A temporaneidade como fundamento da transcendência do Dasein, da intramundanidade e da intratemporalidade

Temporality as the foundation of the transcendence of Dasein, of intraworldly, and of intratemporality

Acylene M. Cabral Ferreira

acylene@ufba.br

0000-0002-9575-0060

UFBA – Universidade Federal da Bahia

Recebido: 16/08/2024

Received: 16/08/2024

Aprovado:17/12/2024

Approved: 17/12/2024

Publicado: 31/12/2024

Published: 31/12/2024

RESUMO

Nosso objetivo consiste em explicitar como acontece a temporaneidade de tempo (dar-se do tempo) e a temporaneidade de ser (temporanização de ser). O problema que enfrentaremos, nesse artigo, será mostrar como os caráteres de abertura e de horizonte, próprios das temporaneidades de tempo, concedem sentido à manifestação de ser. Enfrentaremos esse desafio pautados no conceito de temporalidade ekstático-horizontal, porque pressupomos que através dele poderemos apontar como as temporaneidades de tempo e de ser são constituídas nesse período da filosofia de Heidegger. Nossa finalidade é clarificar como a intramundanidade, a transcendência do Dasein e a intratemporalidade são constituídas pelas temporaneidades de tempo e de ser.

Palavras-chave: temporaneidade; tempo; ser; intramundanidade; transcendência.

ABSTRACT

We aim to explain how the temporality of time (it gives time) and the temporality of Being (the temporalization of Being) occur. In this article, we will try to show how the characters of openness and horizon, which are proper to the temporality of time, give meaning to the manifestation of Being. To achieve this, we will take the concept of temporality ekstatikon-horizonal, because we suppose that this concept can help us to show how the temporalities of time and of Being are constituted in this period of Heidegger’s philosophy. We intend to clarify how the concepts of intraworldly, the transcendence of Dasein, and intratemporality are constituted by the temporalities of time and of Being.

Keywords: temporality; time; being intraworldly; intratemporality.

Introdução

Para tratarmos do tema do Colóquio: Martin Heidegger, leitor de Aristóteles, partirei da conferência O conceito de tempo pronunciada em Marburgo em julho de 1924. Tomarei a pergunta-guia dessa conferência, qual seja: o que é o tempo? para evidenciar como o pensamento de Aristóteles foi essencial para Heidegger elaborar a sua concepção de tempo originário e de tempo vulgar. Recorrerei também aos Prolegômenos ao conceito de tempo (1924), a Ser e tempo e a Os problemas fundamentais de fenomenologia, ambos de 1927, pois além de tais textos nos indicar uma resposta possível para a pergunta supracitada, eles são igualmente importantes para esclarecermos os conceitos de temporaneidade (Temporalität) e de temporalidade (Zeitlichkeit). Nosso desafio, aqui, não consiste apenas em explicitar a concepção de temporaneidade de ser, mas antes de tudo será destacar como a temporaneidade de tempo fundamenta a temporaneidade de ser. Nesta perspectiva, teremos uma dupla dificuldade, já que Heidegger não disse como ele engendra a temporaneidade de ser e nem utilizou o termo “temporaneidade de tempo.” Nós instituímos esse termo para referirmo-nos às temporanizações do tempo originário, tendo em vista que ele é totalmente pertinente com o pensamento heideggeriano para nomearmos como acontece o “dar-se de tempo” (Cf. Heidegger, 1979a). No decorrer de nossa exposição ficará mais fácil perceber como, a partir dos Prolegômenos ao conceito de tempo, de Ser e tempo e de Os problemas fundamentais de fenomenologia, é possível edificarmos tanto a temporaneidade de ser quanto a temporaneidade de tempo. Enfrentaremos tal desafio pautados no conceito de temporalidade ekstático-horizontal, pois pressupomos que através dele poderemos apontar como, na década de 1920, as temporaneidades de tempo e as temporaneidades de ser são arquitetadas na filosofia de Heidegger. Nossa finalidade é clarificar como a intramundanidade, a transcendência do Dasein e a intratemporalidade são constituídas pelas temporanizações das temporaneidades de tempo e de ser. Dividiremos nossa exposição em três partes. Na primeira, elucidaremos o fenômeno da temporalidade estendida, para evidenciarmos que ele é uma determinação do tempo vulgar caracterizada como intratemporalidade. Devido a uma questão metodológica, propositadamente, iniciaremos nossa exposição com a tematização da intratemporalidade em consonância com a metodologia da analítica existencial. Sabemos que em Ser e tempo o autor retorna aos modos cotidianos de ser (ôntico) do Dasein, para descrever os caráteres de ser ou existenciais (ontológicos) que estruturam o Dasein. Fenomenologicamente, o autor volta ao ôntico para esquadrinhar o ontológico e perscrutar a sua analítica existencial. Do nosso ponto de vista, julgamos que Heidegger usa o mesmo recurso para descrever as temporaneidades de tempo, quer dizer, ele analisa as temporalidades cotidianas do tempo vulgar, para descrever as temporanizações do tempo originário. Na segunda parte, investigaremos como podemos perquirir a temporaneidade de tempo, para salientarmos porque esta é denominada de tempo originário. Nosso intuito, nesta parte, é expor como a temporaneidade de tempo compõe a temporalidade ekstático-horizontal e a temporaneidade de ser. Na terceira, discutiremos como as temporaneidades de tempo e de ser determinam a intramundanidade do mundo e o caráter de transcendência do Dasein.

