HEIDEGGER E O “SER-VERDADEIRO” EM ARISTÓTELES – EXPOSIÇÃO SOBRE A CONFERÊNCIA “SER-VERDADEIRO E SER-AÍ”
HEIDEGGER AND “TRUE-BEING” IN ARISTOTLE – EXPOSITION ON THE CONFERENCE “TRUE-BEING AND THERE-BEING”
Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Universidade de Brasília
Recebido: 27/10/2024
Received: 27/10/2024
Aprovado:17/12/2024
Approved: 17/12/2024
Publicado: 31/12/2024
Published: 31/12/2024
RESUMO
A presente reflexão expõe a conferência de Heidegger, de 1924, a respeito do ser-verdadeiro em Aristóteles. Num exercício exegético e hermenêutico-filosófico, procura explicitar os seus motivos, as suas tendências e o seu fio condutor e pretende captar e trazer à luz as pressuposições de seus posicionamentos. O escopo é apreender e compreender a condição de possibilidade de tal posicionamento e suas implicações. Primeiramente, analisa os pontos de partida da consideração de Heidegger: verdade, conhecimento, ciência. Depois, ressalta as reflexões dele sobre o desafio da interpretação e do método fenomenológico-hermenêutico. Em seguida persegue a disposição da exposição em sua tríplice articulação. O percurso da conferência passa por três estações: (a) juízo e verdade; (b) ser-verdadeiro e ser-aí; (c) modos do ser-verdadeiro. A busca pela essência da verdade que começa com a concordância ou adequação tende a encontrar o seu fim na consideração da relação entre o ser humano e o ser. Entretanto, esta dimensão da questão da essência da verdade permanece, na conferência, não alcançada explicitamente.
Palavras-chave: verdade; hermenêutica; ser-verdadeiro; ser-aí.
ABSTRACT
This reflection presents Heidegger's 1924 lecture on true being in Aristotle. In an exegetical and hermeneutical-philosophical exercise, it seeks to explain its motives, tendencies and guiding thread and intends to capture and bring to light the presuppositions of its positions. The aim is to apprehend and understand the condition of possibility of such a position and its implications. First, it analyzes the starting points of Heidegger's consideration: truth, knowledge, science. Then, it highlights his reflections on the challenge of interpretation and the phenomenological-hermeneutic method. Then, it pursues the disposition of the exposition in its triple articulation. The course of the lecture passes through three stations: (a) judgment and truth; (b) true being and being-there; (c) modes of true being. The search for the essence of truth that begins with adequacy tends to find its end in the consideration of the relationship between the human being and the being as such. However, this dimension of the question of the essence of truth remains, in the conference, not explicitly reached.
Keywords: truth; hermeneutics; true-being; there-being.
Introdução
Pretendemos aqui explicitar os motivos, as tendências e o fio condutor de uma conferência pronunciada várias vezes por Heidegger junto à Kant-Gesellschaft (Sociedade Kant) em dezembro de 1924 em várias localidades da Alemanha. Um anúncio da revista Kant-Studien, presente no nº 29 (1924) previa uma série de pronunciamentos a serem realizados em seis lugares entre primeiro e oito de dezembro: Hagen, Elberfeld, Köln, Düsseldorf, Essen e Dortmund. A conferência foi anunciada sob o título “Dasein und Wahrsein nach Aristoteles (Interpretation von Buch VI der Nikomachischen Ethik)” [Ser-aí e ser-verdadeiro segundo Aristóteles (Interpretação do livro VI da Ética a Nicômaco)]. O título “Wahrsein und Dasein” (Ser-verdadeiro e ser-aí) está escrito em cima na primeira folha do manuscrito. No entanto, o título da capa está invertido, de modo igual ao título da conferência que fora anunciado. Uma anotação de Heidegger ao manuscrito indica que esta conferência foi preparada já no semestre de inverno de 1923/1924. Heidegger pronunciou esta conferência no momento em que ele ministrava a preleção sobre o Sofista de Platão, cujo texto constitui o volume 19 da GA (Gesamtausgabe). A conferência se encontra no volume 80.1 da GA: Vorträge (Conferências). Neste volume, que é dedicado às conferências ministradas entre 1915 e 1932, o texto da conferência se encontra entre as páginas 57 e 80, e é seguido de 30 anotações em apêndice, da página 81 a 101 (Heidegger, 2016).
Vamos tentar não só expor os traços fundamentais da conferência, mas também tentar captar e trazer à luz as pressuposições de seus posicionamentos. O escopo é apreender e compreender a condição de possibilidade de tal posicionamento e suas implicações. Os motivos, as tendências e o fio condutor de tal conferência é o nosso ponto de partida.
Pontos de partida da tematização: verdade, conhecimento, ciência
O texto da conferência começa ex abrupto: “A seguinte consideração tem a tarefa de determinar o conceito de verdade (Wahrheit). O que é isto, de que pode ser enunciado o ser-verdadeiro (Wahrsein), e o que significa este ser-verdadeiro mesmo?” (Heidegger, 2016, p. 57). Sabemos o quanto o tema da verdade será central na meditação de Heidegger ao longo de todo o seu caminho de pensamento (Denkweg). A reflexão a respeito da essência da verdade e da verdade da essência terá um papel determinante em seu pensar. Neste texto de 1924 encontramos uma reflexão ainda seminal, que será retomada de maneira mais amadurecida em Ser e Tempo, no § 44 (Heidegger, 1977, 282-305). No introito da conferência Heidegger fala de determinar o conceito de verdade e perguntar a respeito do ser-verdadeiro. Veremos mais adiante que verdade (Wahrheit) e ser-verdadeiro (Wahrsein) não coincidem. São diversos.
No apêndice encontramos, porém, três elaborações para a introdução. Na primeira elaboração (Heidegger, 2016, p. 82), Heidegger toma um ponto de partida menos direto. Verdade é o caráter privilegiado do conhecimento (Erkenntnis). Um conhecer é propriamente o que ele é enquanto verdadeiro. Certamente, pois um conhecimento falso não é propriamente um conhecimento. Mas, o que quer dizer a expressão “verdadeiro”? Com esta pergunta nós buscamos o conceito de “verdade”.
No segundo projeto para a introdução, ele diz que o tema da conferência é “Dasein und Wahrsein” (Ser-aí e ser-verdadeiro). E acrescenta que o tratamento do problema toma as investigações correspondentes de Aristóteles como fio condutor. E justifica: Aristóteles pôs de modo radical pela primeira vez este problema e dentro da pesquisa filosófica dos gregos trouxe a uma certa conclusão a colocação dele. Depois justifica também a orientação que ele toma junto à filosofia grega. Esta orientação é tomada não só porque os fundamentos de nossa ciência hodierna remontam à filosofia grega, mas também porque os conceitos e impostações interrogativas da filosofia hodierna, mesmo ali onde ela não mais sabe disso, são determinados pelos gregos (antes de tudo por Aristóteles). A esta justificativa Heidegger apôs uma anotação que remete à verdade teorética e prática. Nesta mesma passagem, ele diz que a conferência deveria liberar (freilegen) o chão, sobre o qual a diferenciação de Kant entre razão teorética e razão prática se funda (Heidegger, 2016, p. 83).
