A mitopoética de Hölderlin no hino “Como em dia de feriado…”
Hölderlin’s mythopoetics in the poem “Like on a holiday…”
João E. Fernandes
UEM – Universidade Estadual de Maringá
Recebido: 21/02/2024
Received: 21/02/2024
Aprovado:01/07/2024
Approved: 01/07/2024
Publicado: 16/09/2024
Published: 16/09/2024
RESUMO
O artigo inicia com uma retomada de duas dissertações que Hölderlin defendeu em Tübingen, em 1790, nas quais se apontará como o poeta concebe a poesia como estreitamente relacionada com o mito, o que pode ser considerada a base de sua mitopoética tardia. Em um segundo momento serão analisados alguns fragmentos, cartas e poemas do período de Iena e Frankfurt, de modo a apresentar o período estético-filosófico de Hölderlin, fundamental para compreender as elaborações mitopoéticas do período maduro, logo após a inconclusão da tragédia A Morte de Empédocles e seu envolvimento com a teoria da tragédia. Por fim, far-se-á uma exposição da interpretação heideggeriana do poema “Como em dia de feriado…”, de 1800, na qual serão apontados elementos da mitopoética hölderliniana.
Palavras-chave: mito, poesia, natureza, filosofia, ser.
ABSTRACT
The article begins with a review of two dissertations that Hölderlin defended in Tübingen, in 1790, in which it will be pointed out how the poet conceives poetry as closely related to myth, which can be considered the basis of his late mythopoetics. In a second moment, some fragments, letters and poems from the period of Iena and Frankfurt will be analyzed, in order to present Hölderlin’s aesthetic-philosophical period, fundamental to understanding the mythopoetic elaborations of the mature period, shortly after the inconclusive tragedy of The Death of Empedocles and his involvement with the theory of tragedy. Finally, there will be an exposition of the Heideggerian interpretation of the poem “Like on a holiday…”, from 1800, in which elements of Hölderlinian mythopoetics will be pointed out highlighted.
Keywords: myth, poetry, nature, philosophy, being.
Introdução
De 1789 a 1793 Hölderlin estudou filosofia e teologia na Universidade de Tübingen, onde eram formados os teólogos do estado de Württemberg que depois eram admitidos como pastores pelo Consistório de Stuttgart. O curso era de cinco anos, sendo que os dois primeiros eram destinados à filosofia e às humanidades, no fim dos quais o aluno apresentava uma dissertação e era submetido a uma prova oral, a fim de obter o título de mestre e, em seguida, iniciava os estudos teológicos (Quintela, 1971, p. 82-83). No que diz respeito às linhas de investigação dos professores de Hölderlin nesse período, Peter Härtling diz que o poeta teve aulas com Karl Philip Conz, que falava da Grécia como um visionário, identificando-se com a poesia e com a mitologia grega. Também teve aulas com Carl Immanuel Diez, que tinha uma postura heterodoxa e via em Kant um verdadeiro messias (Härtling, 1999, p.104-105). Além desses, o jovem Hölderlin também assistiu a uma preleção sobre os provérbios de Salomão, dada por Christian Schnurrer no verão de 1790. Nesse mesmo ano, quando concluiu sua formação em filosofia, apresentou duas dissertações, a primeira intitulada “Paralelos entre os Provérbios de Salomão e Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo” e a segunda com o título “História das Belas-artes entre os gregos até o Fim do Século de Péricles”. Nessas dissertações se encontram as bases de praticamente toda a sua produção futura, a qual gira em torno do interesse pela Grécia antiga, pela personificação de conceitos abstratos através da mitologia e da poesia, bem como pelo estilo breve e conciso, presente em Salomão, em Hesíodo e, sobretudo, em Píndaro.
Dentre as analogias entre Salomão e Hesíodo, Hölderlin destaca a brevidade e concisão com que ambos expressavam o sublime e diz:
A brevidade é um símbolo conhecido do sublime. As palavras ‘Deus disse: faça-se a luz e a luz se fez’ são o summum da elevada arte poética. Denominamos sublime tudo aquilo que é incomensurável no momento em que nós o percebemos ou aquilo cujos limites a alma não tem nenhuma representação clara no momento da percepção (Hölderlin, 2020, p. 49).
O sublime, portanto, é o próprio infinito expresso no tempo e no espaço de forma concisa, de modo que a princípio não o compreendemos por não termos nenhuma representação que lhe corresponda. As categorias estéticas do belo e do sublime remontam ao século I depois de Cristo, com a obra Do Sublime, de Pseudo-Longino, e se tornaram importantes no século XVIII, sobretudo para Kant, a quem Hölderlin demonstra sua filiação ao utilizá-las na análise dos Provérbios e de os Trabalhos e os Dias, considerados por ele poemas que causam forte impressão sobre a alma dos ouvintes, independente da familiaridade que tenham com o seu conteúdo.
Associada à brevidade e concisão, outra característica importante dos dois autores em questão é a personificação de conceitos abstratos, que para Hölderlin têm valor estético. O belo e o sublime, expressos de forma breve e concisa nos Provérbios de Salomão e no poema de Hesíodo, agem em nossa faculdade de sentir e desejar, de modo que o juízo que deles expressamos é nosso e não algo reproduzido. Trata-se de um fenômeno originário que Hölderlin denomina de representação total e que ocorre por meio do sentimento, portanto, anterior à análise de conceitos claros, que por sua vez não tem seu ponto de partida no sentimento e, sim, no entendimento. Pode-se perceber aqui que Hölderlin não aceita de todo a estética kantiana, na qual o juízo estético ou de gosto é subjetivo e surge da relação harmônica entre as faculdades da imaginação, do entendimento e da sensibilidade. Pelo contrário, o poeta tende a priorizar a faculdade de sentir e desejar. De fato, alguns anos depois, ao ler o ensaio Sobre graça e dignidade e as Cartas sobre a educação estética da humanidade, ambos de Schiller, Hölderlin irá perceber o avanço deste em relação a Kant na medida em que busca reabilitar a sensibilidade, reunificando-a à razão através do impulso lúdico (jogo imaginativo), porém, dirá que Schiller ainda não avançara o suficiente. Em todo caso, por ora importa notar que Hölderlin enfatiza a diferença entre a poesia e a filosofia, no sentido de que a primeira tem por finalidade o belo e o sublime, que sobrevêm à nossa faculdade de sentir e desejar, enquanto a segunda analisa conceitos abstratos, tornados sensíveis pelo poeta por meio da representação total (Hölderlin, 2020, p. 50). O que Hölderlin quer dizer é que o sentimento antecede a especulação, da mesma forma que a mitologia e a poesia com ela surgida antecedem a filosofia. Já se encontram aqui as bases para o projeto estético ao qual o poeta se dedicará até sua produção madura. Trata-se, a partir desse interesse pelos gregos, de fazer o caminho contrário, ou seja, da filosofia para a mitologia, por meio da poesia. É o que o poeta quer dizer ao afirmar que “a personificação de conceitos abstratos era para os poetas da antiguidade mais uma necessidade do que finalidade. Em povos incultos, a primeira faculdade da alma que se desenvolve é sempre a fantasia. Daí toda mitologia, os mitos e mistérios, daí a personificação de conceitos abstratos” (Hölderlin, 2020, p. 50). Porém nós, os modernos, nos quais é a razão que supostamente predomina na maioria das vezes, devemos ter por objetivo a personificação de conceitos abstratos, ou seja, tornar as ideias sensíveis. Assim a poética de Hölderlin, já nas suas origens, está atrelada à mitologia.