Na conferência O conceito de tempo e em Os problemas fundamentais de fenomenologia, o filósofo recorre a passagens da Física de Aristóteles, para realçar que o estagirita concebe o tempo ligado à natureza, posto que ele trata o tempo mediante a relação com a mudança de lugar e com a medida do movimento. Desta feita, o tempo é visto como um “aqui” que acontece entre o “acolá e o lá” ou, então, como um “agora” que acontece entre o “antes e o depois”. Heidegger acentua, ainda, que na Física o tempo é descrito como continuidade e como relativo aos números, isto é, como tempo longo ou curto e como muito ou pouco tempo. Precisamos também recordarmos que após estas reflexões sobre a natureza do tempo, Aristóteles termina por se perguntar: será que existiria o tempo se não existisse alguém que fosse capaz de lidar com números, de contar, de medir deslocamentos e apontar mudanças de lugar? Será que a existência do tempo depende da existência da alma? (Cf. Aristóteles, 1991, 4.10.217b29-4.14.224a17). Talvez seja influenciado por esse questionamento aristotélico que, na conferência O conceito de tempo, Heidegger tenha estabelecido uma relação intrínseca entre tempo e Dasein, o ente que nós mesmos somos, afirmando que “o tempo é temporal. O Dasein não é o tempo, mas sim a temporalidade. [...] Pautado nesse raciocínio ele concluiu que a pergunta] o que é o tempo? transformou-se na pergunta: quem é o tempo? [Frente a essa conclusão ele se indagou:] somos nós mesmos o tempo? Eu sou meu tempo?” (Heidegger, 2004, p. 123, 125). Por que ao se questionarem sobre o tempo, Aristóteles e Heidegger correlacionaram o tempo à existência humana? Se o tempo é temporal e o ser humano não é tempo como ele é a temporalização do tempo? Temos aqui uma contradição?

Com o propósito de refletirmos sobre essa problemática, primeiramente, é importante resgatarmos que, na década de 1920, um dos objetivos da filosofia heideggeriana era, por um lado, investigar como tratar do ser enquanto ser e não mais em relação ao ente como, predominantemente, desde os gregos se sucedeu na metafísica ocidental. E por outro lado, era pesquisar como conceituar o tempo a partir do próprio tempo e não mais com vistas à natureza ou ao movimento como, por exemplo, fez Aristóteles na Antiguidade; e nem tão pouco era abordar o tempo em relação ao observador (Cf. Heidegger, 2004, p. 109) como propôs Einstein em sua teoria da relatividade na Contemporaneidade. Neste viés, Heidegger afirmou que o ser se manifesta e o tempo se temporaliza. Isso implica que acessamos a manifestação de ser enquanto fenômeno ou caráter de ser. Nos Prolegômenos ao conceito de tempo (Cf. Heidegger, 1979b) o fenômeno de ser é concebido como um a priori e em Ser e tempo os caracteres de ser são definidos como existenciais e categorias, sendo que os existenciais estruturam os modos de ser do Dasein e as categorias determinam os modos de ser dos entes simplesmente dados. De outra feita, ele caracterizou os fenômenos de tempo como ekstases, a saber: porvir [Zukunft], vigor de ter-sido [Gewesenheit] e atualidade [Gegenwart] (Cf. Heidegger, 1986, p. 329; Heidegger, 2006, p. 413). Tanto em Ser e tempo quanto em Os problemas fundamentais de fenomenologia, a unidade destas ekstases constitui o fenômeno da temporalidade, mediante o qual nos apropriamos disto que compreendemos como tempo. Nestes textos, cada temporanização da unidade ekstática da temporalidade é considerada como um fenômeno do tempo originário (Cf. Heidegger, 1997, p. 376). Mas, em que medida a coapropriação dos caracteres de ser e da unidade ekstática engendra a temporalidade do Dasein? Como os fenômenos do tempo originário determinam a intramundanidade dos entes simplesmente dados, a transcendência do Dasein e a intratemporalidade do tempo? Em que medida os questionamentos de Aristóteles sobre o tempo, na Física, contribuiu para Heidegger elaborar o seu conceito de tempo?

O fenômeno da temporalidade estendida

O fato de que em nosso linguajar cotidiano, constantemente, emitirmos expressões que indicam referências temporais, ratifica o raciocínio heideggeriano segundo o qual a nossa existência está atrelada a temporalizações de tempo. Contudo, como identificamos tais referências em nosso cotidiano? Quando afirmamos que não temos tempo para efetivarmos determinadas atividades ou que gastamos muito tempo para realizarmos um certo afazer. Quando atribuímos que uma situação aconteceu antes ou depois de um evento, ou quando dizemos que outrora o clima na Terra era mais ameno, mas hoje observamos que as mudanças climáticas podem afetar o nosso amanhã. Ou ainda quando, por um lado, assumimos que nossa existência é um contínuo acontecer temporal composto por uma sucessão de horas, dias, anos, estações etc. Por outro lado, notamos também as temporalizações em nosso cotidiano quando quantificamos o tempo, quer dizer, quando contamos o tempo que já vivemos e o tempo que nos resta de vida, quando calculamos o tempo que levamos para sair de um lugar e chegar em outro, ou quando os cientistas se digladiam para estabelecer quando foi criado o universo ou quando surgiram os humanos na terra. Mediante esse escalonamento da presença constante das temporalizações em nosso cotidiano, Heidegger inferiu que o tempo de nossa existência consiste em uma unidade de nexos de temporalidades que se estendem desde o nosso nascimento até a nossa morte. Ele nomeou esse estender-se da temporalidade como um arco ou uma envergadura de temporalidades estendidas (Cf. Ferreira, 2015). Devido a essa envergadura da temporalidade estendida, geralmente, concebemos o tempo como um arco formado pelos lapsos de tempo, por exemplo, passado, presente, futuro, ontem, hoje, amanhã, antes, agora, depois, outrora etc. É justamente porque nossa existência cotidiana é perpassada por essa envergadura de lapsos de tempo instituída pelo nexo de temporalidades estendidas, que designamos nossa existência como temporal e histórica. Isto implica que a envergadura dos lapsos de tempo fundamenta a envergadura da existência do Dasein como unidade dos nexos de temporalidades estendidas. Como esse nexo de temporalidades é denominado? De intratemporalidade: o modo da temporalização através do qual apropriamos os lapsos de tempo, via os quais compreendemos as temporalidades que, cotidianamente, interpretamos como dimensões do tempo. Esse arrazoado sobre a constituição da temporalidade estendida em Heidegger deixa patente que o questionamento de Aristóteles sobre o tempo, contribuiu para a definição da intratemporalidade como o modo de temporalização que vivenciamos em nosso cotidiano. Nesta perspectiva, Heidegger alega que a intratemporalidade é um modo de temporalização do tempo vulgar.

