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Existência e ambiguidade dialética: a presença de Hegel no pensamento de Simone de Beauvoir

Existence and dialectical ambiguity: the presence of Hegel in the thought of Simone de Beauvoir

Nathan M. A. Teixeira

0000-0001-7292-6177

nathanmateixeira@gmail.com

UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Recebido: 02/02/2025

Received: 02/02/2025

Aprovado:17/02/2025

Approved: 17/02/2025

Publicado: 03/04/2025

Published: 03/04/2025

Resumo

Este artigo busca esclarecer em que medida a dialética hegeliana se mostra como uma base decisiva para a forma como Simone de Beauvoir compreende a existência e a caracteriza como ambígua. Como será discutido, é a partir do desenvolvimento dialético da consciência de si apresentado por Hegel, em que o momento “ser para o outro” se mostra como a mediação necessária para a constituição do ser para si, que Beauvoir irá construir a sua compreensão da presença corpórea. Neste sentido, Simone de Beauvoir irá assumir a fragmentação dialética contínua do vir a ser si mesmo como sempre tendo de retornar a si do ser para outro, ao mesmo tempo em que vai propor que essa relação seja concebida como um comprometimento do corpo na própria objetividade fora de si, de tal modo que ela apresenta uma mudança na forma hegeliana específica de pensar essa relação mas a partir da aceitação geral de suas premissas, momento em que a ideia da ambiguidade como uma relação de inerência e distanciamento será desenvolvida.

Palavras-chave: Simone de Beauvoir; Hegel; dialética; ambiguidade; existência.

Abstract

This article seeks to clarify the extent to which Hegelian dialectics is a decisive basis for the way Simone de Beauvoir understands existence and characterizes it as ambiguous. As will be discussed, it is from the dialectical development of self-consciousness presented by Hegel, in which the moment “being for the other” is shown as the necessary mediation for the constitution of being for oneself, that Beauvoir will build her understanding of bodily presence. In this sense, Simone de Beauvoir will assume the continuous dialectical fragmentation of becoming oneself as always having to return to oneself from being for the other, at the same time that she will propose that this relation be conceived as a commitment of the body to its own objectivity outside itself, in such a way that it presents a change in the specific Hegelian way of thinking about this relation but from the general acceptance of its premises, a moment in which the idea of ambiguity as a relationship of inherence and detachment will be developed.

Keywords: Simone de Beauvoir; Hegel; dialectics; ambiguity; existence.

Kimberly Hutchings, em “Beauvoir and Hegel”, afirma que este último é claramente um autor importante para Simone de Beauvoir, na medida em que existem “[...] muitas referências a seus encontros com a filosofia de Hegel em seus diários e escritos autobiográficos [...]” (Hutchings, 2017, p. 187), além de ser bastante mencionado em suas principais obras, Por uma moral da ambiguidade e O segundo sexo, por exemplo. No entanto, no que concerne aos comentários realizados sobre o pensamento de Beauvoir, vemos que não há unanimidade “[...] sobre as questões relacionadas a como Beauvoir interpretou Hegel [...]” (Hutchings, 2017, p. 187), de modo que a discussão sobre a especificidade de tal interpretação e sua importância para Beauvoir e para a constituição de seu próprio pensamento ainda se encontraria significativamente aberta. Este trabalho visa, portanto, oferecer uma pequena contribuição à história desta discussão, de modo a confirmar as afirmações precedentes que indicam a filosofia hegeliana como fundamental para as considerações de Simone de Beauvoir, além de detalhar a especificidade desta interpretação que, conforme será explicitado, tem seu ponto fundamental na noção de ambiguidade como desdobramento de uma certa leitura da dialética hegeliana.

Segundo as afirmações do Journal de Guerre[1], vemos que Simone de Beauvoir se dedica diretamente ao estudo de Hegel a partir de 1940. Em uma anotação de 6 de julho, após afirmar que trabalhou durante duas horas (Beauvoir, 1990, p. 339) na leitura da Fenomenologia do espírito na Bibliothèque Nationale, ela escreve: “Decidi ir até lá todos os dias, das duas às cinco horas e trabalhar Hegel” (Beauvoir, 1990, pp. 339-340). Nas anotações seguintes, Beauvoir reafirma a constância desse estudo de Hegel, que além da Fenomenologia começa a incluir também, como indicado em um trecho escrito em 25 de julho do mesmo ano, o estudo da Ciência da Lógica[2]. Como ponto de partida para discussão deste texto, tomemos uma anotação datada de 9 de janeiro de 1941, na qual Beauvoir escreve:

Uma ideia que me impressionou muito em Hegel [une idée qui m’a si fort frappée chez Hegel]: a exigência de reconhecimento das consciências umas pelas outras [...] – o único absoluto sendo esta consciência humana, exigência de liberdade [...]. Ao mesmo tempo, a ideia existencial [idée existentielle] de que a realidade humana não é nada além daquilo que ela se faz ser [se fait être], aquilo em direção ao qual ela se transcende (Beauvoir, 1990, p. 361, destaque da autora).

Tal passagem nos mostra que Beauvoir parte de Hegel ao pensar as noções de existência e transcendência, e isto anos antes de começar a escrita de seu primeiro ensaio filosófico, Pirro e Cinéias publicado em 1944, que mobiliza essas noções que continuarão aparecendo nos demais escritos da autora. Mais especificamente, temos aqui uma das primeiras anotações em que aparece a perspectiva existencial de Simone de Beauvoir, segundo a qual a subjetividade humana existe como “[...] um ser que está à distância de si mesmo [à distance de soi-même] e que tem que ser seu ser [a à être son être]” (Beauvoir, 2013, p. 16), marcada como “[...] um projeto de mim em direção ao outro [vers l’autre], uma transcendência [une transcendence]” (Beauvoir, 2013, p. 210), em que há uma vinculação entre o movimento contínuo de vir a ser e a necessidade de também ter seu ser dado enquanto ser para o outro; nos termos da passagem anterior do Journal de Guerre, o ser para o outro é uma “exigência absoluta” basilar da transcendência.

A compreensão da subjetividade como movimento à distância de si, na medida em que seu “si” “[...] é constitutivamente orientado em direção a outra coisa que não ele mesmo: ele só é si mesmo através da relação com outra coisa além de si” (Beauvoir, 2013, p. 219), é mobilizada por Beauvoir na caracterização do processo de vir a ser si mesmo enquanto ambíguo. Trata-se aqui de um dos pontos fundamentais de seu pensamento, que aponta para o “[...] movimento dessa realidade ambígua que chamamos existência [cette réalité ambigue qu’on appelle l’existence] e que só é fazendo-se ser [...]” (Beauvoir, 2013, p. 33) como a “[...] infraestrutura ontológica [...]” (Beauvoir, 2016a, p. 103) a partir da qual esse movimento subjetivo encontra-se na necessidade de se relacionar ao que é outro de si para se realizar. Essa relação constitui a própria subjetividade sem determiná-la absolutamente, e ela se realiza na mesma medida em que se relaciona ativamente com seu ser situado passivamente no fora de si.

Mais especificamente, para Beauvoir, o movimento ambíguo do existir característico da subjetividade é uma “[...] síntese do devir [synthése du devenir] [...]” (Beauvoir, 2016a, p. 63) marcada pela dependência do fora de si como sua imediatidade de presença corporificada ambígua. Como presença concreta, como espontaneidade situada pelo corpo que é “[...] nossa tomada [prise] sobre o mundo e o esboço de nossos projetos [esquisse de nos projets]” (Beauvoir, 2016a, p. 75), a subjetividade é materialmente possível enquanto um certo devir material corporificado que se liga ao mundo no qual se realiza. Deste modo, a negatividade que medeia a relação com o ser e que é a própria subjetividade se efetivando, se realiza junto à uma vinculação à espessura sensível do mundo da qual ela depende enquanto primeira camada genérica de ser. Logo, apesar da subjetividade permanecer sempre uma negatividade quando se realiza e se afirma, ela é uma negatividade ambígua na medida em que quando ocorre é porque já houve espessura sensível/situação e ela mesma já foi e continua sendo certo modo de ser presença situada.

É significativo que o movimento de transcendência seja caracterizado por Beauvoir, como corretamente indica Sonia Kruks, como um “[...] tomar como próprio os aspectos ‘já dados’ da própria existência” (Kruks, 2012, p. 33, destaque meu), pois é exatamente a partir do destaque dado à ambiguidade da presença corporal, que apesar de ser afirmar “como pura interioridade [...] experimenta-se também como uma coisa esmagada pelo peso obscuro das outras coisas [...]” (Beauvoir, 2013, p. 11), que Beauvoir irá pensar, portanto, que por ter seu corpo engajado na situação, a transcendência humana tem uma espessura sensível genérica e ambígua na qual se dá o seu existir em uma vinculação ou comprometimento à distância, que simultaneamente já se abre para o porvir, ou seja, há como que um “dar solo” do corpo[3] que já é vivência de si nesse mundo e que permanece na retomada contínua do vir a ser. Recorrendo novamente à leitura de Sonia Kruks:

O corpo vivido é a interface entre o eu e o mundo e por isso também entre o eu e os outros. Ele é nossa situação no tempo e espaço [...]. [o corpo] nos particulariza e garante nossa inerência em certa generalidade da existência humana. Segue-se então que, na medida em que são coextensivos à existência humana, o corporal e o factual não representam em si mesmos uma diminuição da liberdade [...] (Kruks, 2012, p. 36).

A partir dessas considerações fica claro que a questão da ambiguidade existencial, central para o pensamento de Simone de Beauvoir se apresenta como sendo uma discussão, fundamentalmente, sobre dialética. Quer dizer, o momento hegeliano importante para Beauvoir mostra-se como sendo a indicação de que, na medida em que “A consciência é o espírito enquanto algo concreto e, na verdade, o saber preso na exterioridade [...]” (Hegel, 2016, p. 29)[4], os movimentos da consciência enquanto uma “[...] essência que se implementa através de seu desenvolvimento, [...] contém um tornar-se Outro que deve ser retomado, e é uma mediação[...]” (Hegel, 2014 p. 33, destaque do autor) da consciência em relação a si mesma, de tal modo que sua efetividade enquanto vir a ser de si mesma “é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente [...]; a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro [...]” (Hegel, 2014, p. 32, destaque do autor).

