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Resenha

Book Review

Matos, Andityas Soares de Moura Costa. A Filosofia como forma-de-vida: uma introdução ao estoicismo greco-romano. São Paulo: Edições Loyola, 2023, 398 pp, ISBN 978-6555042-412.

Afonso Junior Ferreira de Lima

0009-0008-1240-1289

afonsojrf@gmail.com

UnB – Universidade de Brasília

Recebido: 28/06/2024

Received: 28/06/2024

Aprovado:03/07/2024

Approved: 03/07/2024

Publicado: 16/09/2024

Published: 16/09/2024

A partir de vasta revisão bibliográfica e estudo das fontes primárias, o professor Andityas Matos estabelece um panorama amplo e detalhado da filosofia estoica, abrangendo suas diversas recepções na Antiguidade (nos mais de 500 anos em que foi ativa a escola), os campos em que desenvolveu pesquisas, convergindo para uma análise de suas teses sobre política e sociedade.

Logo no começo, apresenta o que chama de “os três estoicismos”, tendo o primeiro surgido no século IV a.C. com Zenão, o fenício, e tendo prosseguimento com seu discípulo Cleantes e com Crisipo (falecido em torno de 208 a.C.); o segundo, chamado “estoicismo médio”, surge no contexto da circulação de teorias diversas pelo mundo helenístico (e o ecletismo decorrente) e pela expansão romana no século II a.C., tendo como expoentes Panécio de Rodes, Posidônio e Cícero; o terceiro, chamado “estoicismo imperial” ou “novo estoicismo”, tem como destaques Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, apresentando material mais acessível e preservado, e teria dado ênfase à Ética.

Já que não se trata de um sistema criado por um único pensador ou mesmo girando em torno de uma figura central, um dos desafios que envolvem a apresentação de uma doutrina estoica coerente é o caráter fragmentário de muitos textos sobreviventes e a diversidade dos contextos (e das disputas) em que os autores criaram: de certa forma, cada pesquisador é convidado a preencher as lacunas e dar forma ao “seu” estoicismo (o que é visível nas fontes secundárias). O autor também visa demonstrar como a escola tenta realizar uma espécie de avaliação e seleção das teses disponíveis no ambiente erudito clássico e helenístico, buscando a coerência e a simplicidade de acordo com princípios bem definidos – ainda que teses aristotélicas e platônicas sejam mais tarde absorvidas. Dessa forma, o Pórtico rejeita tudo que lhe parece desnecessário ou absurdo, cria novos conceitos e atinge, na sua transformação constante, grande coesão interna e poder de persuasão.

No campo da física, uma das novas ideias é o conceito de “algo” (tò ti), para abrigar “quase-seres” que representam condições para processos físicos (o tempo, o espaço, o vazio) e o “exprimível” (lektón), que poderíamos aproximar da Filosofia da Linguagem – o “algo” englobaria o “ser” de Aristóteles e esses incorpóreos. Ainda nesse campo, o lógos englobaria phýsis e nomos, aparecendo, no continuum universal, como reflexo ou duplo do ser racional, o nosso “sujeito”. As leis inteligíveis do cosmos são modelo e semente para o agir do ser humano. Para Crisipo, o daémon que habita cada indivíduo reflete a harmonia que governa o Universo.

Afirma o autor: “Ao assumir que tudo é corpo, a Stoá não limita a esfera de suas investigações. Ao contrário: para nela inserir elementos intangíveis como a alma e as virtudes, os estoicos acabam por corporalizar todo o universo, pois para eles, corpo é tudo que pode agir ou sofrer ações”... (p. 85).

No campo da lógica, inaugura-se uma lógica fenomênica, em que prevalecem relações temporais expressando ações e eventos: não “Sócrates é”, mas “Sócrates faz...”, portanto, não “todo A é B”, mas “se A, então B...”

No campo da moral, a obra de Panécio, que publicou seu Dos convenientes em torno de 138 a.C., teria dado ênfase às “condutas convenientes” e colocado em segundo plano o estudo da metafísica, o qual, desde Platão, seria um pressuposto para o conhecimento dos deveres morais. Sêneca representaria esse momento de sedimentação da interiorização da moral, em que o exame da consciência se colocaria, por exemplo, como interrogação diária: no que melhorei hoje? A que paixões e males consegui resistir? Estou progredindo moralmente? (p. 166). “Conhecer a própria natureza” seria, então, ser “juiz criterioso de suas próprias qualidades e defeitos”, como propõe Cícero em Dos deveres (p. 167). Podemos perguntar, entretanto, se o aqui chamado “radicalismo” do estoicismo grego (“a sabedoria perfeita grega”) – no qual somente o sábio teria a verdadeira virtude, pois para “alcançar o bem supremo [seria] necessário ser virtuoso em todos os atos da vida” (p. 156) – não se refere antes a um conceito operativo para fomentar a constante atenção aos nossos julgamentos, evitando que o estado de espírito seja influenciado pelas situações instáveis.