Na segunda dissertação de 1790, sobre a “História das Belas-artes entre os Gregos até o Fim do Século de Péricles”, também se encontra muito daquilo com que Hölderlin se ocupará posteriormente. Para ilustrar como as bases da sua mitopoética já estão presentes nesse texto, basta a seguinte citação, longa, mas que mostra bem a relação umbilical entre mito e poesia desde o início da sua produção:
O grego atribuiu a seus deuses a beleza corporal porque ela constituía uma de suas virtudes nacionais; ele lhes conferiu um humor sereno misturado com uma seriedade viril, pois esta era sua característica; ele lhes conferiu a sensibilidade para o belo e, por amor à beleza, permitiu-lhes descerem à terra, porque julgava a partir de si mesmo e assim tudo lhe pareceu inteiramente natural. Seus heróis se tornaram então filhos de deuses e assim surgiram os mitos. Logo estes foram elaborados pelos poetas: seus cantos eram a única fonte da religião e da história em sua origem e por isso foram respeitados, entre outras coisas, com uma honra ilimitada. Os gregos endeusaram tanto seu Orfeu como seu Hércules. Eles coloriram as violentas ações de sua lira, bem como os atos de seus heróis. Tal como Ossian, também Orfeu foi ao mesmo tempo bardo e herói (Hölderlin, 2020, p. 58).
Destacam-se desse excerto dois dos temas centrais que acompanharão Hölderlin até suas últimas poesias, que são: 1) a dignidade do poeta na sociedade grega, a qual ele busca resgatar na modernidade e 2) o gosto dos gregos pela beleza, atribuindo-a aos deuses, originando assim os mitos que foram elaborados pelos poetas, ou seja, a relação íntima entre mito e poesia. Há também, nessa mesma dissertação, mais dois temas importantes e que serão recorrentes na produção futura de Hölderlin: 3) a diferença entre os orientais, com sua tendência para o maravilhoso e fantástico, e os gregos, com sua tendência à beleza e a torná-la sensível e, por fim, 4) a densidade e concisão dos hinos de Píndaro, que por toda sua vida será seu modelo de poeta.
Como o título deste artigo sugere, pretende-se nele apontar elementos da mitologia no hino “Como em dia de feriado…”. Antes, porém, faz-se necessária uma breve exposição de alguns textos do período de Iena, assim como alguns dos anos subsequentes, em que o projeto estético filosófico de Hölderlin ganha corpo e inicia-se a jornada que culminará numa “nova mitologia”, de modo que a poesia madura de Hölderlin se caracterizará como uma mitopoética.
O período de (1794/1796 – Iena/Frankfurt) e o projeto estético filosófico de Hölderlin
Logo após concluir seus estudos, no outono de 1793, Hölderlin está decidido a seguir o ofício de poeta, mas tem consciência de que os poemas que escrevera até então são insuficientes para a sua projeção, portanto retoma seu projeto de escrever o romance Hipérion, cujo primeiro esboço foi iniciado ainda em Tübingen, em 1792[1]. No entanto, seu desejo de se dedicar exclusivamente à poesia se depara com um impasse, que pode-se dizer que foi fundamental para o amadurecimento da sua produção. Trata-se do que pode ser denominado o seu “período filosófico” e que se inicia com a sua ida para Waltershausen no final de dezembro de 1793, onde foi preceptor do jovem Fritz von Kalb, filho de Charlotte von Kalb, amiga pessoal de Schiller, que por sua vez recomendou a contratação de Hölderlin (Quintela, 1971, p. 125-129). Em agosto de 1794, estando já em Waltershausen, o poeta lê as primeiras lições de Fichte sobre a Fundação da doutrina-da-ciência. Ainda nesse ano Fichte publica o ensaio Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, do qual Hölderlin também tomou conhecimento, de maneira que quando vai para Iena no início de novembro desse mesmo ano, já tem noção do que Fichte propõe com seu conceito de Eu absoluto, o qual o poeta a princípio equipara à substância espinoziana (Courtine, 2006, p. 69). Assim, de novembro de 1794 a maio (julho ou agosto, segundo Courtine) de 1795, durante suas duas estadias em Iena, Hölderlin frequenta o círculo de Schiller e as aulas de Fichte. O intenso envolvimento com o trabalho especulativo faz com que sua atividade lírica praticamente se extinga (Quintela, 1971, p. 139). Entretanto, esse período em que se dedica quase exclusivamente à filosofia – exceto pela escrita do romance Hipérion e alguns poucos poemas – se torna importante para sua poesia futura porque é nele que o poeta cunha sua concepção de beleza, numa tentativa de superação das noções de beleza de Kant e de Schiller, bem como do Eu absoluto de Fichte.
Como já visto, a dedicação ao estudo de Kant remonta aos primeiros anos de estudo em Tübingen e se mantém no horizonte de interesse do poeta, o que pode ser atestado pela carta a Neuffer de maio de 1793, na qual ele fala de suas referências filosóficas dizendo: “E assim passo todo o dia em minha cela até a tarde; um pouco em companhia da sagrada musa, um pouco com meus gregos; e precisamente agora, de novo na escola do senhor Kant” (Hölderlin, 1990, p. 146). Cerca de um ano depois o poeta diz, na carta a Hegel, de 10 de julho de 1794: “Meu trabalho está agora muito concentrado. Kant e os gregos são quase minhas únicas leituras. Tento me familiarizar especialmente com a parte estética da filosofia crítica” (Hölderlin, 1990, p. 199). É importante notar que, a partir de 1794, Hölderlin mantém suas referências filosóficas, porém não menciona a companhia da sagrada musa, o que endossa a hipótese do enfraquecimento de sua atividade lírica nesse período.
O seu interesse pela estética kantiana e a admiração por Schiller, bem como o estudo dos gregos, em especial de Platão, foi fundamental para que Hölderlin buscasse pensar a beleza de modo mais radical. É o que ele sugere na carta a Neuffer, de 10 de outubro de 1794:
Talvez eu pudesse te enviar um artigo sobre as ideias estéticas que quem sabe poderia ser útil a Conz, uma vez que pode passar como um comentário ao Fedro de Platão […]. Na realidade pretende conter uma análise do belo e do sublime a partir da qual a de Kant se torne mais simples e ofereça uma variedade de perspectivas, como já fez Schiller em parte de seu escrito Sobre graça e dignidade, ainda que, na minha opinião, não se atrevendo a ultrapassar os limites kantianos (Hölderlin, 1990, p. 211).