Em suma, vemos que a ideia de distância a si como marcador existencial indicada anteriormente por Beauvoir se apresenta a partir do quadro dialético geral segundo o qual o processo de vir a ser si mesmo como síntese, carrega em si seu desenvolvimento passado como ponto de partida, só é na medida em que já deveio, e isso indica a passagem pelo outro de si – pela perda de si no ser para o outro – como mediação necessária a partir da qual o ser para si devém enquanto tal. Poderíamos dizer, portanto, que a consideração de Hegel de que a consciência, enquanto “[...] o ser aí imediato do espírito [...]” (Hegel, 2016, p. 43) é um autoproduzir-se no “elemento objetivo, no qual tem seu ser aí e desse modo é, para si mesmo, objeto refletido em si no seu ser aí” (Hegel, 2014, p. 37) emerge em Beauvoir como estrutura geral de existência do movimento da presença corpórea. Quer dizer, a afirmação de que a ambiguidade da condição humana se apresenta como “ [...] a existência positiva de uma falta [l’existence positive d’un manque] [...]” (Beauvoir, 2013, p. 73) parte do enquadramento geral da dialética hegeliana de que o indivíduo possui “[...] no interior dele mesmo um perpétuo jogo do negativo [...]” (Beauvoir, 2013, p. 44), uma vez que é justamente a presença de tal negatividade que qualifica o vir a ser como uma contínua passagem em direção a si na qual o já ter sido é momento de determinação que fica como o do qual provém, ele não é aniquilado pois permanece no seguir como um si mesmo que nega em si o acúmulo à distância da sua base de ser[5].

Na medida em que Beauvoir chama a atenção para uma determinação ambígua no próprio ser outro de si, como indicativo de inerência na determinação do vínculo corpo-situação a partir do ser no mundo como tendo uma “[...] espessura sensível [épaisseur sensible] [...]” (Beauvoir, 2013, p. 129); assim como indica que tal vir a ser negativo que se perde de si, se apresenta como presença corpórea que afirma a “[...] espessura concreta [épaisseur concrète] e singular desse mundo [...]” (Beauvoir, 2013, p.132), fica já indicada uma diferenciação significativa em relação à concepção hegeliana em sua forma “pura”.

Trata-se, especificamente, de tomarmos como ponto central o fato de que o momento “ser para o outro” como mediação dialética necessária do ser si mesmo consistir na relação à objetividade na qual esse que vem a ser é e tem a condição de ser efetivamente um ente aí existente, constituindo-o perpetuamente a partir da experiência de vir a ser “[...] para si, na medida em que ele suprassume o ser outro, sua relação e sua comunhão com o outro [...]” (Hegel, 2016, p. 164). Tal ponto hegeliano adquire centralidade na forma como Beauvoir pensa a existência e, simultaneamente, apresenta a perspectiva da própria Beauvoir diante da indicação da falta, em Hegel, de uma ambiguidade nessa determinação de ter de vir a si a partir do outro de si.

Na Fenomenologia do Espírito Hegel diz que: “Há na consciência um para um Outro, isto é, a consciência tem nela a determinidade do momento do saber. Ao mesmo tempo, para a consciência, esse Outro não é somente para ela, mas também é fora dessa relação, ou seja, é em si: o momento da verdade” (Hegel, 2014, p. 76). Esta é a apresentação do movimento dialético que caracteriza a experiência que a consciência exercita em si mesma no seu processo de vir a ser consciente de si, movimento este que apresenta “[...] a série de figuras que a consciência percorre [...]” (Hegel, 2014, p.73) como momentos fenomenais conhecíveis em sua necessidade. Esta necessidade apresenta o movimento duplo, no qual a consciência vem a ser qualitativamente outra suprasumindo seu momento negativo inicial, e simultaneamente se prepara como conhecimento autêntico de si exposto posteriormente para si mesma. Hegel afirma que tais figuras fenomenalmente experenciáveis pela consciência como momentos constitutivos essenciais e, portanto, também como objetivações que se expõem, são “[...] a bem dizer, a história detalhada da formação para a ciência da própria consciência [...]” (Hegel, 2014, p.73), e que “[...] sua exposição coincide exatamente com esse ponto da ciência autêntica do espírito” (Hegel, 2014, p.79).[6] Assim, o desenvolvimento da Fenomenologia do espírito segue o desenvolvimento de como se conduz a série completa das figuras da consciência em sua necessidade que “se apresenta à consciência sem que ela saiba como lhe acontece. Para nós, é como se isso lhe transcorresse por detrás das costas. [...] um momento do ser-em-si [...]” (Hegel, 2014, p. 79, destaque do autor).

Observamos aqui o que poderíamos chamar de questões ontológicas e epistemológicas radicalmente implicadas, no sentido de que Hegel apresenta tanto o modo mesmo de ser da consciência de si na sua relação efetiva com a objetividade e como tal relação a qualifica, assim como conceitua o conhecimento dessa objetividade posta por ela mesma no seu processo de ser si. Mais precisamente, e chamando atenção a algo central para a leitura de Beauvoir, há como que uma defasagem na relação a si da consciência – algo lhe ocorre “por detrás das costas” – que faz com que ela experencie a si mesma e seja de fato aí sem ter para si mesma de modo conceitualmente objetivo esse desenvolvimento. Em outros termos, a consciência que é para si mesma como consciência de si efetiva e atual, tem nela como seu momento em si o já ter vindo a ser como negação determinada da sua passagem pelo outro de si que lhe obriga a ser um perpétuo retorno a si.

É neste sentido, portanto, que dizer que a consciência tem nela mesma um momento em si, momento em que ela está a distância de si porque faz-se outra de si ao ter seu ser na própria relação com o que lhe é exterior como uma negação interna de si mesma, é também dizer que o ser para o outro lhe é momento de determinação. Algo é para a consciência no momento em que ela é si mesma como não si mesma, quando ela é em si relação ao outro de si, de tal modo que o processo fenomenal da consciência enquanto uma singularidade, “[...] é sua própria passagem, de seu conceito a uma realidade exterior, [...] que tanto é consciência como, por isso mesmo – enquanto singularidade e Uno excludente – é o aludir a um outro” (Hegel, 2014, p. 175, destaque do autor).

A questão central, portanto, é a de que o devir da consciência de si, enquanto movimento negativo determinado como “[...]igualdade e simplicidade, consigo mesmas relacionadas” (Hegel, 2014, p.35) precisa ter nela mesma como momento essencial de determinação, um “para um Outro” como relação constitutiva necessária do seu vir a ser. Segundo Hegel, a imediatidade da consciência de si “inclui em si não só o universal ou a imediatez do saber mesmo, mas também aquela imediatez que é o ser, ou a imediatez para o saber” (Hegel, 2014, p. 32), e, portanto, “a consciência distingue algo de si e ao mesmo tempo se relaciona com ele” (Hegel, 2014, p. 75, destaque do autor) a partir das determinações abstratas do saber – o relacionar-se de algo para ela – e da verdade – o algo posto como essente distinto dela mesma. A efetividade concretamente existente emerge para a consciência a partir da forma relacional “distingue de si e se relaciona” que é seu próprio modo de ser basilar nessa relação que ela põe para si. Neste sentido, a sua qualificação como sendo é ela mesma imediatamente devindo novamente aí como tendo uma dimensão em si porque já passou pela negação de si “ser para um outro”, esta é a sua imediatez “que é o ser” mesmo dela como em si; como trata-se de momento interno à consciência como unidade que se relaciona a si, este só lhe é em si porque foi qualificado na forma relacional do “saber” –  nega de si e relaciona a si – imediatamente na volta a si como um ser que é para si, de modo que ela pode pôr como objeto “verdadeiro” em si este vir a ser objetivo que é ela mesma tal qual já deveio. Por fim, a imediatidade da emergência concreta e efetiva como totalidade em si e para si da consciência é dupla, no sentido de ser o seu ser que é como já tendo devindo negação determinada do ser para outro, e porque é imediatamente um ser para o outro concreto e aí, de modo que só pode ser um vir a ser em si e para si na medida em que é um essente que é aí, porque tem como momento de determinação o ser aí.

A consciência vem a ser si, portanto, como um retorno a si que já se afastou do ser para o outro e já retornou a si em si mesma e, sendo um algo essente concreto e objetivo, ela tem imediatamente “de novo” o ser para o outro nessa unidade de ser o ente que é e é aí. Desdobrando a partir de Hegel, temos:

[...] O subsistir ou substância de um ser-aí é a igualdade consigo mesmo [...]. Quando digo: qualidade, digo a determinidade simples; por meio da qualidade, um ser aí é diferente de um outro, ou seja, é um ser aí; é para si mesmo ou subsiste por meio dessa simplicidade consigo mesmo. Mas por isso é essencialmente o pensamento. [...] uma vez que o subsistir do ser aí é a igualdade-consigo-mesma ou a pura abstração, ele é abstração de si por si mesmo, ou é sua desigualdade consigo e sua dissolução - sua própria interioridade e sua retomada em si mesmo – seu vir-a-ser (Hegel, 2014, p. 55, destaque do autor)

E em Ciência da Lógica, Vol. I, “A doutrina do ser”, temos que:

O ser para outro é, na unidade do algo consigo, idêntico ao seu em si; o ser para o outro está, assim, em algo. A determinidade assim refletida dentro de si é, com isso, de novo uma determinidade simples que é, portanto, de novo uma qualidade – a determinação (Hegel, 2016, p.127, destaque do autor).