As paixões seriam essas forças capazes de rebaixar o ser humano a níveis inferiores – esses movimentos desordenados da alma aparecem como julgamentos incorretos em Crisipo e resultados de julgamentos incorretos em Zenão (p. 177). Não existiria um “outro eu” interior capaz de ser responsabilizado pelos atos morais. Aqui parece haver pouca ênfase sobre a obra de Possidônio, que refletiu sobre essa questão, propondo, sob influência platônica, três potências da alma: racional, irascível e apetitiva. Epicteto será grandemente marcado por esse desenvolvimento da teoria.

Ao tratar sobre destino e liberdade, é dito que Teodoro (bispo do século IV) afirma ser o destino para Zenão uma força que move a matéria, enquanto, segundo Estobeu (compilador do século V), para Crisipo, se identificaria com a racionalidade do mundo, mais próximo a uma estrutura que garantiria a ordem cósmica. De qualquer forma, colocar-se-ia a contradição aparente: como a autonomia do sábio (autárkeia) se relaciona com o inevitável do fatum?

O autor vai demonstrar (citando, por exemplo, a pesquisadora Susanne Bobzien em Determinism and freedom in Stoic Philosophy) que, diferente da nossa percepção de causa e efeito, que vê os dois elementos como parte de um mesmo plano ontológico, na filosofia estoica seriam apenas corpos que agem sobre outros corpos (o fogo e a madeira, por exemplo) e seu “efeito” (ser queimada) seria tão somente um predicado imaterial que habita a linguagem, um lektón que subsiste no pensamento.

Desse modo, uma contínua comunicação entre causa e efeito em uma cadeia ininterrupta, como nos modernos causalismos, torna-se impossível. À crítica recebida já na antiguidade de que ver o mundo guiado por uma racionalidade intrínseca seria demonstrar sua duvidosa perfeição, poderia se contrapor que nem todas as partes do cosmos manifestam suas potencialidades da mesma forma e que os seres humanos não têm o conhecimento perfeito de todas as causas, cabendo-lhes apenas agir da melhor forma de acordo com a natureza. Poder-se-ia dizer ainda que, estando eles igualmente permeados de lógos divino, são também agentes do destino. Como descreve Crisipo (de acordo com Plutarco) “é necessário que sejamos como somos” (p. 196). A imagem de uma corrente de causas, entretanto, não se aplica, porque há inúmeras causas concorrentes participando em complexos processos causais, sendo a teia cósmica uma imagem mais adequada (p. 200). Pode ser que a melhor abordagem seja buscar qual o objetivo das formulações sobre o destino, ao invés de tentar achar um sistema dedutivo sobre a causalidade: partindo de uma abordagem concreta de modo de vida, o estoicismo pode visar, por exemplo, a recomendação de “impassividade” frente às mudanças da fortuna e o evitar ao desejo, o medo e o prazer irracionais e ao sofrimento.

Segundo o autor, no período das tiranias helenísticas, o estoicismo questionou a relação platônica tradicional entre a liberdade e a corrupção da democracia, assim como a resolução do conflito entre ricos e pobres pela submissão à aristocracia, lutando contra a dominação macedônica e chegando a propor uma sociedade sem classes, sem propriedade privada e sem dinheiro, como fez Zenão na sua Politéia. “Fato é que a reflexão sobre a liberdade – interior e política – apenas ganha força na Grécia graças aos estoicos” (p. 306).

Segundo o autor, o pensamento político do Pórtico teria se desenvolvido desde um criticismo utópico até um conservadorismo baseado em tradições e costumes legitimador de Roma e seu império. Alguns dos fatores envolvidos nessa nova abordagem seriam, por exemplo, a ênfase, entre os romanos, na Ética em detrimento da Física e da Lógica, colocando em segundo plano a “natureza universal”; e o rechaço às demais filosofias gregas por entrarem em atrito com tradições romanas – seja por serem vistas como relativistas, hedonistas ou fomentadoras de impiedade – o que teria aberto espaço para filosofias mais ligadas a uma “verdade imutável”. Ainda que se possa imaginar que devido à sua difusão, o estoicismo tenha tido uma recepção muito variada, é notório que muitos de seus nomes mais célebres foram exilados ou condenados à morte, quando não optaram pelo suicídio frente à tirania. Se, em Epicteto, por exemplo, não seria razoável esperar um confronto aberto, esse espírito capaz de abandonar a própria vida em nome de seus ideais é essencialmente radical, o que mesmo em Marco Aurélio, em sua luta pessoal para acomodar-se ao dever, é visível.