No terceiro projeto, por sua vez, Heidegger parte do fato da ciência e de sua significação para a consciência de seu tempo. Para a consciência cotidiana a validade da ciência aparecia como incontestável, com base nas suas descobertas e na aplicabilidade prática dos resultados. Acrescenta que a ciência, junto com a arte e a economia, era arrolada entre os bens da cultura. O cultivo e a promoção da ciência passam pela pesquisa e pelo ensino na universidade, onde se dá a formação para a profissão e a vocação (Berufe) científica. Na nota de pé de página, Heidegger faz uma alusão ao texto de Max Weber, Wissenschaft als Beruf (ciência como vocação), de 1919. Entretanto, tal apreensão e concepção da ciência não alcança a sua essência. A questão é: o que é a ciência, antes de todo escopo prático e de toda estimativa pública? Ciência tem a ver com conhecimento. Há conhecimento pré-científico e extracientífico e há conhecimento científico. Todo o conhecimento, entretanto, tem o modo de ser do ser-aí humano (das menschliche Dasein), pertence a ele como uma possibilidade de ser. Heidegger parte, deste modo, de um conceito existencial de ciência. Entretanto, a ciência opera como conhecimento de objetos (natureza e história, por exemplo). Nenhuma ciência tem a si mesma como tema (Heidegger, 2016, p. 84).
A ciência que tem como tema ou objeto de sua pesquisa a ciência é aquela que considera o ser-aí humano em seu ser, a filosofia. A ela toca o esclarecimento da essência da ciência, bem como de todo o conhecimento pré-científico e extracientífico. Todo o conhecimento tem por meta a verdade – o conhecimento verdadeiro é o que é propriamente conhecimento. Daí surge a necessidade de uma determinação da essência da verdade. O conhecimento é um comportamento humano, uma determinação do ser-aí (Dasein) humano. O caminho radical e difícil de esclarecimento da essência da ciência passa pela filosofia, mais precisamente, por um filosofar que não se atém simplesmente às ciências fatualmente ocorrentes, mas um filosofar que pensa a partir da coisa (causa) da ciência enquanto comportamento do ser-aí humano, a saber, a partir da relação deste com a verdade (Heidegger, 2016, p. 85).
O desafio da interpretação e do método fenomenológico-hermenêutico
Voltemos ao texto pronunciado na conferência. Ele diz de início que a determinação mais próxima do sentido do ser-verdadeiro conduz ao ser-aí (Dasein) do ser humano. É a este que se atribui o ser-verdadeiro. Aqui está o fulcro da conferência. A consideração do tema colocado nesta perspectiva é realizada, no entanto, através de uma interpretação da investigação de Aristóteles. Entretanto, o legado de Aristóteles e das pesquisas dos gregos encontra-se desgastado na e pela tradição. A relação com a tradição histórica é necessária para uma investigação da coisa mesma em questão. Mas acerca dessa relação Heidegger ressalta a necessidade de se haver com uma decisão: ou o nosso ver e questionar se torna transparente para obter uma genuína confrontação ou fazemos um uso exterior e acidental de conceitos antigos. A decisão impõe, pois, um ou isto ou aquilo, que implica em nossa relação com a história. Ou essa relação é guiada pelo interesse de coleção antiquária, de curiosidade e de erudição ou nós nos damos conta de que nós mesmos somos a história e que trazemos uma responsabilidade para com ela e seu impacto (Heidegger, 2016, p. 57-58).
Em seguida, Heidegger fala a respeito de como considera o empenho da interpretação. Ele diz que a interpretação não quer nada mais do que elaborar a oportunidade para Aristóteles mesmo falar. Entretanto, isso não significa que a interpretação deva se ater meramente ao que está legado no dito do texto. Se se constatar que a interpretação, em relação ao texto, resulta dizer algo que não está no texto, isto não é uma prova contra a interpretação. Pelo contrário, uma interpretação é propriamente uma interpretação quando ela, atravessando o texto no seu todo, se depara com aquilo que, para o entendimento grosseiro, não está no texto, ou seja, com aquilo que constitui o solo tácito e o modo de ver, a partir do qual o texto pôde crescer (Heidegger, 2016, p. 58).
Heidegger então volta ao problema da conferência: o conceito de verdade. No conceito de alguma coisa jaz a determinação da coisa no conhecimento. O determinar, em que a coisa intencionada se torna compreensível, se realiza sobre o solo de uma presentificação intuitiva prévia do fenômeno que se dá em sua firmeza fatual (Tatbestand)[1]. Então surge a pergunta: que firmeza fatual intenciona o conceito “verdade”? O modo de tratar a questão por Heidegger é fenomenológico-hermenêutico. A confrontação com a tradição se impõe como uma necessidade para ir à coisa mesma, ao fenômeno em sua firmeza fatual. Para abrir o campo do fenômeno é preciso que a pesquisa se faça no cuidado com o passo a passo para o acesso à firmeza fatual (Heidegger, 2016, p. 58).
Na primeira anotação do apêndice, esta necessidade é apontada logo de cara. Em jogo está uma mirada para dentro da pesquisa científica filosófica moderna. O que importa não são os resultados, mas perfazer e co-fazer alguns passos do caminho. O essencial é o questionar originário. O trabalho gira em torno do conceito central “verdade”. Em jogo está a conexão entre conceito e firmeza fatual. O que é aquilo, a partir de que nós dizemos “verdadeiro”? Uma primeira indicação é dita pela tradição. Por isso, carece de retornar à impostação questionadora radical, a saber, a dos gregos. Assim, o campo fenomenal em questão há de ser apropriado mediante um passo a passo, conduzindo-se a consideração através da tradição, de volta aos gregos (Heidegger, 2016, p. 80).
Na anotação 3, que traz o segundo projeto para a introdução, Heidegger diz que o esclarecimento das investigações de Aristóteles sobre o problema indicado, o da verdade, se realiza com os meios do método fenomenológico, que devagar estava colocando a filosofia sobre novos fundamentos e que primava pelo trato da pesquisa que se atém à coisa em questão (sachliche Forschung), em vez de proceder com um projetar apressado de sistemas e visões de mundo (Heidegger, 2016, p. 83).
O aspecto hermenêutico do trabalho sobressai quando, na mesma anotação, Heidegger levanta a questão do sentido do conhecer historial. É preciso, na interpretação, sair em direção ao que não está aí no texto, ou seja, ao que de modo não expresso está em mira. A interpretação tem a tarefa de tornar expresso o não expresso. O princípio hermenêutico de compreender um texto melhor que o autor mesmo o compreendeu não constitui uma diminuição de sua realização. Toda grande realização justamente não se compreende naquilo que ela é, do contrário, não é uma grande realização. Isto quer dizer: a realização é mais do que aquilo que o criador mesmo compreende. A interpretação, por sua vez, não deve expor proposições dogmáticas e soluções superficiais, mas deve caminhar junto com o texto no modo da investigação (Heidegger, 2016, p. 83).
