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Corpos indígenas e a dupla face da vida nua[1]

Indigenous bodies and the double face of bare life

Daniel Arruda Nascimento

0000-0001-9251-2457

danielarrudanascimento@id.uff.br

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo

UFF – Universidade Federal Fluminense

Recebido: 21/06/2024

Received: 21/06/2024

Aprovado:01/07/2024

Approved: 01/07/2024

Publicado: 03/07/2024

Published: 03/07/2024

RESUMO

Com um passo que transborda a intenção primeira de Giorgio Agamben na configuração do conceito de vida nua, procura a presente investigação indagar se seria possível enxergar nele potencialidades. Algumas pistas deixadas pelo filósofo no decorrer da sua obra poderiam nos ajudar nesse processo de conversão. Uma delas alude ao modelo franciscano de uma vida fora do direito em Altissima povertà, que não deixa de ser uma vida que se pretende nua, assim como parece se irmanar com alguma experiência dos povos ameríndios. Em relação aos corpos dos povos originários do nosso país, uma primeira acepção de sua vida nua é que se trata de vida precária: os povos da floresta são na nossa realidade jurídica violenta os que mais estão expostos à morte. Em uma segunda acepção, porém, mais afinada com a ideia de se pensar outra vida nua, a nudez indígena filosoficamente considerada teria algo a nos ensinar.

Palavras-chave: Ética e Filosofia Política, Giorgio Agamben, vida nua, povos originários.

ABSTRACT

With a step that goes beyond Giorgio Agamben's primary intention in configuring the concept of bare life, this investigation seeks to inquire if it would be possible to see its potentialities. Some clues left by the philosopher throughout his work could help us in this conversion process. One of them alludes to the Franciscan model of a life outside the law in Altissima povertà, which is still a life that pretends to be naked, just as it seems to be associated with some experience of the Amerindian peoples. In relation to the bodies of the original peoples of our country, a first meaning of their bare life is that it is a precarious life: the people of the forest are, in our violent legal reality, the ones most exposed to death. In a second sense, however, more in tune with the idea of ​​thinking about another bare life, indigenous nudity philosophically considered would have something to teach us.

Keywords: Ethics and Political Philosophy, Giorgio Agamben, bare life, Amerindian people.

Não são poucas as vozes do nosso tempo que têm alertado para os perigos das campanhas tecnológicas despreocupadas com os cuidados na conservação e no reflorestamento do nosso mundo ambiental. Em conferência que teve lugar na capital paulista e o título Democracia substantiva na era do animismo, uma aula magna compartilhada pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo no princípio deste ano de 2024, o filósofo camaronês radicado em solo sul-africano Achille Mbembe inicia sua fala exatamente assim, colocando em primeiro plano o fato de habitarmos atualmente cosmogonias bifurcadas, tornando insustentáveis as condições de habitabilidade do nosso planeta. Por um lado, somos convencidos da imensa capacidade humana e da ausência de limites ao seu desenvolvimento; mais ainda, que seria possível nos separarmos da terra que habitamos e que cabe à escalada tecnológica modificar profundamente as condições humanas de vida. Assim sendo, o desenvolvimento da cultura humana através da tecnologia seria o mesmo processo da evolução biológica, uma evolução que não pode ser interrompida. A anunciar o prelúdio da fusão entre tecnologia e inteligência humana, modificando a inteligibilidade do universo conhecido, não apenas a escalada tecnológica é assumida como motor da história humana e promotora de felicidade futura, em vislumbre escatológico, como exige-se dela que nas utopias que mobiliza seja premente a possibilidade mesma de transcendência da natureza e de abandono deste planeta que nos confina. Por outro lado, essa cosmogonia bifurcada e os transtornos climáticos pelos quais passamos com uma frequência cada vez maior nos obrigam a considerar com maior seriedade a ecologia de matérias e elementos diversos que estão presentes na camada habitada do planeta, se quisermos colocar em evidência a questão da permanência dos humanos na terra[2]. Essa é também uma forte linha de expressão em Brutalismo, onde uma cosmogonia destrutiva representa o devir-negro do mundo e a necropolítica e outra traria a possibilidade do devir-africano do mundo, de uma nova consciência planetária e solidária, de renovada potência da terra, a propiciar metástases criativas e a reparação de seres vivos (cf. Mbembe, 2021, pp. 11-31). O filósofo e escritor indígena Ailton Krenak, recentemente eleito e empossado na Academia Brasileira de Letras, tem há muitos anos associado à luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas no país as reflexões que compreendem o uso consciente do nosso planeta, a relação que possuem os seres humanos com a natureza que os sustenta e os riscos que engendram a possibilidade do seu fim. “A humanidade vai sendo deslocada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra”, a terra que pisamos parece estar apenas na lembrança daqueles que vivem à margem das civilizações, mas “todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda” (Krenak, 2019, pp. 11 e 23). Para não nos rendermos ao desespero e ao consequente imobilismo, precisamos nos reconectar aos sentidos da nossa existência terrena. Cito abaixo uma passagem luminosa do livro Futuro ancestral.

Um especialista no assunto me disse que o microplástico viaja pelo nosso corpo e já pode ser encontrado nos bebês que estão nascendo. Achei isso escandaloso, mas não podemos nos render à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos, e dentro dos nossos sonhos estão as memórias da Terra e de nossos ancestrais (Krenak, 2022, p. 37).

Contudo, com um espanto que gostaríamos que fosse somente filosófico, mas não é, vemos por outro ângulo que há um claro movimento, ou pelo menos um evidente aumento de forças políticas, dos que lutam para manter o planeta no rumo da catástrofe ambiental. Somam-se aos interesses econômicos hegemônicos os interesses despertados por grupos políticos que resolveram abdicar das exigências do pensamento, dos melhores prospectos científicos e mesmo do bom senso tão necessário para as relações democráticas agonísticas, preferindo o olhar mesquinho alimentado, na maioria das vezes, por uma moral identicamente mesquinha. Nas últimas eleições para o assim chamado Parlamento Europeu, ocorridas no início de junho deste ano, vimos um claro incremento da bancada ocupada pela denominada direita radical, ou extrema direita, tendo como bandeiras a serem defendidas, ao lado das pautas nacionalistas e anti-imigratórias, a recusa dos custos econômicos e das mudanças culturais demandadas por ambientalistas para tornar possível a manutenção da habitação sobre o planeta[3]. Em afronta direta contra o que procurou ensinar Hans Jonas no livro O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, uma ruidosa parcela da humanidade parece estar empenhada em esgotar ao máximo, se possível ainda nesta geração, os recursos naturais do globo, enquanto deveríamos estar comprometidos com uma ética que impeça o poder à disposição dos homens de se transformar em uma desgraça para eles mesmos e com o dever de permitir existir a nossa posteridade, com a humanidade futura (Jonas, 2006, pp. 21 e 89-94). Referimo-nos a um grande número de pessoas que não acreditam ou preferem negar deliberadamente que mudanças climáticas sistemáticas ameaçam a nossa existência, seja por terem aderido a espectros políticos que assim o fazem, seja por estarem simplesmente mais ocupadas com a própria vida[4].