Qual é o caráter de determinação da intratemporalidade? Nivelamento. Por que? Visto que a temporalidade estendida e seus lapsos de tempo, enquanto modos de temporalização da intratemporalidade, dizem respeito à contagem, medição e datação do tempo. Ao passo que a intratemporalidade reduz as temporalizações do tempo originário às concepções espaciais, geométricas e matemáticas, ela nivela tais temporalizações aos modos de ser dos entes extensos, que comportam a divisão, a soma, a padronização, a regulação entre outros. Com esta redução, a intratemporalidade nivela as temporalidades de tempo às modalidades de espaço e de ser, por isso, ela é caracterizada como nivelamento. Fazendo um paralelo com o propósito de Heidegger em Ser e tempo, qual seja, o de “mostrar que o tempo é o de onde a presença [o Dasein] em geral compreende e interpreta implicitamente o ser. [Melhor, que] o tempo [é] o horizonte de toda compreensão e interpretação de ser,” (Heidegger, 1986, p. 17; 2006, p. 55) inferimos  que se, por um lado, o tempo é a abertura  na qual acontece a manifestação de ser como sentido, e se, por outro lado, encontramos a intratemporalidade vigente na compreensão e interpretação de ser do Dasein e do mundo, reciprocamante, podemos pensar que, enquanto nivelamento, a  intratemporalidade está estruturada por um caráter de fechamento. Pois, à medida que ela nivela as temporalizações do tempo originário a dados temporais tais como: horas, dia, mês, ano, década, século, eternidade etc., ela encobre as temporanizações da temporalidade ekstático-horizontal. Donde podemos ultimar que tal encobrimento consubstancia a temporalidade ekstático-horizontal como se ela fosse um amontoado de dados temporais inerentes aos acontecimentos mundanos ou naturais. Como? No modo de nivelamento da intratemporalidade, a antecipação, modo próprio do porvir, é consubstanciada como a expectativa de acontecimentos do futuro; o instante, modo próprio da atualidade, é reduzido ao agora da nossa lida cotidiana; e a recordação, modo próprio do vigor de ter sido, é nivelado aos fatos passados. É exatamente nesta consubstanciação que encobre os modos próprios da temporalidade ekstático-horizontal, que acontece o nivelamento característico da intratemporalidade. Por isso, julgamos que a intratemporalidade é um modo de fechamento que obnubila a abertura do horizonte que caracteriza o tempo originário. Nesse contexto, a intratemporalidade é a temporalização do tempo vulgar a partir da qual o Dasein se compreende como historial e através da qual ele interpreta a intramundanidade do mundo.

Qual é a relevância, para a filosofia, quando Heidegger concebe o tempo como horizonte? Para nós, com a caracterização do tempo enquanto horizonte de onde derivam todas as temporalizações de tempo e de ser, Heidegger pôde introduzir uma definição filosófica de tempo, que não está mais centrada no sujeito ou na consciência nem no objeto, na natureza ou no mundo, mas sim em uma abertura na qual ser é apropriado como sentido. Pensamos que tal caracterização do tempo foi crucial para o filósofo fundamentar a relação intrínseca que ele pretendia estabelecer entre a apropriação de tempo e o acontecimento de ser, de tal forma que o horizonte de tempo abre o sentido de ser, mediante o qual o Dasein compreende, interpreta e significa os entes em geral. Neste entrelaçamento entre tempo e ser, as temporaneidades do tempo originário são apropriadas e nomeadas via manifestações de ser. Neste viés teórico, é oportuno sublinharmos que este entrelaçamento fundamenta também as temporalizações do tempo vulgar e as constituições do sentido de ser dos entes em geral. Logo, com a definição de tempo como horizonte, concomitantemente, Heidegger pôde tanto expor que o caráter de abertura do horizonte determina a originariedade do tempo como o de onde compreendemos e interpretamos ser; quanto ele pôde acentuar que as concepções cotidianas que temos de tempo e de ser são originadas e, portanto, derivadas do horizonte de tempo. Precisamente porque as temporalidades estendidas e os lapsos de tempo são derivados, que a intratemporalidade é concebida como um modo de temporalização de tempo vulgar, que encobre e nivela os modos temporâneos da temporalidade ekstático-horizontal. Posto que já apresentamos a intratemporalidade como um modo da temporalização de tempo vulgar, só nos resta perguntar: qual é a constituição heideggeriana de tempo originário? Como as ekstases do porvir, vigor de ter sido e atualidade expressam a temporaneidade de tempo?

A temporaneidade de tempo

O essencial do porvir consiste em vir-em-direção-a [Auf-sich-zukommen], o essencial do vigor de ter sido em retornar-para [Zurück-zu] e o essencial da atualidade em demorar-se junto-a [Sichaufhalten]. [...] Nesta caracterização de em-direção-a, retornar-para e do junto-a a temporalidade é fora-de-si. O tempo como porvir, vigor de ter sido e atualidade é em si mesmo suspenso [entrückt]. [...] A temporalidade enquanto a unidade de porvir, vigor de ter sido e atualidade [...] é, ela mesma enquanto temporalidade, o fora-de-si originário, o ekstatikon. Terminologicamente, determinamos este caráter de suspensão de caráter ekstático do tempo (Heidegger, 1997, p. 377).