Na anotação 5, por sua vez, Heidegger faz notar algo sobre o historial (Geschichtlich). Só é necessário aquilo que conduz a uma compreensão da coisa em questão (zu sachlichen Verständnis). História não é algo sem importância. É aquilo que nós mesmos somos. Está em nós o questionar com radicalidade, ou seja, a partir da apropriação do solo. E acrescenta: nós hoje não somos históricos justamente por que temos o historicismo. No relacionamento com a história o importante não é assumir respostas, mas aprender a questionar. E adianta algo que aparecerá no §2 de Ser e Tempo (Heidegger, 1977, p. 6-11): o questionar implica em um interrogado (Befragte) e um questionado (Gefragte). Filosofia é trabalho investigativo que precede às ciências, é um trabalho produtivo no sentido próprio da palavra (Heidegger, 2016, p. 86).
A disposição da tematização
Ponto de partida da investigação é, pois, a tradição. E o que diz a tradição sobre o ser verdadeiro e sobre a verdade? Ela diz: verdade se atribui primariamente ao juízo. Mas Heidegger já aponta a sua tese, que se apresenta como uma antítese ao posicionamento da tradição. Vendo de modo mais agudo, nós constatamos que o ser-verdadeiro não está arraigado no solo do juízo, mas no solo do ser-aí humano mesmo e, precisamente, em diferentes modos e em diversos níveis (Heidegger, 2016, p.58-59).
Daí segue a disposição que a conferência apresenta. Primeiramente trata do juízo, da fala no sentido do discurso (Rede) e do ser-verdadeiro (I). É a reflexão fundamental. Depois a consideração se desdobra de modo triplo: (a) trata do ser-verdadeiro e do ser-aí (II); (b) dos modos do ser-verdadeiro e de suas possibilidades privilegiadas (III); e, por fim, (c) do ser-verdadeiro, do ser-aí e do ser em referência à tarefa da ontologia (IV). Resumindo: a consideração caminha seguindo por três estações e se articula triplamente entre os temas (a) juízo e verdade, (b) ser-verdadeiro e ser-aí e (c) modos do ser-verdadeiro (Heidegger, 2016, p. 59).
Juízo, discurso e ser-verdadeiro. Verdade como concordância: realismo e idealismo.
A primeira estação do caminho de questionamento trata do juízo, da fala enquanto discurso (Rede) e do ser-verdadeiro. Em Ser e Tempo, no § 33, Heidegger irá tematizar o enunciado (Aussage) ou o juízo (Urteil) como um modo derivado da interpretação (Auslegung). Ali Heidegger irá dizer que a análise do enunciado ocupa um lugar privilegiado dentro da problemática da ontologia fundamental, pois nos princípios decisivos da ontologia antiga o λόγος (lógos) funcionou como único fio condutor para o acesso ao ente propriamente dito e para a determinação do ser deste ente. Depois, ele evoca a tradição, que, desde tempos antigos, fez valer o enunciado como o “lugar” primário e próprio da verdade. A análise do enunciado prepara a problemática da verdade. Nesta análise, salienta-se três significações de enunciado: (1) enunciado significa primariamente ostensão (Aufzeigung) – ἀπόφανσις (apóphansis); depois, predicação (Prädikation) ou determinação; e, por fim, comunicação (Mitteilung) ou declaração (Heraussage). Deste modo, enunciado é definido como ostensão comunicante determinadora (mitteilende bestimmende Aufzeigung) (Heidegger, 1977, p. 204-208).
Entretanto, voltemos à conferência de nosso estudo. Ponto de partida é a indicação: verdade é um caráter do conhecimento. A tradição diz: verdade é a concordância do pensamento com os objetos. De modo mais preciso, conhecer é julgar (Urteilen). O que é chamado propriamente de verdadeiro e, respectivamente, de falso é o juízo. Com esta definição se invoca a Aristóteles e se diz que foi ele quem pela primeira vez expressou o sentido da verdade como uma concordância do pensamento com o objeto; mas não só isso, se diz também que ele teria visto que a verdade é atribuída em primeiro lugar ao juízo; e, por fim, se enfatiza que esta definição corresponde ao são entendimento humano e que é a base para toda determinação mais aproximada da verdade (Heidegger, 2016, p. 59).
Heidegger, assim, retoma um preconceito da tradição filosófica, como ponto de partida da sua consideração. No entanto, ele levanta, logo em seguida, as dificuldades que este preconceito a respeito da verdade traz consigo. Como pode ser detectada, constatada, a concordância entre uma vivência, algo imanente ao sujeito, com o objeto, com o mundo exterior? Esta concepção parece pôr que o sujeito sai de si, salta para for de si, para o objeto. Para se poder detectar, constatar (feststellen), é preciso que já se saiba como o objeto se mostra em seu aspecto, ele que serve como medida para o que mede. A concordância é, de fato, entre o que mede e o que é medido. Detectar a concordância pressupõe já saber, já ter visto, como o objeto se mostra, como ele se aparenta. Isso é o que no conhecimento é o conhecido. Assim, a concordância já pressupõe o que ela deveria explicar, o conhecimento (Heidegger, 2016, p. 60). Como se poderia comparar o objeto com o enunciado e vice-versa se já não se conhece o objeto e se já não se conhece o sentido do enunciado? Como se poderia detectar ou constatar a concordância se já não estivesse manifesto o objeto e o sentido do enunciado. A comparação e a detecção da concordância já chegam tarde.
Diante desta dificuldade, toma-se um atalho. Toma-se distância dessa concepção da concordância e então se diz: o que é conhecido é sempre “na consciência”. O conhecer verdadeiro não se mede com um objeto inalcançável, mas com a própria legalidade do pensamento. À medida que o conhecimento satisfaz as leis do pensamento, ele é verdadeiro. Esta concepção da verdade é designada, contra a primeira, como crítica. A primeira seria ingênua. Seria também realista, na medida em que mantém firme a alcançabilidade do objeto real. A segunda, em contraste, é designada como idealista. Entretanto, realismo e idealismo pressupõem o mesmo: a concordância como sentido da verdade. O realismo, se posicionando a favor dela. O idealismo, contra. Para além desta contraposição pura e simples, levanta-se o posicionamento do realismo crítico. Este, enquanto realismo, põe que existe uma realidade independente do pensamento humano, que é cognoscível neste. Ele não fala contra a alcançabilidade do objeto real. Contudo, se o realismo ingênuo pressupõe esta cognoscibilidade do real e da realidade sem restrição alguma, o realismo crítico exige a purificação da percepção de momentos meramente subjetivos e a verificação das suposições ideais do conhecimento. Ele se apresenta, de outro lado, como pressuposição do idealismo. Contudo, ele procura demonstrar contra o idealismo que o sujeito sai de si para o objeto, respectivamente, que existe o mundo exterior real (Heidegger, 2016, p. 60).