Cabe notar que o filósofo ítalo-armênio que dá ensejo a essas linhas e está indiretamente anunciado no título tem, a seu modo, demonstrado preocupações semelhantes. Em dois aforismos independentes publicados no segundo semestre de 2022 no site da editora Quodlibet, Giorgio Agamben menciona que o contexto em que se filosofa nos dias de hoje mudou, os filósofos do nosso tempo falam e escrevem enquanto visualizam a possibilidade do fim do mundo, isso representa uma evidente diferença. Lemos em A chi si rivolge la parola? que até pelo menos a modernidade tardia os filósofos cunhavam suas afirmações especulativas, Averróis é nominalmente citado, dando como certo que a espécie humana fosse eterna. Contudo, “nós somos a primeira geração na modernidade para a qual esta certeza foi colocada em dúvida, para a qual antes parece provável que o gênero humano – ao menos aquele que designávamos com este nome – poderia cessar de existir”[5]. Com esse argumento, o filósofo italiano procura reforçar a ideia de que aqueles que possuem o mandato da palavra, entre eles os filósofos, escrevem sem que tenham destinatários. Pouco depois, o aforismo La guerra atomica e la fine dell’umanità é ainda mais explícito. Tomando como base um livro de Karl Jaspers, ele salienta que o advento da bomba atômica, mais do que qualquer outra novidade do século vinte, “produziu uma situação absolutamente nova na história da humanidade, situando-a de frente à inevitável alternativa: ‘ou a inteira humanidade será fisicamente destruída ou o homem deve transformar a sua condição ético-política’”. Hoje, diferentemente que no passado das comunidades humanas, “pela primeira vez na história, a humanidade tem a ‘possibilidade real’ de anular a si mesma e toda a vida sobre a terra”. Ainda que os seres humanos não tenham plena consciência disso e, paradoxalmente, seja essa situação um fato óbvio, algo que pode ser repetido à exaustão pelos jornais sem qualquer alarde extraordinário, ele acrescenta, trata-se de uma ocorrência banal facultada à escolha de especialistas que decidirão sobre a oportunidade e a iminência, ou melhor, de um acontecimento trivial como consequência de uma decisão de expediente de um chefe de Estado qualquer[6]. Um terceiro aforismo publicado nas semanas em que escrevo estas linhas volta a considerar o fim com elementos que recolocam o nosso autor no mais lúcido debate contemporâneo. Citando o anatomista holandês Lodewjik Bolk, mas em uma passagem que nos recorda a sua matriz filosófica forjada no estudo de Walter Benjamin, Agamben reverbera a conjuntura de que muito provavelmente nos aproximamos de um ponto de não retorno no qual o progresso significará a destruição. “É esta situação extrema que vivemos hoje. A multiplicação ilimitada de dispositivos tecnológicos, a crescente sujeição a restrições legais e autorizações de todo gênero e a completa subserviência às leis do mercado tornam os indivíduos cada vez mais dependentes de fatores que fogem inteiramente ao seu controle”[7]. O progresso irrefletido nos levará à destruição.

Curioso, é que nesse contexto, assim como em outros momentos da produção filosófica de Giorgio Agamben, salta aos olhos do leitor assíduo que o pano de fundo a oferecer uma necessária contraposição à proposta argumentativa espontânea seria a condição ética e política do homem contemporâneo. Ética ou política? Esse é justamente o ponto crítico. Entre os leitores, intérpretes e interlocutores da obra e do pensamento de Giorgio Agamben, encontramos um grupo razoável que aponta para uma confusão proposital ou acidental entre ética e política nos textos que ele faz chegar até nós. Ambos os termos são tratados indistintamente em muitos dos seus escritos, como se quisessem expressar o mesmo. Em diversas passagens, eles aparecem lado a lado, como se fossem complementares ou redundantes, como se uma palavra pudesse substituir sem prejuízo a outra. Ficamos assim sem saber com precisão se o autor titubeia, se ele não considera necessário estabelecer a distinção, se ele não considera possível separar as expressões éticas e políticas, ou se ele não vê sentido na discriminação. Outra questão relevante seria saber, compreendendo-se que ética e política se referem cada qual a terrenos diferentes da atuação humana, tendo a ética sua influência sobre o comportamento pessoal e a política seu espaço nas relações de poder que entrelaçam a vida em sociedade, se soluções éticas são suficientes para solucionar os problemas políticos que ele levanta ao longo da obra, mas especialmente em Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, lançado ao final do milênio, em 1995. Observei em outro lugar como, à evidência, essa coincidência entre ética e política foi provocada com maior vivacidade pelo desenvolvimento gradual do projeto Homo sacer (cf. Nascimento, 2018, pp. 29-31). O paralelo textual entre os dois termos, como se o autor pretendesse responder aos críticos sem encontrar as palavras, atravessa de Altissima povertà: regole monastiche e forma di vita, publicado em 2011, a L´uso dei corpi, publicado em 2014, passando por Opus Dei: archeologia dell’ufficio de 2012.

