Resenha
Book review
Han, Byung-Chul. Morte e Alteridade. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2020, 413 pp. 3. Reimpressão 2022
Gladson Pereira da Cunha
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
Recebido: 13/02/2024
Received: 13/02/2024
Aprovado: 16/02/2024
Approved: 16/02/2024
Publicado: 22/02/2024
Published: 22/02/2024
A obra aqui resenhada, Morte e Alteridade, é o quarto livro de Byung-Chul Han, publicado originalmente em 2002. Embora publicado no Brasil no mesmo formato de bolso que a obra Sociedade do Cansaço, de 2010, obra que colocou Han no cenário literário, é preciso ter em mente que Morte e Alteridade, mesmo tendo pontos de contato, pertence à primeira fase da reflexão do autor sul-coreano, cujo objeto é a morte e os seus desdobramentos na sociedade contemporânea, adjetivada com todas as categorizações possíveis, inclusive a que saiu da pena de Han: A sociedade do desempenho.
Nesta primeira fase, elenca-se a obra introdutória de Han, que é a sua tese doutoral, Heideggers Herz (1996)[1] que discute, a partir do conceito de tonalidade afetiva [Stimmung] do filósofo da Floresta Negra, os modos como se dá a relação do ser humano e a realidade. O segundo livro, intitulado Todesarten (1998)[2], inicia o trabalho reflexivo de Han sobre o tema morte de maneira mais detida, determinado que a “morte éponto zero da vida, onde começa” (Han, 2021, p. 9), bem como que o “filosofar não é mais do que pensar e comemorar a morte sem véus, não embelezada ideológica ou metafisicamente” (Han, 2021, p. 10). O terceiro livro é uma interpretação que Han faz dos principais pontos da filosofia de Heidegger, o seu objeto de estudo inicial. Esse livro é Martin Heidegger: Eine Einführung (1999). Por fim, temos Morte e Alteridade, em que Han faz um aprofundamento da discussão sobre a morte, iniciada em Todesarten. Feita essa digressão, passemos a resenha de Morte e Alteridade.
A ideia chave de Han é apresentar uma proposta de um modelo de ser-para-a-morte, que seja diferente daquele que ele diagnostica na sociedade contemporânea. Nas próprias palabras de Han (p.28): “À morte se re-age ou com a ênfase do eu ou com o amor heroico”. Na busca por esse modelo de ser-para-a-morte haniano dois termos são de grande importância: Amabilidade e Serenidade. A presença ou a falta de um desses estados-de-ânimo são meios-diagnósticos para Han.
No primeiro capítulo, Han se dedica a analisar o entendimento de Immanuel Kant sobre a morte. Considerando que Kant não escreve muito sobre morte, Han faz um tratamento meio que a contrapelo para identificar na estética e na ética kantiana elementos que possibilitariam ou não uma disposição humana diante da morte que a percebe-se com considerável sublimidade e que pudesse essa percepção originar uma disposição afetuosa-emocional. Para Byung-Chul Han, Kant desconhece qualquer amabilidade, bem como qualquer tipo de serenidade diante da morte, que seja capaz de produzir algo positivo. Para Kant, a morte sempre é negatividade. Assim, tanto a sua estética como a sua ética se dedicaria, conclui Han, a um tipo de trabalho-de-luto, isto é, um esforço para matar a morte, compreendendo que a partir dela nada de positivo possa surgir. A intriga da morte é a sua superação, eliminando-a da vista do ser humano.
No segundo capítulo, Han se dedica a examinar e contrapor o entendimento daquele que é a sua grande referência em termos de pensamento: Martin Heidegger. É preciso ter em mente que Han se apropria da categoria heideggeriana ser-para-a-morte, sendo justamente essa a categoria que o sul-coreano pretende oferecer uma alternativa. Admitindo que o Daseinheideggeriano age heroicamente diante da angústia e da morte, e ao mesmo tempo, que a minha-morte é dada como um evento irreferenciável, isto é, o outro não tem qualquer impacto sobre o Dasein – e o próprio Dasein, que se responsabiliza por si mesmo, não admite isso – Han se propõe a considerar dois elementos do pensamento de Heidegger. O primeiro deles, o ser-com, que Han interpreta como pura hostilidade ao outro. A conclusão que Byung-Chul Han chega que o Dasein é fechado ao outro enquanto ser-para-a-morte. A busca pela autenticidade do morrer o incapacita à experiência da amabilidade. O Dasein desejará o lugar do impávido herói, que é incapaz de chorar e de ser comovido pelo outro.