Assim, realismo e idealismo, ou sua variante, objetivismo e subjetivismo, são posicionamentos que se põem com base numa estrutura comum básica: a da concordância ou adequação entre enunciado e coisa (ou intelecto e coisa). Uma posição (realismo / objetivismo) afirma a necessidade da concordância e põe que a primazia está com a coisa, pois é ela que dá a medida ao enunciado (intelecto). A outra posição (idealismo/subjetivismo) suprime a necessidade da concordância e afirma a primazia do intelecto (formas a priori do entendimento), respectivamente, da legalidade do pensamento, a que a coisa, ou melhor, o objeto, se subordina e a partir do qual ela é medida (cf. Harada, 2009, p. 231).
Para Heidegger, realismo e idealismo são dois irmãos inimigos que trabalham com as mesmas pressuposições. Até se busca um posicionamento que vai além desta oposição. Mas, na medida em que esta busca toma como ponto de partida a relação sujeito-objeto, ela fica improdutiva e cega, mesmo ali onde se apresentam várias nuances na discussão. Para Heidegger, as pressuposições são sem chão, isto é, elas operam sem uma originária apropriação da firmeza fatual do fenômeno em questão. Por isso, ele prefere não se enredar na discussão, e retornar ao resto de chão real, que ainda vem à tona na discussão sobre o conceito de verdade e que conduz a reflexão (Heidegger, 2016, p. 61).
Retorno a Aristóteles, ou melhor, ao solo fenomenal do λόγος (lógos) do ser-aí cotidiano
Na anotação 1 do apêndice, Heidegger esquematiza a discussão tradicional que gira em torno da relação sujeito-objeto e de suas mediações. Anota que esta discussão é sem chão, pois a origem da colocação interrogativa não é mais compreendida. Por isso, é preciso retornar a Aristóteles, ao tema da fala enquanto discurso (Rede), que tem o caráter de compreensibilidade (Verständlichkeit), ἑρμηνεία (hermēneía) (Heidegger, 2016, p. 81).
O nome substantivo ἑρμηνεία (hermēneía) quer dizer “exposição”, “explanação”[2]. Neste sentido, ἑρμηνεία (hermēneía) é a exposição que traz uma mensagem, dá uma notícia, torna acessível alguma coisa, torno noto, faz saber, um fenômeno em sua articulação de sentido, ao modo de uma explicitação. No tratado a respeito do ser do vivente – o Περὶ Ψυχῆς (Perì Psychḗs) [420b] – Aristóteles diz que vivente necessita da língua para duas funções, por um lado, para saborear, por outro, para a conversa: ἡ διάλεκτος (he diálektos). Esta é, por sua vez, em vista da melhor vida (a mais própria realização do vivente humano). Nesta passagem, ἑρμηνεία (hermēnéia) equivale a ἡ διάλεκτος (he diálektos), o discurso no sentido da conversa. A conversa emerge, no cotidiano, da lida com as coisas. Na conversa dirigimos a palavra uns aos outros chamando em causa as coisas da lida e colocando-as em discussão. Esta se dá e se realiza no modo do λόγος ἀποφαντικός (lógos apophantikós), do discurso ostensor, que mostra, torna patente. A ἀπόφανσις (apóphansis) é, pois, um momento deste discurso e de seu contexto na conversa. No § 2 da preleção de verão de 1923, intitulada “Ontologia: Hermenêutica da Faticidade”, Heidegger comenta a respeito da propriedade do título dado ao tratado de Aristóteles a respeito do λόγος ἀποφαντικός (lógos apophantikós): Περὶ Ψυχῆς (Perì hermēneías). O título é apropriado, já que o λόγος (lógos) tem como função fundamental descobrir e tornar noto o ente. O desempenho, a prestação, a função da fala consiste, justamente, em tornar acessível algo como patente, como aberto e manifesto. Consiste em ἀληθεύειν (alētheúein): tornar disponível algo que antes estava oculto, encoberto, como desencoberto, aberto, patente (Heidegger, 1995, p. 10-11; 2013, p. 17).
Na anotação 6 do apêndice da conferência aqui em estudo, Heidegger remete ao λόγος (lógos) enquanto ἀποφαίνεσθαι (apophaínesthai) (mostrar, deixar e fazer ver), indicando que o discurso (Rede) não há que ser tomado enquanto o comunicar e o expressar-se, partindo do sujeito, da consciência sobre o objeto. Ponto de partida deveria ser o desempenho fundamental do falar a partir do ser no mundo mesmo e seu modo de realização primário. Numa nota de rodapé a esta anotação, por sua vez, ele remete à descoberta primária (primär Aufdeckung), em grego, δηλοῦν (dēloûn), e sua apropriação. O que importa não é a subjetividade, mas o em-ser (In-sein). É neste em-ser, nós diríamos, neste ponto de salto do ser-no-mundo, que tudo se joga (Heidegger, 2016, p. 86).
Retornando a Aristóteles, Heidegger retoma o capítulo 4 do Περὶ Ἑρμηνείας (Perì hermēneías) (17 a 1 ss). Ali o Estagirita diz que todo o λόγος (lógos) – todo o discurso, toda a fala – é σημαντικός (sēmantikós). Na tradução/interpretação de Heidegger, isto diz: todo o discurso fala de algo. E Aristóteles completa: nem todo o λόγος (lógos), porém, é ἀποφαντικός (apophántikós), ou seja, com os termos de Heidegger: nem todo o discorrer sobre tem o sentido, enquanto discorrer, de ostender, mostrar, declarar, deixar e fazer ver, sobre o que discorre. Aristóteles diz que isso acontece somente no λόγος (lógos) em que subsiste τὸ ἀληθεύειν (tò alētheúein), o ser-verdadeiro, o desencobrir, e o ψεύδεσθαι (pseúdesthai), o ser-falso, o ocultar, o encobrir. Por exemplo, uma declaração pode ser verdadeira ou falsa. Mas um pedido não o pode. Se eu digo algo como “por favor, entre!”, ou então algo como “posso entrar?”, tais falas não têm o caráter de um discurso enunciativo, declarativo, em que pode subsistir o ser-verdadeiro e o ser-falso (Heidegger, 2016, p. 61).
A este ponto da consideração, Heidegger faz notar que já não está falando mais de juízo. Λόγος (Lógos) não é nem juízo – que em grego teria sua correspondência no verbo κρίνειν (krínein) – nem é conceito, nem, muito menos, razão. Por isso ele está falando, ao evocar o λόγος (lógos) grego, do discurso (Rede), da fala (Sprechen). Depois, ele chama a atenção para o fato de que no texto de Aristóteles não está dito que ao juízo primariamente é atribuído o ser-verdadeiro e, respectivamente, o ser-falso. O ser-verdadeiro é tão pouco o privilégio do discurso declaratório que o que acontece é justamente o contrário: este discurso é precisamente a condição de possibilidade de haver algo como o ser-falso. Isto quer dizer que o ser-verdadeiro tem um caráter mais originário. A fala não é, enquanto fala, verdadeira. O que acontece é que uma determinada maneira de falar, um determino modo do discurso, pode ser-verdadeiro (Heidegger, 2016, p. 62).