Mais recentemente, com a profusão de textos publicados em forma de aforismos no site da editora Quodlibet, intensificada com as polêmicas da pandemia do novo coronavírus que colonizou nosso mundo de 2020 a 2022, textos esses sempre muito atuais, respondendo de chofre às controvérsias ou às notícias de última hora, vemos novamente as palavras usadas conjuntamente. Parece ser mesmo uma obsessão. Por exemplo, em Una domanda, de abril de 2020, como em Intervento al convegno degli studenti veneziani contro il greenpass, de novembro de 2021 e Sul diritto di resistenza, de junho de 2022, como em Etica, politica e commedia, de março de 2024, assim como em um dos textos já citados, La guerra atomica e la fine dell’umanità, de outubro de 2022. No primeiro, com referência direta à pandemia, Agamben se pergunta de maneira retórica como é possível que um país como a Itália tenha, sem perceber,  desabado eticamente e politicamente diante de uma doença, como os cidadãos italianos foram capazes de abdicar de princípios éticos e políticos com tanta rapidez e facilidade[8]. No penúltimo texto dessa breve relação, ética e política fazem uma aparição simultânea para informar polemicamente que as tentativas de se definir o que é o estatuto humano provêm da comédia e não da tragédia, como costumeiramente se conjectura, onde podem flutuar o ridículo e o riso[9]. No último, como já mencionado, com duas entradas textuais, a transformação para a qual é chamada a consciência humana sofre o duplo, associado e indistinto agenciamento da ética e da política. Em Sul diritto di resistenza, à ambiguidade da definição do caráter tirânico de um determinado regime ao qual se pretende resistir equivale a ambiguidade da resistência individual e coletiva manifesta nos aparatos constitucionais disponíveis. Ademais, se o direito de resistência surge da guerra civil independentemente de quaisquer previsões constitucionais, uma tese que merece ser defendida a todo custo, por uma razão “que constitui para mim uma tese irrenunciável, é que nas condições presentes a resistência não pode ser uma atividade separada: ela não pode senão se tornar uma forma de vida[10]. Bem compreendido, não há resistência política sem resistência ética, resistência política e vida ética não podem ser distintas. Já no texto Intervento al convegno degli studenti veneziani contro il greenpass l’11 novembre 2021 a Ca’ Sagredo, produzido para dar suporte aos estudantes que protestavam contra a exigência oficial da apresentação do comprovante de vacinação contra o vírus da Covid-19, a reboque das lamentações que denunciavam uma completa alteração da ordem jurídica e política nas quais se vivia, com surpresa vemos Agamben permitir a si mesmo indagar em voz alta: o que fazer nessa situação? E ainda mais surpreendente é a resposta que esboça: “no plano individual, continuar na medida do possível a fazer o bem o que se procurava fazer bem”. Mas isto não basta: porque estamos comprometidos com o mundo e com a esfera pública, as escolhas que fazemos são sempre também políticas. Como se quisesse apresentar um caminho exequível, acessível aos estudantes, lemos na sequência que se “Arendt indicava a amizade como o possível fundamento para uma política em tempos obscuros”, seria a amizade “uma espécie de minimum político, uma fronteira que ao mesmo tempo une e divide o indivíduo da comunidade”. Concluindo o texto, o filósofo aditará que apenas reencontrando uma relação primordial entre pensamento e língua, será possível “sair do beco sombrio no qual a humanidade parece ter entrado e a levará provavelmente à extinção – se não física, ao menos ética e política”[11]. Em ambos os casos, ética e política aparecem imbricados. A ética não pode ser, certamente, o refúgio para a política. Mas, soluções políticas imprescindem de guinadas éticas. Política e ética caminham juntas. Os desafios impostos pelo nosso tempo, entre eles o enfrentamento das mudanças climáticas, exigem engajamentos políticos que são também éticos. As saídas tão cortejadas pelos que querem salvar o planeta, tão demandadas pelos leitores de Agamben, dependem da política e da ética. E se sentimos que algo catastrófico pode ocorrer de uma hora para a outra, muitas pessoas já se sentiram assim ao longo da história, muitos já estiveram em situações sem saída. “Estamos em plena era da combustão do mundo. [...] Mas, diante da realidade da urgência, da fragilidade e da vulnerabilidade, muitos dos povos da Terra sofreram essa provação antes de nós” (Mbembe, 2021, p. 27). Muitas situações políticas sem saída encontraram saídas. Penso, por exemplo, na passagem da monarquia absoluta para a república. Ou no fim institucional de sistemas de escravidão. Resta saber se saberemos nós responder às demandas do nosso tempo.

Feito esse longo preâmbulo, no qual procuro contextualizar a discussão proposta para estas linhas, podemos avançar. Publiquei nos dois últimos anos dois artigos que revisitam o conceito emblemático de vida nua, expressão patrocinada por Giorgio Agamben, antes mesmo do programa filosófico-político que o tornou indispensável no debate contemporâneo sobre as estruturas de poder e de governo que capturam a vida humana (Homo sacer, 1995-2015). No primeiro, intitulado Agamben contra Agamben: por uma revisão do conceito de vida nua, veiculado pela Revista Sofia da Universidade Federal do Espírito Santo, cuidei de apresentar novamente o conceito explorando a sua recepção mais comum: a vida nua seria o resíduo da ação soberana, o resultado do exercício de poder na exceção soberana. No segundo, que trouxe o título Agamben contra Agamben: por uma vida nua e passou a integrar o conjunto da (Des)troços: revista de pensamento radical, esta sediada na Universidade Federal de Minas Gerais, com um passo que extrapolava a primeira intenção do filósofo italiano, procurei indagar se seria possível enxergar potencialidades, sempre inesgotáveis, no uso da expressão em pauta, seja auxiliados pelo texto do autor, seja promovendo reflexões extraordinárias que nos lançassem mais adiante, mesmo que para tanto fosse necessário um abandono ou um divórcio. A proposta seria então “encontrar caminhos para se pensar o outro lado da vida nua, oferecer elementos que permitam elaborar alternativas políticas e éticas e políticas que tragam à baila as potencialidades da nudez filosoficamente compreendida”, com a finalidade última de superar o encarceramento da vida nua no “conjunto de qualidades e imagens que a expressam como desprovida, desprotegida, expropriada, exposta, precária, provisória, vulnerável” (Nascimento, 2023, p. 107). Dito de outro modo, “perquirir se é possível, a partir de elementos encontrados na própria obra do filósofo de referência, em via interpretativa autônoma, conceber outra acepção conceitual de vida nua, ainda que tenhamos que recorrer a movimentos de transposição” (Nascimento, 2023, p. 110). Nessa seara, levantei a hipótese de que algumas pistas deixadas pelo filósofo no decorrer da sua obra poderiam nos ajudar nesse processo de conversão. Uma delas alude ao modelo franciscano de uma vida fora do direito em Altissima povertà, que não deixa de ser uma vida que se pretende nua, assim como parece se irmanar com alguma experiência dos povos ameríndios em contato com o mundo dos brancos. Reproduzo abaixo o parágrafo que nos dá o mote para estas reflexões aqui pautadas.