Em Ser e tempo, vimos que o horizonte é o caráter de determinação do tempo originário, já a citação recém referida de Os problemas fundamentais de fenomenologia nos esclarece que a temporaneidade de tempo apresenta um caráter ekstático. Tais afirmações deixam explícito que a temporalidade originária se temporaniza como uma unidade ekstático-horizontal. Tanto em Ser e tempo (Cf. Heidegger, 1986, p. 329; Heidegger, 2006, p. 413) quanto em Os problemas fundamentais de fenomenologia ekstatikon significa o fora-de-si originário no qual cada temporalidade está fora-de-si em direção a outra temporalidade. Tendo em vista que o caráter ekstático determina as temporanizações de tempo, Heidegger nomeia as temporalidades do tempo originário de ekstases. Devido a caracterização ekstática, enquanto temporalidade o porvir está fora-de-si em direção ao vigor de ter sido e à atualidade e, reciprocamente, estas duas temporalidades também estão fora-de-si em direção às outras. Isso denota que cada temporalidade é além-de-si. Ao passo que cada temporalidade é definida como fora-de-si-além-de-si em Os problemas fundamentais de fenomenologia as temporalidades são determinadas pelo caráter de suspensão. Conforme o pensamento heideggeriano, a unidade dos caráteres de suspensão, fora-de-si, além-de-si e dirigir-se-á constitui toda e qualquer forma de temporaneidade, sejam as temporalizações da intratemporalidade, por exemplo, as da temporalidade estendida tais como passado, presente e futuro; sejam as temporanizações da temporalidade ekstático-horizontal: porvir, vigor de ter sido e atualidade. Nesta linha argumentativa, podemos inferir que os caráteres ekstático-horizontal são a condição de possibilidade para abordarmos a constituição da temporaneidade de tempo. Por quê?

Como a expressão “temporal” é usada tanto na linguagem pré-filosófica como na linguagem filosófica [...], e como, por outro lado, essa expressão é tomada na presente investigação em outro sentido, denominaremos a determinação originária do sentido de ser e de seus modos e caracteres a partir do tempo de determinação temporânea (temporale Bestimmtheit) (Heidegger, 1986, p. 19; Heidegger, 2006, p. 56).

Recuperamos essas palavras de Ser e tempo, para reforçarmos que com a expressão “temporaneidade” Heidegger pretende fazer uma diferença entre os sentidos temporal e temporâneo de tempo. Simplesmente, ele conserva o termo “temporal” para designar as temporalizações do tempo vulgar tal como a intratemporalidade; e resguarda a expressão “temporânea” para definir as temporanizações do tempo originário, a saber, a temporalidade ekstático-horizontal. Ele também preserva a palavra “temporaneidade” para mostrar como acontecem as temporanizações de tempo e de ser. Em consonância com essa distinção terminológica, nesse momento, retomaremos nossa hipótese para investigarmos em que medida os caráteres da temporalidade ekstático-horizontal expressam a constituição da temporaneidade de tempo e da temporaneidade de ser. Para tal, voltaremos nossa atenção para os caráteres de determinação da temporalidade ekstática, quais sejam, fora-de-si, além-de-si, suspensão e direcionamento, para informarmos que cada ekstase tem um horizonte ou indício esquemático, o qual é o concebido como uma estrutura formal do para-onde [wozu] da suspensão (Cf. Heidegger, 1997, p. 429). Quer dizer: em Os problemas fundamentais de fenomenologia o horizonte é o para onde cada ekstase se dirige enquanto ela é determinada pelo caráter de suspensão. Isso implica que “pertence a cada ekstase enquanto tal, antes de tudo, um horizonte determinado por ela, que consuma a sua própria estrutura” (Cf. Heidegger, 1997, p. 435). Nesta consumação, cada ekstase é constituída por um horizonte com vistas ao qual cada uma delas se projeta para fora-de-si e se temporaliza como a ekstase que ela é.

Ora, se em Ser e tempo consideramos o horizonte de tempo como o de onde da abertura, e em Os problemas fundamentais de fenomenologia testemunhamos que o horizonte é assinalado como o para-onde da suspensão, perguntamos: essa diferença conceitual indica uma contradição? Pressupomos que em vez de se contradizerem tais conceitos se complementam. Lembremos que, em Ser e tempo, abertura é concebida como antecipação. No âmbito teórico da analítica existencial, por um lado, antecipação é tanto o modo próprio da ekstase do porvir, quanto ela é o para onde no qual o instante se dirige e se temporaliza como modo próprio da ekstase da atualidade. Nesse caso, a antecipação é um caráter da temporaneidade de tempo. Mas, por outro lado, a antecipação temporaliza o caráter de ser do Dasein determinando-o como o ente que em existindo projeta suas possibilidades de ser em direção à compreensão e a interpretação do sentido de ser dos entes em geral. Nesse caso, a antecipação é um caráter da temporaneidade de ser. Faz-se necessário demarcarmos, aqui, que o caráter temporâneo da antecipação é tão crucial para a analítica existencial, que ele está presente na própria semântica da palavra “Dasein.” Como? Basta rememorarmos que o prefixo “da que aparece junto ao verbo “sein” e constitui o ser do Dasein, em Ser e tempo, é definido como antecipação e abertura (Cf. Heidegger, 1986, p. 132, 133; Heidegger, 2006, p. 191, 192). Congruentemente com esta definição do “Da” os existenciais, enquanto caráter de ser que estruturam o Dasein, são fundamentados como abertura, e a existência, enquanto essência do Dasein, é concebida como possibilidades de ser em direção às quais o Dasein se projeta. Portanto, no âmbito de Ser e tempo podemos frisar que o horizonte, enquanto abertura antecipativa de tempo, é tanto o para onde no qual ser se manifesta como sentido, quanto o de onde o Dasein compreende o sentido de ser dos entes. Dessa maneira, horizonte pode ser entendido como destino do Dasein, isto é, como o para onde o Dasein caminha (Cf. Heidegger, 2002, p. 27) e se dirige para compreender e interpretar as suas possibilidades de ser. Logo, na perspectiva de abertura e destino, o horizonte também é determinado pelo caráter ekstático da suspensão, qual seja, o fora-de-si-além-de-si.  