Em seguida, Heidegger diz que o discurso ostensor, declaratório (die aufzeigende Rede), é apenas uma possibilidade do discorrer e que nem mesmo é a mais próxima. O discurso do ser-aí cotidiano, de fato, não está primariamente a fim de comunicar conhecimentos sobre as coisas e mediar saber. É preciso perguntar: o que significa no cotidiano ser-uns-com-os-outros dos seres humanos o discurso, a fala. A resposta a esta pergunta é possibilitada quando se nos torna visível o modo como a partir da fala, do discurso, se realiza expressamente o falar uns com os outros e o falar uns para os outros, o que implica, certamente, também o ouvir uns aos outros. Heidegger lembra, então, que, entre os gregos, a pesquisa positiva sobre o fenômeno do discurso cotidiano aconteceu com a Retórica de Aristóteles (Heidegger, 2016, p. 62).
No capítulo 3 do livro I da Retórica (A 3, 1358 a 36 ss) são apontadas três espécies de discurso ou fala. 1. O discurso na assembleia do povo; 2. O discurso diante do tribunal; 3. O discurso cerimonial. O discurso político, deliberativo, se empenha em persuadir e dissuadir em referência a uma decisão. Aqueles a quem a fala é dirigida, os ouvintes, devem ser levados a uma convicção sobre a situação da πόλις (pólis), a partir da qual eles decidem em favor do conselho do orador. O discurso judiciário é acusação - κατηγορία (katēgoría) - e, respectivamente, a defesa - ἀπολογία (apología). O orador se dirige aos ouvintes como a juízes. Ele deve convencer os ouvintes para uma convicção sobre o caso sobre o qual ele discorre. O λόγος ἐπιδεικτικός (lógos epideiktikós) – o discurso cerimonial e cerimonioso, epidítico, que deseja fazer ver e fazer-se ver - comemora fazendo entrar o louvor e, respectivamente, a repreensão. Os ouvintes, neste caso, devem ser maravilhados sobre aquilo que é falado para eles, eles devem ser levados ao entusiasmo e, respectivamente, à indignação. Tais discursos não estão de olho na coisa sobre a qual elas tratam, mas nos ouvintes. Quem fala, nestes contextos, não visa comunicar, intermediar, conhecimentos sobre as coisas, mas tem como escopo fazer os ouvintes chegarem a um parecer ou opinião sobre as coisas, de modo que eles tomem uma posição a respeito. Neste caso, discorrer (Reden) é convencer (Über-reden) (Heidegger, 2016, p. 63).
Sobre o que discorrem estes discursos? O discurso da assembleia discorre sobre o que poderia ser benéfico ou prejudicial à comunidade e, com isso, aos seus membros. Discorre sobre algo que ainda não está aí e que deveria ser induzido, respectivamente, evitado. O sentido deste discurso é preparar para o futuro. O discurso de tribunal trata sobre o justo e o injusto a respeito de algo que já aconteceu. Ele visa a tomada de posição julgadora sobre um passado. O discurso cerimonial traz os ouvintes à presença de algo que é digno de admiração. Assim, os discursos discorrem sobre o que é futuro, o que é passado e o que presente e, precisamente, sobre aquilo que concerne ao ser-aí cotidiano: respectivamente, o συμφέρον (symphéron), isto é, o útil ou vantajoso; o δίκαιον (díkaion), ou seja, o justo; e o καλόν (kalón), ou seja, o que é belo, digno de admiração (Heidegger, 2016, p. 63-64).
Estes discursos trazem a tendência à formação de opinião. Ao mesmo tempo, eles são deste ou daquele modo afinados, sintonizados, em termos de humor, de disposição afetiva, sobre aquilo que está em pauta no discurso. Esta afinação ou disposição afetiva – πάθος (páthos) - concorre para que o discurso conduza o ouvinte à formação da convicção que o orador pretende. O orador deve aparecer como digno de confiança, benevolente e entendido do assunto. Sua própria existência precisa falar em favor daquilo que ele diz. O que está em jogo, aqui, é a crença (Glauben), não a intelecção (Einsehen). O modo de discorrer não é por via de demonstrações científicas, no encadeamento completo de nexos de fundamentação, mas os discursos devem falar ao ânimo dos ouvintes, devem ser ἐνθύμημα (enthýmēma) (Ret. 1356 b 2 ss). Este é o sentido do silogismo abreviado. O pensar da multidão é de curto fôlego. Além disso, precisa de exemplos que impressionam. Em jogo está não o mostrar a coisa mesma que está em questão, mas deve vir ao discurso aquilo que de modo mais próximo fala a favor do que deve ser ofertado. E três são as convicções – πίστεις (písteis) – que devem ser ofertadas através do discorrer. Uma espécie de convicção é aquela que concerne ao ἦθος (ȇthos) do orador, isto é, ao seu modo de ser e de agir; outra, a que diz respeito ao πάθος (páthos), ou seja, à sua possibilidade de predispor o ouvinte neste ou naquele modo, no tocante ao seu modo de sentir, de se afinar ou sintonizar afetivamente; uma terceira, que concerne ao δεικνύναι (deiknýnai), isto é, ao discurso mesmo, enquanto demonstra ou parece demonstrar algo (Ret. 1356 a 1ss) (Heidegger, 2016, p. 64).
Heidegger salienta, então, que o que está em jogo nestes discursos é ajudar a tornar dominante uma determinada opinião sobre uma coisa. Esta deve se estabelecer na opinião pública e contribuir para isso. O orador precisa falar a partir das opiniões dominantes; ele toma as premissas a partir daquilo que se pensa de maneira mediana sobre as coisas. Em seguida, Heidegger faz notar que estas três espécies de discurso são apenas formações agudas do modo de falar em que o ser-aí cotidiano se pronuncia sobre assuntos, acontecimentos, exigências que são menos públicos, mas, no entanto, urgentes. O discorrer mediano discorre sobre as coisas, mas justamente não mostrando, não deixando e fazendo ver. A estrutura desse discurso é caracterizada pela δόξα (dóxa), pelo δοκεῖ (dokeî), isto é, pela opinião, pelo parecer. Em jogo está o ser de tal ou tal parecer. O parecer que se tem de alguma coisa corresponde ao modo como algo se me aparece e parece. O discurso cotidiano tem o caráter de φάσις (phásis), ou seja, de expressão que emite uma voz a favor de... Nisso reside a possibilidade de que as coisas poderiam ser diversas, de que o parecer poderia ser exposto como falso. Aqui a ἀλήθεια (alḗtheia), a verdade, tem o caráter de ὀρθότης (orthótēs), de retidão do direcionamento do discurso que emite um parecer. A fala (Rede) tem o caráter de falação, de falatório (Gerede). Não está em causa, aqui, a busca, o questionamento, a pesquisa, a investigação, mas só a πίστις (pístis), a convicção, a crença (Heidegger, 2016, p. 65).
Ser-verdadeiro e ser-aí: o ser-verdadeiro concerne primordialmente ao comportamento do ser-aí e não ao discurso. O ser-aí humano como presença para o mundo.