Na obtusa pesquisa registrada em Altissima povertà, o modelo escolhido para se refletir sobre a possibilidade de uma vida fora do Direito, das capturas próprias do edifício jurídico que sustenta as sociedades estatais e domina convívio humano e vida cotidiana, é uma vida que se pretende nua. De acordo com o que nos informa a tradição religiosa, o pai da experiência franciscana inaugura a sua travessia espiritual despindo-se das roupas de sua família em praça pública, em gesto que não era apenas simbólico. [...] Para os franciscanos, a adoção de um hábito comum e simples era também um modo de sinalizar que as roupas não tinham qualquer importância, nem lhes pertenciam, era apenas um meio que lhes permitiam andar entre os homens em sua cultura de vestir-se encobrindo a sua nudez, um modo de evitar o escândalo que de outro modo seria inevitável. Notemos que em profunda afinidade com o sentimento dos indígenas brasileiros ao verem-se confrontados com o mundo dos brancos: percebendo o impacto nocivo e a curiosidade que a imagem dos seus corpos nus causava na população rural vizinha e nos habitantes das grandes cidades, os indígenas brasileiros aprenderam ao longo do tempo de contato que passar a usar roupas ocidentais, cobrindo parte do corpo, era não apenas um modo de serem minimamente aceitos como de serem deixados em paz e poderem continuar a viver como antes (cf. Vilaça, 2000, pp. 57-58). Para os indígenas brasileiros em contato com os brancos, usar shorts e t-shirts, assim como evitar perfurações e adornos que se ostentam em corpos nus, foi uma opção política, uma estratégia de sobrevivência e proteção, um modo de ficar longe dos olhos maldosos dos habitantes do mundo civilizado (Nascimento, 2023, p. 112).

Em relação aos corpos dos povos originários do nosso país, uma primeira acepção de sua vida nua deveria levar em conta que os direitos indígenas são vistos como uma excepcionalidade pelo próprio ordenamento constitucional e, em última análise, isso facilita o seu cancelamento. Ademais, em um estado de exceção permanente, já denunciado efusivamente no campo filosófico, a vida nua dos povos indígenas é a vida precária: os povos da floresta são na nossa realidade jurídica violenta os últimos da fila, aqueles que mais estão expostos à morte. Em uma segunda acepção, porém, mais afinada com a ideia de se pensar outra vida nua, a nudez indígena filosoficamente considerada teria algo a nos ensinar. Vida nua seria o que melhor responde ao desejo humano de permanecer livre, onde adornos e pinturas corporais são, em uma primeira visada, apenas procedimentos de festa, embora potencializem esses mesmos corpos. Pode ser que assim encontremos o caminho para “uma política não mais fundada sobre a exceptio da vida nua” (Agamben, 1995, p. 15), como parece almejar nosso filósofo ítalo-armênio desde a concepção do projeto filosófico-político que o tornou mundialmente conhecido e uma referência incontornável e depuradora para os que se lançam na incumbência de pensar filosoficamente os desafios políticos e éticos do nosso tempo. Proponho, assim, para nos auxiliar a explorar essa alternativa emancipatória da vida nua, proceder à análise de duas excelentes teses de doutorado escritas por autores indígenas.

Entre trabalhos acadêmicos defendidos por autoras e autores indígenas, encontramos a admirável tese de Isabel Teresa Cristina Taukane, intitulada Kurâ Iwenu (a nossa pintura): performance e resistência na pintura corporal Kurâ-Bakairi. Defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Mato Grosso, o trabalho impressiona não apenas pela sua pertinência temática, mas igualmente pela extensão e pela qualidade da pesquisa. Originários do Alto Xingu, estão as principais comunidades indígenas Bakairi situadas hoje no centro-leste do Estado do Mato Grosso[12]. Especialmente para a realização de grandes cerimônias, mas também em outros momentos extracotidianos, os Kurâ-Bakairi aplicam sobre a pele nua as tinturas e os pigmentos produzidos a partir do sumo do fruto do jenipapo, da extração do óleo do pequi, da massa das sementes do urucum e da utilização do carvão, formando os grafismos característicos e adequados para cada ocasião. É a pintura corporal uma vestimenta da pele que gera mútua dependência entre tinta e corpo humano, uma espécie de vestimenta representativa e identitária, que assegura a alteridade, que não retira a nudez do corpo, que nele se imprime provisoriamente e o potencializa (cf. Taukane, 2019, pp. 17-18). “Acredita-se que a pintura corporal possui lugar especial na vida dos Kurâ-Bakairi. Além disso, consiste em mediar tanto as dimensões cosmológicas quanto a singularidade do modo de existir, que consiste na política de autoafirmação diante do outro” (p. 134). Conforme lemos em diferentes partes do trabalho, a pintura corporal embeleza o corpo que dá suporte à pintura (p. 66), eleva a expressividade do corpo nu e o potencializa (p. 117), veste o corpo de expressividade (p. 118), transforma a nudez do corpo e serve de meio para a experimentação de outras realidades da floresta (p. 122). Levando-se em conta a diversidade dos povos originários do país, a pintura corporal pode ser usada para demarcar o pertencimento a determinado grupo interno da etnia, como ocorre entre os Xerente e os Xavante (p. 44), para auxiliar na demarcação de rituais de iniciação e passagem, como acontece entre os Xavante (p. 45) e os Kurâ-Bakairi (pp. 108 e 111), para expressar uma realidade mítica como entre os Wayana (p. 46), para expressar a realidade cosmológica e proporcionar uma vestimenta especial para acessar o cosmos como entre os Asurini (pp. 47-52), como prática lúdica entre os Karajá (p. 53), como atividade decorativa complementar entre os Waiãpi (p. 54), para fortalecer o corpo dos bebês e das crianças entre os Kurâ-Bakairi e os Kayapó (p. 112), por exemplo, com um elenco que poderia se estender indefinidamente. No que concerne à dimensão da pintura corporal compreendida como performance e resistência no contato com os brancos e ao fato da nudez indígena ter se tornado um problema com a colonização de suas terras (elementos que são enfatizados pela pesquisadora indígena), na medida em que, por um lado, ela suscita curiosidade e escândalo nos estrangeiros, e por outro, enseja a sua cobertura forçada por roupas que territorializam e uniformizam o corpo, a pintura corporal segue sendo resistência étnica, afirmação de sua própria cultura e estratégia de sobrevivência (pp. 148-158). 

