
Heidegger, a techne como um modo da verdade e o fim da filosofia
Heidegger, techne as a mode of truth and the end of philosophy
Luís Gabriel Provinciatto
luis.provinciatto@puc-campinas.edu.br
PUC/Campinas – Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Recebido: 01/10/2024
Received: 01/10/2024
Aprovado:17/12/2024
Approved: 17/12/2024
Publicado: 31/12/2024
Published: 31/12/2024
RESUMO
Este artigo analisa a relação entre τέχνη e ἀλήθεια, mostrando como Heidegger recorre a essas concepções gregas para afirmar que a técnica moderna representa o fim da filosofia. Trata-se de ler Heidegger a partir de sua própria obra, assumindo como ponto de partida as preleções O Sofista de Platão (1924/1925). Nestas, ao preparar a interpretação do diálogo platônico, Heidegger mostra que, em Aristóteles, ἐπιστήμη e τέχνη são os dois modos imediatos do ἀληθεύειν e dizem respeito, respectivamente, àquilo que propicia o saber (ἐπιστημονικόν) e a reflexão (λογιστικόν). Em sua obra tardia, Heidegger postula a técnica moderna, cuja essência é denominada Ge-stell, como o fim da filosofia. Nesse cenário, este artigo propõe construir uma chave de leitura para a técnica moderna como fim da filosofia a partir da interpretação que Heidegger apresenta sobre a τέχνη em Platão e Aristóteles. Argumenta-se que a técnica moderna não é apenas um meio para um fim, mas um modo da verdade que subjugou até mesmo o pensar filosófico, culminando no domínio da técnica sobre todas as esferas da existência.
Palavras-chave: técnica; verdade; fim da filosofia; Aristóteles; Platão.
ABSTRACT
This paper analyzes the relationship between τέχνη and ἀλήθεια, showing how Heidegger draws on these Greek conceptions to assert that modern technology represents the end of philosophy. The approach is to read Heidegger through his own work, taking as a starting point his 1924/1925 lectures on Plato’s Sophist. In these lectures, while preparing the interpretation of Plato’s dialogue, Heidegger demonstrates that in Aristotle, ἐπιστήμη and τέχνη are the two immediate modes of ἀληθεύειν and pertain, respectively, to that which provides knowledge (ἐπιστημονικόν) and reflection (λογιστικόν). In his later work, Heidegger postulates that modern technology, whose essence is termed Ge-stell, marks the end of philosophy. In this context, the article aims to develop a framework for understanding modern technology as the culmination of philosophy, based on Heidegger’s interpretation of τέχνη in Plato and Aristotle. It argues that modern technology is not merely a means to an end, but a mode of truth that has even subordinated philosophical thought, resulting in the dominance of technology over all spheres of existence.
Keywords: technology; truth; the end of philosophy; Aristotle; Plato.
Introdução
Em O Sofista de Platão, preleções do semestre de inverno de 1924/1925, Heidegger se propõe a interpretar o diálogo platônico a partir de Aristóteles, justamente porque é pela perspectiva do intérprete que se vê aquilo que não ficou dito no diálogo:
For one who has learned to understand an author it is perhaps not possible to take as a foundation for the interpretation what the author himself designates as the most important. It is precisely where an author keeps silent that one has to begin in order to understand what the author himself designates as the most proper (Heidegger, 2003, p. 32-33).
Neste trabalho, pretendemos utilizar esse mesmo método de interpretação, porém, lendo Heidegger a partir de Heidegger. Trata-se de interpretar a essência da técnica moderna a partir da leitura que o próprio Heidegger faz das concepções aristotélica e platônica de τέχνη, expostas rigorosamente nas já mencionadas preleções sobre O Sofista. Faremos isso com o objetivo de mostrar que a concepção grega, tal qual apresentada por Platão e Aristóteles, é fundamental para compreender a essência da técnica moderna e sua caracterização como o “fim da filosofia”.