Observe-se que a carta a Neuffer, acima citada, data de cerca de um mês antes da primeira ida de Hölderlin para Iena. Como alguns meses antes o poeta já iniciara a leitura de parte da obra de Fichte, presume-se que a crítica a este surge simultaneamente à proposta de uma noção de beleza que iria além de Kant e Schiller. Com efeito, pelo fato de Platão também ser uma referência nesse período, pode-se dizer que os diálogos platônicos Fedro e Banquete também foram importantes na formulação de sua noção de experiência estética da divina beleza, tal como aparecerá no romance Hipérion. O amor, presente no Banquete, caracteriza-se como intermediário entre a esfera divina e a humana, ou seja, como filho da riqueza e da pobreza. Nesse caso, por carecer do belo e assim amá-lo, o amor torna possível pensar a beleza, algo de que nenhum deus é capaz, pois no plano do espírito puro – próprio do deus – não há carência (Vaccari, 2013, p. 278). Desse modo, partindo do amor e da beleza presentes no diálogo Banquete de Platão, Hölderlin liga essa concepção metafísica da beleza à natureza e ao absoluto de forma que, no Hipérion, a beleza ultrapassa os limites da estética de Kant e de Schiller, pois não é nem simplesmente a unidade harmoniosa da oposição entre a razão e a sensibilidade como está em Schiller, nem é meramente uma experiência subjetiva do juízo de gosto como em Kant. Pelo contrário, é uma revelação da unidade do ser ou do absoluto, que é conhecida através da intuição estética da beleza (Fischer, 2020, p. 147).
Isso significa que no fragmento “Juízo e Ser”, provavelmente escrito em abril de 1795 (Courtine, 2006, p. 72), encontra-se uma espécie de síntese tanto da crítica ao Eu absoluto de Fichte quanto à noção de beleza de Kant e Schiller, a qual também aparece no romance Hipérion. Assim, o projeto estético filosófico anunciado na carta a Neuffer, de 10 de outubro de 1794, dá um passo importante na medida em que Hölderlin amplia para o absoluto as ideias de Schiller sobre a unidade da beleza. Dessa forma, com o que denomina de “Novas cartas sobre a educação estética da humanidade” (que por sinal nunca foram levadas a cabo, sendo apenas entrevistas em alguns textos e cartas, como a Carta a Niethammer, de fevereiro de 1796, e até mesmo no próprio Hipérion), Hölderlin propõe ir além da educação estética schilleriana, transformando-a no programa para uma “nova mitologia”, na qual as oposições da modernidade seriam resolvidas nessa nova mitologia sincrética, que Hölderlin tenta realizar na sua poesia, sobretudo nas elegias e hinos tardios (Fischer, 2020, p. 144-145). Daí a importância do período de Iena para a poesia madura de Hölderlin, na qual se encontra sua mitopoética.
Nesse sentido, a seguir será feito um breve comentário à carta a Hegel, de 26 de janeiro de 1795, ao fragmento “Juízo e Ser”, ao romance Hipérion, ao “Hino à Natureza” e ao fragmento “O mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”, com o intuito de demonstrar como o projeto estético filosófico de Hölderlin se direciona para uma “nova mitologia”, que repercutirá na mitopoética de suas elegias e hinos tardios, mais especificamente em seu hino “Como em dia de feriado…”
A carta a Hegel
As primeiras impressões que Hölderlin teve da leitura das páginas iniciais da Fundação da doutrina-da-ciência, quando ainda estava Waltershausen, foram por ele relatadas na carta a Hegel, de 26 de janeiro de 1795. Vale lembrar que nesse período o poeta buscava compreender a Terceira Crítica de Kant, comentar O Banquete e o Fedro de Platão, bem como reler Espinoza[2]. Esse horizonte interpretativo o levou a fazer uma avaliação um tanto precoce, mas em alguma medida consistente, do idealismo fichtiano como viciado por um dogmatismo, de modo que o Eu absoluto, por conter tudo em si mesmo, seria semelhante à substância de Espinoza: “seu Eu absoluto (= a substância de Espinoza) contém toda realidade: ele é tudo e, fora dele, não há nada; para esse Eu absoluto não há portanto objeto, pois de outro modo toda realidade não estaria contida nele; mas é inconcebível uma consciência sem objeto” (Hölderlin, 1990, p. 232-233). O Eu absoluto, assim, acaba não podendo ser pensado como consciência, uma vez que esta precisa da objetivação para se autoconstituir. Com efeito, na medida em que o Eu absoluto contém tudo em si, a objetividade é por ele absorvida, o que o caracteriza como aquele que não tem nada que se lhe oponha, tornando a própria ideia de Eu absoluto contraditória, uma vez que não há Eu sem consciência de si, tampouco consciência de si sem qualquer tipo de objetivação como limite (Courtine, 2006, p. 74).
O fragmento “Juízo e Ser”
A crítica expressa na carta a Hegel se mantém no fragmento “Juízo e Ser”, de modo que o Eu absoluto fichtiano pretende que sujeito e objeto sejam unificados na autoconsciência. No entanto, para Hölderlin, Fichte coloca como origem a divisão originária (die ursprüngliche Trennung), pela qual o sujeito e o objeto se separam e se tornam possíveis. “Juízo. No sentido mais elevado e rigoroso é a separação originária de objeto e sujeito intimamente unificados na intuição intelectual (intellectuale Anschauung), aquela separação pela qual primeiramente sujeito e objeto se tornam possíveis, a partição originária (Ur- theilung)” (Hölderlin, 2020, p. 117). O que Hölderlin sugere aqui é que a divisão originária operada pelo juízo é precedida pela intuição intelectual, na qual o sujeito e o objeto estão intimamente unidos. Ao utilizar pela primeira vez o conceito de intuição intelectual no fragmento “Juízo e Ser”, o poeta retoma um problema surgido em Kant, que estabeleceu uma divisão entre natureza e liberdade, teoria e prática, de forma que o ser humano jamais pode ter uma intuição originária da coisa em si, mas somente uma intuição sensível do objeto que ele recebe e do qual não é o criador. Diante disso, Fichte e Schelling defendem que a intuição intelectual pode ser atribuída ao ser humano não no domínio teórico, mas no domínio prático, onde o objeto não é doado, mas realizado pela razão prática (Dastur, 1997, p. 36). Já para Hölderlin, a intuição intelectual remete ao ser, à própria beleza, de modo que a intuição intelectual tende a se tornar intuição estética (Courtine, 2006, p. 86; p. 88). Essa modulação da intuição intelectual em intuição estética pode ser encontrada na carta a Schiller, de 4 de setembro de 1795, e na carta a Niethammer, de 24 de fevereiro de 1796, nas quais Hölderlin fala que busca um princípio que explique a divisão entre pensamento e vida e, ao mesmo tempo, unifique o sujeito e o objeto no plano estético e não no plano teórico ou prático, ou seja, busca a possibilidade de uma intuição intelectual no domínio estético (Dastur, 1997, p. 36-37)[3]. Trata-se aqui de uma noção de ser que, ao contrário da divisão teórica entre sujeito e objeto presente no Eu absoluto fichtiano, implica “uma união entre sujeito e objeto, na qual nenhuma cisão é possível” (Agamben, 2022, p. 39). É nesse sentido que o fragmento “Juízo e Ser” é o ponto alto do debate de Hölderlin com o idealismo de Fichte, uma vez que este último é pautado numa separação entre o sujeito e o objeto do conhecimento e o próprio ser (Courtine, 2006, p. 82-83). A questão levantada por Hölderlin é sobre a impossibilidade de se apreender teoricamente o ser enquanto unidade originária, pois isso implica a partição originária, na qual surgem a identidade e a autoconsciência.