Na segunda parte do capítulo, Han demonstra os equívocos da leitura heideggeriana de A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói. Segundo Han, Heidegger aponta para a rigidez Ivan Ilitch como sua maior virtude. No entanto, Han faz com que o olhar do seu leitor se volte para as cenas finais do romance russo, quando o moribundo juiz lança o olhar amoroso para o seu filho caçula, e todo o temor da morte desaparece. E Ivan morre. O que Han conclui é que a tentativa heroica, proposta por Heidegger, de assumir uma postura de vida diante da finitude humana, intentando uma existência autocentrada a partir da angústia própria do morrer, é algo descabido. A existência, assim assumida e fechada ao outros, seria apenas um modo de intensificar a angústia própria da morte. Voltar ao outro como possibilidade de ser é uma proposta amável, que subjaz e sustenta o ser-para-a-morte haniano.
Já no terceiro capítulo, Han contrapõe sua proposta de ser-para-a-morte com o ser-contra-a-morte de Emanuel Lévinas. Neste capítulo, o que está em questão é o quão possível de serenidade o ser-contra-a-morte levinasiano pode ser. O sujeito de Lévinas, segundo a interpretação de Byung-Chul Han, está envolvido em toda a sua existência com um trabalho-de-luto, portanto, num estado de inquietude nada serena; consequentemente incapaz de toda amabilidade diante da morte, que seria producente de uma ética para a vida. Esse trabalho-de-luto está profundamente relacionado com o ser-para-o-outro de Lévinas, tornando o eu incapaz de si-mesmo e nessa incapacidade, causada pela intensa e violenta exigência para-o-outro, o sujeito é também incapaz de ser amável. Toda a ação contra-a-morte e para-o-outro é uma agitação do ser, que ativa e eroticamente busca transcender a morte e alcançar a infinitude, em detrimento da finitude humana. Essa agitação é incapaz de qualquer serenidade, incapaz também de ser amável.
O último capítulo de Morte e Alteridade é dedicado ao exame da produção do ensaísta búlgaro Elias Canetti (1905-1994) e sua percepção acerca da morte, sobre a qual, afirma Han (p. 322), “dedicou […] uma reflexão intensiva como poucos outros escritores”. Canetti será o fiel da balança, por ser alguém que escreve sob a perspectiva do luto, mas também sob o ser-cego-de-si-mesmo (p. 328). Han faz esse exame em alguns movimentos de transformação: (1) da intriga do sobreviver, que devora o outro numa tentativa de acúmulo de capital-vital para o eu, ao“luto em nome do outro” e não do eu (p. 341); (2) de uma identidade rigidamente moldada no solver o outro para uma disposição transformada que dá fluidez e amabilidade a existência e, por fim, (3) de uma ferida, pela qual a vida se esvai, para a mesma ferida, que respira entranhando no ser aquela serenidade que cria amabilidade, que tranquiliza o ser ante a sua finitude.
Diante do apresentado acima, alguns apontamentos podem ser feitos. Morte e Alteridades difere dos textos a partir de Sociedade do Cansaço. Considero que essa diferença tem a ver, primariamente, com o objeto e metodologia utilizada pelo autor. Nas obras mais recentes, Han faz uma análise cultural a partir de um diálogo com outros autores, e o público-alvo são as pessoas comuns que circulam pelos grandes centros, contextos e realidades que Han analisa. Enquanto, em Morte e Alteridade, o seu trabalho é o de um hermeneuta que procura ir além dos seus interlocutores a partir de seus insights, algo muito mais próximo do mundo acadêmico.
Morte e Alteridade é também, por assim dizer, uma obra prenhe de ideias. Algumas das considerações feitas por Han, por exemplo, a relação entre sobrevivência e acúmulo de capital (Cap. 1 e 4) ou a opção humana pelo igual e o claro (Cap. 4) – este último termo, nos textos mais recentes de Han, foi substituído por transparência – serão retomadas em outras obras do autor.
Byung-Chul Han é um autor que está produzindo ao mesmo tempo em que está sendo lido, comentado e pesquisado. Ignorar os seus primeiros escritos pode significar, em algum momento, um acesso não tão preciso assim as suas discussões. Neste sentido, esta resenha buscou ser um modo de acesso ao pensamento haniano a partir de seus textos iniciais.
Referências Bibliográficas
Han, Byung-Chul. Morte e Alteridade. Petrópolis: Vozes, 2022.
Han, Byung-Chul. Rostos da Morte. Lisboa: Relógio D’Água, 2021.
Gladson Pereira da Cunha
Doutor em Teologia Sistemático-Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Ciências da Religião e Graduado em Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Mestrando em Filosofia e Especialista em Filosofia e Psicanálise pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Licenciado em Filosofia pela Universidade de Franca (Unifran).
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] Tem previsão de publicação no Brasil, em 2024, pela editora Vozes sob o título de O Coração de Heidegger.
[2] Na tradução para o português, feita em Portugal, o livro recebeu o título Rostos da Morte, o que não faz muita justiça ao título original, que numa tradução livre seria Tipos de Morte (2021).