Vimos que em Os problemas fundamentais de fenomenologia o horizonte ou indício esquemático constitui o destino ou o para-onde cada ekstase se dirige. Isto sugere que o direcionamento nesta preleção está referido às próprias ekstases da temporalidade e não mais às possibilidades de ser como em Ser e tempo. Então, no horizonte como indício esquemático ou para onde das ekstase não encontramos a concepção de tempo como o de onde o Dasein compreende e interpreta ser, antes, naquela preleção supomos que Heidegger opta por esclarecer como acontece as temporaneidades de tempo originário e de tempo vulgar. Obviamente, sabemos que Ser e tempo apresenta uma distinção clara entre tempo e ser, assim como sem sombra de dúvida estabelece as diferenças entre as temporalidades de tempo e as modalidades de compreensão e interpretação de ser. Ao equipararmos esses dois escritos do filósofo, nosso intuito não é apenas indicar as peculiaridades de cada um desses escritos com vistas a definição de horizonte, mas sim defender que a preleção Os problemas fundamentais de fenomenologia complementa e explica melhor a concepção de temporalidade tratada em Ser e tempo. Por que? Posto que nesta preleção Heidegger descreve como se constitui a temporanização do tempo originário, que fundamenta a temporalidade ekstático-horizontal, que ele já havia explicitado nos Prolegômenos à história do conceito de tempo e em Ser e tempo. Como já anunciamos na introdução dessa nossa exposição, nós estamos denominando as temporanizações do tempo originário de temporaneidade de tempo. Desta feita, nada mais oportuno do que indagarmos: como a temporaneidade de tempo é constituída?

Anteriormente dissemos que devido a estrutura ekstática cada ekstase se projeta para fora-de-si em direção às outras ekstases, agora, nossa finalidade consiste em destacarmos que devido ao caráter de suspensão que estrutura as ekstases da temporalidade originária, cada ekstase se projeta para fora-de-si em direção a seus esquemas horizontais ou indícios esquemáticos. Nesta projeção acontece uma modificação da unidade da temporalidade ekstático-horizontal e, conjuntamente, a cada projeção e suspensão das ekstases para além-de-si acontece uma modificação da unidade dos indícios esquemáticos para onde cada ekstase se projeta. Ou seja, à medida que acontece a temporaneidade de cada ekstase, reciprocamente, os indícios esquemáticos que as constituem modificam-se a si mesmos e se temporanizam. Em síntese, a temporaneidade das ekstases consiste no projetar-se destas para fora-de-si em direção a seu horizonte. Justamente por isto que em Os problemas fundamentais de fenomenologia horizonte é definido como o para onde cada ekstase se dirige e se consuma enquanto a ekstase que ela é. Isso significa que o horizonte ou indício esquemático, formalmente caracterizado como o para-onde da suspensão, determina as estruturas temporâneas, que constituem cada ekstase enquanto tal. Nesta temporaneidade, o horizonte é o fora das ekstases e, consequentemente, ele é além da ekstase que ele determina como esta e não outra ekstase. Cabe delimitarmos que apesar de o horizonte ser constituído como o para-onde da suspensão e ser definido como ekstático, ele não tem uma estrutura ekstática como as ekstases que ele estrutura (Cf. Heidegger, 1997, p. 435). Desta maneira, toda temporalização é ekstática, mas somente as ekstases têm uma estrutura ekstática.

Após essa apresentação sobre como se fundamenta a temporanização da temporalidade ekstático-horizontal, concluímos que a temporaneidade de tempo é constituída pelo horizonte ou indício esquemático, que estrutura as ekstases do porvir, vigor de ter sido e atualidade e as reúne em uma unidade ekstático-horizontal. É importante reforçarmos, aqui, que enquanto um modo da temporaneidade de tempo, a unidade ekstático-horizontal se modifica tanto quando as ekstases estão suspensas de si em direção ao seu horizonte, quanto quando elas se projetam rumo às outras ekstases. Concomitantemente, precisamos notificar que a temporaneidade de tempo determina também a temporalidade estendida e os lapsos de tempo, pois quando a unidade ekstático-horizontal se modifica estruturalmente, ela pode se modificar no modo próprio de temporalidade ou no modo impróprio de temporalidade. Quais são os horizontes ou indícios esquemáticos que estruturam a temporaneidade de tempo?

O que Praesenz significa com relação ao tempo e a temporalidade em geral? [...] O nome “Praesenz” indica que não temos em vista nenhum fenômeno ekstático como temos com atualidade e porvir. [...] Entretanto, existe um nexo entre atualidade e Praesenz. [...] A atualidade tem em si mesma um indício esquemático disto que para fora dela é “além de si para fora de si.” Aquilo que reside para além da ekstase enquanto tal com base em seu caráter de suspensão e que se encontra para além dela como por ela determinado, mais exatamente, o que em geral determina o destino do “além de si para fora de si” enquanto tal é a Praesenz como horizonte. A atualidade projeta-se a si mesma ekstaticamente em direção a Praesenz. A Praesenz como determinação fundamental do esquema horizontal desta ekstase, constitui a estrutura do tempo da atualidade. [...] Algo correspondente vale para as outras duas ekstases (Heidegger, 1997, p. 433, 435).

Infelizmente, Heidegger nomeou apenas o horizonte da temporaneidade que estrutura a ekstase da atualidade. Ele o denominou de Praesenz e o concebeu como o para-onde a ekstase da atualidade se projeta e se temporaliza (Cf. Ferreira, 2015). Quer dizer, é à medida que a ekstase da atualidade se projeta em direção a Praesenz, que ela se temporaliza como atualidade. Conforme já antecipamos, o caráter temporâneo e ekstático desta ekstase é o instante. No entanto, o instante também se temporaliza e se modifica no “modo da atualização de algo, que é pronunciado no dizer-agora” (Cf. Heidegger, 1997, p. 434). Porque o agora é uma modificação do instante, ele é considerado como um modo derivado da temporalidade ekstático-horizontal, o qual já descremos como intratemporalidade. Simultaneamente à modificação do instante em agora acontece uma modificação estrutural no caráter temporâneo da ekstase da atualidade, qual seja, a atualização. Nesta caracterização a atualização é um modo derivado da temporaneidade de tempo. Daí, entendemos que a ekstase da atualidade com sua modificação estrutural é a condição de possibilidade tanto da constituição da intratemporalidade, que consubstancia a temporaneidade da temporalidade originária, quanto da intramundanidade que determina a significância do mundo. Estas constatações nos permitem, por um lado, concluir que a intratemporalidade é uma modificação da temporalidade ekstático-horizontal e, por outro lado, acrescentar que o horizonte temporâneo da constituição do sentido de ser dos entes intramundanos é Praesenz. Com a explicitação do nexo entre o horizonte ou indício esquemático da Praesenz e da ekstase da atualidade, julgamos ter mostrado que a temporaneidade de tempo se dá através do nexo entre os indícios esquemáticos e suas correspondentes ekstases. Em que medida a temporaneidade de tempo constitui a temporaneidade de ser?