Na Ciência da Lógica, Hegel está apresentando as “[...] essencialidades puras [...]” como momentos dos movimento progressivos que é a consciência “[...] enquanto [...] o saber preso na exterioridade” (Hegel, 2016, p. 24, destaque do autor). Ou seja, a experiência fenomenologicamente dada da consciência de si e compreensível como sua história tem tais momentos fenomenais determinados por tais essencialidades “tais como elas são em e para si” (Hegel, 2014, p. 24), e, tomadas para si mesma como objeto, constituem o conteúdo que a Ciência da Lógica apresenta[7]. Portanto, a indicação na Fenomenologia de que a consciência de si tem em si mesma o momento “ser para outro”, é complementada pela consideração da Lógica de que “[...] sendo o ser aí um ser determinado, um concreto [...]” (Hegel, 2014, p. 114, destaque do autor), a consciência de si como em si e para si é aí na medida em que já foi qualificada em si no processo de passagem pelo ser para o outro que reflete em si a partir da negação determinada que é ela mesma se pondo como retorno a si no seu ser para o outro[8].

Essa dialética constituinte do ser aí imediato no agora porque já foi mediado é marca fundamental do momento ser para outro como de determinação necessária ao ser para si. A dialética que a consciência de si experimenta no vir a ser si mesma e a marca como unidade em devir de retorno a si concreta e efetivamente existente, na medida em que ela só pode ser a partir da negação determinada que ela mesma realiza em si vindo do ser para o outro, tem aqui sua base de negatividade constituinte, sua determinação qualitativa. Por sua vez, é nesse ter de ser sempre e de novo aí, que ela adquire a objetividade de ter um lugar no mundo como processo histórico já dado de formação de si mesma[9]. Poderíamos dizer, seguindo Lukács em sua obra sobre Hegel, que temos aqui algo fundamental para a dialética hegeliana na medida em que:

A trajetória que cada indivíduo tem de percorrer da consciência comum até a consciência filosófica é, ao mesmo tempo, o caminho do desenvolvimento da humanidade, é a síntese abreviada de todas as experiencias do gênero humano, representado como tal e, a partir desse ponto de vista, o próprio processo histórico (LUKÁCS, 2018a, p. 608).

É todo esse processo como totalidade imediata de vir a ser si mesmo como tal que é aí, e que Hegel indicou como sendo a passagem contínua pelo ser para o outro como qualificação concreta, que Beauvoir subentende quando afirma, chamando a atenção para a dimensão da presença existente, que a “[...] subjetividade não é inércia, retiro sobre si, separação [...] eu não sou uma coisa mas um projeto de mim rumo ao outro, uma transcendência” (Beauvoir, 2013, p. 210). Quer dizer, a perspectiva basilar da dialética hegeliana anteriormente exposta sustenta a compreensão de que o processo de subjetivação em devir como reflexividade está sempre imediatamente na volta a si do ser para o outro; ela transcende do ser para o outro, vai além do comprometimento nele enquanto já tendo sido devir a partir dele, assim como vai além de si em direção ao “para outro” a partir da negação em devir daquilo que é como já tendo sido à distância de si.

É por isso, por exemplo, que em O segundo sexo, Simone de Beauvoir afirma assumir a compreensão do ser a partir do “[...] sentido dinâmico hegeliano: ser é ter devindo, é ter sido feito tal qual se manifesta [être c’est être devenu, c’est avoir été fait tel qu’on se manifeste](Beauvoir, 2016ª, p. 27, destaque meu). A questão é que toda aquela compreensão vista acima da presença corpórea admite fundamentalmente o elemento de distanciamento a si como perda e relação a si no ter de ser também para o outro de si como modo de ser estruturante da existência deste processo presente no mundo, imediatamente constituinte em si e como outro de si do seu ser aí de presença concreta. Retomando a passagem citada anteriormente do Journal de guerre, vemos que a ideia existencial hegeliana que Beauvoir indica é precisamente a necessidade ontológica do ser para o outro – o que faz com que o ser esteja duplamente, como vimos, à distância de si – como a imediatidade existencial vivida que é presente enquanto já deveio, e que por isso vem a ser si mesmo como objetividade fenomenal com outras objetividades e ao mesmo tempo tem essa relação em si enquanto posta para si no seu processo de ser si. Aqui portanto, se específica como Beauvoir assume na presença a ideia hegeliana de que o vir a ser “[...] implica uma negação da diversidade determinada de ser por uma reflexão que a internaliza em uma unidade como a totalidade externa das realidades” (Direk, 2017, p. 202).

No entanto, como já indicado, é também exatamente aqui que Beauvoir discorda de Hegel ainda assumindo as premissas gerais elencadas acima. Essa discordância, na sua simplicidade imediata, aparece como a afirmação por parte de Simone de Beauvoir de que deveria haver uma ambiguidade nessa abertura de presença aí que se encontraria ausente em Hegel. Além disso, tal questão emergiria relacionada ao fato de que essa imediatidade aí da presença seria sustentada, no caso de Beauvoir, pela corporeidade. Para elucidação desta diferença, tomemos algumas passagens da filósofa nas quais ela faz críticas à forma específica da dialética hegeliana, assumindo que é decisivo para Beauvoir marcar que o ser para o outro é, ao contrário de Hegel, a condição ambígua da presença que vem a ser si mesma enquanto devir corporificado.

Em Por uma moral da ambiguidade, após marcar a distância a si constituinte do vir a ser como aquilo que ela está chamando de ambiguidade, Beauvoir diz:

Seu ser é falta de ser, mas há uma maneira de ser dessa falta de ser que é precisamente a existência. Em termos hegelianos poderíamos dizer que há aqui uma negação da negação por meio da qual o positivo é restabelecido. [...] Entretanto, [...] em Hegel os termos superados são conservados apenas como momentos abstratos, ao passo que consideramos que a existência permanece ainda negatividade na afirmação de si mesma [...] (Beauvoir, 2013, p. 18, destaque meu).

Ainda na mesma obra, temos a consideração de que o sistema hegeliano, “[...] identificando real e racional, esvazia o mundo humano de sua espessura sensível [vide le monde humain de son épaisseur sensible]” (Beauvoir, 2013, p. 129). Assim, apesar de Beauvoir estar operando com a mesma compreensão basilar da negatividade dialética de Hegel, a ponto de suas colocações poderem ser compreendidas na própria forma geral dos termos hegelianos, sua noção de existência comporta uma ambiguidade no que concerne à sua negatividade que se positiva como processo. Além disso, tal ambiguidade concerniria diretamente à imediatidade aí da presença concreta, na medida em que sua ausência em Hegel teria como consequência uma “perda de espessura” do ser aí no mundo, como se esse ser aí fosse posto apenas por uma unidade conceitual de presença.

Simone de Beauvoir não está querendo chamar atenção para uma ambiguidade que já se encontra claramente em Hegel, e que é a própria tensão da relação dialética, quando este afirma, por exemplo, que o ser para outro está imediatamente vinculado duplamente ao ser para si. Quer dizer, se a unidade de ser si mesmo como para si que é consciente de si tem uma dimensão que é em si, na medida em que já “[...] se afastou do ser para o outro e retornou a si [...]” (Hegel, 2016, p. 125) estando determinado como sendo “[...] o não ser do ser para o outro [...]” (Hegel, 2016, p. 124, destaque do autor), ao mesmo tempo em que aponta/se relaciona para o ser para o outro que é seu momento em si negado do qual devém ser refletido dentro de si e, sendo essa unidade negativa, aponta/se relaciona para o ser para o outro imediato que é sua relação de ser aí enquanto “[...] negação da relação simples do ser consigo [...]” (Hegel, 2016, p. 124), tem-se consequentemente sempre presente uma dupla mediação do momento ser para o outro. Na perspectiva de Simone de Beauvoir, deveria haver uma ambiguidade ontologicamente anterior à essa, no sentido de ser mais decisiva no que concerne à síntese do ser aí, mas interior à essa dialética geral hegeliana, uma ambiguidade especificamente no ser para o outro como condição de emergência da subjetividade além da ambiguidade dele como momento interno do vir a ser si mesmo.

O vir a ser si mesmo hegeliano sempre vem do ser para o outro, mas tal momento constitutivo sempre já é interno à unidade de si presumida: o ser outro está nele, mas ele não está também no ser para o outro como condição concreta e qualificativamente determinante de si enquanto outro do si para o qual ele é como presença aí. Seguindo com Beauvoir, a imediatidade da presença é dita ambígua porque é ser no ser para o outro ao mesmo tempo em que é isso como negação determinada em si e para si. Há a ambiguidade do estar imediatamente relacionado à – ser no ser para o outro como condição posta independentemente do voltar a si – e imediatamente ser negação dessa relação nela mesma e relação a si a partir dessa duplicidade de ser em e para o outro. Ela mantém a unidade imediata hegeliana da presença aí – há uma externalidade aí em si outra, ela é para o si mesmo nele tal como ele já é em si, e é isso em si para si -, mas ela coloca que esse “ser para o si” da externalidade outra não é imediatamente o próprio si totalidade simples se pondo nesse momento como mero retorno interno à sua unidade, há também a imediatidade posta da própria objetividade que põe o si para ela na medida em que este é nela, tem um lugar aí no qual é inerente. De tal modo que há ambiguidade se isolarmos a própria forma universal da relação, que se apresenta como um padecer geral da objetividade enquanto mediação ambígua, porque põe o si mesmo para a objetividade e é ponto de partida do retorno a si já parcialmente determinado no posicionamento dado nesta mediação. Por isso, a ideia de distância a si como condição também da ambiguidade vivida da presença, na medida em que a subjetividade devindo é uma síntese dupla de si mesma duplamente à distância de si.