Para tanto, seguiremos um duplo caminho: em primeiro lugar, analisaremos a concepção aristotélica de τέχνη, conforme exposta no Livro VI da Ética da Nicômaco. Nossa análise se baseará na interpretação de Heidegger, presente tanto nas preleções sobre O Sofista quanto no trecho inicial de A pergunta pela técnica (1953). Ao citar explicitamente Aristóteles no texto de 1953 (cf. Heidegger, 1977, p. 4-7), Heidegger evidencia a importância dessa figura para sua própria reflexão sobre a técnica.
Em seguida, voltaremos nossa atenção para a concepção platônica de τέχνη, presente no diálogo O Sofista. Em tal diálogo, a figura do “pescador com anzol” exemplifica de forma insigne o caráter apropriativo da τέχνη, um aspecto que será crucial para a compreensão da técnica moderna. Por fim, confrontaremos a concepção platônica e aristotélica de τέχνη com a concepção heideggeriana de Ge-stell (cf. Heidegger, 1977, p. 20; Heidegger, 2012, p. 31-32). Ao analisarmos as semelhanças e diferenças entre essas concepções, poderemos compreender como a técnica moderna, com sua estrutura estruturante, representa um desdobramento e, ao mesmo tempo, uma ruptura em relação à tradição filosófica.
1. A τέχνη como um modo da verdade
Em grego, ser-verdadeiro se expressa pela palavra αληθεύειν, que significa o mesmo que descobrir (entdecken) (Heidegger, 2003, p. 64) ou desvelar (entbergen) (Heidegger, 1977, p. 11), no sentido de retirar o encobrimento de algo. Verdade, por sua vez, é expressa por meio de uma palavra privativa: ἀλήθεια, cujo significado é “to be hidden no longer, to be uncovered” (Heidegger, 2003, p. 11). Essa forma privativa indica que, para os gregos, o não-estar-encoberto (Unverdecktsein) não é algo disponível desde o início e, na maioria das vezes, precisa ser conquistado. Assim, conhecer o que é verdadeiro significa compreender o modo como ocorre o seu desencobrimento, ou seja, também conhecer o seu vir-a-ser. Perguntar pela verdade, em última análise, é perguntar pelo modo de ser de algo.
No sexto livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles parte do pressuposto de que existem cinco disposições através das quais o Dasein humano põe a descoberto algo em seu ser, isto é, “alcança a verdade por meio da afirmação ou da negação” (Aristotle, Nicomachean Ethics [Nic. Et.], VI, 3, 1139b): τέχνη, επιστήμη, φρονεσις, σοφία e νους. Por ora, interessa-nos apenas a τέχνη, cujo modo próprio de realização é a ποίησις.
Em primeiro lugar, o modo de ser de algo especificamente desencoberto por meio da τέχνη, juntamente com o desencoberto pela φρονεσις, propicia a reflexão (λογιστικόν), enquanto o desencoberto por meio da επιστήμη e da σοφία propicia o saber (ἐπιστεμολονικόν) (cf. Aristotle, Nic. Et., VI, 1, 1139a). Saber e reflexão não são regiões ontológicas estabelecidas a partir de uma consideração teórica, mas orientações dadas pelo próprio modo de desencobrimento do ser de algo. Na επιστήμη, por exemplo, o ser possui o aspecto daquilo que é sempre presente, sendo preservado em seu ter sido desencoberto e, portanto, podendo ser demonstrado. Já na τέχνη, que propicia a reflexão, o que primeiro é desencoberto é o εἶδος, o aspecto fundante do ser-que-virá (Sein-Werdende), que ganhará uma forma específica e, por meio de uma causa eficiente, uma subsistência em uma matéria, com vistas a um determinado fim. Cotidianamente, contudo, τέχνη é επιστήμη (Aristotle, Nic. Et., VI, 7, 1141a), pois esta já traz consigo um εἶδος, que, no final das contas, é o que permanece e pode ser conhecido.