Temporaneidade de ser, transcendência do Dasein e intramundanidade dos entes

Segundo Heidegger, “a tarefa ontológica fundamental de uma interpretação originária do sentido de ser inclui, portanto, a elaboração da temporaneidade de ser (Temporalität des Seins)” (Heidegger, 1986, p. 19; Heidegger, 2006, p. 56). Apesar de ele fazer esta afirmação em Ser e tempo, ele não explicou, nessa obra, o que é a temporaneidade de ser. Por este motivo, nesse momento, nosso objetivo será apontar como podemos pensar a temporaneidade de ser. Contudo, antes de prosseguirmos, vale pontuarmos que em Prolegômenos ao conceito de tempo e em Ser e tempo, quando o autor expõe a temporalização dos existenciais, ele está descortinando como a temporalidade ekstático-horizontal determina os modos próprios ou impróprios de ser do Dasein e não como se dá a temporaneidade de ser. Do nosso ponto de vista, pensamos que a temporaneidade de ser acontece quando a temporaneidade de tempo temporaniza a manifestação de ser que se mostra no horizonte de tempo. Sabemos que em Prolegômenos e em Ser e tempo, o horizonte de tempo é visto como a abertura na qual a manifestação de ser é compreendida como sentido.  Pressupomos que, nesta temporanização, ser é apropriado no sentido de um a priori. Esta nossa pressuposição deriva da seguinte afirmação dos Prolegômenos: “a priori, fenomenologicamente entendido, [...] é um título para ser. [...] o sentido originário de a priori [...], consiste na determinação da estrutura do a priori como caráter de ser dos entes e não como caráter dos entes mesmos” (Heidegger, 1979b, p. 101-102). Ou seja, no âmbito dos Prolegômenos e de Ser e tempo, ser é temporanizado no sentido de a priori e este último, por sua vez, é temporanizado no sentido de caráter de ser. Logo, a temporaneidade de tempo, caracterizada pelo horizonte como abertura, constitui a temporaneidade de ser como a priori e como caráter de ser. Se em Problemas fundamentais de fenomenologia, horizonte é concebido como para onde da suspensão, como podemos refletir sobre a temporanização de ser nesta preleção? Intuimos que enquanto ser é temporanizado no horizonte da suspensão, a manifestação de ser é apropriada como velamento. Por que? À medida que o horizonte da suspensão caracteriza a ekstase da temporalidade como fora-de-si, inferimos que a manifestação de ser é temporanizada no sentido de retraimento. Tal entendimento facilita-nos a perceber por que a  partir da década de 1930 fica cada vez mais patente que juntamente à manifestação de ser acontece o velamento de ser. Para nós, a reflexão sobre a temporanização de ser pelo horizonte da suspensão, torna mais evidente as escolhas linguísticas feitas por Heidegger para expressar o modo de acontecimento de ser. Dentre elas podemos elencar os termos “inaparente, sem fundamento, abismo, dobra e mistério,” este último foi definido pelo filósofo como “um encoberto que sempre se encobre, mesmo quando se desencobre” (Heidegger, 2002, p. 28).

Após estes esclarecimentos, finalmente, temos condições de corroborar que a linha investigativa da filosofia heideggeriana na década de 1920, visava elaborar tanto as modalidades temporâneas de tempo, a saber, as temporalidades ekstático-horizontal que expõem o sentido de ser, quanto as modalidades temporâneas de ser que desvelam os caracteres de ser que constituem o Dasein e os caracteres de ser que determinam a intramundanidade dos entes simplesmente dados. Enquanto nos Prolegômenos e em Ser e tempo a manifestação de ser é temporanizada como caráter de ser, a constituição de ser do Dasein é estruturada pelos caracteres temporâneos tais como antecipação, abertura, suspensão, fora-de-si, além-de-si e direcionamento projetivo. Esta constituição nos permite atestar que os caráteres de ser que estruturam o Dasein são determinados pela temporaneidade de ser. Somente a nível de exemplo, recordamos que os caráteres temporâneos fundamentam os existenciais do ser-em (fora-de-si), compreender (abertura), disposição fundamental (suspensão), decadência (além-de-si), espacialidade (direcionamento projetivo) e, reciprocamente, a totalidade do todo existencial da constituição de ser do Dasein, que é nomeada de cura (Sorge). Devido a essa temporanização dos carateres de ser que estruturam o Dasein, em Ser e tempo a unidade da temporalidade ekstático-horizontal é vista como o sentido da cura (Cf. Heidegger, 1986, p. 326; Heidegger, 2006, p. 411). Considerando-se que no horizonte de tempo a manifestação de ser é temporanizada como caráter de ser e que a cura expõe a totalidade existencial do Dasein, podemos inferir que a temporaneidade de tempo e a temporaneidade de ser determinam o sentido de ser que constitui existencialmente o Dasein. Nesta perspectiva, a temporaneidade de tempo, que deixa transparecer o sentido de ser como um a priori, é a condição de possibilidade para acessarmos a temporaneidade de ser, que desvela o sentido de a priori como um caráter de ser. Por conseguinte, a temporaneidade de tempo é a condição de possiblidade do sentido de ser, e a temporaneidade de ser é a condição de possibilidade para a constituição do sentido de ser do Dasein e, simultaneamente, do sentido de ser dos entes em geral, já que é o Dasein quem constitui a significância do mundo. Como a temporalidade ekstático-horizontal, que é um modo de temporaneidade de tempo, constitui o ser do Dasein e o sentido da cura?