Ser – exprime a ligação do sujeito e do objeto.
Quando sujeito e objeto estão absolutamente e não apenas parcialmente unificados, a ponto de que nenhuma partição possa ser efetuada sem violar a essência do que deve ser separado, é ali e em nenhuma outra parte que é possível falar de um ser pura e simplesmente, como é o caso da intuição intelectual (Hölderlin, 2020, p. 118).
A identidade do Eu fichtiano não pode se colocar no lugar do ser absoluto enquanto aquele que não é dividido, uma vez que o Eu somente é possível a partir da divisão, da separação do Eu pelo Eu. Assim, o que está na base da Doutrina da ciência é uma identidade que implica em divisão e não uma unidade real entre sujeito e objeto (Agamben, 2022, p. 40). Segundo Hölderlin, na raiz de todo juízo está a separação que mantém afastados o sujeito da proposição e seu predicado, embora o juízo também deva poder reunificar os elementos primitivamente separados. Nesse caso, a proposição de fundo “Eu sou Eu” constitui o juízo Urteil no sentido estrito, sendo o que torna possível o juízo enquanto proposição que põe juntos o sujeito e o objeto, reunindo-os e separando-os como idênticos naquilo pelo que estão separados, ou seja, há primeiro o juízo enquanto separação no sentido estrito e que torna possível o juízo enquanto proposição que unifica sujeito e objeto, de forma que a unidade entre sujeito e objeto suposta no Eu absoluto já se encontra no âmbito teórico da predicação, portanto posterior à separação originária.
“No conceito de separação (Trennung) já está presente o conceito de relação recíproca de objeto e de sujeito e, ao mesmo tempo, é necessariamente pressuposto um todo, do qual objeto e sujeito são partes” (Hölderlin, 2020, p. 117). Ao falar de um todo pressuposto na separação, Hölderlin está se contrapondo à tese fichtiana do Eu como aquele que põe pura e simplesmente a si mesmo, pressupondo assim uma separação e uma união originária. Ora, ao apontar no Eu fichtiano a separação em detrimento da união, Hölderlin pensa o ser como uma unidade que escapa ao âmbito da divisão entre sujeito e objeto, pois os condiciona, ou seja, trata-se do ser absoluto. “‘Eu sou eu’ é o exemplo mais adequado deste conceito de partição originária como partição originária teórica, pois na partição originária prática o eu se opõe ao não-eu e não a si mesmo” (Hölderlin, 2020, p. 117-118). Para Hölderlin, a intuição intelectual pertence à instância originária do ser enquanto absoluto, portanto ainda sem a partição que ocorre na proposição fundamental “Eu sou Eu” e que é ela mesma a separação originária e teórica do ser e, este, por sua vez, somente se deixa apreender pela intuição intelectual (Courtine, 2006, p. 85).
Essa unidade originária, que no fragmento “Juízo e Ser” jamais pode ser apreendida de forma teórica, nada mais é que a beleza enquanto mais radical que a beleza proposta por Kant e Schiller, pois é a beleza na qual estão unidos sujeito e objeto e que somente pode ser apreendida pela intuição intelectual estética na qual, por sua vez, a beleza se mostra como a oposição harmônica (Harmonisch entgegensetztem), em que a unidade é “o um que difere de si mesmo”, de modo que nela os termos opostos não são separados, mas articulados. A noção de oposição harmônica foi cunhada nesse período a partir da fórmula heracliteana presente no Banquete de Platão e que será importante para os escritos posteriores de Hölderlin. Esse conceito quer dizer basicamente que a oposição em relação à realidade deve ser harmônica e livre, o que significa que os termos opostos não são totalmente separados, mas articulados. Esse é o verdadeiro sentido da harmonia e já se encontra nas linhas finais do Hipérion (Dastur, 1997, p. 46-48). A beleza, portanto, é o próprio ser, o absoluto, que é a unidade diferente de si mesma, sem com isso exigir a separação, mas sim a articulação das partes. Desta forma, para Hölderlin, a significância filosófica da poesia é identificada na conexão entre o estético e o absoluto (Fischer, 2020, p. 146).
O romance Hipérion
No final da primeira parte do romance Hipérion, Hölderlin realiza a articulação da oposição harmônica com a beleza, ao defini-la como “o uno diferente em si mesmo” (Hölderlin, 2003, p.85), no qual se expressa a profunda harmonia entre o homem e a natureza, ao mesmo tempo em que os mantém como diferentes, articulando-os sem que se reduzam um ao outro (Fischer, 2020, p. 148). A unidade do absoluto, que no fragmento “Juízo e Ser” é pressuposta pelo próprio juízo, embora este seja incapaz de apreendê-la, no Hipérion é manifesta na beleza. O ateniense, assim, “surgiu belo das mãos da natureza, belo de corpo e alma” (Hölderlin, 2003, p. 83), de modo que da beleza humana e divina, ou seja, da união entre homem e natureza, surgiram a arte, a religião e a filosofia. A arte, aqui, é a arte e a poesia da mitologia grega, da mesma forma que a religião é aquela criada pelo próprio homem que, ao buscar sentir-se a si próprio, deparou-se com a natureza enquanto beleza eterna, por isso deu a si mesmo seus deuses, de forma que homens e deuses eram um só e a religião nada mais era que o amor pela beleza (Hölderlin, 2003, p. 83). Por fim, Hölderlin retoma sua concepção da mitologia e da poesia como a origem da filosofia ao dizer que, sem poesia, os gregos jamais teriam sido um povo filosófico.
Pois, creiam-me, quem duvida só vê contradição e deficiência em tudo o que pensaram porque conhece a harmonia da beleza sem deficiências que nunca será pensada. O pão seco que a razão humana bem-intencionada lhe oferece, ele desdenha apenas porque se regala secretamente à mesa dos deuses (Hölderlin, 2003, p. 85).
A harmonia da beleza sem deficiências nunca pode ser pensada e a própria dúvida só é possível porque a beleza é, de antemão, conhecida de alguma maneira. A unidade originária do ser, que é dada na mitologia e na poesia, é dividida pela filosofia, de modo que a fenda aberta entre sujeito e objeto não pode ser fechada pela própria filosofia. Para Hipérion a poesia, em sentido mitológico, que canta o homem com seus deuses, não só é a origem da filosofia na Grécia antiga, mas também a possibilidade de solução para as oposições da filosofia no futuro (Fischer, 2020, p. 150). Ao defender a beleza como essa unidade que existiu entre os gregos, em que a natureza, os homens e os deuses eram unidos, Hölderlin ao mesmo tempo tece uma crítica à modernidade, enquanto aquela que se separou dessa unidade, precisando ser reeducada. Só então haverá “apenas uma beleza e a humanidade e a natureza se unirão, formando uma única divindade universal” (Hölderlin, 2003, p. 94). Essa mesma sugestão já se encontra, em outras palavras, no prefácio à penúltima versão do Hipérion, escrita entre agosto ou setembro de 1795 e maio de 1796, no qual também há essa identificação do ser com a beleza enquanto sentido de nossa busca infinita por nos unirmos à natureza. “Ele [o ser] existe – como beleza; espera por nós, para falar com Hipérion, um novo Reino onde a beleza é rainha” (Hölderlin, 2020, p. 125). No entanto, isso somente é possível a partir de uma nova mitologia, que será proposta em “O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”. Antes, porém, cabe um breve comentário ao “Hino à natureza”, no qual também é cantada essa união com a natureza, presente na Grécia antiga e perdida com a modernidade.