A segunda estação do caminho da consideração de Heidegger diz respeito ao tema ser-verdadeiro e ser-aí. Ponto de partida é a possibilidade privilegiada do discurso ostensor, isto é, que deixa ver aquilo sobre que discorre. Esta fala é um dizer, no sentido de um apelo, de um interpelar, um chamar em causa (Ansprechen) algo enquanto algo, por exemplo, a sala enquanto clara, o quadro enquanto preto, etc. Esta alocução (Ansprechen) e interlocução que põe em discussão algo enquanto algo (Besprechen) se articula em duas espécies fundamentais de ostensão: (a) com palavras atribuir ou adjudicar (Zusprechen) e, respectivamente, (b) com palavras subtrair ou abjudicar (Absprechen), respectivamente, com o afirmar e negar. O subtrair ou abjudicar, a negação, também é um deixar ver, um expor, um mostrar, a coisa sobre a qual a interlocução discorre. Este discurso ostensor é um avanço em relação à mera opinião e falação. Nele está presente o descobrir (Aufdecken), o ἀληθεύειν (alētheúein), o ser-verdadeiro. Tanto o afirmar quanto o negar, evidentemente, são possibilidades de descobrir. Todo o discurso é revelador e discorre sobre alguma coisa, mas nem todo o discurso é ostensor, isto é, descobridor. Αλήθεια (alḗtheia) diz, em grego, literalmente, des-encobrimento (Un-verborgenheit). Embora o modo de significar dessa palavra seja negativo, o que é significado é positivo. Ela quer dizer uma privação, a saber, a privação do encobrimento. O des-encobrimento é, para os gregos, algo pelo qual se há que lutar, que precisa ser conquistado. O ente está, de início, aí, mas encoberto, visto que as opiniões dominantes e a falação o encobrem. O des-encobrimento retira este encobrimento. Esta é uma possibilidade. Uma segunda possibilidade consiste em que algo já foi uma vez originariamente aberto, mas se tornou uma posse conhecida de maneira mediana. Este saber aparente distorce, dissimula o ente e é obstinado, uma vez que é persuasivo. Ele cria e cultiva a falta de necessidade de inquirir de novo e originariamente as coisas, contra todo prejulgamento ou preconceito (Heidegger, 2016, p. 65-67).
Assim, dá-se um tríplice encobrimento (Verborgenheit): 1. Enquanto o mundo está presente (gegenwärtig) somente em pareceres primários e mais próximos; 2. Enquanto em muitos âmbitos do ente se dá um desconhecimento propriamente dito, um não ainda estar familiarizado; 3. Enquanto aquilo que uma vez tinha sido liberado do encobrimento voltou a imergir nele pelo domínio do palavrório e de conceitos gastos. Segundo isso, o ἀληθεύειν (aletheúein), isto é, o ser-verdadeiro no sentido do ser descobridor, do ser desencobridor, pode se dar (1) como uma abertura que avança, partindo dos pareceres dominantes, em que na maior parte das vezes um pedaço de algo que foi visto de modo genuíno está incluído; (2) como um descerrador penetrar em regiões do ser até então encobertas; (3) como luta contra o falatório, que se faz passar como perspicaz e sabedor (Heidegger, 2016, p. 67).
Heidegger acrescenta, então, que os gregos tiveram uma compreensão originária da verdade enquanto desencobrimento não só na expressão linguística, mas também em seu modo de ser no mundo. A luta dos maiores dentre eles contra a sofística e a retórica atesta uma confrontação espiritual dos gregos consigo mesmos e com sua existência. A tendência de avançar para as coisas mesmas em Sócrates e Platão, segundo Heidegger, ficou detida pelo falatório encobridor; a pesquisa ficou ainda apegada a conceitos de palavras e à tradição. O grande passo por sobre e para além de Platão foi dado por Aristóteles, que mostrou o fenômeno fundamental do ente enquanto mundo, o movimento, o qual ainda não tinha sido visto e compreendido propriamente enquanto caráter de ser. Com esta grande descoberta, a ontologia grega foi posta sobre novos fundamentos, que eram buscados há séculos por eles (Heidegger, 2016, p. 68).
Aristóteles, falando da pesquisa dos antigos, diz que ela era um filosofar em torno da ἀλήθεια (alḗtheia) (Met. G 5 1009 b 36ss). Isso não quer dizer que eles se punham a pesquisar o que queria dizer verdade, mas sim que eles punham-se a caminho de uma abertura que olha para o ente, de uma liberação do ente no desencobrimento de seu ser. Em jogo estava não um repensamento do conceito de verdade, mas sim o ente em seu estar descoberto (Heidegger, 2016, p. 68).
Heidegger salienta a diferença entre verdade e ser-verdadeiro. A verdade, no sentido de desencobrimento, a ἀλήθεια (alḗtheia), é um caráter do ente. O ente é, também quando ele está encoberto. Ser descoberto (Aufgedecktsein) é um modo privilegiado da presença (Anwesenheit) do ente. O descobrir (Aufdecken), o ἀληθεύειν (alētheúein), que se dá de início e de modo mais próximo no λόγος (lógos), no discurso, é coisa do ser-aí humano (des menschliche Daseins). Ser-verdadeiro, no sentido de ser-descobridor, é um comportamento fundamental do ser-aí. Mas, na medida em que o ser-aí humano é determinado pelo poder discorrer, o discurso pode se tornar o modo de realização do descobrir (Heidegger, 2016, p. 68).
No discurso, o descobrir é o chamar em causa de algo enquanto algo deixando ver. Heidegger dá um exemplo a respeito desse chamar em causa. Num relance do olhar, um homem aparece, vindo ao meu encontro pela rua. Isso que de início é dado num relance vem ao meu encontro junto com o todo de um modo indeterminado: um homem. Ao ser chamado em causa ele é determinado como este ou aquele. Na alocução ele é mostrado enquanto isto ou aquilo, ele é ressaltado enquanto este ou aquele (Heidegger, 2016, p. 68-69). Na anotação 13 do apêndice, Heidegger é mais explícito quanto ao exemplo: ele põe como exemplo duas possibilidades, a saber, o homem enquanto um amigo e o homem enquanto um estranho. O ser-verdadeiro é um comportamento do ser humano (o descobrir). O discurso pode ser verdadeiro, mas na medida em que o comportamento humano é verdadeiro, isto é, descobridor. Primariamente é verdadeiro não o discurso, mas o ser-aí enquanto vidente, ouvinte, percipiente (Heidegger, 2016, p. 91).
O discurso ostensor mostra algo enquanto algo a partir daquilo que subjaz conjuntamente no todo (diríamos, a partir de um contexto vital e de mundo). Aquilo que de antemão já está dado como sendo, como existente, como todo que se apresenta numa simples presença (vorhandene Ganze), os gregos chamam de ὑποκείμενον (hypokeímenon), substância (Heidegger, 2016, p. 69).