Em suma, o desacordo de Beauvoir com Hegel diz respeito especificamente à redução da imediatidade do ser aí à simplicidade una em si mesma da consciência de si. Deste modo, o jogo dialético do negativo só ocorre dentro da unidade simples do ser si mesmo, justamente no seu momento de concretude no mundo, pois a forma geral dessa totalidade de emergência é a da própria consciência como si mesma só que em um momento negativo somente posto por si mesma em si mesma. O que, segundo Beauvoir como vimos, acaba retirando a própria espessura dessa concretude do vir a ser si mesmo, pois ser aí no mundo é considerado apenas como o pôr se a si da consciência de si como unidade abstrata.

A leitura existencial da premissa hegeliana de que o si mesmo precisa “estar fora de si” como qualificação essencial para ser presença existente e concreta, consiste aqui em assumir que tal condição de perda é de fato dialética, porque “ter de ser seu ser” implica que a subjetividade esteja distante do ser que ela já é como tendo de ser, e, por estar distante em si mesma como totalidade processual, o pôr do ser posterior também conta como um “ainda falta” a ser posto a partir da distância que já é. Porém, é preciso dizer ainda que ela é ambígua, porque ela não é “distingue e relaciona”, o que presume uma unidade já plena – positiva –, ainda que por um breve momento, como o todo que põe a relação ao se distinguir de e se relacionar a isso enquanto negado. A condição ser para o outro como relação basilar do vir a ser si é autônoma em si mesma como inerência concreta na espessura da objetividade desse que devém; isolando-a como objeto diríamos que ela é a forma “ter uma inerência”, “estar no ser para o outro”, algo como “ser posto em relação a e se distanciar na relação de ser posto”. Chamá-la de ambígua é dizer que não há unificação dela em um si mesmo sem que ao mesmo tempo esse si não seja posto nela como determinado em uma relação distanciada e que sustenta o retorno do qual devém, de tal modo que este existe se positivando como falta, em que esta é indicativo do “assumir uma distância” em um “estar relacionado” prévio.

Se retornarmos ao Prefácio da Fenomenologia do Espírito, temos as seguintes afirmações de Hegel:

O movimento do essente consiste, de um lado, em tornar-se um Outro e, assim, seu próprio conteúdo imanente; de outro lado, o essente recupera em si esse desenvolvimento ou esse seu ser-aí, isto é, faz de si mesmo um momento e se simplifica em direção à determinidade. A negatividade é nesse movimento o diferenciar e o pôr do ser-aí; e é nesse retornar, o vir-a-ser da simplicidade determinada (Hegel, 2014, p. 54, destaque do autor).

Um pouco mais a frente, lemos:

[...] o que está precisamente contido naquela simplicidade do pensar é que a determinidade tem em si mesma seu ser-outro e que é automovimento; pois tal simplicidade é o pensamento que a si mesmo se move e se diferencia; [...] o puro conceito. [...]  A figura concreta, movendo-se a si mesma, faz de si uma determinidade simples; com isso se eleva à forma lógica e é, em sua essencialidade. Seu ser-aí concreto é apenas esse movimento, e é ser-aí lógico, imediatamente (Hegel, 2014, pp. 56-57, destaque do autor).

Segundo Beauvoir, o problema aqui está em utilizar a forma do pôr conceitual da consciência de si, na qual um todo de pensamento positivo simples “puro conceito” já tem o ser para o outro como momento de diferenciação posta pelo si mesmo no seu retorno especulativo à “igualdade-consigo-mesma” que se moveu como pensar, enquanto aquilo que sustenta a “figura concreta” de si mesmo posta no ser aí. Em outros termos, a imediatidade ser aí da consciência de si surge como unidade negativa interna, mas positiva no “aludir ao outro” como imediatidade vinculante de ser que dá o aí da presença fenomenal; a consciência de si como categoria simples é imediatamente no ser, igual ao ser nela mesma como já consciência de si em si mesma. Ser como aí efetivo é ser como puro pensar, só como pensar e pensar puro em si mesmo, de modo que o envolvimento da consciência com o outro de si para ser si, além de partir do si como unidade simples, ele o faz por síntese conceitual no qual a “perda de si” sobrevive apenas como momento da síntese em unidade simples si mesmo. Ou seja, em último caso, o ser para o outro – estar relacionado a e negar – é a consciência pondo a diferenciação de si porque sempre já foi si como unidade.

Para Beauvoir, falta uma imediatidade ambígua ser em uma relação para outro, porque aí se é em si e para si para a objetividade nela, no ser para o outro como um que é aí e, consequentemente, ser, como si mesmo, uma totalidade ambígua na relação com a exterioridade aí e na relação consigo mesmo enquanto daí devindo. O ponto, portanto, é que em Hegel a consciência de si não tem uma dimensão de perda de si que seja o pôr da imediatidade ambígua da presença corpórea como sendo aí. Como vimos, a forma como Beauvoir pensa a corporeidade dá conta desta questão, pois a presença “[...]não está em outro lugar que não no ato que presentifica, ela só se realiza na criação de ligações concretas [dans la création de liens concrets]” (Beauvoir, 2013, p. 255, destaque meu), de modo que como devir corporificado, tal movimento possui “[...] uma certa espessura carnal [épaisseur charnelle] [...]” (Beauvoir, 2007b, p. 80) que a faz estar sempre imediatamente aí “[...] numa perpétua tensão para manter o ser à distância [...]” (Beauvoir, 2013, p. 31) no próprio estar relacionado que já se é. A subjetividade é, portanto, materialmente possível enquanto um certo devir material corporificado que se liga ao mundo no qual se realiza.

Por isso ela afirma que “[...] nosso corpo é uma força mecânica capaz de provocar no mundo material efeitos determinados sendo, contudo, ao mesmo tempo a expressão de nossa existência [...]” (Beauvoir, 2007a, p. 57). Na medida em que há a ambiguidade fundante do emergir do vir a ser como sendo no ser para o outro estando posto nele em uma relação geral condicionante na qual se distancia, admite-se a realização continuamente reposta de um vínculo sensível que une e separa subjetividade e mundo, na qual a corporeidade está entregue à efetividade objetiva e concreta como “coisa entre as coisas” ao mesmo tempo em que assenta o ser aí efetivo da presença vivida que se expressa como si mesmo à distância do vínculo ambíguo basilar de distanciamento inerente.

Como podemos ver, Beauvoir não está eliminando do processo de vir a ser si mesmo o momento de totalização positiva, que fenomenalmente se dá como uma presença que faz a experiencia vivida de si mesma como uma unidade que devem. A questão é que ela sustenta essa síntese na corporeidade como um todo ambíguo, porque o corpo está e não está entregue ao outro de si no qual se faz presente, de modo que aqui o ser para o outro é inerência à distância como sendo a relação concreta que o corpo é como posto ao mesmo tempo em que põe para si em si mesmo essa totalidade passada de inerência e recuo como seu momento interno ser para outro. Do mesmo modo, não se trata de afirmar que o processo de vir a ser si mesmo como pensamento em Hegel seja puro no sentido de não estar “junto às coisas”, pois este se qualifica enquanto a elas continuamente relacionado. A diferenciação proposta por Beauvoir consiste em apontar que, o pressuposto de que é o pensamento articulando-se a si mesmo e em si mesmo que determina a sua própria atualidade e efetividade como ser aí objetivo que já deveio e ao mesmo tempo determina as condições gerais de objetividade nas quais ele é aí como existente que tem essa objetividade para si, implica dizer que a sua “perda de si junto às coisas” não chega de fato a ser uma “perda” na concretude, na medida em que esse vínculo com o outro de si só lhe é uma qualificação constitutiva ao se dar na própria forma geral da unidade conceitual simples que põe esse momento negativo de si já imediatamente e na concretude como um momento interno de volta a si; o que acabaria por apagar a importância da concretude do ser para o outro no mesmo movimento que a indica como essencial.

Insistamos neste ponto, dada sua centralidade para a compreensão da ambiguidade. A unidade simples hegeliana é o positivo que “[...] é nele mesmo a diferença de si, como também o negativo” (Hegel, 2014, p. 120), isso é a infinitude simples do pensar “[...] ou o conceito absoluto [...]. Portanto, essa essência igual-a-si-mesma só a si se refere. A si mesma; eis aí o Outro ao qual a relação se dirige, e o relacionar-se consigo mesma é, antes, o fracionar-se, ou, justamente, aquela igualdade-consigo-mesma é a diferença interior” (Hegel, 2014, p. 127, destaque do autor). O fracionamento do si mesmo como negatividade a si relacionada é imediatamente momento interno já determinante de emergência do “[...] ser aí que se relaciona consigo [...]” (Hegel, 2016, p. 129, destaque do autor), mas essa emergência aí da relação a si como efetiva e objetiva assume imediatamente no próprio emergir a forma da totalidade ser si mesmo como conceito absoluto que só a si se refere. Ainda que essa unidade seja imediatamente fracionada novamente, a sua positivação simples já determinou a imediatidade do próprio emergir aí, portanto, quando Beauvoir indica a necessidade de uma ambiguidade exatamente nessa imediatidade do emergir ela está afirmando a necessidade de que a forma relacional dessa emergência se mantenha como uma determinação de “ser em um aí” que não é apenas o momento negativo do automovimento de pôr-se a si no outro de si como unidade simples que se fraciona; é preciso haver um fracionar que não parta do si mesmo porque é sua condição relacional outra da qual ele devém como relação a si já fracionada na concretude desse aí.

Podemos recontar, portanto, toda essa problemática a partir da identificação da unidade simples com a forma que Hegel chama de Uno excludente, já indicada anteriormente. A unidade imediata de ser daquilo que devém como um ser determinado e concreto, a partir da qual “[...] emergem, portanto, desde logo, várias determinações [...]” (Hegel, 2016, p. 115), é o ser aí. Sendo aí como tendo uma dimensão em si que é nele, está dado que ele negou seu ser para o outro e fez-se igualdade consigo mediado por essa negação, de tal modo que “[...] o em si é o suprassumir do mesmo a partir do mesmo dentro de si” (Hegel, 2016, p. 127, destaque do autor), constituindo sua determinação como ser aí que se relaciona consigo enquanto negatividade. Essa concretude de emergência imediata comporta, portanto, dois lados, o ser para outro como negação determinada no próprio algo que aí emerge, assim como o ser para outro externo da própria concretude, “[...] um ser aí externo do algo que é também seu ser aí, mas não pertence ao seu ser em si” (Hegel, 2016, p. 128, destaque do autor). Trata-se da finitude do ser para si como algo aí limitado duplamente, no desenvolvimento de sua qualidade de ser em si tal como já deveio por “[...] envolvimento e contradição [...]” (Hegel, 2016, p. 131), e a limitação imediata da externalidade outra diante da qual se encontra como processo renovado de retorno a si.