O objeto da τέχνη é dado no εἶδος, de modo que a τέχνη é sempre um retificar-se pelo εἶδος que assim se apresenta e que deve ser produzido de determinada maneira. Em outras palavras, a τέχνη não detém a todo momento a αρχέ de algo, pois ela lhe é dada em função do conhecimento, capaz de projetar um εἶδος que já traz consigo um fim (τέλος). Desse modo, a ποίησις – o produzir próprio à τέχνη – difere radicalmente da φύσις, que possui a origem de seu ser em si mesma. Na φύσις, a αρχέ se acha tanto no produtor quanto no produzido, ao passo que na ποίησις, a obra acabada já se acha para além do “fazer poiético”. A obra pertence ao “saber tecnopoiético” tão somente enquanto ainda não está pronta, ou seja, a τέχνη não tem “em mãos” a obra em si, mas apenas a imagem do que virá a ser: “[…] it does not have at its disposal, with absolute certainly, the sucesso f the owrk. In the end the ἔργόν is out of the hands of τέχνη. Here we see a fundamental deficiency in the αληθεύειν which characterizes τέχνη” (Heidegger, 2003, p. 31).
Além disso, reside na τέχνη uma tendência a se libertar do mero produzir, tornando-se por si mesma autônoma, isto é, uma επιστήμη. Tal tendência, conforme exposto por Aristóteles na Metafísica (I, 1, 981b13ss), reside no espanto – ou na admiração (θαυμάζειν) – que ela provoca. A respeito disso, Heidegger afirma, citando precisamente esse trecho da Metafísica:
The τεχνίτης [someone endowed with τέχνη], he who, beyond what everyone sees, ‘dis-covers’ something, is admired”, i.e., he is respect as one who distinguishes himself, who makes something that other people would not be capable of, yet precisely “not because what he invents might be very useful” but because he advances the grasp of beings, no matter whether what he discovers is great or small: i.e., because he is σοφώτερος. His discovering goes beyond the immediate possibilities in the power of Dasein. In this way, the admiration dispensed by everyday Dasein demonstrates that in Dasein itself there lives a special appreciation of dis-covery. Dasein is itself directed toward discovering beings and toward that by itself (Heidegger, 2003, p. 64).
O descobrir em função não de uma utilidade, mas do próprio descobrir se configura como a tendência da τέχνη ser uma επιστήμη. Essa autonomia não diz respeito ao domínio de diferentes modos de produção, mas à ocupação com o εἶδος projetado, de tal modo que, ao ocupar-se especificamente com o εἶδος, ou seja, com a αρχέ da τέχνη, o τεχνίτης tenta dominá-lo em sua totalidade, não sendo apenas a causa eficiente que dá forma a uma matéria com vistas a um fim, mas a causa que direciona o vir-a-ser de algo de determinada maneira, com esse ou aquele fim. No limite, a tendência da τέχνη ser uma επιστήμη abre a possibilidade de a τέχνη ser um fim em si mesma.
Assim, a τέχνη está originariamente caracterizada como um meio para fins e como um fazer do Dasein humano. Exatamente esses dois enunciados são reproduzidos por Heidegger no início de A pergunta pela técnica: eles caracterizam a primeira definição da técnica, uma definição instrumental-antropológica, que diz que o Dasein humano quer manter a técnica sob seu controle, o que o caracteriza como um querer-ser-dono (Meistern-wollen) (Heidegger, 1977, p. 5). Isso se torna cada vez mais evidente à medida que o processo de produção escapa a seu domínio, ou melhor, quando o fim não é mais só o produto produzido, mas o próprio avanço técnico, que, ao apropriar-se de si mesmo, torna-se tecnológico e, por que não, tecnocrático. Essa definição aristotélica de τέχνη, embora correta, não basta para descrever a essência da técnica moderna, donde a proposta heideggeriana de, para chegar à sua essência, procurar por aquilo que é verdadeiro passando pelo que é correto:
But suppose now that technology were no mere means, how would it stand with the will to master it? Yet we said, did we not, that the instrumental definition of technology is correct? To be sure. The correct always fixes upon something pertinent in whatever is under consideration. However, in order to be correct, this fixing by no means needs to uncover the thing in question in its essence. Only at the point where such an uncovering happens does the true come to pass. For that reason the merely correct is not yet the true. Only the true brings us into a free relationship with that which concerns us from out of its essence. Accordingly, the correct instrumental definition of technology still does not show us technology's essence. In order that we may arrive at this, or at least come close to it, we must seek the true by way of the correct (Heidegger, 1977, p. 6-7).