Justamente este chamar em causa algo enquanto algo é que é a condição de possibilidade para que haja engano (Täuschung). O momento estrutural “enquanto algo” é o que possibilita que algo se faça passar por algo que ele não é e que assim seja captado. Diante do que é chamado em causa, algo se põe (stellt) como o que ele não é. Dá-se, assim, um deslocamento que encobre, algo aparece dissimulado (verstellt), distorcido. O que dissimula, o que distorce, enquanto dito (als Gesagtes), desperta a aparência de que descobre o que está em discussão na interlocução. A alocução ostensora, que chama em causa algo enquanto algo, é, assim, justamente aquilo que pode ser falso. O ser-verdadeiro do enunciado é, segundo o seu ser, sempre aquilo que evita o ser-falso. É, portanto, aquilo que passa por essa possibilidade de ser-falso, que a supera. No λόγος (lógos), precisamente, no λόγος ἀποφαντικός (lógos apophantikós), no discurso ostensor, não reside o ser-verdadeiro originário, isto é, o originário deixar ver que descobre. Este jaz, segundo Aristóteles, em um descobrir ἄνευ λόγου (áneu lógou), sem discurso, silencioso. Se o ser-verdadeiro coincide com o ser-descobridor, então não podemos ficar parados junto ao λόγος (lógos), ao discurso. Temos que tentar, então, compreender aquilo em que se fundamenta a possibilidade de o λόγος (lógos) ser verdadeiro. Temos que tentar compreender o νοεῖν (noeîn), o pensar percipiente ou o perceber pensante. Heidegger, no entanto, na nota de pé de página 24 anota que que o νοεῖν (noeîn), na medida em que é consumado no ser-aí (im Dasein) é um διανοεῖν (dianoeîn), um pensar que se realiza atravessando um percurso de discurso, um pensar μετά λόγου (metà lógou), com discurso (Heidegger, 2016, p. 69).
Ao final desta segunda estação, já em transição para a terceira, Heidegger reafirma: o ἀληθεύειν (aletheúein), o descobrir, é ἕξις τῆς ψυχῆς (héxis tes psychés), ou seja, algo sobre o que a alma dispõe, que ela tem junto a si, enquanto possibilidade. Alma, por sua vez, concerne ao vivente humano. Este vivente é caracterizado pelo fato de que não ocorre simplesmente no mundo, mas, antes, ele é de tal modo no mundo que ele é este seu mundo. Nós diríamos: ele é uma abertura de mundo. A alma dele é um ponto de salto do mundo. Com outras palavras, o mundo, no qual o vivente é, está aí para ele em certa medida descoberto. Ele é em seu ser descobridor. Ele não está no mundo como mera ocorrência, como algo que somente existe aí, como algo apenas disponível (nur vorhanden), mas ele é de tal modo presente (gegenwärtig), que o seu mundo pode lhe vir ao encontro. Dasein é ser-aí não como ocorrência de algo factual em um espaço, mas como praesentia (presença) fática do mundo (o todo do ente em seu ser descoberto, patente). Este estar aí privilegiado, este estar presente para o mundo, é, segundo Heidegger, o que Aristóteles tinha em mente quanto ele dizia que a alma fosse ἐντελέχεια (entelécheia) (De anima B 1, 412 a 21 ss) (Heidegger, 2016, p. 70).
O ἀληθεύειν (alētheúein), o ser-verdadeiro, ser-descobridor, pertence à constituição de ser fundamental deste vivente, que somos nós mesmo. Em sendo presentes para o mundo, o mundo pode nos vir ao encontro e pode se mostrar como estando aí. Uma determinação fundamental desse ente ou deste vivente que nós somos é o ser no mundo mediante o poder falar, o poder discorrer. Nossa vida é ζωή μετά λόγου (zoḗ metá lógou) – vida com discurso, em meio ao discurso. Ela é, além disso, πρακτική (praktikḗ): poder-agir, no sentido amplo da palavra, isto é, no sentido do poder operar, pôr em execução as coisas, ocuparmo-nos com elas, é uma determinação ulterior de nosso modo de ser, de estar presente no mundo e ao mundo. Poder-agir (handeln-können), práxis, unido ao desencobrimento do mundo e do ser-aí nele - ἀλήθεια (alḗtheia) - caracterizam a presença humana. Esta tem então a estrutura fundamental na αἴσθησις (aísthēsis) – no perceber –, na ὄρεξις (órexis) – no apetecer – e no νους (noûs) – no pensar ou ter em mente percipiente (vernehmendes Vermeinen). Por fim, Heidegger pergunta: quais são os modos do aletheúein no ser-aí do ser humano? (Heidegger, 2016, p. 70).
Modos do ser-verdadeiro e suas possibilidades privilegiadas: delimitações, articulações e níveis.
A terceira e última estação do caminho dessa consideração é dedicada aos modos do ser-verdadeiro e suas possibilidades privilegiadas. É aí que o livro VI da Ética a Nicômaco torna-se o texto fundamental. Heidegger trabalhou esta temática no curso de inverno 2024/2025 como parte propedêutica ao estudo do Sofista, de Platão (GA 19) (Heidegger, 1992). Segundo Aristóteles, são cinco os modos segundo os quais a alma pode ser-verdadeira, isto é, pode ser-descobridora do ente (Et. Nic. Z 3, 1139 b 15 ss). São estes: 1. A τέχνη (téchnē) - o entender de, no sentido de estar familiarizado com; 2. A ἐπιστήμη (epistḗmē) – a competência do saber no sentido da ciência; 3. A φρόνησις (phrónēsis) – a intelecção circunspecta; 4. A σοφία (sophía) – o compreender próprio, apropriado; 5. O νοῦς (noûs) – o pensar, no sentido do ter em mente percipiente. Na nota de pé de página, Heidegger remete à anotação 13 do apêndice. Esta faz notar que, em grego, νοεῖν (noeîn) tem a ver com farejar. No ter em mente percipiente o ser-aí humano percebe como que vendo, ouvindo, farejando, algo que se mostra, que é captado e que é interpretado enquanto algo. Embora Aristóteles diga que o νοεῖν (noeîn), este ter em mente percipiente, é ἄνευ λόγου (áneu lógou), sem discurso, ... no homem, à medida que este é um vivente cuja vida é caracterizada como λόγον ἔχον (lógon échon), como tendo a seu dispor a possibilidade do discurso, o νοεῖν (noeîn) se converte em διανοεῖν (dianoeîn), ou seja, o pensar intuitivo em pensar discursivo, μετά λόγου (metá lógou) (Heidegger, 2016, p. 71).
Até Aristóteles, diz Heidegger, estes modos do ser-verdadeiro estavam ainda indistintos. Mesmo Platão não tinha chegado a uma clareza sobre eles. O Estagirita, porém, delimitou de maneira aguda os fenômenos. Além disso, ele determinou a conexão entre eles e o nível deles como possibilidades do ser-aí. Tudo isso ele faz de maneira fenomenológica, não construtiva, a partir do ser-aí mesmo entendendo esses fenômenos como possibilidades de ser. Ele lê os modos do descobrir a partir do ser-aí. Ele os divide e articula a partir dos fenômenos mesmos. A consideração de Heidegger (1) propõe perseguir o modo como acontece essa leitura, (2) procura ver o fio condutor da delimitação que ele apresenta e (3) tenta compreender o critério a partir do qual Aristóteles faz o seu ranqueamento, determinando o que é o mais próximo e provisório e o que é mais elevado entre esses modos de descobrir (Heidegger, 2016, p. 71-72).