Desdobrando a questão da finitude, Hegel afirma:

O ser aí é determinado: algo tem uma qualidade e nela não é apenas determinado, mas limitado; sua qualidade é seu limite, e, sendo afetado por ele, o algo permanece, inicialmente, ser aí afirmativo, quieto. Mas essa negação, desenvolvida de modo que a própria oposição de seu ser aí e da negação como limite imanente dele seja o ser dentro de si do algo, e este, apenas devir nele mesmo, constitui sua finitude (Hegel, 2016, p. 134).

E, além disso:

Essa dupla identidade de ambos, o ser aí e o limite, contém o fato de que o algo tem seu ser apenas no limite e o fato de que, na medida em que o limite e o ser aí imediato são ambos, ao mesmo tempo, o negativo um do outro, o algo, que é apenas no seu limite, igualmente se separa de si mesmo e aponta, para além de si, para seu não ser e enuncia isso como seu ser, e assim, passa para o mesmo (Hegel, 2016, p. 132).

O ser para si tem de ser seu ser, aponta para ele como movimento contínuo de pôr-se como volta a si, justamente por conta da finitude do ser aí como desenvolvimento do ser para o outro, que o obriga como um algo, como também coisa entre as coisas, a sustentar na unidade negativa consigo a limitação internalizada como sua qualidade imanente, na medida em que é um momento do devir em si mesmo, assim como a limitação externa sempre renovada da concretude. O que se mostra nessa relação contínua com a limitação posta pela finitude é justamente “[...] a inquietude do algo no seu limite, [...] de ser a contradição, a qual o propele para além de si mesmo [...]” (Hegel, 2016, p. 133). No entanto, tal inquietude se dá na medida em que esse algo aí é um ser para si, um vir a ser si mesmo que tem uma negação em seu si como o “de onde devem”, de modo que há propriamente uma infinitude afirmativa de si mesmo como restabelecimento contínuo da unidade de si no envolvimento com a finitude de sua contradição igualmente sempre restabelecida.

A qualidade própria dessa infinitude do ser para si, na medida em que ele “[...] é e é aí, presente, atual [...]” (Hegel, 2016, p. 154, destaque do autor) como pensar especulativo, é a idealidade, como a unidade infinita do ser para si dentro da qual está presente “[...] o momento do ser aí [...] como ser para uno” (Hegel, 2016, p. 165, destaque do autor) que expressa, em última instância, “[...] como o finito é na sua unidade com o infinito, ou seja, como ideal” (Hegel, 2016, p. 165). A infinitude do para si como idealidade, que se efetiva concretamente na negação do ser aí, faz-se atual imediatamente “[...] com uma determinação, um conteúdo que é diferente, porém não tal que é autosubsistente, mas como momento” (Hegel, 2016, p. 155, destaque do autor). Quer dizer, a unidade simples presumida como base do vir a ser, na medida em que “[...] no seu outro, ele se relaciona apenas consigo” (Hegel, 2016, p,165), e que é a unidade imediata da presença efetiva do ser para si em que “[...] a forma da imediatidade do ser entra no ser para si como ente para si [...]” (Hegel, 2016, p. 170, destaque do autor), faz com que essa emergência imediata já seja somente ser para uno, ou seja, ele mesmo como unidade posta de ser para si cujo momento ser para outro como aí já está posto como momento interno à “[...] unificação absoluta da relação com outro e da relação consigo [...]” (Hegel, 2016, p. 171).

Simone de Beauvoir, admitindo que a unidade da imediatidade do vir a ser não é simples como autossubsistência em si mesmo, indica como problema hegeliano a afirmação de que a imediatidade do ser aí como concreto e continuamente reposto na finitude seja dada como presença de uma unidade conceitual una em si mesma, ao ponto de a determinação qualitativa de ser posto no ser para o outro – a externalidade que Hegel aponta como a “queda” recorrente do ser para si – seja sustentada como imediatamente somente momento interno da unidade autossubsistente do puro pensar. Novamente, portanto, segundo Beauvoir, faltaria uma ambiguidade nesse ser que é aí presente e atual precisamente na imediatidade da finitude do para si que é posto no ser aí ao mesmo tempo em que tem em si, nele, a negação ambígua desse momento que não é apenas momento interno, mas também de inerência no ser para o outro.

A partir de tais esclarecimentos, cabe retomarmos à definição de existência dada por Beauvoir em uma passagem anteriormente citada, em que é dito que o existir é uma positivação ambiguamente negativa de si mesmo. No volume II da Ciência da Lógica, “A doutrina da essência”, falando sobre o surgimento do essente em si e para si como existente Hegel diz:

A verdade do ser aí é, portanto, de ser condição; sua imediatidade é unicamente pela reflexão da relação de fundamento, que se põe ela mesma como suprassumida. Com isso o devir, do mesmo modo que a imediatidade, é apenas aparência do incondicionado, na medida em que este se pressupõe a si mesmo, e tem nisso sua forma, e a imediatidade do ser é, portanto, essencialmente, apenas momento da forma (Hegel, 2017, p. 129, destaque do autor).

Posteriormente, Hegel afirma propriamente que “[...] a existência é a imediatidade que surgiu do suprassumir da mediação que relaciona através do fundamento e da condição, imediatidade que, no surgir, suprassume justamente esse próprio surgir” (Hegel, 2017, p. 135). A existência é a totalidade imediata do ente que é aí como em si e para si na medida em que aparece já essencialmente determinado na esfera do ser, logo, a mediação condicionante do ser aí imediatamente suprassumida como seu surgir já foi momento posto como pressuposto da unidade conceitual incondicionada. Assim, sua imediatidade ser aí presente que só é porque é aí, seu ser aí como posto, assume imediatamente a própria forma total pressuposta que agora aí está se pondo a si como momento pressuposto de si. A imediatidade de existir aí do vir a ser como uma totalidade de aparecimento essencialmente refletida, é dada na forma da unidade simples na medida em que ela surgiu pela reflexão da mediação consigo mesma no seu ser outro determinado como ela mesma posta por si no seu momento negativo, uma unidade negativa que é imediatamente somente igual a si no seu ser outro de si.

Quando Beauvoir diz que a existência positiva a si mesma como falta, isso sendo a totalidade de emergência imediata aí de uma certa presença a si, a determinação qualitativa da negatividade “ser no ser para o outro” permanece – a existência é ambígua - justamente porque é ela, como o próprio Hegel já indica, que dá o emergir concreto do processo de vir a ser si mesmo, assumindo, portanto, agora contra Hegel, que esse emergir não pode ser imediatamente posto e sustentado por uma unidade simples consciência de si. Se o vir a ser existe aí como “[...] presença de carne e osso [présence de chair et d’os] [...]” (Beauvoir, 2013, p. 19) que emerge no movimento em que “por seu arrancamento do mundo [arrachement au monde] [...] se dá como presente no mundo e dá o mundo como presente a si” (Beauvoir, 2013, p. 17), essa imediatidade na forma geral de “ter uma condição de inerência da qual se arranca, ou estar posto em uma relação à distância na qual se toma como distância a si,” se positiva imediatamente – ambiguamente – como “fora de si” na medida em que a negatividade condicionante “ser para outro” só é elemento interno ao si enquanto ele é sempre também imediatamente dela devindo; mas não devém enquanto aquele que já pôs esse emergir na sua forma de ser unidade de si que se relaciona a partir da negação interna dessa relação, é devir como tendo de vir do ser aí posto fora de si como condição de ser um si mesmo aí concreto e determinado. Beauvoir não está, portanto, reivindicando uma condição primária de ser como pura negatividade a partir da qual teria início o movimento dialético de vir a ser si mesmo como presença. Trata-se, na verdade, da afirmação de que a totalidade dialética subjetividade em devir é ambígua já no seu emergir imediato aí, pois o momento negativo “ser para o outro” é imediatamente vir de uma condição de perda de si na qual é como posto e como se pondo em si a partir disso. O que desdobra uma segunda ambiguidade, pois o ser propriamente reflexivo como unidade de pensamento está à distância de si enquanto posto aí no ser para o outro e à distância do seu momento de já ter sido ambiguamente um si mesmo a partir do ser para o outro como seu momento em si.

É preciso destacar ainda que Beauvoir não está afirmando a ambiguidade em oposição à um caráter de completude ou fechamento supostamente presente na dialética hegeliana. Em Por uma moral da ambiguidade, ao falar da totalidade dialética, ela afirma que “[...] o encadeamento dialético dos momentos só é possível se houver em cada momento uma indeterminação dos elementos singulares tomados um a um” (Beauvoir, 2013, p. 182). Aqui, porém, ela está fazendo uma afirmação sobre a compreensão dialética em geral de Hegel, que se vincula à afirmação anterior de que “[...] sendo o espírito inquietude [...]”, “[...] o próprio Hegel não ousa iludir-se com a ideia de um futuro imóvel [...]” (Beauvoir, 2013, p. 146). Quer dizer, Beauvoir percebe corretamente que o processo de totalização hegeliana, na dimensão ser aí da experiencia da consciência de si e na dimensão objetiva como desenvolvimento histórico do espírito, é marcada por momentos de contingência que, enquanto negativos, mantem aberta essa totalidade no sentido de que a fragmentação continuamente reinstaurada no interior dessa totalidade é que a faz um processo recorrente e “inquieto” de totalização. Novamente, portanto, a ambiguidade indica uma oposição especificamente à emergência do ser aí concreto que, poderíamos dizer, já está anunciado como aberto pelo próprio Hegel como qualificando o vir a ser, porém apenas enquanto momento interno da consciência de si como unidade simples.