O “Hino à natureza”
Antes de dizer qualquer coisa sobre esse poema, convém ressaltar que a data precisa de sua escrita não é consenso entre os estudiosos. Federico Gorbea, em sua tradução para o espanhol, o situa entre os poemas da juventude, que vão de 1789 a 1794. Françoise Dastur, em seu livro Hölderlin: le retournement natal, parece enquadrá-lo entre os hinos consagrados à natureza e que giram em torno à escrita do Hipérion (Dastur, 1997, p. 137), portanto podendo pertencer tanto aos poemas da juventude quanto ao período de 1795/1796, em que o poeta vai de Iena para Nürtingen e, em seguida, para Frankfurt, onde trabalhou como preceptor na casa dos Gontard. Paulo Quintela é mais enfático ao afirmar que o “Hino à Natureza” é do inverno de 1795-1796, quando o poeta esteve em Nürtingen e visitou Schelling em Tübingen, visita na qual se acredita que houve um diálogo entre o poeta e o filósofo, em que surgiram as ideias centrais que compõem o fragmento sobre “O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”. A hipótese de Paulo Quintela se sustenta justamente porque ele sugere que o conteúdo desse poema é “o reflexo e comentário vivo das dúvidas e ansiedades espirituais em que a filosofia de Fichte lançou o Poeta – Chorando como irremediável a perda de sua ligação com a Natureza” (Quintela, 1971, p. 173). Com efeito, não se pode negar que a união harmoniosa com a natureza, assim como a passagem da natureza para a cultura, é central no Hipérion, em que, como visto acima, ela é expressa na beleza.
Françoise Dastur denomina de tonalidade hínica o modo como o poeta canta a relação com a natureza nesse poema, numa clara distinção do modo como tanto Goethe quanto Schiller a concebem. Trata-se de algo mais originário que o mero sentimento ou observação da natureza, pois Hölderlin entende a voz da natureza falando diretamente à sua alma (Dastur, 1997, p. 138-140). O que Dastur caracteriza como a tonalidade hínica nada mais é que aquilo que o poeta denominará, no ensaio escrito entre 1798/1800, sobre “O Modo de Proceder do Espírito Poético”, de “belo sentimento sagrado”, e que Heidegger interpreta como a tonalidade afetiva, mediante a qual o poeta pode “sentir” o sagrado sem ter uma postura subjetiva, tampouco se colocar diante do sagrado como um objeto, ou seja, no belo sentimento sagrado, tanto o sagrado quanto o poeta se apresentam como desprovidos de interesse ou vontade, pois ele se dá anteriormente à divisão entre sujeito e objeto e tudo que esses conceitos acarretam, sobretudo a noção de poeta como aquele que cria a partir da observação da natureza.
De fato, essa relação estreita com a natureza, que fala ao coração e é apreendida através da tonalidade hínica, pode ser encontrada das estrofes I-VII do “Hino à natureza”. Na primeira estrofe isso pode ser percebido nos seguintes versos: “Ali eu ainda brincava envolto em seu véu / me pendurava em ti como uma flor / e sentia palpitar seu coração em cada som / que envolvia meu coração delicadamente trêmulo” (Hölderlin, 1995, p. 45). O poeta inicialmente canta sua infância, em que se encontrava envolto pela natureza, com a qual estava intimamente unido através do coração, tocado indelevelmente pela natureza e seus elementos e fenômenos, que eram tão próximos e familiares que o concerniam, de forma que uma simples brisa da primavera era o suficiente para que “as veias pulsassem tranquilamente no coração / se movesse teu espírito, espírito de alegria” (Hölderlin, 1995, p. 45). O caráter onipresente da natureza, que será cantado anos mais tarde no hino “Como em dia de feriado...”, já pode ser visto embrionariamente nessas primeiras estrofes do “Hino à Natureza” em que, mesmo quando uma “tempestade com suas trovoadas passavam sobre mim por entre as montanhas” ou “as chamas do céu me rodeavam”, “ali tu aparecias, alma da natureza! (Seele der Natur!)” (Hölderlin, 1995, p. 47). Em qualquer situação, de penúria ou de alegria, o poeta sempre se fundia na plenitude da “beleza do mundo (Schöne Welt)”, “nos braços do infinito (In die Arme der Unendlichkeit)” (Hölderlin, 1995, p. 47). Não há como não perceber aqui a influência da unificação das noções platônicas de amor e de beleza, mediante a qual o poeta cunhou seu conceito de beleza como a unidade harmônica de tudo que existe, e que aqui é identificada com a natureza. A “beleza do mundo”, o “infinito”, que envolve o poeta desde sempre, quer dizer justamente essa realidade tão próxima, mas que não pode ser apreendida pela razão e pelo mero sentimento, mas sim pela intuição estética, que se revela como uma espécie de tonalidade afetiva fundamental, a tonalidade hínica.
A partir da sétima estrofe o poeta canta sua maturidade, na qual essa sua relação íntima com a natureza é desfeita, uma vez que “morto está agora o mundo juvenil / morto está agora aquele que tem me nutrido e educado” (Hölderlin, 1995, p. 47), portanto, o que nos resta da natureza e que agora amamos nada mais é que sombra. “Pois os sonhos dourados da juventude morreram / morreu para mim a natureza tão amiga” (Hölderlin, 1995, p. 47). Nota-se o quanto o envolvimento com a filosofia de Fichte, que por sinal não considera devidamente a natureza, impactou a produção lírica de Hölderlin, de modo que quando o poeta fala de juventude, na qual vivia numa união harmoniosa com a natureza, ele se refere à antiguidade grega e, por outro lado, quando fala de maturidade, quando essa união é desfeita, ele se refere à época moderna. Portanto, nesse hino a natureza também significa a própria beleza, o absoluto, o ser, que somente pode ser apreendido pela intuição intelectual estética.
“O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”
“O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão” é um texto do inverno de 1796/7, cuja autoria é motivo de discordância entre os estudiosos. Assim como há quem o atribua a Hegel, pelo fato de ter sido encontrado junto a seus escritos, há quem diga que foi de autoria de Schelling, enquanto outros defendem que muito do que se encontra ali é de autoria de Hölderlin. O fato é que a noção de beleza que nele se encontra é muito próxima da que o poeta apresenta no Hipérion. “Por fim, a ideia, que a tudo une, a ideia de beleza, a palavra tomada no sentido platônico mais elevado. Estou agora convencido de que o ato supremo da razão, no qual ela compreende todas as ideias, é um ato estético e que apenas na beleza, verdade e bem se irmanam” (Hölderlin, 2020, p. 130). Não se pode negar a proximidade entre esse texto e o que foi visto até agora no que diz respeito à beleza como aquela que une os contrários harmoniosamente, bem como a estética como a única por meio da qual essa unidade pode ser apreendida. Ademais, há outra passagem nesse fragmento que também remete ao projeto estético filosófico de Hölderlin e que é a proposta de uma nova mitologia, expressa nos seguintes termos:
precisamos de uma nova mitologia, mas essa nova mitologia deve estar a serviço das ideias, deve se tornar uma mitologia da razão. […] a mitologia deve se tornar filosófica e o povo, racional, e a filosofia deve se tornar mitológica, para tornar sensível o filósofo. Então a unidade eterna reinará sobre nós (Hölderlin, 2020, p. 130).
