturais e o desenvolvimento de novos processos adaptativos.
Talvez a realização de pesquisas em psicologia e o desenvolvimento de tecnologias permitam, num futuro não muito distante, formular novas teorias que nos permitam compreender, pelo menos com um mínimo de clareza, em que consistem as interações emocionais entre os agentes naturais e se agentes artificiais podem efetivamente instanciar interações semelhantes.
ALLEY, T, R. Organism-environment mutuality epistemics, and the concept of an ecological niche. In: Synthese 65 (1985) 411-444.
ARDÓN, P., PAIRET, E., LOHAN, K. S. RAMAMOORTHY, S. & PETRICK, R. P. A. Affordances in Robotic Tasks - A Survey. In: IEEE Transaction on Robotics, vol. XX, no. X, December 2019.
CHEMERO, A. Radical Embodied Cognitive Science, Cambridge, MA: MIT Press, 2009.
CHEMERO, A. A. & TURVEY, M. T. Gibsonian affordances for roboticists. In: Adaptive Behavior, vol.15, no 4, p. 473–480, 2007.
EKMAN, P., & OSTER, H. Facial’ expressions of emotion. In: Annual Review of Psychology, 1979, 30, p. 527-554.
GAVER, W. W. Technology affordances. In: Proceedings of the SIGCHI conference on Human factors in computing systems. ACM, 1991, p. 79–84.
GIBSON, J. J. The ecological approach of visual perception. Classic edition. New York: Psychology Press, 2015.
IMANI, M. & MONTAZER, G. A. A survey of emotion recognition methods with emphasis on E-Learning environments. In: Journal of Network and Computer Applications, Volume 147,102423, 2019. Acesso em 15/06/2023. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/335425375_A_survey_of_emotion_recognition_methods_with_emphasis_on_E-Learning_environments#fullTextFileContent. Acessado em: 23 de fevereiro de 2023.
LINDQUIST, K. A.; SATPUTE, A. B. & GENDRON, M. Does Language Do More Than Communicate Emotion? In: Current Directions in Psychological Science. Volume 24, Issue 2, 2015.
LOEWENSTEIN, W. R. The touchstone of life: Molecular information, cell communication and the foundations of life. New York-Oxford: Oxford University Press, 1999.
MAITHRI, M., RAGHAVENDRA, U., GUDIGAR, A., SAMANTH, J., BARUA, P. D., MURUGAPPAN, M., CHAKOLE, Y., U. & ACHARYA, U. R. Automated emotion recognition: Current trends and future perspectives, Computer Methods and Programs. In: Biomedicine, Volume 215, 2022.
MCARTHUR, L. Z. & BARON, R. M. Toward an Ecological Theory of Social Perception. Psychological Review, vol. 90, no. 3, 215-238, 1983.
McGRENERE, J. & HO, W. Affordances: Clarifying and evolving a concept. In: Graphics interface, 2000, p. 179–186.
MINSKY, M. The emotion machine: Commonsense Thinking, Artificial Intelligence, and the Future of the Human Mind. New York: Simon & Schuster, 2006.
RIDGE, B. & UDE, A. Action-grounded push affordance boots trapping of unknown objects. In: 2013 IEEE/RSJ International Conference on Intelligent Robots and Systems. IEEE, 2013, p. 2791–2798.
SAHIN, E., ÇAKMAK, M., DOGAR, M. R., UGUR, E & UÇOLUK, G. To afford or not to afford: A new formalization of affordances toward affordance-based robot control. Adaptive Behavior, vol.15, no.4, p. 447–472, 2007.
TURING, A. Computing Machinery and Intelligence. Mind, Volume LIX, Issue 236, October 1950, Pages 433–460, 1950. Acesso em 11/10/2023. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7583067/mod_resource/content/1/TuringComputing.pdf. Acessado em: 23 de fevereiro de 2023.
WALKER-ANDREWS, A. S. Perceiving Social Affordances: The Development of Emotion Understanding. In: Horner, B. D., Tamis LeMonda, C. S. (Eds.) The development of social cognition and communication. New York, NY: Psychology Press, 2013.
Mariana C. Broens
Doutora em Filosofia pela USP e Professora do Departamento e da Pós-graduação em Filosofia da UNESP-Marília. É bolsista produtividade 2.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação