Justiça e violência: um paralelo entre John Rawls e Eric Weil
Justice and violence: a parallel between John Rawls and Eric Weil
Daniel Benevides Soares
UEMA – Universidade Estadual do Maranhão
Recebido: 14/08/2024
Received: 14/08/2024
Aprovado:24/03/2025
Approved: 24/03/2025
Publicado: 26/03/2025
Published: 26/03/2025
Resumo
Após sua publicação em 1971, Uma teoria da justiça de John Rawls reuniu em torno de si grande debate. Eric Weil publicou sua Filosofia política quinze anos antes da obra de Rawls, em 1956. Ambos utilizam termos como comunidade, sociedade, racional e razoável, com significados próprios. O objetivo do presente artigo é ampliar o debate em torno da obra de Rawls realizando um paralelo com Eric Weil, utilizando os conceitos mencionados. O paralelo leva em conta também o conceito weiliano de violência, incontornável para a definição do autor do que ele entende por razoável. O conceito weiliano de violência pode fornecer então uma crítica à noção rawlsiana de senso de justiça, limites do juízo e a própria noção de razoável adotada pelo filósofo. Ao final, aponta-se uma possível resposta que o pensamento de Rawls oferece à violência weiliana.
Palavras-chave: John Rawls; Eric Weil; violência; razoável.
Abstract
After its publication in 1971, John Rawls' A Theory of Justice generated intense debate. Eric Weil published his Political Philosophy ten years before Rawls, in 1961. Both use terms such as community, society, rational and reasonable, with their own meanings. The purpose of this paper is to broaden the debate around Rawls' work by making a parallel with Eric Weil, using the aforementioned concepts. The parallel also takes into account the Weilian concept of violence, unavoidable for the author's definition of what he understands as reasonable. Weil's concept of violence can then provide a critique of Rawls's notion of justice, limits of judgment, and the philosopher's own notion of reasonableness. At the end, a possible answer that Rawls' thought offers to Weilian violence is pointed out.
Keywords: John Rawls; Eric Weil; violence; reasonable.
Introdução
Desde a sua publicação em 1971, Uma teoria da justiça de John Rawls mobilizou em torno de si profícuo debate, o que atesta o seu caráter não tautegórico. A obra foi seguida de Liberalismo político em 1993 e Justiça como equidade: uma reformulação em 2001[1], que aprofundaram a discussão orbitando a teoria da justiça rawlsiana. Entre esses debatedores, seguiram-se pensadores das mais variadas tendências: comunitaristas[2], adeptos da Teoria Crítica[3], libertarianos[4], pensadores da hermenêutica[5]. A Filosofia política de Eric Weil é publicada em 1956, vinte e um anos antes da morte do seu autor, quinze anos antes de Uma teoria da justiça. Embora Weil não integre a comunidade de debatedores da teoria da justiça rawlsiana, seu conceito de violência pode proporcionar um elemento importante para um possível paralelo entre ambos, pois serve como horizonte para o cotejamento entre termos de uso comum – mas de sentidos diferentes – tais como sociedade, comunidade, cooperação social, sociedade bem-ordenada, razoável e racional.
Segundo Canivez (1999, p.143), a obra Filosofia Política de Weil pode ser lida como um debate entre Kant e Maquiavel, ou seja, entre o ser humano moral e o indivíduo político[6]. Para o segundo, política, apresenta lógica e objetivos próprios; contra um agir pautado por princípios elevados, ele opõe a atividade realista e a preocupação com a eficácia, explicitando os limites e os compromissos que impõe o exercício do poder. Esse debate é importante para o filósofo, que deve entender a insuficiência da crítica moral pura na construção de um mundo no qual a moral esteja mais bem realizada. Para agir, o filósofo deve levar em conta a realidade desse mundo perpassado por relações de força e pela busca do poder. Qual é o fim almejado pelo filósofo? É a não violência (Caillois, 1977, p. 7). Tosel assim define a Filosofia política de Weil:
A Filosofia política se apresenta como uma interrogação sobre a possibilidade de uma vida boa, de uma orientação sensata e razoável no mundo moderno. Ela se quer explicitação da categoria da ação, do ponto de vista da liberdade finita e razoável que se sabe como resultado histórico, mas se quer como princípio e fundamento do mundo da condição moderna. Essa liberdade finita e razoável se articula com uma ciência do mecanismo social, próprio a sociedade moderna (1981, p. 1174).
Os termos contidos na Filosofia política, tais como racional, razoável, mecanismo social e sociedade moderna, servirão de fio de Ariadne para o paralelo entre essa obra weiliana e a Justiça como equidade de John Rawls. Passemos ao primeiro deles.
2. SOCIEDADE E COMUNIDADE
Tanto Weil quanto Rawls apresentam a fonte da perspectiva segundo a qual a sociedade é discutida em suas respectivas obras. Se para Rawls a concepção de sociedade é recolhida da mesma fonte que as demais idéias fundamentais de sua concepção de justiça, a cultura política pública de uma sociedade democrática[7], para Weil, a sociedade é apresentada segundo a maneira como ela se dá em sua autocompreensão: de acordo com as ciências sociais. Mirando o conhecimento das condições relacionadas ao campo social, as ciências sociais – divididas por Weil em teóricas[8] e históricas[9] – enxergam-se como praticadas por um observador-analista que se dispõe a oferecer uma descrição pautada pela objetividade (Weil, 2011, p. 19 – 20). É assim que, segundo Weil, as ciências sociais expressam a autoconsciência da sociedade (2011, p. 99).
E como, então, a sociedade se apresenta? A definição de sociedade moderna é seguramente um dos trechos mais reproduzidos da Filosofia política weiliana, descrevendo essa sociedade como calculista, materialista e mecanicista. O aspecto calculista indica que as decisões, transformações nos processos de trabalho e organização, bem como o emprego das forças naturais e humanas disponíveis devem ser justificadas tendo em vista o aprimoramento do domínio humano sobre a matéria, sendo essas forças mais bem aproveitadas de acordo com o método utilizado. O traço materialista indica que apenas fatores dessa ordem são levados em conta nas suas decisões. Finalmente, o elemento mecanicista surge porque todo problema posto para essa sociedade que não seja de método de trabalho restrito ao mecanismo do trabalho social é um falso problema (Weil, 2011, p. 87).
Esse mecanismo social descrito pelas ciências sociais corresponde ao sistema técnico-econômico da luta humana contra a natureza (Dubarle, 1970, p. 527). A sociedade, portanto, é uma comunidade de trabalho em luta progressiva contra a natureza exterior (Weil, 2011, p. 73). Cabe aqui trazermos a distinção entre uma comunidade e uma sociedade para Weil.
Pode-se, então, distinguir a comunidade da sociedade, reservando o primeiro termo ao que é vivido numa experiência direta de compreensão ‘humana’, no quadro de instituições que não foram criadas nem ‘re-organizadas’ por um organizador racionalista e calculista, e que remontam às ‘origens’, aos tempos ‘imemoriais’, aos mos majorum. Pode-se opor, praticamente em sentido análogo, o povo ao Estado considerado como criação recente, não como resultado de uma evolução ‘orgânica’ (2011, p. 85).
Se a comunidade é vital e “orgânica” no sentido oposto ao da organização calculista, a sociedade é artificial e racional (Weil, 2011, p. 169). A definição de comunidade em Weil guarda certa semelhança com a comunidade conforme descrita por Rawls. Em Justiça como equidade Rawls (2003, p. 28) afirma: “Os membros de uma comunidade estão unidos na busca de certos valores e objetivos comuns (distintos dos econômicos), o que os leva a apoiar a associação e que em parte os comprometem com ela”. Uma comunidade para Rawls é “um corpo de pessoas unidas por uma mesma doutrina abrangente, ou parcialmente abrangente”[10] (2003, p. 4), ou seja, uma comunidade é “uma associação ou sociedade cuja unidade depende de uma concepção abrangente do bem” (2000, p. 192, nota 13). Para Rawls, uma sociedade democrática contempla uma variedade de comunidades existindo no seu interior. Nascemos em sociedade, e, embora possamos ter nascido em uma comunidade – religiosa, por exemplo –, apenas a sociedade na sua forma política de governo e de acordo com suas leis pode exercer poder coercitivo. Além disso, as comunidades permitem que a ela se abandone o que não ocorre com as sociedades políticas. As comunidades permitem com que seus membros sejam recompensados de acordo com a contribuição para a manutenção dos valores comuns – o que não ocorre com a sociedade[11], tendo em vista que todos os membros são vistos como iguais[12], tolerando tratamento diferenciado apenas segundo o que admite a concepção política de justiça dessa sociedade (Rawls, 2003, p. 28 – 29).
É um erro grave não distinguir entre a idéia de uma sociedade política democrática e a idéia de comunidade. Uma sociedade democrática sem dúvida acolhe muitas comunidades dentro dela, e tenta ser um mundo social dentro do qual a diversidade possa florescer num clima de entendimento mútuo e concórdia; mas essa sociedade não é em si uma comunidade, nem pode sê-lo tendo em vista o fato do pluralismo razoável[13]. Isso só seria possível mediante o uso opressivo do poder governamental, o que é incompatível com as liberdades democráticas básicas. Desde o princípio, pois, concebemos uma sociedade democrática como uma sociedade política que exclui um estado confessional ou aristocrático, para não falar de um estado de castas, escravocrata ou racista. Essa exclusão é conseqüência do fato de tomar as faculdades morais como o fundamento da igualdade política (Rawls, 2003, p. 29).
Finalmente, em oposição a Weil Rawls constata, entre as idéias fundamentais extraídas da cultura política pública, a sua concepção de sociedade: é um sistema de cooperação social cuja ordem natural não é considerada fixa[14]. A cooperação social para Rawls comporta três elementos: é distinta de mera atividade socialmente coordenada – como, por exemplo, a coordenação por meio de uma autoridade central absoluta – sendo pautadas por procedimentos publicamente reconhecidos e amplamente aceitos; contém a idéia de termos equitativos de cooperação, termos aceitos razoavelmente pelos participantes e que incluem as noções de reciprocidade e mutualidade; contém a idéia de vantagem ou bem racional dos participantes (2003, p. 8 – 9).
Essa concepção de sociedade apresenta uma estrutura básica: “suas principais instituições políticas e sociais e a maneira como elas interagem como sistema de cooperação” (Rawls, 2003, p. 12). Essa concepção de sociedade é retirada da cultura política pública, não de uma análise estritas das ciências sociais. Entretanto, o elemento de produção e distribuição de bens e a noção de cálculo racional dos envolvidos são traços que se repetem nas visões de ambos os autores.
Ao cotejar Justiça como equidade com a Filosofia política, tomar as faculdades morais dos cidadãos bastaria para excluir as violências acima mencionadas, dadas na forma de concepções eternalistas de cidadania, tais como os regimes escravocratas ou de castas? A recusa dessa concepção é uma pedra de toque entre as posições de sociedade de ambos os autores, pois para Weil em princípio não há hierarquia de tipo racial e sexual na auto-apresentação da sociedade moderna (Canivez, 1999, p.133 – 134), assim como uma sociedade democrática pode ser compreendida como sistema de cooperação social para Rawls quando há uma discussão pública das questões de justiça política e quando seus cidadãos não consideram essa ordem social como naturalmente fixa ou princípios hierárquicos que expressem valores aristocráticos (2003, p. 8). Para responder à questão posta cima, é necessário apresentarmos o modo como Weil compreende a sociedade moderna e sua relação com as comunidades.
Em primeiro lugar, importa destacar que a eficácia na luta contra a natureza exterior é o elemento direcionador mais caro à sociedade, segundo Weil. As comunidades também respondem à violência exterior para sua sobrevivência, mas sua luta apresenta aspectos diversos, não constituindo o que lhe é mais caro (Quillien, 1970, p. 407 – 408). Como o que se tem concretamente são sociedades particulares, ou seja, sociedades-comunidades (Weil, 2011, p. 150), a competição entre as nações obriga a sacrificar parte dos valores tradicionais em nome do avanço da técnica, que é, em princípio, a mesma no mundo inteiro (Tosel, 1981, p. 1176).
A sociedade moderna para Weil também se caracteriza como um mecanismo de troca e produção, um sistema de funções sociais hierarquizadas em razão de sua importância no conjunto do mecanismo social. As funções sociais são conectadas de modo desigual tanto aos benefícios do trabalho social (retorno financeiro, tempo livre etc.) quanto em relação ao poder sobre o conjunto da sociedade (2011, p. 105). A presença dessas desigualdades como algo necessário ao funcionamento da cooperação social é um ponto compartilhado por Rawls.[15]
O princípio da sociedade moderna aventa que as motivações de suas ações são sempre racionais. Esse, contudo, é somente o tipo-ideal dessa sociedade, já que, na realidade, nenhuma sociedade moderna corresponde a esse modelo estritamente: a organização do trabalho social é permeada por contradições e tanto indivíduos quanto grupos apresentam móveis irracionais para suas ações, móveis esses de natureza puramente tradicional. Se para Rawls a função da filosofia política como realisticamente utópica que contempla a realização das possibilidades políticas segundo os seus limites praticáveis (2003, p. 5 – 6) coloca a sociedade bem-ordenada como uma idealização que é possível tendo em vista o que permitem as idéias retiradas da cultura política pública de uma sociedade, na análise de Weil é a própria fonte da autoconsciência da sociedade moderna que contém o elemento de idealização: as ciências sociais descrevem um tipo-ideal que não corresponde de maneira exata às sociedades particulares.
Uma dada sociedade particular será bem organizada quando tiver máxima produção com mínimo gasto de material humano. Esse sistema está bem-ordenado[16] quando, em função da técnica, os postos são ocupados pelos mais aptos e o meio de atrair os mais competentes são os estímulos dados nas formas de bens sociais (Weil, 2011, p. 104 – 105). Não é o que se verifica: indivíduos mais bem instalados em determinados grupos sociais tomam para si os melhores postos sem justificativa racional. Daí decorre o sentimento de injustiça social. Nas sociedades particulares, onde os grupos, mesmo perdendo seu interesse para a sociedade, tentarão manter seus privilégios, e onde grupos que, antes desprovidos de prestígio, mas agora essenciais para o mecanismo social, lutarão para subir ao lugar que lhes cabe. Assim, a organização de determinados grupos em combate forma estratos[17] que se enfrentam, sendo a expressão do sentimento de injustiça social, seja pelos que reivindicam uma ascensão ou por aqueles que desejam a posse de privilégios (Weil, 2011, p. 105 – 106).
Interessa para nós que Weil, assim como Rawls, fala de uma sociedade bem-ordenada. Mas enquanto para o autor de Justiça como equidade uma sociedade bem-ordenada é aquela efetivamente regulada por uma concepção política de justiça, seja ela o utilitarismo ou justiça como equidade, para Weil uma sociedade bem-ordenada é aquela conforme concebida pelas ciências sociais: ela é perfeitamente racional, mundial – a forma de racionalidade mundial é a que permite o melhor aproveitamento dos recursos, o acesso a cada função e à divisão nos benefícios da produção dos bens sociais sendo determinado apenas pela capacidade de colaborar com o trabalho. Tem-se uma sociedade bem-ordenada para Weil quando, em função da técnica, os postos são ocupados pelos mais aptos e o meio de atrair os mais competentes são os estímulos dados nas formas de bens sociais (2011, p. 104 – 106). O sentimento de injustiça social aflora quando o indivíduo a quem é prometido o prêmio pela dedicação ao princípio da racionalidade da sociedade moderna se vê excluído indevidamente do seu quinhão nos benefícios sociais. Isso porque o indivíduo weiliano também é razoável além de racional e o termo razoável em Weil adquire um significado distinto daquele empregado na teoria da justiça rawlsiana. Antes de nos determos nessa diferença, é preciso discorrer brevemente sobre essa revolta ocasionada pela injustiça social conforme descrita em Weil.
A sociedade moderna age sobre o indivíduo obrigando-o a, caso ele queira usufruir das vantagens oriundas do trabalho social, abandonar os valores históricos que impedem o pleno funcionamento da sociedade, reduzindo-se assim a uma peça ou artigo útil (Doumit, 1970, p. 515). É desse modo que o princípio da sociedade moderna assim se apresenta ao indivíduo, por meio da autoconsciência da sociedade: aquele que se consagra ao trabalho social abrindo mão de qualquer outro elemento histórico que possa ser fator de ineficácia terá uma porção maior nas vantagens da luta contra a natureza exterior, pois estará mais qualificado para esse enfrentamento. Contudo, essa máxima não se verifica na prática, sequer na maioria dos casos (Weil, 2001, p. 114). A revolta que o indivíduo sente ao se deparar com essa injustiça social é da ordem da violência. Trata-se da revolta daquele que acredita não ter nada a perder por se julgar excluído do progresso da sociedade.
Além da percepção da injustiça social, outro sentimento pode gerar a violência da revolta. É o caso daquele indivíduo que, ao contrário do primeiro, tem as suas necessidades atendidas pela racionalidade da sociedade: ele participa do trabalho social, consegue uma boa parcela na distribuição dos seus bens, incluindo um dos mais preciosos dentre eles: o tempo livre. Atendidas todas as necessidades, restará a questão: o que fazer com o tempo livre? O vazio enseja o tédio. O tempo ocioso, livre da necessidade de engajamento no mecanismo social, leva a esse sentimento. O sentimento do tédio se extravasa de várias maneiras: crimes sem motivo, formas de caçar emoções e distrações. Trata-se de uma forma de revolta do puro arbítrio dada como um sentimento de insatisfação não direcionado contra tal ou qual aspecto da organização social, mas contrário à própria organização no que ela tem de racional (Weil, 2011, p. 114 – 115). Portanto, o diagnóstico de Weil é que a ausência de sentido pode levar o indivíduo à violência do desespero, mesmo nas situações em que se atinge o sucesso contra a necessidade (2012, p. 64 – 65). O tédio pode provocar a recusa voluntária da razão. Isso ocorre porque o ser humano para Weil é razoável.
3. RACIONAL E RAZOÁVEL
Mencionamos que razoável em Weil guarda uma profunda diferença do termo homônimo conforme integrando a teoria da justiça rawlsiana. Comecemos pela visão weiliana, cuja chave de compreensão pede a consideração pelo irrecusável conceito de violência. Perine clarifica o sentido do termo razoável no pensamento weiliano, considerando a presença indelével da violência, ao apontar que o ser humano deve ser entendido na esteira da sua herança kantiana, em fidelidade à qual Weil mantém a consciência de que o homem é indivíduo, ou seja, que ele não é essencialmente razão, mas carrega de modo inextirpável a animalidade e a paixão, de maneira que ele é apenas razoável. Dito de outra maneira: o ser humano não é apenas razão, ele o é em alguns momentos, em outros ele é violência (1987, p. 174).
O sentido de razoável aqui pode significar uma abertura que o indivíduo humano possui tanto para a razão quanto para a violência. O ser humano não necessariamente irá agir movido unicamente pela razão. Qual seria então a distinção que poderia ser traçada entre o racional e o razoável em Weil? Tais definições podem parecer nebulosas, não obstante, uma maneira de apresentá-las seria a via negativa, ou seja, definir o que não é ser razoável. Razoável não é a qualidade de uma coisa, de um objeto com o qual o ser humano se depara no mundo, como as cores em uma folha de relva. Razão, indo adiante, não é descrita de fora, mas descreve a si mesma, põe a si mesma em movimento, e é sujeito na medida em que separa a si mesma daquilo que é objeto apenas em oposição a si. A racionalidade, por sua vez, estaria ligada à esfera técnica, à racionalidade do trabalho, ao entendimento, enquanto a razão se relacionaria com o discurso filosófico absoluto (Kirscher, 1992, p. 134).
Pontuamos que o razoável em Weil se compreende pela relação razão e violência. Como então compreender esse conceito? Segundo Kirscher (1992, p. 141), a violência é o problema constitutivo da filosofia. É importante ressaltar que Weil não oferece uma definição sumária do conceito de violência[18], sendo esta uma noção que permeia toda a produção filosófica weiliana.
A violência aparece sob múltiplas formas, tanto que Weil utiliza a figura de Proteus para representar seu aspecto mutável (2003, p. 9). Desse modo, o esforço filosófico de Weil se volta para essas múltiplas formas de violência dadas na história e que perpassam a realidade humana: da natureza, da necessidade, do clima, das catástrofes; violência social e política, da guerra, da exploração e da dominação; violência que o indivíduo sofre de si mesmo, das paixões que o destroem. Sob suas múltiplas formas, a violência é o que cria obstáculos o contentamento de uma vida sensata (Canivez, 1999, p. 38). A violência é a recusa da verdade, do sentido, da coerência e a escolha do ato negador, da linguagem incoerente, do discurso técnico que serve sem se perguntar para quê. É silêncio e a expressão do sentimento pessoal e que se pretende pessoal (Weil, 2012, p. 99). Possibilidade sempre aberta para a humanidade, nunca selada em definitivo, a violência é originária, radical e irredutível (Quillien, 1970, p. 407). A violência é a recusa de compreender o outro e de compreender a si mesmo do ponto de vista do seu outro. Enquanto o violento não conhece nada além do seu mundo, ele exclui toda alteridade (Kirscher, 1992, p. 279).
Em princípio esse traço da violência seria recusado pelo cidadão rawlsiano pela presença do senso de justiça, porém a violência oriunda do tédio social ainda permaneceria uma possibilidade aberta ao indivíduo. Nesse ponto, podemos adiantar que o indivíduo violento, motivado pelo sentimento de tédio ou pela revolta da percepção da injustiça social, não estaria disposto a agir em conformidade com a segunda faculdade moral proposta por Rawls, o senso de justiça, ou seja, a capacidade de agir a partir – e não apenas em conformidade com – dos princípios de justiça política que definem os termos de cooperação social, o que afastaria o indivíduo violento igualmente da concepção rawlsiana de razoabilidade. O que Rawls entende então por razoável?
As idéias de razoável e racional para Rawls são complementares e compõem a idéia fundamental de sociedade concebida enquanto sistema equitativo de cooperação social[19]. O indivíduo razoável será aquele capaz de propor ou reconhecer os princípios necessários para especificar o que todos podem considerar como termos equitativos de cooperação, honrando esses princípios, ainda que à custa dos seus próprios interesses, desde que os outros o façam (2003, p. 9). “O senso comum considera o razoável, mas, em geral, não o racional[20] como uma idéia moral que envolve sensibilidade moral” (Rawls, 2003, p. 9 – 10). Segundo Oliveira, em Rawls, o razoável pressupõe o reconhecimento na incapacidade da razão em fornecer uma justificação última para os juízos morais, incluindo a reciprocidade em reconhecer essa falibilidade da razão, em reconhecer os limites do juízo (2013, p. 40). Razoabilidade, portanto, será o mesmo que o reconhecimento dos limites do racional (Oliveira, 2013, p. 45), sendo uma virtude social pressuposta por justiça como equidade (Oliveira, 2013, p. 49). Isso porque o razoável é público, permitindo que a esfera pública determine a cooperação social de modo equitativo, enquanto o racional não o é (Barbosa, 2016, p. 488). Além disso, o razoável em Rawls possui caráter pragmático, funcionando como meio termo para a dicotomia valores/fatos, o que atesta sua origem: a cultura política pública de uma sociedade[21] (Oliveira, 2013, p. 46). Finalmente, o razoável, para Rawls, precede o racional (1992, p. 42, nota 20), por sua disposição em julgar com base nos critérios de reciprocidade e aceitar os limites dos juízos (Silveira, 2009, p. 143, nota 3).
Razoável, para Weil, significa que a condição humana não está fechada em definitivo para a violência, de modo que, mesmo reconhecendo os limites do juízo em algumas circunstâncias, isso não significa que o indivíduo o faça sempre. Assim sendo, não causa estranheza que essa racionalidade da sociedade moderna suscite fortes oposições, por vezes violenta – integralismos, fanatismos, fundamentalismo religioso –, de setores tradicionais portadores dos conteúdos concretos das comunidades (Kirscher, 1992, p. 274). A sociedade oferece muito, não obstante, por ser a negação da individualidade, ela não pode oferecer um sentido individual para a existência (Weil, 2011, p. 291 – 292). O vazio da ausência de sentido abre espaço para o surgimento da violência. A racionalidade técnica enquanto atitude não produz um sentido positivo. Produz um vazio, cujo consolo se dá por meio de distrações (2011, p. 306). O vazio de uma existência votada à luta infindável contra a natureza exterior é expresso e sentido na violência (Weil, 2011, p. 311). Problema fundamental da filosofia, a violência demanda a criação de um discurso sobre o real para que a violência seja superada; a filosofia surge como escolha do discurso contra a violência presente nela mesma e no mundo (Canivez, 1999, p. 38).
Nesse momento recordamos que as ciências sociais para Weil expressam a autoconsciência da sociedade. Mas essa consciência tem limites, pois se as pesquisas positivas das ciências sociais são indispensáveis por indicar as condições necessárias para a ação humana, elas são incapazes de apreender o sentido da ação (Doumit, 1970, p. 511 – 512). A Filosofia política oferece uma análise do mecanismo social e do papel do indivíduo que é uma representação adequada das figuras da racionalidade e da violência que lhe correspondem. A violência aqui é a revolta resultante do sentimento de desespero, oriunda da percepção da injustiça social. Essa injustiça faz o indivíduo perceber que, ainda que o mecanismo social seja apresentado pela sociedade como puramente racional, ele não permite a ascensão aos melhores lugares (Kirscher, 1992, p. 132 – 133). A linguagem do cálculo racional é comum a todos os membros da sociedade moderna. A possibilidade de mudança que essa linguagem, formalmente, abre, quando não se verifica, gera o sentimento de injustiça social: o indivíduo torna-se sensível às contradições que ele vê afetando o funcionamento racional da sociedade, que lhe aparece como irracional e hostil. Devido ao fato de nenhuma sociedade ser inteiramente racional, ele nunca estará certo de obter o reconhecimento dos seus esforços. Assim como não há garantias para seus projetos pessoais, não há garantias que seu grupo social não seja condenado à estagnação ou ao retrocesso na hierarquia social (Canivez, 1999, p. 158). Nesse sentido, aparece como solução importante o segundo princípio de justiça rawlsiano, que atua para regular o funcionamento da estrutura básica da sociedade[22], anulando os efeitos dessa revolta apontada por Weil. No entanto, o problema da violência do tédio permanece sem solução. Essa violência não é a única presente como forma de violência política nas sociedades democráticas modernas.
4. EDUCAÇÃO, VIOLÊNCIA E SENSO DE JUSTIÇA
É aqui onde se entrecruzam educação, violência e democracia. Isso porque para Weil a degradação das condições de vida da população pode provocar uma revolta contra a democracia em si mesma, fazendo-a voltar-se para um chefe providencial, para o homem da obra[23]. A democracia pressupõe que as condições materiais nas quais vive o cidadão não impossibilitem a vida política, que eles tenham suficiente lazer e certo nível de cultura, que toda sua vida não seja consagrada ao trabalho e a satisfação das necessidades vitais. Ora, ainda assim, as condições de possibilidade da democracia podem não estar reunidas e, ainda que estejam, podem não sê-lo perfeitamente. Para Weil, além das condições mencionadas acima, uma condição essencial para a democracia é a educação. Não há democracia se: os cidadãos são violentos, incapazes de seguir uma regra e de convencer ou se deixar convencer por argumentos e compreender os problemas que lhe são apresentados. O bom funcionamento da democracia pressupõe cidadãos ativos, ou seja, aquele que toma parte na discussão fazendo-a avançar sem que ele exerça necessariamente cargos políticos; pressupõe também cidadãos que não sejam passivos. Um cidadão passivo é aquele que se contenta em exprimir seu interesse particular, tanto no plano moral quanto no plano material (Canivez, 1999, p. 198 – 199).
Para Rawls, os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada são aqueles que possuem as duas faculdades morais: o senso de justiça e a concepção de bem. O senso de justiça é a capacidade de compreender, aplicar e agir a partir dos princípios de justiça que determinam os termos equitativos de cooperação social[24]. Já a concepção de bem é a capacidade de ter uma família ordenada de fins últimos que determinam a concepção que uma pessoa tem do que possui valor na vida humana, que costumam integrar doutrinas religiosas, filosóficas ou morais abrangentes. Essas duas faculdades significam que o indivíduo é capaz de envolver-se na cooperação social e honrar os termos equitativos dessa cooperação; definem o que Rawls chama de pessoas morais[25] (Rawls, 2003, p. 26 - 27).
Essas faculdades morais seriam o necessário para o engajamento na cooperação social de maneira igualitária. Para Weil, entretanto, em sua Filosofia política, caso a educação para a democracia não seja contemplada pela ação política, essa cooperação terá sobre si como ameaça a violência, como uma espada de Dâmocles. Isso porque, para o filósofo, a democracia é algo nunca definitivamente adquirido, pois está sempre na dependência de uma educação potencialmente falível, bem como de condições sociais e econômicas passíveis de deterioração (Canivez, 1999, p. 201). A democracia exige cuidado perpétuo para com suas instituições. É nesse horizonte que aparece para Weil o papel do filósofo.
O filósofo é um educador exercendo a função social, sua participação no processo educativo se dando por meio da atividade do ensino, educando outros indivíduos para a reflexão, a própria prática do filósofo como uma participação positiva no mundo da ação (Canivez, 1999, p. 138-139). Encarada como função social, a educação tem como objetivo permitir que o indivíduo tome um lugar na sociedade. Para isso, ele deve ser capaz de dominar sua própria parcela da violência natural, a das paixões.[26] Tal violência não é um empecilho somente para a ação em conformidade com as regras da vida em comum, mas também para uma ação que seja tanto reflexiva quanto acessível à argumentação. Sem essa educação, não é possível atender as condições que definem os juízos refletidos rawlsianos: aquelas em que há o desejo de se fazer o julgamento correto, em que não há interesse em não fazê-lo e em que as tentações para tal inexistem (Rawls, 2003, p. 41).
Os três elementos que destacamos acima são o que Weil denomina de violência passional. O controle dessa violência não vem a não ser pelo processo educativo. É necessário, portanto, tanto que o indivíduo mantenha um comportamento regular para desempenhar seu papel social, quanto que ele desempenhe uma ação prudente, reflexiva, pela palavra, sendo convencido por argumentos e tornando-se partícipe da comunidade do diálogo e da discussão. Assim, ele quer que o acesso ao discurso seja uma possibilidade real para todo indivíduo e não somente para o filósofo, assim como almeja que ele se torne uma força política. A educação deve permitir a cada indivíduo agir nos debates públicos por meio da palavra, assim como opor sua recusa a toda exigência ilegítima. Ela visa formar uma comunidade de pessoas dotada de sentido e apta a enfrentar a violência. Para além da instrução, portanto, o indivíduo deve ser exortado, via educação, a uma reflexão pessoal sobre o sentido de sua ação. Tal educação é negativa: não se trata de uma doutrina a qual o indivíduo deva simplesmente dar sua adesão, como uma das diversas doutrinas abrangentes, mas mostrar, por meio de critérios negativos de julgamento, onde o sentido não pode estar. A educação não deve ser imposta, apenas apresentada de modo que a atitude da reflexão tenha sentido aos seus olhos, revelando a liberdade e responsabilidade próprias do indivíduo. No plano moral, a educação planeja levar o indivíduo à autonomia; seu objetivo é o de fazer do educando um educador de si mesmo e daqueles aos quais lhe couber o encargo de educar (Canivez, 1999, p. 139 – 141).
O filósofo entra nesse enfrentamento no ponto em que falham as premissas de Rawls para o estabelecimento do equilíbrio reflexivo.[27] Para Rawls, uma sociedade bem-ordenada[28] pode lidar com o fato do pluralismo razoável de maneira a fazer cumprir a função de reconciliação da filosofia política (2003, p. 4 – 5), atingindo um equilíbrio reflexivo entre os seus cidadãos e assim obtendo um consenso sobreposto[29]. Mas o que Rawls entende por equilíbrio reflexivo? Essa noção, atrelada à idéia fundamental de justificação pública[30], parte da premissa que os cidadãos são capazes de razão e têm um senso de justiça. Essas são condições para que o equilíbrio reflexivo seja possível. O equilíbrio reflexivo é responsável por instaurar a coerência entre os juízos morais dos agentes e os princípios de justiça, estabelecendo uma complementaridade entre cultura política pública e o ideal normativo de pessoa em uma sociedade bem-ordenada (Silveira, 2009, p. 139 – 140). Rawls considera três níveis de equilíbrio reflexivo. Equilíbrio reflexivo restrito: a concepção de justiça política que menos exige revisões dos juízos iniciais: concepções distintas não foram tomadas em consideração. Equilíbrio reflexivo amplo: outras concepções de justiça – e a força dos seus argumentos – foram consideradas; a reflexão foi abrangente e mudanças provavelmente foram feitas. Equilíbrio reflexivo amplo e geral (pleno): cada cidadão alcançou um equilíbrio reflexivo amplo. O ponto de vista público é endossado mutuamente; essa é a base para a justificação pública e o suficiente para se conseguir um consenso sobreposto[31] (2003, p. 42 – 44).
Pode-se questionar se o equilíbrio reflexivo pleno é possível em sua abrangência. Para fins de uma perspectiva realisticamente utópica, se a maioria considerável dos cidadãos alcança esse nível de equilíbrio reflexivo, o consenso sobreposto[32] está assegurado. Para Rawls o impedimento aos juízos refletidos, o chamado desacordo razoável, é denominado como limites dos juízos.[33] Rawls considera que o consenso sobreposto é possível, pois os limites do juízo explicam em grande parte – embora não totalmente – o pluralismo razoável, fato incontornável das culturas democráticas livres, de modo que pessoas razoáveis podem concordar com juízos políticos (2003, p. 50 – 51). Tomemos agora duas definições rawlsianas atreladas ao indivíduo razoável: ter um senso de justiça e formular juízos refletidos. Sobre o senso de justiça, Rawls afirma: “o senso de justiça (como forma de sensibilidade moral) envolve uma faculdade intelectual, já que seu exercício na elaboração de juízos convoca as faculdades da razão, imaginação e julgamento” (2003, p. 41). A respeito da segunda definição:
Juízos refletidos são aqueles proferidos quando as condições são favoráveis ao exercício das nossas faculdades da razão e senso de justiça: ou seja, sob condições em que parecemos ter a capacidade, a oportunidade e o desejo de fazer um julgamento correto; ou em que pelo menos não temos nenhum interesse evidente para não fazê-lo, uma vez que as tentações mais costumeiras estão ausentes (Rawls, 2003, p. 41).
Quando Rawls evoca, ao falar dos juízos refletidos, o desejo, o interesse evidente e a tentação, temos o que separa sua definição de razoável da definição weiliana. O razoável, para Weil, implica a possibilidade sempre aberta ao ser humano: a violência. Ainda que os limites do juízo sejam todos eliminados, mesmo assim, o ser humano ainda pode querer a violência. A filosofia é o discurso que compreende a si mesmo enquanto o discurso de um ser para o qual sempre permanece aberta outra possibilidade: a violência. Possibilidade essa realizada em primeiro lugar, o que significa dizer que o ser humano forma seu discurso na violência, contra a violência (Weil, 2012, p. 104 – 105). Apenas a filosofia é, para Weil, a anti-violência, pois a filosofia pode ser compreendida como a ciência do sentido, a ciência da não violência. Exatamente por manter sempre, como uma sombra, a consciência da sua própria origem violenta, que permanece convidativa. Eis o papel imprescindível do filósofo para qualquer sociedade democrática moderna.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que há semelhanças, mas também notáveis diferenças entre as análises da sociedade em Rawls e Weil. O caráter atávico e persistente da violência considerado por Weil pode apontar para uma fragilidade da teoria da justiça rawlsiana. De acordo com Felipe, Rawls considera que, se a estrutura básica da sociedade é justa, não há como praticar ou sofrer injustiças do ponto de vista institucional (1996, p. 90). Ainda segundo Felipe, na maneira como Rawls considera as instituições pode residir um problema, tendo em vista a possibilidade de sua fragilização “caso não seja garantido que os cidadãos dêem valor e queiram efetivamente preservar as mesmas” (2001, p. 133, nota 2). Haveria, portanto, uma necessidade do razoável para o estabelecimento da justiça rawlsiana (Dutra, 2017, p. 685 – 686). Além disso, em Rawls há o problema não abordado da natureza humana – o que diferencia o ente humano dos demais entes? –, problema não abordado para evitar uma aproximação de sua teoria da justiça com uma doutrina abrangente (Oliveira, 2001, p. 151), problema esse que Weil ataca ao considerar o elemento da violência presente na natureza humana de forma indelével.
Em resposta ao paralelo com a concepção weiliana de razoável, é possível argumentar que a teoria rawlsiana da justiça é um experimento mental com fins de esclarecimento público, de modo que é importante lembrar que razoabilidade em Rawls implica em saber distinguir ‘competência’ de performance, ou seja: o razoável em Rawls recai sobre a capacidade moral e não sobre a ação real dos agentes. No primeiro caso – competência –, tem-se o conhecimento moral da ação, suas condições mentais. No segundo – performance – se tem como o conhecimento moral é usado, isto é, com o comportamento moral dos indivíduos (Silveira, 2013, p. 51 e 57, nota 18). “Tudo o que a teoria de Rawls necessita é que os indivíduos possam agir razoavelmente, que possam escolher a partir do que seria uma posição de razoabilidade, mas não precisa contar com a ação real dos sujeitos” (Silveira, 2013, p. 51). De acordo com Rawls, o senso de justiça dos cidadãos está garantido quando eles crescem em instituições básicas justas, o senso de justiça sendo forte o bastante para resistir às tendências recorrentes à injustiça, realizando uma distribuição da justiça ao longo do tempo (2000, p. 188). Isso garante a funcionalidade do experimento mental rawlsiano que é justiça como equidade. Para Weil, por sua vez, o conceito de razoável implica o desvio para a possibilidade real sempre em aberto ao ser humano: a violência.
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Daniel Benevides Soares
Pós-doutor em Filosofia pelo Programa de Pesquisador Voluntário da UFC. Doutor em Ética e Filosofia Política pela UFC. Professor da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do GT Eric Weil e a Compreensão do Nosso Tempo e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF).
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[1] Na palestra Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica, Rawls alude as mudanças operadas na sua teoria da justiça desde a publicação de Uma teoria da justiça (1992, p. 26). Para uma apresentação geral do estado da discussão da teoria rawlsiana anterior a Justiça como equidade, ver Felipe, 2001, p. 134 – 161, Gargarella, 2008, p. 1 – 32 e 223 – 248 e Oliveira, 2003, p. 150.
[2] “Segundo MacIntyre, o maior erro de Rawls consiste precisamente em colocar o direito ou o justo (right) acima do bem (good). De acordo com a teoria comunitarista de MacIntyre, é mister partir da subjetividade em seu conhecimento dos valores compartilhados na sociedade ou comunidade em que se desenvolve como indivíduo ou self, na medida em que através de tais valores o sujeito poderá reconhecer o que é bom para si mesmo e para a sua comunidade” (Oliveira, 2014, p. 399).Conferir a esse respeito também Sandel, 2012, p. 177 – 205, Araújo, 2014, p. 359 – 372 e Silveira, 2007, p. 169 – 173.
[3] Conferir a esse respeito Oliveira, 2014, p. 386 – 410 e Barbosa, 2016, p. 484 – 485.
[4] O principal nome dessa corrente em debate com a teoria da justiça rawlsiana é Robert Nozick. “Mestre ‘do raciocínio conjectural’ sua obra é planejada e composta no ambiente de contestação dos campi californianos que se seguiram a 1968. Seu postulado fundamental, ‘os indivíduos têm direitos’, aproxima o autor dos teóricos que assumiram a posição de adversários ferrenhos do socialismo, como os economistas Friedrich von Hayek e Milton Friedman, posição vista como contrária à teoria contratualista de John Rawls, cujos postulados acerca dos processos de justificação e aplicação dos princípios de justiça política haviam sido apresentados em Uma Teoria da Justiça, de 1971. Enquanto esta última aparece como uma defesa do Estado- Providência, uma carta da social-democracia, uma tentativa de fundar filosoficamente o tipo de política social própria às economias ocidentais, comportando redistribuição dos rendimentos, auxílios públicos aos pobres, doentes e acidentados, Anarquia, Estado e Utopia critica essas práticas conhecidas de nossa paisagem social assimilando-as à uma violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, a um regime de trabalhos forçados” (Sahd, 2004, p. 225). Conferir a esse respeito também Gargarella, 2008, p.33 – 62.
[5] Conferir a esse respeito Ricoeur, 1995, p. 89 – 142.
[6] É possível também identificar em Rawls uma grande influência do filósofo de Königsberg (Felipe, 1997, p. 105). Entretanto, convém ponderar que Rawls considera que a ideia kantiana de construtivismo adotada pelo autor indica analogia, não identidade (1992, p. 26, nota 2). Destaca-se também a leitura de que a teoria da justiça rawlsiana seria uma tentativa de conciliar Kant e Hobbes (Dutra, 2017, p. 686, nota 83). Sobre o construtivismo e intuicionismo na teoria rawlsiana, ver Dutra, 2017, p. 687 – 690 e Barbosa, 2016, p. 480. Sobre a apresentação do construtivismo kantiano em Rawls ver Rawls, 1980, p. 515 – 572, Rawls, 2005, p. 270 – 311. Sobre o kantismo weiliano ver Perine, 1987, p. 57 – 108 e 120 – 125, Kluback, 1987, p.77 – 92, além dos ensaios de Weil contidos em Problemas kantianos.
[7] Essa cultura política pública acomoda idéias implícitas e intuitivas que os cidadãos de uma sociedade democrática compartilham o que se revela em discussões cotidianas a respeito do significado e fundamento dos direitos e liberdades constitucionais, de modo que, embora essas idéias não estejam explicitamente formuladas e seus significados claramente demarcados, é importante o papel que desempenham no pensamento político e na interpretação das instituições, interpretação essa oferecida por tribunais e textos tidos como apresentando importância duradoura (Rawls, 2003, p. 7 – 8). Retirar as idéias de uma cultura política pública significa que a concepção de justiça de Rawls não depende de proposições filosóficas tais como “a presunção de uma verdade universal ou de uma natureza e identidade essenciais das pessoas” (Rawls, 1992, p. 25). Além disso, acrescente-se que os valores políticos são importantes, pois governam a estrutura básica da sociedade, valores como a igual liberdade política e civil, a igualdade equitativa de oportunidades, a reciprocidade econômica e as bases sociais do respeito mútuo entre os cidadãos, valores expressos nos dois princípios de justiça rawlsianos (Rawls, 2000, p. 184 – 185).
[8] Sua ponta de lança é uma análise funcional de determinadas estruturas sociais, orientada pelo conceito de eficácia das instituições. Mas eficácia em qual acepção? Trata-se da eficácia do mecanismo social, da eficácia das instituições, incluindo a melhor forma de organização do trabalho social: rendimento, progresso, nível de vida, riqueza social. As ciências sociais teóricas, portanto, tomam esses fatores racionais como devendo prevalecer sobre aqueles que não o são. Os fatores que não são considerados racionais, tais como os valores históricos que não se prestam à medição, devem ser tomados como obstáculos ao progresso. Tomando então certos valores e instituições, as ciências sociais teóricas elaboram tipos sociais, esquemas formais, hipotético-dedutivos, explicitando a incompatibilidade entre as instituições e valores que são entraves para o seu progresso. Segundo Weil, a parte mais importante, mesmo originária, das ciências sociais teóricas é a economia política. Essas ciências representam não apenas o produto de uma sociedade que é compreensível de forma racional, mas que se quer racional (2011, p. 87 – 88, nota 3).
[9] Debruça-se sobre os vários sistemas sociais históricos levando em conta os fatores para sua compreensão que não são da ordem daquilo que é puramente racional, por exemplo, os valores. As ciências sociais históricas levam em conta os conceitos da sua contraparte teórica que permitem a análise de qualquer sistema social histórico. Há, portanto, relação entre ambas, porém, tal não deixa de ser conflituosa, tendo me vista a tendência carregada desde sua origem pelas ciências sociais teóricas em proceder conforme as considerações a respeito da melhor forma de organização do trabalho social, definindo-se originalmente como a análise de todos os fatores históricos que podem se tornar empecilhos para a melhor configuração dessa organização do trabalho, ou seja, impedimentos para a efetivação da melhor maneira de se produzir o máximo de bens, distribuí-los de maneira mais eficaz e incentivar uma produção cada vez maior por parte dos indivíduos engajados nessa produção, fatores esses, aos olhos dessa ciência social, tidos como não racionais (Weil, 2011, p. 87 – 88, nota 3).
[10] A variedade dessas diversas doutrinas, que envolvem concepções de bem divergentes, caracteriza o chamado fato do pluralismo razoável, pois essas doutrinas são incompatíveis entre si, muitas das quais não carecem de razoabilidade. “Esse fato consiste em profundas e irreconciliáveis diferenças nas concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que eles têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana” (Rawls, 2003, p. 4).
[11] “Para justiça como equidade, uma sociedade política democrática não possui tais valores e objetivos comuns, afora aqueles que fazem parte ou estão ligados à própria concepção política de justiça” (Rawls, 2003, p. 28).
[12] Para Rawls, os cidadãos são vistos como iguais na medida em que se considera que todos são dotados em grau mínimo das duas faculdades morais necessárias para engajarem-se na cooperação social e participar da sociedade como cidadãos iguais (2003, p. 27).
[13] Rawls diferencia o pluralismo razoável do pluralismo em si, o primeiro, diz respeito às doutrinas abrangentes que são razoáveis, cuja diversidade resulta do longo uso das faculdades humanas da razão no contexto de instituições livres (2000, p. 190). “O fato do pluralismo razoável não é uma condição desafortunada da vida humana, como poderíamos dizer do pluralismo como tal, que admite doutrinas que não são apenas irracionais, mas absurdas e agressivas” (Rawls, 2000, p. 190).
[14] Sobre a ideia organizadora central da teoria da justiça rawlsiana como sistema equitativo de cooperação social, conferir Silveira, 2009, p. 140 – 141.
[15] São essas desigualdades que o segundo princípio de justiça rawlsiano visam regular segundo dois critérios: estar vinculadas a cargos acessíveis em condições de igualdade equitativa de disputa e beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 2003, p. 60).
[16] Notemos que Rawls também fala de uma sociedade bem-ordenada. Porém, para o autor, trata-se de “uma sociedade efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça” (2003, p. 11). Acrescente-se ainda que se trata de uma sociedade na qual sua estrutura básica e cada um dos seus membros aceita e sabe que os demais aceitam os mesmos princípios de justiça política e é dotado do senso de justiça (2003, p. 11 – 12).
[17] “Os estratos não são produzidos pela organização no que ela tem de racionalidade, mas pelo que conserva de histórico. Eles distinguem-se dos grupos que, racionalmente necessários, existirão até mesmo na sociedade mais bem organizada: é a sua perfeita organização que caracteriza precisamente a sociedade bem-ordenada. Nessa sociedade não existiriam estratos, primeiro porque a ascensão ou declínio dos grupos dar-se-iam sem resistência histórica, em seguida porque a circulação dos indivíduos entre os grupos só seria regulada por suas qualificações pessoais” (Weil, 2011, p. 106).
[18] Apesar disso, alguns intérpretes da obra weiliana ofereceram tipologias da violência presentes no seu pensamento. Kirscher elenca três tipos de violência. Violência natural enquanto enfrentada pela comunidade. Violência da perda do sagrado da comunidade pelo indivíduo. Violência da perda da ontologia, do sagrado da comunidade que se converte em sociedade do trabalho e põe o indivíduo diante do problema do tédio (1992, p. 126 – 131). Cailois apresenta três formas de violência: Violência natural do homem enquanto presa e predador. Violência interior, da paixão, mal radical. Violência pura, diabólica, do tédio (indivíduos e pequenos grupos) e totalitarismo (1977, p. 214). Costeski apresenta sua tipologia baseada no desenvolvimento dos discursos filosóficos, a cada um desses discursos correspondendo uma forma específica de violência (2009, p. 26 – 29).
[19] Para Rawls quando se afirma que a justiça como equidade parte da idéia fundamental de sociedade como sistema equitativo de cooperação, a concepção de justiça política resultante é dita abstrata, ou seja, seleciona certos aspectos como especialmente significativos em termos de justiça política, ignorando outros (2000, p. 201, nota 20). É possível traçar aqui um princípio de analogia, mas não de identidade, com o procedimento operado pelas ciências sociais na elaboração da descrição do princípio da sociedade moderna em Weil.
[20] O racional está ligado à capacidade de perseguir e examinar os mais variados projetos particulares motivados pelas mais diversas concepções de bem (Barbosa, 2016, p. 487). O irracional exemplifica, por exemplo, alguém que se prejudica para prejudicar outrem (Dutra, 2017, p. 683).
[21] Ser razoável implica, portanto, em reconhecer o pluralismo razoável e que somente a opressão pelo Estado pode proporcionar a unidade moral nesse cenário (Oliveira, 2013, p. 49).
[22] Rawls compreende “estrutura básica” da sociedade democrática como suas principais instituições políticas, sociais e econômicas e a maneira como se combinam em um sistema de cooperação social (1992, p. 27).
[23] Conferir a esse respeito Weil, 1991, p. 319 – 322.
[24] O senso de justiça rawlsiano também comporta o compromisso de sustentar os compromissos firmados ainda que as conseqüências sejam desvantajosas para aquele que os firmou (Dutra, 2017, p. 670).
[25] “Uma pessoa tem capacidade de senso de justiça (razoabilidade) e concepção de bem (racionalidade)” (Oliveira, 2013, p. 50). Ver a esse respeito também Rawls, 1992, p. 37 – 39. A origem da concepção rawlsiana de pessoa é retirada, junto com as demais idéias fundamentais de justiça como equidade, da cultura política pública. “Isso significa que a concepção de pessoa não foi retirada da metafísica, da filosofia do espírito, ou da psicologia, e pode ter pouca relação com concepções do eu discutidas nessas disciplinas [...]. A concepção de pessoa é, em si, normativa e política, e não metafísica ou psicológica [...] a concepção de pessoa é elaborada a partir da maneira como os cidadãos são vistos na cultura política pública de uma sociedade democrática em seus textos básicos (constituições e declarações de direitos humanos) e na tradição histórica da interpretação desses textos. Para encontrar essas interpretações não olhamos somente para os tribunais, partidos políticos e homens de Estado, mas também para a literatura sobre direito constitucional e jurisprudência, e para os escritos duradouros de todo tipo relacionados com a filosofia política de uma sociedade” (Rawls, 2003, p. 27).
[26] Esse é o nível educativo referente ao que Weil denomina como instrução. No nível da instrução o indivíduo deve receber os conhecimentos que lhe permitirão tomar um lugar na sociedade do trabalho. Esse nível educativo contempla o exercício de virtudes fundamentais, tais como a objetividade e a argumentação rigorosa (Canivez, 1999, p.139l). Esse primeiro nível educativo comporta a exigência de um primeiro universal: o da racionalidade do trabalho social. Trata-se de uma universalidade formal do entendimento e do trabalho. Assim sendo, a instrução é educação formal do desejo e da paixão natural (Weil, 2011, p. 142). O primeiro universal do trabalho e do entendimento forma o indivíduo para a ideia universalidade. Contudo, essa é apenas uma primeira universalidade: a de uma forma que não determina o seu conteúdo. Por isso mesmo, essa universalidade é capaz de receber inúmeros conteúdos, incluindo o da violência (Weil, 2011, p. 152).
[27] A esse respeito, Barbosa argumenta que as sociedades contemporâneas enfrentam o duplo desafio de, por um lado, examinar corretamente as demandas atuais, tais como o pluralismo razoável e, por outro, estabelecer um embasamento político que rejeite uma fundamentação metafísica, de modo que o papel do filósofo não é oferecer uma normatividade, mas uma base a partir da qual oferecer uma normatividade, o que Rawls executa por meio da sua concepção de justificação contratualista (2016, p. 478).
[28] É aquela efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça; fornece o ponto de vista comum a partir do qual cidadãos podem arbitrar exigências de justiça pública. Sociedade bem ordenada apresenta 3 traços. Primeiro: todos aceitam a mesma concepção política de justiça e os mesmos princípios de justiça. Segundo: todos sabem que a estrutura básica da sociedade respeita os princípios de justiça. Finalmente: os cidadãos têm um senso de justiça: entendem e aplicam os princípios de justiça e agem de acordo com o que seus deveres exigem. A idéia de sociedade bem-ordenada tem 2 significados. O primeiro deles é geral: uma sociedade regulada por uma concepção pública de justiça. O segundo é particular: cada membro aceita a mesma concepção política de justiça (Rawls, 2003, p. 11 – 13). Rawls (2003, p. 13) fornece como exemplos: uma determinada doutrina dos direitos naturais, uma forma de utilitarismo, ou a justiça como equidade; o fato do pluralismo razoável torna isso inviável. Entretanto, o liberalismo político pode oferecer uma base de unidade social suficiente e mais razoável para os cidadãos: ainda que eu professe uma forma de utilitarismo como concepção política de justiça particular, eu posso concordar que o liberalismo político contempla essa minha concepção nos seus pontos essenciais, bem como as concepções de outros cidadãos diferentes das minhas.
[29] Overlapping consensus, também traduzido por “interface consensual” em Rawls, 1992, p. 28. Segundo Freeman, o objetivo geral de Liberalismo político é mostrar como é possível uma sociedade estável entre pessoas racionais e razoáveis que concebem a si mesmas como livres e iguais; para tanto, Rawls evoca três ideias indo além do que se encontra em Teoria: a idéia de concepção política de justiça, a idéia de razão pública e a idéia de consenso sobreposto (2003, p. 33). A ideia de consenso sobreposto é baseada na noção de que cidadãos razoável em uma sociedade bem-ordenada podem afirmar uma concepção política independente por razões que dizem respeito às suas respectivas compreensões de bem (Freeman, 2003, p, 36).
[30] Busca definir a idéia de justificação (para uma concepção política de justiça) que se aplique a uma sociedade caracterizada por um pluralismo razoável. Fornece uma base comum a partir da qual os cidadãos justificam mutuamente seus juízos políticos. Trata-se então de formar um consenso que as partes livres e iguais podem endossar razoavelmente. Não se trata, por outro lado, de um acordo completo, mas de uma concórdia básica em relação a 2 elementos constitucionais essenciais. Em primeiro lugar, os princípios fundamentais da estrutura do governo. Em segundo lugar, os direitos e liberdades básicos iguais da cidadania que as maiorias legislativas devem respeitar. Busca-se assim salvaguardar as condições de cooperação social entre cidadãos livres e iguais. A justificação pública é erguida a partir da cultura política pública, pode ser endossada por doutrinas abrangentes; é mais que um mero acordo (Rawls, 2003, p. 36 – 40).
[31] “No artigo ‘Reply to Habermas’, Rawls faz referência ao equilíbrio reflexivo pleno (full) como um ponto ao infinito que nós nunca poderemos alcançar, mas que podemos chegar próximos através da discussão em que nossos (i) ideais, (ii) princípios e (iii) juízos pareçam mais razoáveis para nós, apresentando como característica central a intersubjetividade” (Silveira, 2013, p. 54, nota 1).
[32] “Creio que podemos afirmar, sem um grande receio de errar o alvo, que o método nada mais é do que um teste de aceitabilidade pessoal/social, teste que é tanto em primeira (equilíbrio reflexivo amplo), quanto em terceira pessoa (equilíbrio reflexivo geral). A sua função é mostrar para nós os valores morais que nós já aceitamos de um ponto de vista social e orientar nossa deliberação moral nessa mesma direção” (Silveira, 2013, p. 54, nota 1).
[33] São cinco esses obstáculos, ou fontes do desacordo razoável: as evidências empíricas ou científicas podem se mostrar conflitantes ou difíceis de analisar por sua complexidade; ainda que se concorde sobre quais considerações são relevantes, é possível discordar sobre quão relevantes elas são, o que leva a julgamentos diferentes; até certo ponto os conceitos morais e políticos são indeterminados, o que torna necessário que confiemos em juízos e interpretações; a experiência de cada um é responsável pela maneira como avaliamos evidências e pesamos valores; finalmente é difícil levar em conta em uma avaliação normativa todos os aspectos envolvidos na sua consideração (Rawls, 2003, p. 49 – 50). A noção de limites do juízo é fundamental para garantir a ideia democrática de tolerância (Silveira, 2013, p. 49).