Pelo fato de Schelling ter proposto uma filosofia da mitologia, pode-se sugerir que tal passagem seja dele. A esse respeito, Paulo Quintela, na esteira de Ernst Cassirer, defende que quem escreveu o fragmento pode sim ter sido Schelling, porém logo depois da visita de Hölderlin, o que se sustenta justamente porque no fragmento se encontram reunidas, numa cerrada construção sistemática, as respostas a todas as perplexidades filosóficas de Hölderlin. A intuição do mundo e dos deuses gregos de Hölderlin é transformada por Schelling em dedução consciente, de modo que há um entrelaçamento entre mitologia e filosofia, tornando a primeira mais racional e a segunda mais sensível (Quintela, 1971, p. 171-172). A partir disso, pode-se deduzir que Schelling e Hölderlin tenham discutido sobre essa nova mitologia no encontro que tiveram em Tübingen, embora Schelling tenha enveredado por uma filosofia da mitologia, enquanto Hölderlin considera a mitologia como uma superação das capacidades da filosofia, de forma que o filósofo também necessita da nova mitologia (Fischer, 2020, p. 151).
O que interessa a Hölderlin é a dimensão religiosa do mito, de modo que o deus mítico é a figura da mais elevada e divina unidade. A dimensão religiosa pode ser descrita como uma transcendência imanente que transcende sujeito e objeto e, ao mesmo tempo, os envolve e que somente pode ser representada na forma do mito, que em si mesmo é a união que de outra forma se mantém oposta (Fischer, 2020, p. 151-152). Na mitopoética tardia de Hölderlin, portanto, os deuses se apresentarão como aqueles por meio dos quais se dá a unidade com a divina e onipresente natureza, uma vez que a beleza enquanto absoluto e unidade última somente pode ser concebida por meio do mito e da poesia. É disso que tratará a nova mitologia e, por conseguinte, a mitopoética do Hölderlin maduro, que se caracteriza como um politeísmo mitopoético, pois nela Hölderlin recupera e transforma a mitologia greco-romana ao mesmo tempo em que a une com mitos germânicos e cristãos, realizando assim um sincretismo politeísta (Fischer, 2020, p. 153).
Em seu ensaio “A mitopoética de Hölderlin: das ‘Cartas estéticas’ à nova mitologia”, Luke Fischer expõe como a elegia “Pão e vinho”, de 1800, e o hino “Celebração da Paz”, de 1802, são exemplos da mitologia sincrética de Hölderlin, na qual é figurada a alienação da humanidade em relação à natureza e a sua reconciliação, sendo que na elegia “Pão e vinho” é cantada a fuga dos deuses e a promessa de seu retorno, enquanto o hino “Celebração da paz” canta o evento mítico da reconciliação entre os deuses, os homens e o absoluto, demonstrando como esses poemas integram o programa da estética filosófica de Hölderlin de escrever uma nova mitologia (Fischer, 2020, p. 153-154). Além desses poemas, nos quais aparece explicitamente o sincretismo mitopoético de Hölderlin, o autor expõe a elegia “Volta ao lar/aos aparentes”, de 1801, na qual, embora as referências aos deuses tenham sido omitidas, pode-se encontrar a manifestação do divino a partir da experiência da beleza na natureza. O fato é que, nesses poemas da fase tardia de Hölderlin, pode-se perceber como o poeta canta a beleza divina e onipresente a partir de uma mitopoética, o único meio de se apreender o absoluto, que é a própria natureza da qual surgem os homens e os deuses e, por isso, deveriam estar nela harmonicamente unidos. Portanto, a seguir será feita uma exposição de algumas partes do hino “Como em dia de feriado…”, com o intuito de nele apontar a mitopoética do Hölderlin tardio.
A mitopoética no hino “Como em dia de feriado...”
Segundo a interpretação de Martin Heidegger (2013), o hino “Como em dia de feriado…” é permeado do início ao fim pelo que Hölderlin concebe como “natureza”. Não cabe aqui entrar nos detalhes da exposição que Heidegger faz da natureza pensada por Hölderlin como muito próxima da physis grega, embora o poeta não a nomeie como tal. Basta que ela seja compreendida como “a potente”, “a maravilhosa e onipresente”, “a divinamente bela natureza” para que se perceba que, apesar de uma suposta radicalização em relação ao que o poeta pensou como a natureza no período da escrita do Hipérion e mesmo do Empédocles, sua intenção permanece a mesma, isto é, encontrar uma maneira de apreender a unidade originária e harmônica a partir da intuição intelectual estética. Trata-se de expressar, a partir da mitopoética, o modo como o absoluto pode ser apreendido sem ferir sua unidade originária com a divisão entre sujeito e objeto, operada pelo juízo teórico racional.
É nesse sentido que, ao buscar a unidade harmônica entre o homem, a natureza e a divindade nesse poema, considera-se suficiente expor como a imaginação poética de Hölderlin figura o doar-se do sagrado enquanto essência da natureza no canto poético. O modo como o poeta o faz, apesar de manter a unidade originária da natureza como o “imediato”, nela insere a humanidade de modo poético com o auxílio de elementos mitológicos, ou seja, a intuição estética do absoluto, que aqui é a própria natureza, se dá por meio do mito e da poesia em detrimento da especulação teórica ou prática, demonstrando assim que aqui seu projeto estético filosófico culmina numa nova mitologia.
A onipresença da natureza significa que ela está presente em tudo o que é real, seja no trabalho humano, nas plantas e animais, nas estrelas ou nos deuses. No entanto, ela não permite ser apontada no âmbito do real como se fosse um ente em particular, tampouco ela resulta de uma unificação de vários indivíduos ou elementos reais (Heidegger, 2013, p. 65). Isso significa que a natureza independe do homem ou de qualquer outro ente, de forma que qualquer tentativa do homem ou dos deuses para defini-la ou apreendê-la em sua unidade se mostra insuficiente. A potência da natureza, portanto, não vem de nada além dela mesma. Do mesmo modo que, embora seja a divinamente bela, a natureza não pode ser equiparada a um deus ou deusa, pois os próprios deuses só podem existir a partir do aberto que é a natureza, que justamente por isso está presente um tudo, inclusive nos deuses, ou seja, apesar de ser divina, a natureza não pode ser medida de acordo com uma divindade qualquer, e o fato de ser bela significa que, nela, os opostos mais extremos são unificados em sua copertença, desde o alto do céu até o profundo do abismo, isto é, absolutamente tudo que existe é atraído e arrebatado em sua copertença pela natureza e nisso consiste a essência da sua beleza e da sua divina onipresença (Heidegger, 2013, p. 66). Isso tem muito a ver com a definição de natureza pensada por Hölderlin no período de Iena e no Hipérion. A natureza bela e onipresente é o próprio absoluto e por isso o deus pode apenas alcançar a sua aparência de forma mais elevada que os mortais, contudo não a apreende como tal. No entanto, como se verá, a mitologia e seus deuses são fundamentais para, senão apreender a totalidade e onipresença da natureza, pelo menos receber a sua essência que é o sagrado e que se doa no canto poético.