Neste momento, o retorno às anotações pessoais de Simone de Beauvoir nos permite maiores desdobramentos sobre essa discussão. Em uma carta para Sartre de 29 de janeiro de 1940[10], Beauvoir diz: “Também fiquei impressionada ao refletir sobre o quanto esta ideia hegeliana de um envolver da totalidade no nosso vir a ser individual é correta [cette idée hegelienne d’envelopper la totalité dans notre devenir individuel est juste] [...]” (Beauvoir, 2018, p. 181, destaque meu), e afirma que isso a fez relembrar uma conversa que teve com o próprio Sartre sobre “[...] qual sentido teria o ponto de vista da vida universal [...]” (Beauvoir, 2018, p. 182) para o vir a ser individual. Ela indica então que, apesar de antes concordar com Sartre e achar que “[...] este ponto de vista reconduziria tudo a uma espécie de indiferença absurda [...]”, sua perspectiva havia mudado ao assumir, pela “[...] influência de Hegel [...]”, que este lugar do individual “[...] é real [est réel] [...]” (Beauvoir, 2018, p. 182, destaque da autora).[11] Vemos uma mudança no que concerne à assunção de que, como ter um ponto de vista na universalidade é por envolvimento, é lugar de inerência, o universal não seria uma negação absoluta da singularidade desse “envolver”, logo, não seria posto um vazio de indiferença que presumiria que a determinação propriamente qualitativa e concreta foi negada em uma espécie de suspensão absoluta de relações.

À despeito da importância dessa passagem para o estabelecimento de diferenças significativas entre o pensamento de Sartre e de Simone de Beauvoir[12], o que ela nos apresenta de significativo para o desenvolvimento argumentativo deste trabalho, consiste precisamente no fato de que temos aqui indicada, ainda que somente como esboço inicial, a aceitação e crítica à Hegel que foi discutida anteriormente no seu modo mais desenvolvido. Ou seja, a concretude dialética da presença corpórea, na medida em que é posta a partir de uma condição de envolvimento como o aí do seu existir, pode ser dita ainda ambígua se for pensada como ponto de ancoragem e recuo de nadificação nessa mesma relação.

Podemos perceber ainda que a crítica de Beauvoir interna ao pensamento hegeliano, de que apesar da indicação da concretude da presença como passagem pelo outro de si qualitativa e renovada do vir a ser, essa dimensão em Hegel perde justamente tal concretude pois o que sustenta a base dessa perspectiva é o desenvolvimento da unidade espiritual na qual sujeito e objeto são idênticos, de modo que a presença do ser aí é “[...] apenas momento abstrato da História do Espírito absoluto” (Beauvoir, 2013, p. 129), aponta para uma questão também indicada por outros autores. Adorno, por exemplo, em Três estudos sobre Hegel afirma:

Embora a dialética demonstre a impossibilidade da redução do mundo a um polo subjetivo fixo e persiga metodicamente a negação e a produção recíprocas dos momentos objetivo e subjetivo, a filosofia de Hegel, enquanto filosofia do Espírito, permaneceu no idealismo. Apenas a doutrina da identidade entre sujeito e objeto inerente ao idealismo – que, segundo sua simples forma, antecipa-se a privilegiar o sujeito – outorga a ele aquela força da totalidade que permite o trabalho do negativo, a fluidificação dos conceitos particulares, a reflexão do imediato e então novamente a superação [Aufhebung] da reflexão. (Adorno, 2013, p. 82, destaque meu).

Temos ainda Lukács, que na sua obra sobre Hegel anteriormente citada diz:

[...] se a objetividade dos objetos é produto de um rompimento temporário do sujeito-objeto idêntico, é inevitável que o critério da verdade suprema do processo global residisse na demonstração da identidade entre sujeito e objeto, no alcançar a si mesmo do sujeito-objeto idêntico. Se a trajetória desse espírito, porém, parte de uma identidade original, que precisa ser pressuposta nessa construção, e o próprio processo consiste na criação da objetividade pela “alienação”, é absolutamente necessário que Hegel represente a obtenção da identidade entre sujeito e objeto na forma da [...] superação da objetividade como tal (Lukács, 2018a, p. 686, destaque meu).

Sem entrar nas considerações sobre as perspectivas particulares dos filósofos citados, o que importa para nossa discussão consiste no fato de que ambos estão apontando o mesmo problema em Hegel, que só pode ser indicado simultaneamente à uma concordância com a dialética e à percepção, portanto, de um problema inerente à sua premissa idealista. Tanto Adorno quanto Lukács, com propósitos diversos relativos a seus respectivos desenvolvimentos teóricos, estão afirmando que, ao mesmo tempo em que Hegel indica a necessidade de uma relação dialética entre sujeito e objeto, que faz com que a totalidade consciência de si que é aí tenha na objetividade a alienação de si necessária e recorrentemente reinstalada, pois a relação entre os polos não é fixa e o rompimento da totalização de vir a ser si mesmo sempre retorna, como há a premissa idealista de prioridade do si mesmo como reflexão una em si no pôr-se aí imediatamente na objetividade, há um momento, ainda que temporário, de unificação plena sujeito e objeto justamente como fundamento da emergência na objetividade. Trata-se, como vimos, do mesmo problema apontado por Simone de Beauvoir a partir seus próprios termos, em que ela chama atenção para a ambiguidade da presença corpórea como uma inerência à distância.

Por isso, segundo Beauvoir, “[...] não é preciso pensar uma situação para a existir [pour l’exister]” (Beauvoir, 2016b, p. 14, destaque da autora), na medida em que existir na situação é ter uma condição ambígua de presença corpórea. Deste modo, aquilo que se configuraria como a experiência vivida do vir a ser individual é ter um “fundo comum a partir do qual se retira [fond commun sur lequel s’enlève] toda existência [....] singular” (Beauvoir, 2016b, p. 9, destaque meu), na qual o vivido não seria uma imediatidade plena em si mesma de pura presença de ser, o que não seria dialético, na medida em que o “fundo comum” da objetividade não seria seu momento em si como envolvimento necessário ao outro de si. O vivido também não é uma totalidade negativa que chegou brevemente a se positivar na relação à perda de si situada, ao ponto de a situação deixar de ser solo concreto de inerência qualificativa desse vivido, no qual não haveria a ambiguidade do envolvimento como momento interno e condição da qual “se arranca”.

Por sua vez, é também a partir da situação que podemos retomar a questão do reconhecimento das consciências que, na passagem do Journal de Guerre com a qual foi iniciada a discussão deste texto, Beauvoir disse ser a “ideia” hegeliana que lhe chamou atenção e que ela aceitou juntamente à afirmação da distância a si. Em uma anotação posterior a tal trecho, Beauvoir esclarece que a exigência de reconhecimento das consciências umas pelas outras quer dizer, fundamentalmente, que “se o valor destas consciências desaparece, o valor da minha também deixa de existir” (Beauvoir, 1990, p. 365), e que isto está “[...] intimamente ligado ao social [...]” (Beauvoir, 1990, p. 365). Dado que o ser para o outro é a mediação ambígua necessária ao vir a ser si mesmo, é ela que se desenvolve como a totalidade social histórica a partir da qual cada presença concreta tem a possibilidade de retornar a si qualificada pelo ser que lhe é dado como a exterioridade de generalidade na qual ele possui um “lugar” de ser reconhecido, o que já está indicado pelo próprio Hegel, quando afirma que “A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra: quer dizer, só é como algo reconhecido” (Hegel, 2014, p. 142). No entanto, Beauvoir afirma ainda que “[...] esta relação ao outro em sua complexidade existencial [complexité existentielle] [...]” (Beauvoir, 1990, p. 364), que é posta pela “situação individual [...] e sua relação com o social (Beauvoir, 1990, p. 363, destaque da autora)”, implica que “um pensamento social deve deliberadamente tomar os homens como objeto. (A consciência sendo neste objeto, mas enquanto tornada passiva [mais comme passivisée])” (Beauvoir, 1990, p. 364, destaque meu).

Nessas anotações iniciais, ainda que não haja o desenvolvimento da compreensão da presença corpórea ambígua, em que a necessidade ontológica do si mesmo de ter seu ser dado para um outro advém da perda de si de inerência e distanciamento que o põe na objetividade como ser aí objetivo, Beauvoir já está assumindo a premissa geral hegeliana do ser para o outro e sua implicação para o reconhecimento, porém, com algumas indicações específicas próprias: 1- a consciência de si, utilizada aqui pela autora ainda de modo hegeliano para falar da forma geral do vir a ser, é existencialmente situada também como objeto passivo no ser para o outro, ela tem um ser reconhecido porque existe enquanto posta como objeto para a objetividade em que está situada à despeito de seu movimento de pôr-se a si mesma para si; 2- ainda que ela não seja um ser meramente dado ao ser também “[...] aquilo em direção ao qual ela se transcende [...]” (Beauvoir, 1990, p. 362), este movimento da consciência sempre continua partindo desta condição de também já estar entregue passivamente à sua situação como ser reconhecido[13]. Portanto, percebe-se novamente como Beauvoir assume, desde o início, uma base dialética hegeliana ao mesmo tempo em que concebe internamente à esta base uma outra forma de pensar a relação ser si mesmo e ser para o outro, caracterizada pela entrega passiva e ambígua à situação.