Para os fins que nos interessam, é importante frisar que a pintura corporal transforma e modifica a nudez, mas não a anula. Ela expande o corpo nu, inaugura outras dimensões performativas, permite a aquisição de outras habilidades, potencializa-o:

Aqui podemos compreender o real sentido da pintura corporal, a possibilidade de modificar a nudez, proporcionando a experiência de utilizar vários tipos de padrões gráficos sobre a pele e, com estes, ampliar as sensações que se quer produzir. É o caso, por exemplo, de, em determinada cerimônia ou ritual, uma pintura corporal específica trazer a força da onça e da sucuri ou a leveza da libélula, como ocorre entre os Kurâ-Bakairi quando faz uso desses grafismos (Taukane, 2019, p. 51).

[...] vinculamos comparativamente as roupas à pintura corporal, que é um tipo de vestimenta construída no corpo e que se transforma em imagem, proporcionando a performatividade que ocorre desde a produção na pele, os primeiros traços, até a sua finalização, como também depois, quando o corpo pintado (ou vestido de pintura) participa das danças, cerimônias e rituais. Há que lembrar também que o corpo vestido de pintura pode produzir afetações não apenas em quem veste, mas naquele que vê uma pessoa vestida dessa forma. [...] O corpo, ao receber a pintura corporal, se expande para acessar a dimensão ritualística, não sendo mais o eu, aquele do cotidiano, e opera em si a transformação para ser o outro, aquele instaurado pelas pinturas, seja da leveza de uma libélula, da força da ancestral onça ou da rapidez do nadar do peixe-pintado (Taukane, 2019, p. 134, grifos do original)[13].

Cabe salientar que, embora a pintura corporal seja uma espécie de veste, pintar o corpo não é exatamente o mesmo que cobrir as suas partes nuas. Mas entre os povos originários, mesmo que isso tenha, em alguma medida, se alterado com a colonização do homem branco europeu, o corpo nu não é percebido como nu. Não há nas relações dos corpos à mostra o olhar que o considera sem pudor, que o cobiça ou o repulsa, que exige a sua cobertura por medo ou vergonha. Um corpo originário não é um fruto proibido. A abertura de olhos promovida pelos invasores é, ao mesmo tempo, uma abertura nefasta de olhos e um fechamento da mente (pp. 143-145). No texto aqui colecionado, a autora chega a narrar como pode sentir na própria pele o problema da nudez, ou melhor, a nudez que se torna um problema quando se está diante de olhares estanhos. Ela conta como em uma festa em uma das aldeias pesquisadas, na qual estavam presentes visitantes externos, se sentiu paradoxalmente confusa por desejar estar sem as roupas ocidentais e por temer o desconforto causado pelos olhares estrangeiros, que reduziam os corpos às suas marcas de sexualidade (pp. 147-148)[14].

Ressaltemos, em acréscimo, como a pintura corporal pode assumir entre os ameríndios a função de uma veste de proteção, traz saúde e faz do corpo tingido um corpo forte. O corpo nu, a vida nua pintada, estaria, com os contornos das tintas, tutelado contra inimigos exteriores. Mais protegido na medida em que está cerimonialmente pintado. Isabel Taukane escreve que na cultura do seu povo, há casos nos quais “se recebe uma determinada pintura com urucum para afastar os iamyras (espíritos das doenças e má sorte), uma espécie de veste de proteção. Acredita-se aqui que o corpo untado com a tinta do vegetal estará resguardado na sua materialidade” (pp. 134-135). E assim vemos o corpo nu, muitas vezes em nossa linguagem comum associado à fragilidade e à vulnerabilidade, no espólio de Agamben vinculado ao desprovimento, à desproteção, à retirada do estatuto jurídico e da cidadania, relacionado à proteção e à potência. Pelo que podemos encontrar na literatura acadêmica produzida por pesquisadores indígenas, essa é uma tônica no costume da pintura corporal. Gilson Tiago, na dissertação de mestrado Kixovoku Hômo Terenoe: um estudo antropológico sobre o jeito Terena de se pintar, observa que a comunidade tem na pintura corporal o modo de preservar a sua identidade tradicional, de diferenciar grupos internos e de chamar o bom viver, assim como obter a proteção e a promoção da harmonia e da saúde (cf. Tiago, 2019, pp. 53-55). Helena Indiara Ferreira Corezomaé, na dissertação de mestrado Pinturas corporais: revitalização de uma expressão cultural Umutina/Balatiponé, mostra que a arte da pintura corporal permite identificar o pertencimento, demarcar algum momento específico, expressar o modo de ser, viver e pensar, viabilizar a comunicação entre si, entre parentes indígenas e pessoas não indígenas, proteger contra espíritos da mata e dos insetos na hora da caça e da pesca (cf. Corezomaé, 2018, pp. 48-50 e 57-58). Em todas as circunstâncias, o corpo se fortalece, cresce em sua potência.

Na linguagem de Baruch Spinoza, se quisermos usá-la a nosso favor, e consultando a sua imensa Ética, temos que potência é poder existir (cf. Spinoza, 2016, p. 25, primeira parte, proposição onze, segunda demonstração alternativa), potência faz ser, traz para a existência, garante a existência. Se os afetos são as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, uma vez que “o corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (Spinoza, 2016, p. 163, terceira parte, terceira definição conjugada com o primeiro postulado), e “o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores de muitas maneiras” (Spinoza, 2016, p. 221, terceira parte, demonstração da proposição cinquenta e um), “o homem não se conhece a si próprio a não ser pelas afecções de seu corpo e pelas ideias dessas afecções” (Spinoza, 2016, p. 225, terceira parte, demonstração da proposição cinquenta e três). No encontro entre os corpos exteriores e em suas múltiplas afetações não apenas se torna possível o conhecimento de si como cria-se a oportunidade para o aumento da potência desses mesmos corpos e ela vem acompanhada da alegria: “quando, pois, a mente encontra-se na situação de poder considerar a si própria, o suposto, por isso mesmo. É que passa a uma perfeição maior, isto é, é afetada da alegria, a qual será tanto maior quanto mais distintamente ela puder imaginar a si própria e sua potência de agir” (Spinoza, 2016, p. 225, terceira parte, demonstração da proposição cinquenta e três). Considerando-se a natureza do nosso corpo e a natureza dos corpos e dos objetos exteriores, em um mundo em que muitos corpos e objetos exteriores se dão ao encontro, corresponde a profusão de encontros à variedade na flutuação de ânimo e de potência (cf. Spinoza, 2016, p. 229, terceira parte, demonstração da proposição cinquenta e seis). No caso da pintura corporal ameríndia, o contato da tinta com a pele, a sua inscrição geométrica a dar contornos ao tecido semirrígido da estrutura corporal, é a causa mesma do aumento de potência.