Não se trata de simplesmente recusar a concepção instrumental-antropológica, mas, ao contrário, de tomá-la como ponto de partida, ou seja, trata-se de assumir a compreensão cotidiana, amplamente acessível: se ela diz que a técnica é um meio para fins, então se trata de investigar, em primeiro lugar, o produzir originário, isto é, o trazer algo para fora e adiante (her-aus-bringen), fazendo-o aparecer. Entende-se, com isso, a ênfase dada à τέχνη em A pergunta pela técnica e não aos outros modos de desencobrimento, o que ajuda a justificar a retomada da teoria das quatro causas (cf. Heidegger, 1977, p. 6), pois estas configuram a τέχνη desde uma perspectiva instrumental-antropológica: “wherever ends are pursued and means are employed, wherever instrumentality reigns, there reigns causality” (Heidegger, 1977, p. 6). Em A pergunta pela técnica, portanto, a referência a Aristóteles diz respeito à τέχνη como um modo de pôr a descoberto o ser do ente, ou seja, diz respeito à τέχνη como uma modalidade da verdade.
Por ora, isso é suficiente para avançar em nossa leitura com vistas a também encontrar a referência de Heidegger a Platão, o que, por sua vez, exige que nos detenhamos brevemente em seu diálogo Sofista, no qual a τέχνη é duplamente caracterizada: como produzir e como apreender.
2. Apropriação e produção: a dualidade da τέχνη no Sofista
De fato, o tema da τέχνη (Plato, Sophist [Soph.], 219a-221c1), no diálogo Sofista, de Platão, aparece quando a figura do pescador com anzol (ἀσπαλιευτής) é trazido à tona pelo estrangeiro que dialoga com Teeteto como exemplo capaz de propiciar o início da investigação a respeito de se há ou não diferença entre o filósofo, o político e o sofista (cf. Plato, [Soph.], 216c1-217b1). Não se trataria de nenhum equívoco, então, dizer que o tema da τέχνη não é central no diálogo, mas serve como um caminho para chegar àquilo que ali de fato importa. Embora não seja o foco principal, é justamente esse tema que será explorado e desenvolvido na sequência do artigo.
No diálogo, em primeiro lugar, é levantada a pergunta se o pescador é alguém dotado ou não de uma τέχνη, logo, se é τεχνίτης ou ατεχνος. Assume-se que ele é dotado de τέχνη (cf. Plato, [Soph.], 219a5ss), ficando estabelecido que τέχνη, para os dialogantes, é pensada a partir da δυναμις, utilizada para indicar um poder, isto é, uma capacidade para fazer algo, uma aptidão (cf. Plato, [Soph.], 219b8ss).
A τέχνη, por sua vez, não diz respeito apenas ao pescador e à pesca, mas também ao cultivo do solo, à lida com as coisas da terra e do mar, à fabricação de ferramentas e utensílios de uso cotidianos, à produção de obras de arte por meio da imitação (cf. Plato, [Soph.], 219a10). Destaca-se o que há de comum entre esses casos: neles se traz algo à luz, produz-se algo que antes não existia. A produção, assim, é entendida como esse fazer passar do não-ser ao ser (cf. Plato, [Soph.], 219b4ss), donde a conclusão de Heidegger: “this τέχνη, as know0how, is related to an ἄγειν, ‘conducting, bringing’, in the broadest sense, na action we can also call πρᾶξις” (Heidegger, 2003, p. 186). Tem-se, então, o seguinte:
Here, therefore, Being signifies, in a wholly determinate sense, the presence of definite things in the circuit of everyday use and everyday sight. οὐσία means availability for this use. εἰς oὐσίαν ἄγειν, to conduct into being, means therefore: to con-duce into availability for everyday life, in short: to produce (Heidegger, 2003, p. 186).
Essa concepção diz que ser significa “estar à disposição”, “estar aí presente”, como algo produzido. O primeiro aspecto da τέχνη que aparece no diálogo é o do produzir algo, podendo-se afirmar, então, que aí está em voga a ποίησις, que, na interpretação heideggeriana do diálogo platônico, não deixa de estar vinculada à πρᾶξις, pois o saber-fazer da τέχνη corresponde a um fazer em sentido maximamente amplo, que não só aquele da produção tecnopoiética. Precisamente essa concepção de ser como produzir e como colocar à disposição propicia a reflexão.