A questão da ambiguidade em Beauvoir se desdobra mais ainda se nos atentarmos ao fato de que, em paralelo à sua leitura de Hegel, a filósofa também se voltava para Marx. Como Sonia Kruks aponta, “não é exagero dizer que de 1940 em diante o marxismo permaneceu um núcleo de constituição integral e vital das orientações político-intelectuais de Beauvoir” (Kruks, 2107, p, 237), especificamente no modo em que “a vida ‘material’ no seu sentido marxista é [...] fortemente constitutiva das situações [...]” (Kruks, 2017, p. 237), de modo que Marx ofereceria “[...] compreensões fundamentais acerca dos aspectos materiais da existência humana” (Kruks, 2017, p. 239). O texto decisivo para este ponto da discussão consiste nos Manuscritos econômico-filosóficos[14], mais especificamente, a parte em que Marx estabelece uma crítica à Hegel.

No capítulo intitulado “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”, após afirmar que a “[...] grandeza da ‘Fenomenologia’ hegeliana [...]” consiste na afirmação da “[...] negatividade enquanto princípio motor e gerador [...]” (Marx, 2015, p. 123) Marx analisa criticamente a forma em que a objetividade é posta no processo de objetivação da consciência de si nesta perspectiva dialética. Assim, Marx afirma que o problema específico consiste no fato de que “[...] o objeto da consciência nada mais é do que a consciência de si, ou que o objeto é somente a consciência de si objetivada [...]. (Assentar do homem = consciência de si)” (Marx, 2015, p. 124, destaque do autor). Em última instância a “[...] coisidade de maneira alguma é, portanto, [algo] autônomo, essencial, diante da consciência de si, mas sim uma simples criatura, um [algo] posto [Gesetztes] por ela, e o [algo que é posto], ao invés de confirmar-se a si mesmo, é apenas uma confirmação do ato de pôr [...]” (Marx, 2015, p. 126, destaque do autor) da consciência no seu processo de vir a ser si.

Podemos ver, portanto, que o problema central apresentado por Marx consiste em que não haveria uma efetividade realmente independente do pôr-se para si da consciência, há um si unidade simples pressuposta que se fragmenta e se reúne, e não há um ter sido fragmentado pelas condições postas praticamente pois não há uma experiência de determinação do vir a ser que não seja reunir tudo em unidade conceitual justamente em sua efetividade concreta como ser objetivo. Dado o pressuposto idealista de Hegel, ser efetivo é somente ser como pensar especulativo, de tal modo que a efetividade mesma como uma concretude determinante sobre a consciência de si deixa de existir, não porque ela perderia plenamente sua independência como algo em si mesmo diante da consciência, ou porque deixaria de ser momento necessário da fragmentação dialética do movimento negativo de vir a ser si mesmo, o problema consiste no fato de que não há uma determinação posta como efetividade concreta que ponha e qualifique como sendo aí a consciência de si independentemente do seu movimento de pôr-se a si mesma mas se realizando junto à tal pôr-se a si.

Tais considerações estão chamando a atenção exatamente para o mesmo problema que foi discutido anteriormente a partir da leitura que Simone de Beauvoir faz de Hegel. No entanto, Marx é ainda mais específico no desenvolvimento de sua crítica, especificidade essa que também se mostra significativa para a questão da ambiguidade em Beauvoir. Segundo Marx:

Quando o homem efetivo, corpóreo, com os pés bem firmes sobre a terra, [...] assenta suas forças essenciais objetivas e efetivas [...], esse [ato de] assentar não é o sujeito; é a subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação, por isso, tem também que ser objetiva. [...] Ele cria, assenta apenas objetos, porque ele é assentado mediante esses objetos [...] (Marx, 2015, p. 126, destaque do autor).

Mais à frente, temos ainda:

O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; [...] por outro lado, enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, dependente e limitado [...]. Que o homem é um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível, significa que ele tem objetos efetivos, sensíveis como objeto de seu ser [...]. É idêntico: ser (sein) objetivo, natural, sensível e ao mesmo tempo ter fora de si objeto, natureza, sentido, ou ser objeto mesmo, natureza, sentido para um terceiro (Marx, 2015, p. 127, destaque do autor).

Na perspectiva de Marx, a imediatidade já mediada do ser aí como ser objetivo, é posta pela dimensão sensível e, portanto, corpórea do indivíduo, momento em que ele é posto como objeto para algo outro de si. Não é por acaso, portanto, que ele chame esse pôr-se a si como um “assentamento” na objetividade que é simultaneamente um “ser assentado” por ela, na medida em que ser objetivo para si mesmo é idêntico dialeticamente a ter sido posto na própria objetividade como uma efetividade independente deste si mesmo e que o qualifica nesta independência dialética diante dele. Por isso, o apontamento anterior crítico de que o “assentar” ou “pôr-se a si” seja hegelianamente pensado como completamente igual ao pôr-se a si da consciência de si independente em si mesma, de modo que, em última instancia, não ocorreria propriamente um assentamento/ser posto da consciência independente dela, na medida em que ela não seria objetivamente posta para uma outra efetividade que não ela. Para a consciência de si hegeliana o “saber é o seu único comportamento objetivo” (Marx, 2015, p. 129, destaque meu), de tal modo que o seu ser para a objetividade se resume à esta subsumida na forma do saber “distingue de si e se relaciona” da consciência de si; portanto, desaparece a dimensão de ser enquanto objeto para a objetividade, o ser aí como a qualidade de ser enquanto “[...] objeto de outro ser [...]” (Marx, 2015, p. 127).

Concordando com Lukács ao afirmar que, para Marx, “a ilusão idealista de Hegel surge [...] precisamente porque o processo ontológico do ser e da gênese é aproximado em demasia do processo do compreender [...]”, de modo que “[...] esse último chega a ser entendido como um substituto e até mesmo como uma forma ontologicamente superior do primeiro” (Lukács, 2018b, p. 88), podemos marcar a importância dessas passagens dos Manuscritos. O processo ontológico determinante do ser da consciência de si hegeliana é, como vimos, igualado, ainda que “[...] só por um momento [...]” (Marx, 2015, p. 126), ao processo de totalização especulativo da compreensão conceitual, de modo que, ao chamar a atenção para a concretude do desenvolvimento corpóreo e sensível do indivíduo “[...] com os pés bem firmes sobre a terra [...]” (Ibidem, p. 126), Marx afirma que a negatividade dialética na objetividade é uma espécie de se assentar/se pôr e ser assentado/ ser posto por ela.

A importância disso para a discussão deste trabalho sobre Beauvoir é, portanto, dupla. Primeiramente, temos que, a sua preocupação com a concretude da presença corpórea situada assume um posicionamento crítico em relação à Hegel precisamente na indicação do ser aí efetivo como uma condição de envolvimento e inerência com a espessura do seu existir, e isto se mostra estruturado com base na crítica marxista presente nos Manuscritos. Além disso, e sendo mais específico, a ideia geral de ambiguidade como indicativo desse envolvimento dialético corporalmente presentificado, a determinação ontológica de ter de vir do ser para o outro objetivo nele posto também como objeto, se mostra como um desenvolvimento existencial da afirmação de Marx de que o ser aí efetivo é um “se pôr” e “ser posto” simultâneo no próprio vínculo com a objetividade, em que o momento de ser objeto posto para a objetividade como ser objetivo nela não é meramente interno à síntese de si como devindo aí, mas é simultaneamente e imediatamente o próprio ponto de partida objetivo desse devir que é corpóreo e sensível.[15]

Em suma, me parece possível sugerir que o posicionamento de Simone de Beauvoir em relação à Hegel, tal como foi exposto anteriormente neste trabalho, que implica uma aceitação geral da dialética hegeliana juntamente à sua crítica, especificamente no distanciamento de si ambíguo no processo de vir a ser si mesmo como presença corpórea, se dá na medida em que ela assume igualmente a base geral da crítica marxista discutida acima. De tal modo que a positivação ambígua da existência como falta e toda a discussão que isso implica em relação à experiência vivida da presença, seria uma espécie de desenvolvimento de uma filosofia existencialista a partir da dialética hegeliana e mediada pelo posicionamento de Marx que chama a atenção para o problema de se presumir que ser efetivo é se por aí somente como consciência de si, que, em Beauvoir, aparece como a indicação de que o vir a ser si mesmo tem na espessura de “[...] ambiguidade de sua condição [...]” (Beauvoir, 2013, p. 12) corpórea a perda de si mediadora no ser para o outro na mesma medida em que tem isso à distância em si mesma; afinal, “[...] o corpo é desde o início a difusão de uma subjetividade [le corps est d’abord le rayonnement d’une subjectivité] [...] que efetua a compreensão do mundo” (Beauvoir, 2016b, p. 13).

Neste sentido, a afirmação de que a dialética de Hegel é um momento incontornável no processo de compreensão de como Simone de Beauvoir pensa a ambiguidade existencial encontra-se justificada. Pode-se dizer, em última instância, que Beauvoir toma uma distância em relação à filosofia de Hegel a partir da inerência a ela como ponto de partida, e é nessa distância que se apresenta a crítica de Marx, a partir da qual a filósofa desenvolve suas considerações próprias que, dialeticamente, retornam e apontam continuamente para seu “solo” ambíguo hegeliano.

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Nathan Menezes Amarante Teixeira

Doutor em filosofia pela UFRJ (2020), realiza pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea, com foco em Ética, Filosofia Política e Ontologia, principalmente a partir de Kant, Hegel, Marx, Lukács e Simone de Beauvoir. Atualmente é professor substituto no Departamento de Filosofia da UNIRIO.

Agradecimentos

Esta pesquisa foi realizada com apoio financeiro da Faperj, durante a bolsa de Pós-doutorado Nota 10 desenvolvida de 2021 até 2024 junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ.