Outro trabalho que cabe a nós neste momento visitar tem o título de Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro e a autoria de João Paulo Lima Barreto, filósofo e pesquisador do povo Yepamahsã, conhecido também como Tukano. Tese de viés ontológica defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, foi ela selecionada como a melhor tese de Antropologia e Arqueologia de 2022 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior[15]. Embora não seja o objeto do trabalho e faça nele uma aparição periférica, há em suas páginas algum registro sobre as funções da pintura corporal no corpo ameríndio. Entre os Tukano, a pintura corporal serve do mesmo modo para proteger o corpo contra ataques externos e embelezá-lo antes das festas (cf. Barreto, 2021, p. 24). Os esteios que dão estrutura ao corpo, compreendidos analogicamente como os esteios que sustentam a estrutura da casa, são pintados para dar movimento ao corpo e servem de porta de entrada para o conhecimento (p. 83): “assim, como o corpo humano recebe as pinturas para a proteção do seu omerõ, a imponência dos grafismos das paredes da casa tem a função de proteger seus habitantes” (p. 85)[16]. Não apenas a pintura corporal protege e potencializa o corpo, outras práticas também têm esse efeito. Em uma passagem biográfica, o autor estabelece uma narrativa retrospectiva contando que, quando teve que mudar para Manaus com dezesseis anos para continuar os seus estudos, sem nem mesmo ter antes deixado uma única vez a sua comunidade, impactado por um mundo inteiramente diferente e cheio de perigos desconhecidos, foi salvo pelo composto à base de carajiru (ou crajiru), uma erva amazônica com propriedades anti-inflamatórias, que trouxe da aldeia e passava em seu corpo toda vez que saía de casa.

O trabalho de João Paulo Lima Barreto é um trabalho de antropologia medicinal indígena e tem como objetivo explicitar o que a sua tradição compreende por constituição do corpo humano, seus cuidados, as doenças que podem acometê-lo e os seus modos de transformação. Lemos em suas páginas que as coisas na natureza têm vida própria, todo corpo humano é constituído de diversos elementos, fontes de luz, qualidades vegetais, essência da terra, potência fluida da água, propriedades animais, sopro do ar, e dedicar o devido cuidado ao corpo é saber equalizar os seus elementos materiais e imateriais (p. 46). “Todos os elementos estão presentes no corpo humano […] o todo é o corpo humano” (p. 59). Luz, floresta, terra, água, animal, ar e humano, todos esses elementos estão nus na natureza. São elementos que estão nus e serão a constituição desse corpo nu. Mahsã kahtiro é a dimensão elementar que define a condição humana, é o marcador da diferença com outros seres, surge na realidade humana com a consequente injeção de nome pelos pajés especialistas, constitui-se a fim de possibilitar a todo ser humano participar da organização do cosmos. “A conexão do corpo com todas essas dimensões é importante porque a junção ou conexão de tudo isso é que forma a força vital da pessoa” (p. 60). “As formas de relações com o mundo, como território, são de relação social, pois, para que não haja desequilíbrio, tudo deve estar conectado e cada parte cumprindo sua função, vida floresta, vida animal, vida água, vida luz, vida ar, vida terra, vida nome/humana” (p. 71). Sofrendo o corpo de desequilíbrio causado por afecções, ataques exteriores ou eventos pelos quais teve que passar a pessoa, busca-se novamente o equilíbrio com o auxílio curativo dos especialistas e o manejo de materiais e de plantas medicinais, os cuidados com a alimentação e com a observância do ciclo da constelação, e a exposição a certas ações do tempo na natureza (pp. 88-92)[17]. Estamos aqui diante das potencialidades do corpo nu, que não se distingue da natureza.

Nas profusas páginas da tese, o autor não chega a se referir diretamente à nudez do corpo indígena, mas todo o texto escrito tem como cenário básico o corpo humano nu, o corpo feminino, o corpo masculino e o corpo da criança. Essa é a convicção que surge com ainda maior firmeza quando ele se debruça sobre os modos de transformação que ocorrem no corpo. Entre eles, para além das transformações ocasionadas por enfermidades e curas, pela aquisição de qualidades presentes na natureza, pela velhice e pela morte física, está a possibilidade da utilização de sutiro, que significa roupa na língua originária: o corpo se veste da roupa de um animal, de outros seres ou elementos da natureza para a realização de uma determinada tarefa, sem que percam a perspectiva humana (pp. 134-135). Alguém pode vestir a roupa de um macaco para se locomover com esperteza, de uma abelha para saber procurar bem ou da fumaça para viajar com leveza e ligeireza. Entre os humanos, porém, as roupas usadas com maior frequência, mas apenas em regimes muito especiais, são as roupas da onça pintada e da cobra sucuri. Mais uma vez vemos o corpo nu demonstrar suas potencialidades e a nudez não será o signo da precariedade, ela possibilitará o mergulho nas habilidades e nos poderes já presentes na natureza que há em si. Essa vida será o suporte de uma vida que se pretende plena.

Um escritor francês que não se vê encaixado em ciência alguma, de nome Georges Bataille, lança na segunda metade do século vinte um livro sobre economia política fiel à posição de que toda disciplina teórica, incluindo-se entre elas a filosofia, deveria sopesar a questão primeira dos movimentos de energia sobre a terra (cf. Bataille, 1975, p. 50), isto é, que há uma energia que movimenta a terra, que seria imprescindível examinar o incremento e o gasto de energia na superfície terrestre, sua circulação, sua transformação e sua dissipação. No que se refere à economia política, talvez refém em demasia das noções de escassez, trabalho e distribuição, essa assertiva adquire ainda maior relevância.