Contudo, no diálogo platônico, o produzir e o colocar à disposição não são os únicos aspectos da τέχνη, pois ela também designa “as atividades que têm a forma de disciplina e de conhecimento, e ainda, de ganho pecuniário, de luta e de caça” (Plato, [Soph.], 219c2ss). Ou seja, a τέχνη diz respeito também à apropriação, ou melhor, ao “trazer-para-si” aquilo que já está aí disponível, fazendo referência à capacidade de tomar posse de – apropriar-se de – algo que, por sua vez, não necessariamente precisa ser produzido por meio da ποίησις, uma vez que também a φύσις é produtora. O que primeiro é apropriado, no entanto, não é a coisa em si, mas o seu εἶδος, o que justifica a tendência de a τέχνη ser uma επιστήμη, que, por sua vez, propicia o saber. De tal modo, a τέχνη se configura como sendo um modo privilegiado da verdade do ser, pois ela propicia tanto a reflexão – por meio do produzir – quanto o saber – por meio da apreensão.
O pescador é alguém que detém uma τέχνη em seu aspecto apropriativo (cf. Plato, [Soph.], 219d4). Tal aspecto, por sua vez, conforme ainda expõem os dialogantes, pode dizer respeito tanto à “troca”, ao “cambio” (μεταβλητικόν) quanto “àquilo que pode ser apoderado” (χειρωτικόν) (cf. Plato, [Soph.], 219d5ss). Na “troca”, não há uma apropriação unilateral, já que alguém me dá uma coisa de que eu me aproprio e eu dou algo por essa coisa que é por mim apropriada. No “apoderamento”, há apropriação unilateral, na qual eu lanço mão e arrebato algo. Essa apropriação unilateral própria ao apoderamento pode ser consentida ou não-consentida (cf. Plato, [Soph.], 219c7ss): há consentimento quando há possibilidade de defesa, por exemplo, a luta por algo indica um apoderamento unilateral consentido; há não-consentimento quando não há a possibilidade da defesa, de modo que aquilo que é apropriado não “ganha voz”.
O pescador se apropria de sua presa de maneira não-consentida e pode fazer isso de diferentes maneiras, ou melhor, por meio de vários utensílios: cercando-a por meio de uma rede (cf. Plato, Soph., 220c5ss), ferindo-a com um arpão ou fisgando-a com um anzol (cf. Plato, [Soph.], 220c10ss). A rede, após armada, age por si mesma, capturando a presa ainda viva; o arpão fere o peixe de cima para baixo (cf. Plato, [Soph.], 220e2ss), produzindo um ferimento naquilo que é apoderado – uma mácula; por fim, o anzol pega o peixe de maneira acertada, ferindo-o também, mas não de cima para baixo, ou seja, sem gerar uma mácula visível, pois ele é fisgado em um local preciso – a cabeça ou a boca. A pesca com anzol traz o peixe do fundo para a superfície, de baixo para cima (cf. Plato, [Soph.], 220e8-221a4) – para fora e adiante – de maneira precisa, fisgando a presa no ponto exato, ferindo-o sem mácula. O pescador com anzol captura sua presa pelo lugar adequado, trazendo-a à tona em totalidade, mas não lhe concedendo poder de reação, como no caso da pesca com rede, nem lhe impingindo uma mácula, como no caso da pesca com arpão. A esse respeito, Heidegger afirma:
[…] it is characteristic of the πληγή [wound] of the angler that, unlike the harpoonist, he is not simply out to strike the hunted object and wound it in any which way. Instead, he must see to it that it bites: περὶ τὴν κεϕαλὴν καì τò στóμα (221a1), the booty is to be grasped only in a quite determinate place (Heidegger, 2003, p. 197).