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] As anotações pessoais de Simone de Beauvoir, realizadas entre 1926 e 1930, encontram-se publicadas como Cahiers de jeunesse, a partir da organização dos manuscritos por Sylvie le Bon de Beauvoir, após sua morte. O Journal de Guerre consiste em uma publicação à parte, que apresenta as anotações que Beauvoir fez de 1939 a 1941. Como explica Sylvie le Bon, na introdução do Journal: “Este diário relativo à declaração e início da guerra (sete cadernos), se constitui como um fragmento do diário que Simone de Beauvoir mantêm desde sua juventude, praticamente desde sua infância, ainda que de maneira intermitente. É preciso considerá-lo como momento de um todo significativamente mais vasto. Mas sua publicação isolada foi concebida como um complemento à sua correspondência com Sartre, em que mais da metade pertence ao mesmo período sombrio de 1939 e 1940” (Beauvoir, 1990, p. 9).

[2] Nesta anotação Simone de Beauvoir diz: “Na quarta-feira, dezessete de julho, escrevi as cartas e redigi algumas notas [...], depois fui à Bibliothèque Nationale que abre atualmente a partir das dez horas da manhã. Hegel. Abordei a Lógica” (Beauvoir, 1990, p. 350).

[3] É importante indicar que em seu primeiro ensaio filosófico, Pirro e Cinéias, Beauvoir faz referência à situação enquanto engajamento prático do corpo no mundo, como um “solo” no qual se está “[...] encerrado até a morte [...]” (Beauvoir, 2013, p. 213), de tal modo que poder-se-ia dizer que na situação “[...] está engajada sua própria carne [est engagée sa propre chair]” (Beauvoir, 2013, p. 305).

[4] Não será feita aqui uma análise detalhada das obras hegelianas citadas, nem da relação entre a Fenomenologia e a Lógica. O uso das passagens de Hegel de ambas as obras visa somente esclarecer como o ser para outro é momento dialético determinante para a síntese da consciência de si como em si e para si, assim como o desdobramento desse momento na abertura do ser aí concreto dessa consciência de si.

[5] “[...] um suprassumido é[...] um mediado, é aquilo que não é, mas como resultado que partiu de um ser; ele tem, portanto, ainda em si, a determinidade da qual provém” (Hegel, 2016, p. 111, destaque do autor).

[6] Hegel em Ciência da lógica vol. I, por exemplo, afirma que buscou apresentar na Fenomenologia do espírito “[...] a consciência [...] enquanto algo concreto e, na verdade, o saber preso na exterioridade [...]” (Hegel, 2016, p. 29). Portanto, as experiencias fenomenais descritíveis da consciência de si tem sempre a dimensão de experiência formadora de si mesmo e são, por isso, momentos objetivos externos ao si mesmo que já lhe são constituintes como determinações concretas de sua história.

[7] Em suma, após o desenvolvimento do saber puro como ponto de chegada da Fenomenologia do Espírito, Hegel pretende analisar o desenvolvimento conceitual das formas necessárias do pensar em suas conexões, como base de desenvolvimento ontológico do espírito humano.

[8] Esclarecendo a questão ontológica implicada na Lógica de Hegel temos, por exemplo a afirmação de Lukács: “[...] a lógica hegeliana [...] não pretende ser uma lógica no sentido escolar da palavra, uma lógica formal, mas uma indissolúvel unidade espiritual de lógica e ontologia: por um lado as verdadeiras conexões ontológicas recebem em Hegel sua expressão adequada no pensamento tão somente na forma de categorias lógicas; por outro lado, as categorias lógicas são concebidas como simples determinações do pensamento, mas devem ser entendidas como componentes dinâmicos do movimento essencial da realidade, como graus ou etapas no caminho do espírito realizar a si mesmo” (Lukács, 2018b, p.198).

[9] “A consciência vai determinar sua relação ao ser-outro ou a seu objeto, de maneiras diversas, conforme a etapa, em que ela se encontre, do espírito do mundo que-se-torna-consciente de si. O modo como o espírito do mundo em cada caso imediatamente encontra e determina a si mesmo e a seu objeto – ou como ele é para si – isso depende do que já veio-a-ser, ou do que já é em-si” (Hegel, 2014, p. 174, destaque do autor).

[10] As cartas entre Simone de Beauvoir e Sartre foram publicadas separadamente em dois volumes, como um momento específico interno às anotações pessoais que Beauvoir fez desde sua juventude.

[11] O trecho completo citado é: “Também fiquei impressionada ao refletir sobre o quanto esta ideia hegeliana de um envolver da totalidade no nosso vir a ser individual é correta – pois quando nos preocupamos em realizar uma obra é certo que a observemos em si mesma como um momento do devir total em que todo o passado se realiza e que está em ligação efetiva com todo o porvir. Me recordo de uma conversa no ‘Luís XIV’ para sabermos se nós pensamos a nós mesmos ou não a partir dos limites de uma vida humana e nosso questionamento sobre qual sentido teria o ponto de vista da vida universal, ponto de vista que excluiria a limitação da morte e a dimensão de ser-para-a-morte da vida. Nos parecia então que este ponto de vista reconduziria tudo a uma espécie de indiferença absurda. Mas já não penso mais assim; em suma, este ponto de vista é real, e a influência de Hegel em conjugação com alguns acontecimentos me fizeram adotar desde o interior, pela primeira vez na minha vida, esta atitude [...]” (Beauvoir, 2018, pp. 181-182, destaque da autora).

[12] Não será discutida aqui a diferença entre Simone de Beauvoir e Sartre, contudo, é preciso afirmar, ainda que brevemente, que a filosofia hegeliana em geral, e a dialética em particular, se mostra como um ponto central desta discussão. Quer dizer, a relação entre os momentos de ser e nada em Sartre, tal como vemos deste a Transcendência do ego mas que se mostra mais desenvolvida em O ser e o nada, é uma relação não dialética. Justamente por isso que Sartre vai afirmar que há uma oposição radical entre o ser em si externo à consciência para si, em que não há “[...] nenhuma única parcela de ser que seja distância em relação a si [...]” (Sartre, 2016, p. 130), e a negatividade para si da consciência como presença a si que traz ativamente o nada em seu ser, o que a coloca como distanciada da opacidade do ser em si pleno exterior. Assim, “[...] se a oposição é radical e se o em-si é o ser, então o para-si, sendo fundamentalmente outro que não o em-si, só pode ser nada” (Bornheim, 2016, p. 38). O que se desdobra na consideração de que “meu ser-para-outro é uma queda através do vazio em direção à objetividade [...] esta queda é alienação” (Sartre, 2016, p. 378). Não tendo uma dimensão em si como relação determinante de ser nela mesma enquanto retorno do ser para o outro, a consciência sartreana sustenta como vazio pleno de ser que se determina enquanto tal, como um nada de ser absoluto em relação à plenitude em si, sua passagem meramente exterior e secundária pelo ser para o outro. O que se mostra em clara oposição à perspectiva da ambiguidade em Simone de Beauvoir que está sendo discutida aqui.

[13] Dado os limites deste texto e sua preocupação principal, a passagem pela questão do reconhecimento hegeliano em Simone de Beauvoir não será desenvolvida. Entretanto, é importante fazer-se menção ao modo em que isto é trabalhado por Mariana Teixeira em seu artigo “Ambiguidade e dilaceração: Simone de Beauvoir, leitora de Hegel e Kojève”. A autora apresenta a questão do reconhecimento a partir do modo em que esta aparece em O segundo sexo, particularmente no momento em que Beauvoir está fazendo referência ao conflito entre duas consciências de si que tendem a pôr aquela que lhe é outra no lugar do Outro como negativo para si. Após afirmar que a leitura que Kojève faz de Hegel, de saída despreocupada com sua significação propriamente hegeliana, privilegia uma ideia de transcendência como libertação absoluta da imanência (Teixeira, 2022, p. 34), da dimensão de ser em si para um outro, Mariana mostra a diferença significativa da compreensão de Simone de Beauvoir. Segundo a autora, Beauvoir diferiria de Kojève justamente por conta da sua premissa da ambiguidade existencial, em que a relação entre transcendência - vir a ser para si mesmo - e imanência - estar em si mesmo ligado imediatamente ao ser para o outro - é uma mediação contínua pois “[...] a transcendência só pode ser alcançada mediante, e não contra, a imanência” (Teixeira, 2022, p. 36, destaque da autora), e isto pelo fato de que é como corpo que se dá a dimensão de ser situado no mundo; a humanidade sendo, portanto, “[...] um devir histórico marcado por essa ambiguidade fundamental” (Teixeira, 2022, p. 37). Neste ponto, portanto, Beauvoir estaria se aproximando de Hegel mais do que Kojève. Assim, é importante destacar que a leitura sustentada aqui neste texto encontra uma afinidade de enquadramento teórico com tal comentário; enquanto aqui é posto foco na explicação da forma específica em que a dialética da consciência de si hegeliana se faz base de aproximação e distanciamento para a ambiguidade existencial de Simone de Beauvoir, Mariana Teixeira apresenta em seu artigo uma aproximação geral similar entre ambiguidade e dialética, mobilizada, por sua vez, pela centralidade dada à questão do reconhecimento e em como isso é importante para as questões específicas de O segundo sexo.

[14] Como aponta Mark Poster (1975, p. 42), a leitura de Marx na França inicia-se fundamentalmente a partir da publicação da tradução de fragmentos dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 no primeiro volume de Revue marxiste, coordenada por Henri Lefebvre e Nobert Guterman, também responsáveis pelas traduções. Para maiores considerações sobre a ambientação política e intelectual de Simone de Beauvoir em relação ao pensamento de Marx e, particularmente, em relação à “leitura oficial” de Marx sustentada pelo Partido Comunista Francês, ver Sonia Kruks, 2017, pp. 236-238.

[15] Compreende-se, portanto, porque a crítica de Beauvoir a Hegel se encontra, como visto, com a leitura de Lukács e Adorno. Assim como ambos os filósofos, Beauvoir parte da premissa de que a leitura de Marx da dialética hegeliana justamente enquanto materialista, apresenta um problema em Hegel impossível de ser ignorado: a unificação entre sujeito e objeto a partir do próprio sujeito como unidade ideal autosubsistente, dissolvendo sua concretude dialeticamente anunciada em si mesmo como uma unidade simples pressuposta.