A realização do destino do homem se faria pela alternância entre acumulação e prodigalidade. A atividade econômica do homem não se reduz a processos de conservação e reprodução, mas é integrada por iniciativas que têm por fim mobilizar perdas improdutivas. Mais: a multiplicação das possibilidades e da velocidade da produção somente pode ser equilibrada pela facilidade e rito acelerado do consumo inútil. De acordo com a análise de Bataille, o luxo, a construção de monumentos suntuosos, as guerras e os enterros, os cultos e os sacrifícios, as festas, os espetáculos e jogos, as artes, as atividades sexuais perversas (desviadas da finalidade reprodutiva) são despesas desta natureza, têm como fim eliminar energia, e atribuir ao final sentido para a perda. O que antes era concebido como subsidiário à produção econômica adquire uma importância igual ou maior que a primeira (Nascimento, 2012, pp. 37-38).

O que vimos até agora com a análise das teses de Isabel Taukane e João Barreto pode ser lido também por esse prisma. Ambos fazem referência a um corpo humano nu que se potencializa, que canaliza as energias de que dispõe em contato com o todo da natureza, seja na prática de iwenu, na pintura corporal, seja nos bahsese, nos tratamentos do corpo. Uma natureza que é excesso de energia, é exuberância e desperdício, de acordo com Bataille. Uma natureza que é energia em expansão.

O organismo vivo, na situação determinada pelos jogos da energia na superfície do globo, recebe em princípio mais energia do que é necessário para a manutenção da vida: a energia (a riqueza) excedente pode ser utilizada para o crescimento de um sistema (de um organismo, por exemplo); se o sistema não pode mais crescer, ou se o excedente não pode ser inteiramente absorvido em seu crescimento, há necessariamente que perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade ou não, gloriosamente ou de modo catastrófico (Bataille, 1975, pp. 59-60).

Como não pensar assim na exuberância exibida todos os dias pela natureza, que não é falta, mas sobra? Penso, por exemplo, na quantidade de frutos do jamelão, da mangueira ou do pé de acerola, na profusão de sementes no mamão e na melancia, nas flores do jambeiro ou do ipê, na gigantesca altura da castanheira amazônica, na quantidade de óvulos e espermatozoides produzidos pela mulher e pelo homem ao longo da vida. Mas igualmente na qualidade das paisagens cheias, na caprichosa beleza que extrapola toda utilidade. Atingida pela irradiação solar, que gera uma superabundância na superfície do globo, a matéria viva usa essa mesma energia para o seu crescimento, mas como este é inevitavelmente limitado, também pelas pressões exteriores, uma considerável quantidade de energia deve ser por ela liberada pela irradiação ou pela dilapidação (cf. Bataille, 1975, pp. 66-67). Bataille chama essa parte dissipada de parte maldita, uma vez que força um movimento vertiginoso, impulsiona a humanidade aos jogos e às artes, mas leva ao luxo e à guerra. Nós podemos chamá-la de outro nome, essas potencialidades não necessariamente úteis podem nos definir enquanto humanos, serem a expressão magnífica do que procuramos vislumbrar aqui na vida nua.

Para Giorgio Agamben, no pensamento que enseja cogitar outra vida nua, uma vida fora do direito significa uma vida nua que se afirma mesmo diante da exceção soberana. Para a filosofia ameríndia, a vida nua é a vida mesma, é a vida primeira e o sentido da vida, a vida que se afirma enquanto vida nua, na qual nudez não é precariedade. É a vida que se pinta e dança, apesar de tudo. Entre os corpos nus do mundo contemporâneo, há aqueles que assim estão por causa da miséria ou da guerra, há aqueles que assim estão por causa das catástrofes climáticas, há ainda aqueles que protestam com a sua nudez, há aqueles que a transformam em espetáculo, há aqueles que ganham muito dinheiro mostrando pedaços nus do corpo. Nenhum deles corresponde ao que se pretende alcançar nessas páginas. A outra vida nua é uma recusa à adesão ao que lhe cobre de dispositivos soberanos e artificialidades civilizatórias, de comércio e de vergonha. Entre a ética e a política, melhor dizendo, na ética que é também política e vice-versa, ela procura não sucumbir ao peso soberano, decide encontrar os meios de permanecer nua apesar de todo o assédio institucional e mercadológico, encontrando nessa mesma nudez os caminhos para se afirmar enquanto vida e vida nua potente. Ela busca compreender a vazão e o destino do rio da biopolítica que corre de maneira subterrânea na história da humanidade (cf. Agamben, 1995, p. 133) e, uma vez que se percebe dentro de suas ondas agitadas, tem a coragem de buscar as margens, ainda que a distância até elas não esteja definida. Ou, se lhe resta fôlego, vai de encontro a outras águas.

Referências Bibliográficas

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Daniel Arruda Nascimento

Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, com período de pesquisa junto à Università IUAV di Venezia (Itália), sob a orientação do professor Giorgio Agamben, com bolsa da FAEPEX/UNICAMP. Pós-Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] Parte das reflexões presentes nesta comunicação foi apresentada em palestra proferida em março de 2024 para o grupo de pesquisa Estado de exceção no Brasil contemporâneo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas gerais, recebendo o título O que fazer com a vida nua de Agamben no hiato entre a ética e a política?

[2] Transmissão disponível em https://www.youtube.com/live/0ch8NYtZ7xY?si=mXZv8iLxEWzgAz6i . Acesso em 27/05/2024.

[3] Cf. Por que direita radical avançou tanto na eleição da União Europeia, BBC News, 10/07/2024. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd11e0l4q5do. Cf. também 4 pontos-chave para entender os bons resultados alcançados pela direita nas eleições europeias, BBC News, 11/07/2024. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd11mg8jmzko. Acesso de ambas as fontes em 12/06/2024.