Quando analisa a questão da justiça no pensamento estoico (o autor é também doutor em Direito), é dito que o debate grego se centra na lei natural do lógos, dando ênfase à postura radical do sábio que serve aos interesses da comunidade (Zenão e Crisipo seriam fortemente críticos em relação às leis das cidades), enquanto em Roma se pensa mais na relação entre lei positiva e virtude – em certos casos, por exemplo, bastaria seguir a lei positiva, estabelecendo-se diferença entre o justo legal (iustum) e o justo moral (aequum). O legal pode ser complementado mediante o apelo “à moralidade extralegal do equitativo e do razoável” (p. 341). Panécio teria sido responsável pela fusão dos conceitos de iustitia (justiça) e aequitas (equidade), centrando no cumprimento de pactos e contratos sua doutrina. Ainda assim, se deveria observar não apenas o aspecto literal do texto, mas seu sentido baseado na equidade e boa-fé. Desse modo, se estaria superando a visão aristotélica de justiça, baseada no plano objetivo da medida (justo é dar a cada um segundo seus méritos [axía]), e apareceria o plano subjetivo do indivíduo, focando-se na racionalidade que regula situações de conflito entre indivíduos materialmente desiguais.

O livro também apresenta interessante trabalho sobre o desenvolvimento do conceito de liberdade interior. A liberdade na tradição grega e romana estaria, em geral, relacionada a um status jurídico, ou seja, como colocará Justiniano, seria “um bem (res) de classe” (p. 358). Para o Pórtico, levando em conta a igualdade intrínseca aos seres humanos dotados de razão e destinados à convivência na Cosmópolis (a pátria universal), a liberdade não seria um atributo do cidadão, instrumento de segregação, mas uma potência relacionada à capacidade de escolha humana, apontando à união dos seres humanos. Toda essa terceira parte do livro, relacionada à Política Estoica – sua influência no Direito Romano e as adaptações que vai sofrendo – é rica e detalhada.

Durante todo o texto, é visível a erudição e amplitude das pesquisas do autor, como fica claro nas referências a autores cristãos, a Spinoza, Kant, Montaigne e Borges, por exemplo. Importante síntese de uma doutrina em toda sua complexidade – no campo da Física, da Lógica, da Ética, assim como em uma reflexão sobre o conceito de destino e nos seus efeitos políticos em diversos cenários, como utopia, como resistência à tirania, como participação política – a pesquisa resulta em material rico e interessante. Parece que, sendo focada a narrativa numa transformação em direção à ideia de “liberdade interior”, que teria em Epicteto seu coroamento, já que aqui ser livre seria igual a não ser arrastado pelo que é exterior ao pensar, e na “humanização” da teoria na era romana, que teria ocorrido, por exemplo, com a proposição do sábio virtuoso como um “ideal regulativo” ou modelo (não ser Sócrates, mas agir como Sócrates no dizer de Epicteto), em algumas passagens, pode-se questionar se essa estrutura favorece os criadores da doutrina e se as experiências do estoicismo grego mereceriam ser vistas no seu próprio contexto e assim valorizadas. O livro, entretanto, é um achado singular num ambiente tão carente de literatura sobre o tema e deve servir de introdução a novos pesquisadores que se proponham a colocar novas perguntas ao material preservado do Pórtico das Pinturas.

Referências Bibliográficas

Matos, Andityas Soares de Moura Costa. A Filosofia como forma-de-vida: uma introdução ao estoicismo greco-romano. São Paulo: Edições Loyola, 2023, 398 pp, ISBN 978-6555042-412. 

Afonso Junior Ferreira de Lima:

Afonso Junior Ferreira de Lima é Historiador e Mestre em Filosofia pela PUCRS. Estudou dramaturgia na SP Escola de Teatro (2011/2013). Participante do GP Estudos sobre Samuel Beckett (USP/CNPq). Como dramaturgo, ministrou cursos e teve sua obra publicada. Publicou “Alguns Contos”, em 2006, pela Suliani. Sua novela “O Livro” foi lançada em abril de 2012 pela Editora Scortecci. Cursou Tecnicatura Universitaria en Dramaturgia no Uruguai (Udelar/Emad) - 2021/2022 e estudou com  Vivi Tellas na Argentina. Publicou “Canções para Dias Difíceis” (2022, Caravana Grupo Editorial). Dirigiu a versão para cinema de sua peça “Nunca Mais” em 2022 com Leco Petersen. Doutorando em Metafísica - Universidade de Brasília (2023).

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