O aspecto apropriativo da τέχνη, no diálogo platônico, encontra a sua possibilidade suprema na apropriação não-consentida, que traz algo à vista em sua integralidade e, ao mesmo tempo, tira-lhe o poder de reação, subjugando-o (cf. Plato, [Soph.], 221a6-221c3). Interessante notar que a apropriação não-consentida é apresentada como sendo a mais precisa, aquela que serve de modelo para os dialogantes (cf. Plato, [Soph.], 221c6ss). Ou seja, a apropriação que não gera mácula, que captura a presa integralmente e não permite reação é o acabamento mais refinado da τέχνη, o seu fim mais próprio. Nesse sentido, a partir do diálogo platônico, pode-se dizer que o momento inicial da τέχνη se dá na ποίησις, isto é, no produzir, que faz passar do não-ser ao ser, e que seu acabamento se dá na apropriação não-consentida do que não necessariamente é produzido de maneira tecnopoiética, pois o peixe – no caso do pescador com anzol – não é por ele produzido. Contudo, a apropriação aí levada a cabo reivindica o emprego de τέχνη, não somente no que diz respeito à produção dos artefatos necessários para a pesca, mas ao domínio do modo de captura, isto é, não necessariamente do que (Was) objetual, mas do como (Wie) da realização. Só assim é possível entender a passagem da τέχνη à επιστήμη.
3. A essência da técnica moderna e o fim da filosofia
Mas o que a concepção platônica tem a ver com a técnica moderna? Em primeiro lugar, devemos descrever a técnica moderna como sendo, sobretudo, “técnica de máquinas” (Maschinentechnik), “the most visible outgrowth of the essence of modem technology, an essence which is identical with the essence of modem metaphysics” (Heidegger, 2002, p. 57). Da caracterização da técnica moderna, então, faz parte a maquinação (Machenschaft) (Heidegger, 2009, p. 287; Heidegger, 2012, p. 28), que não deixa de ser um meio para um fim e “que faz do mundo uma gigantesca fábrica” (Borges-Duarte, 2019, p. 138). Mais precisamente, a maquinação descreve um sistema em funcionamento, um sistema que repete e propaga mecanicamente sempre o mesmo modelo de produção, um modelo pautado na ciência exata da natureza, no “‘triunfo do método sobre a ciência’, [o que] possibilita uma calculabilidade generalizada e uniforme e, nesse sentido, universal, ou seja, uma capacidade de domínio tanto do mundo inanimado como do vivo” (Borges-Duarte, 1993, p. 179). Não é errado afirmar, então, que a técnica moderna projeta outro modo de ser da natureza, descobrindo-a desde uma nova perspectiva, já não mais identificando-a à φύσις (Nunes, 2004).
Se olharmos para o §69 de Ser e tempo, onde a preocupação de Heidegger é, sobretudo, apresentar um conceito existencial de ciência, a Física Matemática já aparece como exemplo singular da gênese ontológica da ciência moderna, evidenciando o projeto desse novo modo de ser:
What is decisive for its development lies neither in its higher evaluation of the observation of "facts," nor in the "application" of mathematics in determining events of nature, but the mathematical project of nature itself. This project discovers in advance something constantly objectively present (matter) and opens the horizon for the guiding perspective on its quantitatively definable constitutive moments (motion, force, location, and time). Only "in the light of' a nature thus projected can something like a "fact" be found and be taken in as a point of departure for an experiment defined and regulated in terms of this Project. […] What is decisive about the mathematical project of nature is again not primarily the mathematical element as such, but the fact that this project discloses a priori (Heidegger, 1996, p. 331)[1].
É a partir desse a priori aberto pelo projeto matemático que a modernidade descobre a natureza, que “não está aí circundando o homem com uma abundância de objetos” (Nunes, 2004, p. 286), mas como fonte de recursos a serem investigados, explorados, transformados, armazenados e distribuídos. Conforme dirá Heidegger posteriormente em A pergunta pela técnica, esse projeto possui um intrínseco caráter desafiador – um desafiar (Herausfordern) – “which puts to nature the unreasonable demand that it supply energy that can be extracted and stored as such” (Heidegger, 1977, p. 14). Em outras palavras, a natureza passa a ser apropriada de maneira não-consentida, pois, para ela, não há a possibilidade da recusa, de não fornecer a energia, de não se submeter à dominação. Até o próprio ser humano passa a ser exigido enquanto mão-de-obra e, para ele, a princípio, parece não haver hipótese de retorno, pois, desde sua perspectiva, qualquer progresso só acontece por meio do progresso da técnica.