Caracterizamos, terminologicamente, [o fora-de-si como suspensão e caracterizamos], este caráter de suspensão [Entrückung] como o caráter ekstático do tempo. [...] É com este caráter ekstático que interpretamos a existência que, vista ontologicamente, é a unidade originária de vir-em-direção-a-si, de retornar-a-si e de ser-fora-de-si que atualiza. A temporalidade determinada ekstaticamente é a condição da constituição de ser do Dasein (Heidegger, 1997, p. 377, 378).

De acordo com essa citação, podemos dizer que os caráteres de direção-a, fora-de-si e além-de-si, constitutivos da temporalidade ekstático, temporaniza o caráter de ser do Dasein como “vir-em-direção-a-si, retornar-a-si e ser-fora-de-si que atualiza.” Todavia, não podemos nos esquecer que a temporalidade é também horizontal, nessa determinação temporânea ela é caracterizada como suspensão e o caráter de ser do Dasein é temporanizado como abertura e para onde em direção ao qual o Dasein sai de si e vai-em-direção-ao ser para retornar à compreensão e interpretação do sentido de ser dos entes em geral. Porque os caráteres temporâneos de suspensão, abertura, direcionamento e fora-de-si-além-de-si estruturam os caráteres de ser do Dasein, entendemos que eles edificam a temporaneidade de ser, que fundamenta as modalidades de ser do Dasein.  Melhor dizendo: Ao passo que a temporalidade ekstático-horizontal temporaniza os caráteres de ser do Dasein, a temporanização desses caráteres expõem a temporaneidade de ser do Dasein. Enquanto os caráteres de ser do Dasein são temporanizados pela temporalidade ekstático-horizontal, o Dasein é constituído como o ente que existe fora-de-si, para além dos entes em direção ao sentido de ser. Isso implica que a temporalidade ekstático-horizontal fundamenta o ser do Dasein como suspensão e constitui o sentido da cura como antecipação. Nesta temporanização de ser, o Dasein é determinado como cura, isto é, como o ente que existe lançado em uma significância de mundo [ser-em], que vive junto aos entes [ser-junto-a] antecipando e projetando possibilidades de ser [anteceder-se]. Donde podemos acrescentar que, enquanto cura, o Dasein é definido pelos caráteres de vir-em-direção-a, retornar-para e ser-fora-de-si. Enquanto tal, o Dasein é caracterizado como o ente que antecede a si mesmo e projeta sentido de ser em direção ao mundo. Isto significa que a constituição do sentido de ser do Dasein e dos entes em geral acontece na suspensão e na ultrapassagem da significância de mundo em direção à manifestação de ser no horizonte de tempo. Sendo assim, questionamos: como a temporaneidade de ser estrutura o Dasein? Como transcendência, já que o Dasein é o ente que ultrapassa os demais entes e vai além de si em direção ao ser, para retornar à interpretação do sentido de ser do mundo. Neste sair-se-de-si o Dasein projeta o sentido temporanizado de ser, mediante o qual ele compreende e determina o modo de ser dos entes em geral. Diante dessas afirmações concluímos: porque o sentido da cura concerne ao anteceder-se do Dasein sempre em e junto ao mundo, a temporalidade ekstático-horizontal temporaniza o ser do Dasein como transcendência. Apoiamos esta nossa constatação na seguinte frase de Heidegger: “a transcendência do Dasein se fundamenta na unidade originária ekstático-horizontal da temporalidade [Zeitlichkeit]” (Heidegger, 1997, p. 425, 428, 429). Julgamos que esta citação recortada de Os problemas fundamentais de fenomenologia nos permite adicionar que a temporalidade ekstático-horizontal fundamenta a transcendência como um caráter da temporaneidade de ser do Dasein. Mas, como a temporaneidade de ser constitui o sentido de ser dos entes simplesmente dados?

Levando-se em conta, por um lado, que o Dasein somente compreende ser enquanto este é temporanizado como sentido e, por outro lado, que a intratemporalidade é uma modificação estrutural da temporalidade ekstático-horizontal, que consubstancia os modos da temporalidade originária em lapsos de tempo, podemos considerar que, na filosofia heideggeriana, a intratemporalidade é o modo de temporalização mediante o qual o Dasein compreende o sentido de ser dos entes simplesmente dados como significância do mundo. Por que? Visto que os entes simplesmente dados são estruturados pelo caráter de ser denominado de categoria, o qual “deixa e faz todos verem o ente em seu ser” (Heidegger, 1986, p. 44-45; Heidegger, 2006, p. 88). Devido a essa estruturação de ser, os entes simplesmente dados não são caracterizados pelos existenciais e nem temporanizados pelo caráter de tempo como abertura, suspensão ou antecipação. Dessa forma, a temporalidade ekstático-horizontal não temporaliza os entes simplesmente dados, antes, a temporalização desses entes é constituída pelo Dasein, que ao se temporanizar temporaliza os entes que estão junto a ele no mundo. Esta temporalização acontece porque quando o Dasein é temporanizado, simultaneamente, ele compreende o ser como sentido e se compreende como um modo de ser temporanizado dessa ou daquela maneira. E concomitantemente à essa temporanização ele compreende e interpreta o sentido de ser dos entes simplesmente dados e institui a significância do mundo. Na analítica existencial, quando os entes simplesmente dados são compreendidos e temporalizados pelo Dasein, eles são mundanizados e, por isso, eles são chamados de entes intramundanos.  Isto quer dizer que a mundanidade do mundo é um caráter de ser do Dasein e não dos entes simplesmente dados.  Neste viés, a intramundanidade é determinada pelo caráter de ser do Dasein (Cf. Heidegger, 1997, p. 420, 240, 241), mediante o qual ele compreende, interpreta e comunica a significância dos entes simplesmente dados. Posto que a intramundanidade dos entes simplesmente dados é fundamentada pelos caráteres de ser que estruturam o Dasein, podemos afirmar que a intramundanidade dos entes simplesmente dados está enraizada na temporaneidade de ser. Como?  Quando o Dasein compreende o sentido temporâneo de ser dos entes simplesmente dados, ele atualiza a temporalidade dos entes intramundanos e transfigura a mundanidade do mundo. Porque o modo de temporalidade dos entes intramundanos é o da atualização, eles são determinados pela temporalidade estendida e seus lapsos de tempo. Desta feita, o modo de temporanização dos entes intramundanos é o da intratemporalidade. Considerando-se que os entes simplesmente dados são temporanizados e mundanizados pelo Dasein, e que o Dasein somente compreende e interpreta o sentido de ser dos entes em geral quando ele sai de si e ultrapassa os entes em direção ao ser, podemos inferir que enquanto a intramundanidade é um modo de compreensibilidade do sentido temporâneo de ser dos entes simplesmente dados, ela é constituída pela transcendência do Dasein que, como já foi dito, é um caráter da temporaneidade de ser.  Por isto, entendemos que o sentido dos entes simplesmente dados é projetado como significância de mundo e a constituição de ser desses entes é determinada como intramundanidade. Nesta medida, julgamos que a intramundanidade é um modo de compreensão e interpretação do sentido de ser do mundo, o qual é atualizado a cada temporalização do Dasein. Se a intramundanidade é uma determinação possível de ser do simplesmente dado (Cf. Heidegger, 1997, p. 240) significada e temporanizada pelo Dasein, então, “todo simplesmente dado que o Dasein encontra é necessariamente intramundano” (Heidegger, 1997, p. 360).