Com efeito, se a natureza e o sagrado, que é a sua essência, caracterizam-se pela imediatez, o que significa que nem o deus nem o homem enquanto mediados podem impor-se sobre ela (Heidegger, 2013, p. 76), surge aqui uma aparente aporia pois se o sagrado, enquanto essência da natureza, é o imediato, não podendo ser apreendido por nada que seja mediado, isto é, da ordem dos entes, pode-se pensar que homens e deuses estão fadados a permanecer sem experienciar o sagrado e a natureza da qual surgiram. Na solução desse problema aparente, Hölderlin elabora uma belíssima figuração que pode ser caracterizada como mitopoética.
Na segunda estrofe do poema, Hölderlin canta os poetas como aqueles “a quem a maravilhosa e onipresente educa e cria em leve enlace”, por isso são aqueles que se enchem de luto “quando ela parece dormir em certas estações do ano” (Heidegger, 2013, p. 61). Apesar de sofrerem com a aparente ausência da natureza, os poetas a pressentem, ou seja, são aqueles que têm sensibilidade para a sua onipresença e aguardam o seu despertar. Por isso, segundo Heidegger, o núcleo de todo o poema se encontra nos primeiros versos da terceira estrofe, que diz: “Agora, porém, rompe o dia! Eu esperava e via-o vir, / e o que vi, o Sagrado, seja meu Verbo” (Heidegger, 2013, p. 61). Trata-se do acontecimento no qual o romper do dia, que é o despertar da natureza, insufla o sagrado na alma do poeta, que por sua vez pressente e espera por esse acontecimento, isto é, a vinda do sagrado é um doar-se da essência da natureza como “fogo aceso na alma dos poetas” (Heidegger, 2013, p. 62).
Assim, na quarta estrofe aparecem os deuses como aqueles que, apesar de serem entes assim como os mortais, portanto supostamente incapazes de aceder ao imediato que é o sagrado, são agora requisitados para que o “raio sagrado” seja lançado na alma dos poetas. “[E] o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu, / eis que só agora se revela, / e as que a sorrir nos lavraram o campo / em figura de escravos, são-te agora conhecidas, / as sempre vivas, as forças dos deuses” (Heidegger, 2013, p. 62). Por serem “sempre vivas”, as forças dos deuses não podem ter surgido deles, mas sim que eles próprios só existem em virtude destas forças provenientes da natureza enquanto aquela que a tudo dá vida, inclusive aos deuses. No entanto, nas forças dos deuses é suposto seu poder de intermediar a união com o sagrado, a unidade originária, que ocorreu “outrora”, o que significa que essa unidade é mais antiga que o próprio tempo e tudo que seja da ordem do ente, pois diz respeito à natureza enquanto o eclodir inaugural daquela que está presente em tudo aquilo que desde então está presente (Heidegger, 2013, p. 78) e que agora se revela por meio da mitologia e seus deuses, o único modo no qual ela, que em si mesma é o ser absoluto e cuja essência é o sagrado, pode ser apreendida. Assim, os poetas são iluminados no momento em que a natureza acorda e se tornam eles mesmos uma claridade, pois tais poetas estão abertos dentro do aberto que se ilumina (Heidegger, 2013, p. 77). Fala-se aqui de um evento ao modo do Kairós, o instante oportuno em que a natureza acorda e que os poetas são iluminados, ou seja, é aceso em suas almas o fogo celeste.
E quanto ao “povo”, para que se mantenha na presença do sagrado, ele precisa dos poetas que, por sua vez, embora experimentem as forças sempre vivas, jamais atingem o sagrado por meio de uma reflexão pessoal, tampouco conseguem trazer o sagrado para próximo de si mesmos por mérito próprio (Heidegger, 2013, p. 79). No despertar da natureza o hálito sagrado é soprado sobre o canto e surge assim o canto poético. Trata-se de um acontecimento ao mesmo tempo divino e terrível, pois a intensidade com que a palavra é nele doada a torna quase impossível de ser proferida (Heidegger, 2013, p. 80). O entusiasmo gerado com o despertar da natureza está presente em grau mais alto para os poetas, pois eles são levemente envoltos pela natureza e por isso são intermediários entre o povo e o sagrado.
O canto poético, no qual o sagrado se faz dom, é uma obra que envolve os deuses e os homens, como o poeta diz na sexta estrofe: “Tais que ela, ferida de repente, há muito já / patente ao Infinito, treme de recordação, / e, inflamada do raio sagrado, lhe é afortunado / o fruto nascido em amor, obra de deuses e homens, / o canto, que a ambos dê testemunho” (Heidegger, 2013, p. 81). Porque a alma do poeta preserva o sagrado, o canto poético lhe é concedido como presente, que por sua vez é a palavra que só deve dizer o sagrado. Para que o canto seja profícuo, é preciso que a alma do poeta resista ao dom do sagrado, que vem como um raio que a fere e inflama. A alma do poeta pode até conter e preservar em si a presença do sagrado, porém o poeta não pode, por si só e imediatamente, nomear o sagrado. Por isso a alma do poeta é atingida duas vezes. Na primeira, é atingida pelo “ardor do luzir”, que é nutrido tranquilamente na alma do poeta. Esse ardor precisa ser inflamado e somente um raio de luz enviado pelo próprio sagrado poderia isso. É necessário, então, que alguém lance o raio que inflamará e atingirá pela segunda vez a alma do poeta. E aqui evidencia-se novamente a mitopoética de Hölderlin, pois aquele que lançará o raio que inflamará a alma do poeta é o Paí (deus), que por sua vez é aquele que está mais próximo do sagrado sem, contudo, a ele se igualar, pois lhe é subordinado. Assim, o sagrado se permite ser condensado em um único raio que o Deus envia ao homem como um presente divino (Heidegger, 2013, p. 82).
Como a relação imediata com o sagrado não pode ser consumada nem pelos homens nem pelos deuses, deve haver uma interdependência entre homens e deuses para que do amor entre eles, no qual eles deixam de pertencer a si mesmos, passem a pertencer ao sagrado, que é para eles a mediação rigorosa, a lei. É a partir da relação de amor entre deuses e homens que, subitamente, o raio sagrado atinge a alma do poeta. Em outras palavras, a mitologia e seus deuses torna possível a união com a natureza, a união harmoniosa entre os diferentes sem que um se reduza ao outro. Na relação entre deuses e homens estes não se aniquilam, mas mantêm-se como são e se abrem ao sagrado que se doa no canto poético. Assim, a relação entre mito e poesia é fundamental para a intuição estética da beleza, que aqui é o sagrado. Em um átimo de tempo o poeta é presenteado com a plenitude divina, porém o que define o ser do poeta não é somente o ato de receber o sagrado por intermédio do Deus, mas antes o enlace pelo sagrado, que por sinal o torna apto para receber o dom do sagrado envolto no canto poético (Heidegger, 2013, p. 82-83). O poeta sempre pertenceu à natureza enquanto “a mais velha que os tempos”, portanto, ao ser atingido pelo raio sagrado, não é consumido pelo ardor do raio, mas volta-se para o sagrado, de modo que o abalo que o raio sagrado causa em sua alma nada mais é que recordação e expectativa da abertura do sagrado, que já aconteceu previamente. O abalo interrompe o silêncio calmo, surgindo assim a palavra, que deixa aparecer a copertença entre homens e deuses, que é o próprio sagrado testemunhado no canto poético (Heidegger, 2013, p. 83). Por um momento o sagrado e o canto poético se identificam, pois em ambos é ressaltada a copertença entre os homens e os deuses.