A maquinação da técnica moderna não diz respeito tão só à capacidade adquirida de construir máquinas com vistas a um mero “fazer algo” – a um produzir:
Técnica não é apenas a construção de máquinas motriz, apenas a sua incorporação ao trabalho, apenas sua utilização e monitoramento, apenas maquinaria motriz (relação mecânico-industrial), mas em tudo isso uma transformação do ‘ente’ e não apenas ‘transformação’ de todo indeterminada e sem objetivo, senão um ataque ao ente em totalidade para a conquista da autoafirmação do ser humano; não só isso, mas antes disso a junção [Fügung] da relação fundamental com o ente em totalidade enquanto tal; cujo caráter fundamental é determinado por meio do ‘pensar’ (no sentido do projeto da condição de possibilidade da objetualidade [Gegenständlichkeit] como eficiência – força – dos entes). A técnica é isso já e precisamente na construção da primeira máquina motriz, e o fato de sua essência permanecer velada diz que, precisamente por isso, ela é ‘metafísica’; e isso significa não apenas um tipo e uma configuração e uma consequência da metafísica, mas a forma fundamental [Grundgestalt] propriamente dita do cumprimento da metafísica como fuga dos entes em totalidade no sentido concomitante do fundamento da essência da história da humanidade ocidental (Heidegger, 2009, p. 288-289, tradução minha).
A técnica moderna é um descobrir desafiador (cf. Heidegger, 1977, p. 15), que reúne e controla todos os processos de produção, garantindo a sua reprodução indistinta, bem como a justa posição daquilo que é produzido em um sítio determinado. A técnica moderna “controla” e “garante” todo o processo – ela o detém de maneira propriamente dita. O seu fim não é a coisa produzida, mas a manutenção do próprio esquema de funcionamento. Sua essência é tal qual uma estrutura estruturante, à qual Heidegger chama de Ge-stell, que subjuga tudo e, por que não, todos a seu modo de des-cobrir. Na época do domínio da técnica, a Ge-stell se torna a única modalidade da verdade, pois toda unidade significativa só é alcançada – produzida – por meio dela:
Se respeitarmos, portanto, o raciocínio heideggeriano, damo-nos conta que Ge-stell, no seu sentido essencial não manifesta propriamente o “pôr” representativo moderno, estando muito mais próximo do grego, da ποίησις. Neste sentido, guarda a verdade do acontecer originário de todo “lugar”: é um fazer(-se) sítio, um “dar lugar” ao ser que assim se apresenta (Borges-Duarte, 2019, p. 160).
Contudo, ao afirmar que a Ge-stell é a essência da técnica moderna, que se mostra como “controle” e “garantia” do processo, como essa “estrutura estruturante”, Heidegger também diz que já não se trata mais de τέχνη em seu sentido originário:
“Técnica” em sentido amplo: trabalho manual e instrumental; uso de utensílios. “Técnica” em sentido mais estrito e moderno: a instituição do mecanismo da máquina motriz (máquina motriz e de trabalho, indústria) Qual outra diferença ainda? “Técnica” em sentido mais amplo: τέχνη, saber-fazer do manuseio, capacidade, “arte”; a pro-dução pro-ponente [vor-stellende Her-stellen] (τέχνη, ούσία, ίδέα) já [é] o passo decisivo para o esquecimento do ser e sua consolidação; εἶδος necessário e compreensível – subjugação da força. O desencadear e o capturar da “força” (geração, ligação, armazenamento, deslocação, aceleração, distribuição, transformação, comutação) (Heidegger, 2009, p. 293, tradução minha).
Ao afirmar que a época moderna é a do domínio da técnica em sentido mais estrito, Heidegger diz que já se vive na época em que até mesmo o produzir foi subjugado pela apropriação. Em outras palavras, importa saber, no sentido de ter o domínio, o controle e a segurança de tudo aquilo quanto há e que pode ser produzido – já se vive na época da consumação (Vollendung) da filosofia.