Considerações finais

Ao longo dessa nossa exposição sobre a correlação entre temporaneidade, transcendência, intramundanidade e intratemporalidade, chegamos às seguintes teses: [i] a temporalidade ekstático-horizontal, enquanto um modo da temporaneidade de tempo, fundamenta o sentido temporâneo de ser do Dasein, a saber, antecipação, abertura e suspensão; [ii] a transcendência do Dasein é um caráter da temporaneidade de ser; [iii] a intratemporalidade é uma modificação estrutural da temporalidade ekstático-horizontal; [iv] a intramundanidade é uma determinação da transcendência do Dasein e, por conseguinte, das temporaneidades de tempo e de ser; [v] a temporaneidade de tempo é o horizonte no qual o sentido de ser aparece como um a priori, enquanto tal ela é a condição de possiblidade da temporaneidade de ser; [vi] a temporaneidade de ser desvela o sentido de a priori como um caráter de ser que estrutura os entes, razão pela qual ela é a condição de possibilidade para a constituição do sentido de ser dos entes. Estas teses foram essenciais para esclarecermos que a temporaneidade de tempo é o modo de temporanização mais originário, porque ao fundamentar a temporalidade ekstático-horizontal e a temporaneidade de ser, a temporaneidade de tempo se torna a base estrutural para a constituição da transcendência do Dasein, da intratemporalidade e da intramundanidade. Por este motivo, defendemos tanto que a temporaneidade de tempo é a fonte originária e fundante dos nexos de temporalidades, que compõem a temporalidade ekstático-horizontal e a intratemporalidade; quanto que a temporaneidade de tempo fundamenta os nexos da temporaneidade de ser, que constituem a totalidade estrutural do Dasein e a mundanidade dos entes simplesmente dados.

À guisa de conclusão é importante ressaltarmos que através da análise dos caráteres de suspensão, fora-de-si, além-de-si e direcionamento projetivo, que constituem a temporalidade ekstático-horizontal, por um lado, mostramos como é possível elaborarmos a temporaneidade de tempo enquanto “dar-se de tempo,” que temporaniza o sentido de ser como abertura, suspensão e antecipação; e por outro lado, clareamos que na temporaneidade de ser o Dasein é temporanizado como transcendência e cura. Sintetizando, podemos consumar que a temporaneidade de tempo é a abertura e o horizonte de onde e para onde a manifestação de ser é temporanizada como a priori, e que a temporaneidade de ser é a abertura e o horizonte de onde e para onde o sentido de a priori é temporanizado como caráter de ser.

Em que medida as teses acima relacionadas demarcam a importância da filosofia de Aristóteles para a elaboração da fenomenologia hermenêutica de Heidegger? Claramente, podemos concluir que os questionamentos de Aristóteles sobre o tempo, levaram Heidegger a nomear uma das modalidades de tempo como vulgar e a tratá-la como uma modificação estrutural da outra modalidade de tempo que ele denominou de originária. Obviamente, ele considerou as modalidades do tempo originário como alicerce para as modalidades do tempo vulgar. Conforme relatamos, anteriormente, da mesma forma que Heidegger elabora os caracteres de ser, que estruturam o Dasein e os entes intramundanos retornando aos modos cotidianos de ser do Dasein, pressupomos que ele concebe as temporaneidades de tempo e de ser voltando-se para as modalidades de tempo vulgar, que ele conceituou em conformidade com a leitura que ele fez dos trabalhos aristotélicos sobre o tempo. Além disso, não podemos deixar de apontar, aqui, que a filosofia de Aristóteles também foi crucial para Heidegger esboçar o seu conceito de diferença ontológica e de situação hermenêutica.

Referências Bibliográficas

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FERREIRA, Acylene Maria Cabral. A priori histórico como desdobramento originário e horizontal do a priori ideal. O que nos faz pensar, v. 24, n. 36, p. 265-295, 2015.

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Acylene Maria Ferreira

Acylene Maria Cabral Ferreira é professora Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1988), Mestrado (1993) e Doutorado (1997) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2010), Boston College (2016), Fordham University (2021) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (2022). Atua principalmente na área de Filosofia contemporânea, com ênfase em fenomenologia, hermenêutica e inteligência artificial.

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