O leve enlace pelo sagrado é fundamental para que o canto poético seja bem-sucedido, ou seja, o poeta deve ser aquele que, de certo modo, já pertença e pressinta o sagrado, somente assim sua alma será inflamada pelo dom do canto poético sem que ele seja destruído. Para ilustrar isso Hölderlin insere, no final da sexta estrofe, uma referência explícita à mitologia grega presente em Eurípedes e Ovídio. “Assim, caiu, como os poetas contam, por ela desejar / ver com os olhos o deus, o seu raio sobre a casa de Sêmele, / e ela, ferida do deus, pariu, / fruto da trovoada, o Baco sagrado” (Heidegger, 2013, p. 83). Não se pode querer ver o deus de maneira humana, sob pena de ser despedaçado pelo raio sagrado. Somente a pertença ao sagrado e o seu pressentimento, que nada tem a ver com a curiosidade ou o desejo de entificar o sagrado, buscando vê-lo com os olhos, permite que o canto por ele doado verdadeiramente floresça. É o que Hölderlin diz nos versos finais da sétima estrofe, juntamente com o primeiro verso do que supostamente seria a oitava e última estrofe. “Pois apenas se nós formos puros de coração / como crianças, e as nossas mãos inocentes, / o raio do Pai, o puro, não o queimará” (Heidegger, 2013, p. 63). Ter o “coração puro” significa manter-se onde o sagrado se abre e, aceitando-o como imediato e assim o abandonando à sua imediatez, ainda assim exercer a função de mediá-lo. Essa é a tarefa do poeta e ele somente terá o coração puro se não tiver a ousadia de invadir e tentar se apropriar do sagrado como se este fosse um ente.
Assim como o poeta corre o risco de ser aniquilado pelo raio sagrado, caso não esteja inteiramente aberto para ele, de “coração puro”, o próprio sagrado ao se permitir ser condensado no raio sagrado e lançado na alma do poeta também corre o risco de perder sua imediatez, pois ao ser inflamado como canto na alma do poeta o sagrado é levado para dentro do mediado, ou seja, para a esfera dos entes, podendo assim ser a eles equiparado (Heidegger, 2013, p. 87). Contudo, essa ameaça não se concretiza porque aqueles que surgiram da origem, ou seja, o deus e o poeta, nada podem contra ela. Para fundamentar isso Heidegger se serve de anotações feitas pelo próprio Hölderlin na margem de dentro dos versos conclusivos e que diz: “A / esfera / que é mais alta que / a dos homens / esta é o Deus”. De fato, essa anotação dá a entender que Hölderlin não acredita que a palavra humana seja a maior ameaça de o sagrado perder sua imediatez, mas sim o Deus como a esfera mais alta e como aquele que lança o raio sagrado. No entanto, nos versos finais do poema, ele diz: “fundamente abalado, sofrendo do mais forte / as dores, o coração eterno fica firme” (Heidegger, 2013, p. 63), ou seja, o “coração eterno”, que é o próprio sagrado, sofre um abalo ao se permitir ser condensado no raio sagrado e enviado pelo Pai, que é o Deus, a esfera mais alta, mas não a altíssima, portanto inferior ao sagrado. Por isso, embora profundamente abalado, sofrendo as dores de um deus, o sagrado permanece firme, ou seja, mantém sua imediatez. Com efeito, o raio do Pai, por ser “o puro”, mantém-se fiel à origem, ou seja, mantém-se pertencente ao sagrado, portanto nada podendo contra ele (Heidegger, 2013, p. 88).
Diante de toda essa figuração mitopoética, pode-se perceber como Hölderlin canta a natureza e sua essência, buscando um modo de preservá-la como o imediato que jamais pode se tornar mediado, ou seja, como a unidade originária, o ser absoluto, que não pode ser apreendido senão pela intuição estética, representada aqui pelo leve enlace do poeta pela natureza, que o leva a pressenti-la, portanto o único modo propício para apreendê-la como a unidade harmônica na qual deuses e homens se copertencem é o canto poético, no qual o sagrado, enquanto essência da natureza, se doa aos homens.
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João Evangelista Fernandes
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá e Licenciado em filosofia pela Faculdade Bagozzi de Curitiba.
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[1] Jean-François Courtine (2006, p. 71), fala de como um primeiro projeto do romance Hipérion remonta aos anos de Tübingen (1792-1793), de modo que o fragmento publicado na revista Thalia em 1794 já é fruto de uma longa reelaboração. Ainda sobre essa hipótese de um Proto-Hipérion composto pelo fragmento A Kallias e mais alguns escritos de Tübingen, ver Wagner de Avila Quevedo (2023, p. 221).
[2] O contexto em que Hölderlin teve seu primeiro contato com a filosofia de Espinosa foi por volta de 1790, período em que concluiu seus estudos de filosofia e humanidades. De fato, nesse período Kant já era bem lido pelos teólogos de Tübingen, de modo que o suposto panteísmo espinosista de Lessing, bem como a reabilitação de argumentos céticos contra Kant, incitados pela estreia filosófica de Friedrich Heinrich Jacobi, em 1780, auxiliaram na compreensão do dogmatismo, ceticismo e criticismo (Quevedo, 2023, p.119).
[3] Na carta de 4 de setembro de 1795 a Schiller, Hölderlin diz: “tento desenvolver a ideia de um progresso infinito da filosofia, tento mostrar que a exigência inevitável que deve ser posta a cada sistema, a reunião do sujeito com o objeto em um absoluto – Eu, ou como queira denominar – é possível esteticamente na intuição intelectual, mas que teoricamente somente é possível mediante uma aproximação infinita” (Hölderlin, 1990, p. 263). E na carta de 24 de fevereiro de 1796 a Niethammer, o poeta diz: “Nas cartas filosóficas quero encontrar o princípio que me explique as divisões nas quais pensamos e existimos, mas que também seja capaz de fazer desaparecer o antagonismo entre sujeito e objeto, entre nosso eu e o mundo, isto é, também entre razão e revelação, de modo teórico, na intuição intelectual, sem ter que buscar auxílio da nossa razão prática. Para isso precisamos de sentido estético, e chamarei minhas cartas filosóficas de Novas cartas sobre a educação estética do homem. Nelas também passarei da filosofia à poesia e à religião” (Hölderlin, 1990, p. 289). Assim, Hölderlin propõe o sentido estético e a intuição intelectual como solução para a oposição entre sujeito e objeto. Nestas cartas, há uma identificação entre a intuição intelectual e a intuição estética (Fischer, 2020, p. 146).