Por acaso, essa apropriação que subjuga o produzir não é precisamente o que acontece com o rio subjugado à hidroelétrica, como narra o próprio Heidegger em A pergunta pela técnica? Não é o rio capturado sem consentimento pela hidroelétrica no exato local a partir do qual pode ser trazida à tona toda sua potência/energia hidráulica a ser transformada em energia elétrica? Nesse caso, não é a hidroelétrica que está instalada no rio, mas este naquela. Não acontece o mesmo com o parque ambiental subjugado à emissão de carbono pela indústria que o mantém? Para esta, aquele não é visto como “preservação do meio ambiente”, mas como um meio capaz de garantir a possibilidade de se emitir uma quantidade de dióxido de carbono sem “causar maiores impactos” à natureza, assegurando, assim, a produção. Também é o caso do ser humano, reivindicado aqui e ali como mão-de-obra – como “peça de depósito” (Bestand-Stück) (cf. Heidegger, 2012, p. 33-35) – facilmente substituível: “in the age of technological dominance, the human is placed into the essence of technology, into positionality, by his essence. In his own way, the human is a piece of the standing reserve in the strictest sense of the words ‘piece’ and ‘standing reserve’” (Heidegger, 2012, p. 35). Nesses casos, não estão presentes o rio, o parque ambiental e o ser humano em sua integralidade, tendo sido apropriados de maneira precisa, estando todos sem poder de reação? Pois bem, nesses casos, já não é mais o “pescador com anzol”, provido de uma τέχνη, quem se apropria de sua presa, senão a própria técnica transformada em progresso tecnológico que se apropria de tudo o quanto há:
Where this ordering holds sway, it drives out every other possibility of revealing. Above all, Enframing [Gestell] conceals that revealing which, in the sense of ποίησις, lets what presences come forth into appearance. […] Where Enframing holds sway, regulating and securing of the standing-reserve mark all revealing. They no longer even let their own fundamental characteristic appear, namely, this revealing as such (Heidegger, 1977, p. 27).
A essência da técnica moderna já não permite outra modalidade de desencobrimento, esse é o perigo. Ela “é a forma da obediência das coisas ao domínio técnico-científico ocidental” (Borges-Duarte, 2019, p. 169).
Retomando a linguagem do diálogo platônico, nessa época moderna já só há apropriação não-consentida. Também por isso, o domínio da técnica é o ato conclusivo desse modo de desencobrimento da verdade, o seu fim (Ende), pois aí estão reunidas as suas possibilidades mais próprias:
The old meaning of the word “end” means the same as place: “from one end to the other” means: from one place to the other. The end of philosophy is the place, that place in which the whole of philosophy's history is gathered in its most extreme possibility. End as completion means this gathering. […] As a completion, an end is the gathering into the most extreme possibilities. (Heidegger, 1972, p. 57).
A Ge-stell, como essência da técnica moderna, é o fim da filosofia, por excelência, pois ela reúne em si o des-cobrir e a capacidade última da apropriação, a mais precisa. Isso quer dizer que a hidroelétrica instalada no rio, o parque ambiental mantido pela indústria e a mão-de-obra reivindica do ser humano sejam, de partida, coisas boas ou ruins. Todas elas são produtos – produções – técnicas e, justamente por isso, convidam/conduzem essencialmente à reflexão, como já indicado por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco. Nenhuma delas traz consigo um valor agregado, pois esse deve ser fruto da deliberação – do pensar. O maior problema ou, como diz Heidegger, o mais grave dentre eles é que a essência da técnica moderna subjugou até mesmo o pensar. E, hoje em dia, já não se pensa mais (cf. Heidegger, 1968, p. 4).
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Luís Gabriel Provinciatto
Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e em Filosofia pela Universidade de Évora (Portugal). Docente da Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Departamento de Filosofia da PUC-Rio.
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[1] Disso, porém, não podemos deduzir que já em Ser e tempo haveria uma concepção da técnica como essência da ciência moderna. A respeito da relação entre técnica e tecnologia no período de Ser e tempo, veja-se o artigo de Hubert Dreyfus (1984), Between Techne and Technology: The Ambiguous Place of Equipment in Being and Time.