[4] No Brasil, a discussão sobre as mudanças climáticas e o nosso futuro ganhou cores dramáticas com as enchentes que cobriram o Estado do Rio Grande do Sul em maio. Uma nota divulgada pelo Grupo de Trabalho Hans Jonas da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia assim se exibiu: “não por acaso, a tragédia do Rio Grande do Sul, entre tantas outras que se alastram pelo país e pelo mundo, exprime o colapso do atual modelo socioeconômico baseado na exploração desmedida dos recursos naturais, na flexibilização da legislação ambiental, na exploração dos mais pobres e na concentração da riqueza. [...] Esses desafios são, como se sabe, éticos e políticos e, diante deles, também a Filosofia é convocada àquilo que Hans Jonas chamou de sua ‘primeira tarefa cósmica’: contribuir para a preservação do frágil equilíbrio sobre o qual se assenta a possibilidade da vida neste planeta e que agora, pelo aquecimento global, encontra-se em risco”. Disponível em: https://anpof.org.br/comunicacoes/notas-e-comunicados/a-tragedia-do-rio-grande-do-sul-como-alerta-etico-ambiental-um-apelo-a-responsabilidade--nota-do-gt-hans-jonas-da-anpof-e-do-centro-hans-jonas-brasil. Acesso em 04/06/2024.

[5] Cf. A chi si rivolge la parola?, Quodlibet, 23/08/2022. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-a-chi-si-rivolge-la-parola. Acesso em 27/05/2024.

[6] Cf. La guerra atomica e la fine dell’umanità, Quodlibet, 07/10/2022. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-la-guerra-atomica-e-la-fine-dell-u2019umanita. Acesso em 27/05/2024. Nesse texto, porém, a intenção de Agamben não é simplesmente engrossar o coro dos pensadores e ativistas que denunciam a possibilidade do fim do mundo. Contrapondo a argumentação de Karl Jaspers à indagação formulada posteriormente por Maurice Blanchot, ele quer endossar a percepção que de fato a humanidade não dispõe desse poder de destruição, seja porque nós não temos o domínio sobre esse acontecimento, seja porque a humanidade enquanto tal, que poderia decidir, não existe. Talvez, ele conclui, essa humanidade que pensamos existir já esteja espiritualmente morta, ainda que, em finalização surpreendente para o texto, ele lance por derradeiro a hipótese de que seja possível mesmo assim afrontar as ameaças fatais do tempo nas instâncias concretas que se apresentam e com as forças que dispomos para contrastá-las ou delas escapar. Nesse último caso, podemos indagar, teríamos o retorno da humanidade que se perdeu? Ou finalmente os sujeitos históricos se destacaríam da superfície estéril da humanidade?

[7] Cf. Il guscio della lumaca, Quodlibet, 23/05/2024. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-il-guscio-della-lumaca. Acesso em 28/05/2024.

[8] Cf. Una domanda, Quodlibet, 13/04/2020. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-una-domanda. Acesso em 27/05/2024. Para conhecer o meu posicionamento quanto ao conjunto de textos publicados por Agamben durante a pandemia do novo coronavírus, sugiro a leitura de O filósofo e a pandemia um ano depois: entre uma epidemia inventada e a controversa defesa da vida (cf. Nascimento, 2021). Sempre me impressionou o fato de que, para alguém que se mostrava tão crítico do nosso mundo político, ter o autor se relevado um grande amente do mundo que se perdeu.

[9] Cf. Etica, politica e commedia, Quodlibet, 11/03/2024. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-etica-politica-e-commedia. Acesso em 28/05/2024.

[10] Cf. Sul diritto di resistenza, Quodlibet, 02/06/2022, grifos nossos. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-sul-diritto-di-resistenza. Acesso em 27/05/2024. Observemos que, de acordo com o léxico agambeniano, teria sido mais correto ter empregado nessa passagem a expressão forma de vida com os hífens, forma-de-vida.

[11] Cf. Intervento al convegno degli studenti veneziani contro il greenpass l’11 novembre 2021 a Ca’ Sagredo, Quodlibet, 11/11/2021. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-intervento-al-convegno-degli-studenti-veneziano-. Acesso em 27/05/2024.

[12] Cf. verbete Bakairi no acervo da página eletrônica do Instituto Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Bakairi. Acesso em 07/06/2024.

[13] Essa confluência entre corpos humanos e poderes animais habita também o imaginário ocidental civilizado. Um dos heróis mais populares entre os nossos meninos, um herói que atravessou gerações e continua preferido entre muitos, é a história de um jovem estudante que é picado por uma aranha e adquire as suas habilidades tornando-se um homem-aranha.

[14] Esse é o momento em que Giorgio Agamben faz uma surpreendente aparição no texto. Na passagem argumentativa das páginas 143 e 144, o livro Nudità é citado diretamente com a finalidade de confrontar a ausência de vestes dos pais primordiais na narrativa cristã da criação (na qual havia a simbologia da veste de graça, na qual Adão e Eva não viam nenhuma nudez porque a criação estava naturalmente nua) e a nudez percebida no estado de consciência pecaminoso, entre os corpos que perderam a sua glória.

[15] Cf. Tese do PPGAS é a melhor da área de Antropologia e Arqueologia, segundo a Capes. Disponível em https://ufam.edu.br/noticias-destaque/3992-tese-do-ppgas-e-a-melhor-da-area-de-antropologia-e-arqueologia-segundo-a-capes.html. Acesso em 11/06/2024.

[16] Omerõ designa “o poder do pensamento, da intuição e do propósito do especialista Tukano, a potência que habita e circula em seu corpo, que assim o conecta ao movimento do universo e de seus criadores. Essa potência é injetada na criança no ato de sua nominação, tornando-a plena de vida e membro da comunidade cósmica” (Barreto, 2021, p. 48).

[17] Os corpos humanos podem ser atacados especialmente pelos waimahsã, seres antropomórficos presentes na natureza florestal, seres que podem ser definidos “como ‘humanos invisíveis’ que habitam os domínios da terra, da floresta, do ar e da água; que possuem capacidade de metamorfose e de camuflagem, assumindo (vestindo a roupa) a forma de animais e de peixes e adquirindo suas características e habilidades físicas; como a fonte de conhecimento, aqueles com os quais os especialistas Tukano (yai, kumu e baya) devem se comunicar e aprender, acessando com eles seus conhecimentos. Waimahsã são também seres que habitam em todos os espaços cósmicos, que são donos dos lugares e responsáveis pelos animais, pelos vegetais, pelos minerais e pela temperatura do mundo terrestre” (Barreto, 2021, p. 32).