Como é que estes modos do ser-descobridor se dão como possibilidades de ser deixando-se ler a partir do ser-aí mesmo? A presença humana se mantém de início e no que há de mais próximo em suas ocupações, com suas urgências e necessidades, isto é, no uso e na produção de coisas de uso. Ela percorre sempre de novo os cursos da lida que produz e que maneja estas coisas. Torna-se, assim, experiente nas orientações deste percorrer – ἐμπειρία (empeiría). Mas este ser-experiente vai fazendo crescer uma compreensão concernente a este produzir e manejar. Ele vai ficando mais entendido a respeito de certas conexões. Primeiramente, emerge a compreensão do “tão logo – então”. Por exemplo, no procedimento da medicina, a arte de curar, primariamente emerge a compreensão que se dá no sentido de: tão logo tal ou tal estado de doença se mostra, então se aplica tal meio de cura. Em segundo lugar, o “tão logo – então” se torna “se isto – então aquilo”. O estado doentio sendo o mesmo, exige tal meio determinado. Esta orientação pode se tornar ainda mais aguda: “porque isto – então aquilo”. Isso significa um plus em compreensão. Esta última orientação, que se atém ao porquê (pergunta), é um entender de, no sentido de se tornar familiarizado com, é τέχνη (téchnē). Este entender-de está presente não só no manejo, no trato e tratamento, mas também na produção de coisas de uso. Aqui o compreender apreende e recolhe a forma, a matéria, o fim e o princípio que concorrem e respondem pela produção da coisa de uso. Para os gregos, as coisas, πράγματα (prágmata), são originariamente aquilo que se dá na ocupação do manejar e do produzir, elas são, antes de tudo, as coisas de uso – χρήματα (chrḗmata) (Heidegger, 2016, p. 72-73).
No manejar e produzir das coisas de uso o mundo circundante está aí. Na madeira, se apresenta a floresta. Na pedra, a montanha. Na água, o rio e o mar. Mas tudo isso se torna visível à luz do sol. Assim, em segundo lugar, surge a possibilidade e a tendência de gostar de ver, só por ver, ou seja, surge o amor daquilo que se dá a perceber. O maravilhar-se e impasse, a ἀπορία (aporía) – documentam esta tendência. A compreensibilidade do manejo não alcança o que desperta a maravilha. Ela falha. Heidegger dá um exemplo: vemos o curso do sol e nos admiramos com ele. Mas não nos está descoberto o porquê de ele ser assim como é. O mundo está aí, mas permanece vedado aquilo de que ele se constitui e como ele veio a ser. Nesse maravilhamento e nesse não poder encontrar passagem se renova a tendência para um descobrir que penetra mais amplamente o ser-aí do mundo em seu ser (Heidegger, 2016, p. 73-74).
Assim, na presença humana se dá uma dupla tendência ao descobrir. Uma, dentro da ocupação prática. A outra, livre de propósito prático. Na primeira, está em jogo aquilo que pode ser de modo diverso. Na segunda, o ente que já sempre está aí, o mundo, antes de tudo, o céu. A diferença no tocante ao modo da presença daquilo que a cada vez é “tema” do descobrir é tomada então como fio condutor da divisão e articulação entre os modos do ser-verdadeiro, do descobrimento. Alguns modos concernem ao que pode ser diversamente; outros, ao que está sempre aí no mesmo modo de sua presença (Heidegger, 2016, p. 74-75).
Por fim, fica a pergunta sobre o critério do ranqueamento operado por Aristóteles. O critério para estabelecer os níveis dos modos do descobrimento está na originariedade do descobrir da ἀρχή (archḗ), do princípio, ou seja, daquilo que de antemão já sempre está vigente no ente. A ἀρχή (archḗ) faz o ente tornar-se visível em seu ser. Entretanto, pergunta Heidegger, por que justamente a ἀρχή (archḗ)? A resposta pode ser obtida se nós retomarmos de modo mais agudo o que significa o ser para os gregos. O ponto de partida para a compreensão do ser é, para eles, o ente do mundo circundante. Ser é, primordialmente, ser-produzido, ser-pronto. É, fundamentalmente, ser presente, ser-disponível. A palavra οὐσία (ousía) quer dizer ser, no sentido da presença que se dá ante a mão, antes do manejo (Vorhanden). É mais propriamente ser aquilo que já está sempre presente, que está já sempre aí, pronto, sem necessidade de ser produzido. A palavra παρουσία (parousía) invoca essa presencialidade ou vigência constante, imóvel, quieta. Ser diz, pois, vigência, presencialidade constante. O ser do que está sempre presente e vigente é, para os gregos, o ser propriamente dito. Aquilo que está presente e que vige de antemão, que já está sempre pronto e que leva a cabo o que vem a ser, o que se consuma, é a ἀρχή (archḗ), o princípio, e o τέλος (télos), o fim (no sentido de sentido de consumação), que, por sua vez, vigora ali onde o que vem a ser alcança o limite de seu perfazer – πέρας (péras) (Heidegger, 2016, p. 75).
A divisão e articulação dos modos do ser-verdadeiro, no sentido do ser-descobridor, se realiza a partir daquilo que a cada vez é descoberto e, no ser-descoberto, é mantido. Ao ser que é sempre o que ele é e como ele é se relacionam ἐπιστήμη (epistḗmē) e σοφία (sophía). Ao ser que pode ser diversamente, a τέχνη (téchnē) e a φρόνησις (phrónēsis). A quinta possibilidade, a do puro perceber, no sentido do ter em mente percipiente, ou νοῦς (noûs), é propriamente possível ao homem só em determinado modo, a saber, na medida em que ele é correalizado com e nos outros quatro modos. Há uma diferença de ranqueamento entre os modos de descobrir mais próximos e provisórios, a τέχνη (téchnē) e a ἐπιστήμη (epistḗme), e os modos mais elevados e terminantes, a φρόνησις (phrónēsis) e a σοφία (sophía). A duas primeiras não estão em condições de operar um descobrimento pleno. Tomemos a τέχνη (téchnē). O ente com o qual o artesão, por exemplo, um sapateiro, se relaciona no produzir é a obra, o ἔργον (érgon). No caso do sapateiro, a obra é o sapato. Mas o sapato, quando já pronto, já não está mais à mão, ele repousa fora do produzir e ao lado do manejo do sapateiro. Enquanto pronto, enquanto tendo chegado à presença plena, consumada, acabada, ao limite de seu perfazer, o sapato cai fora da orientação do sapateiro, ele lhe escapa, e se torna o ente de uma outra lida com ele, a daquele que usará o sapato (Heidegger, 2016, p. 76-77).
De modo semelhante, também a ἐπιστήμη (epistḗmē), a competência da ciência, não alcança o descobrimento pleno. Esta palavra quer dizer o estar posto de modo seguro na relação o ente. O verbo ἐπίσταμαι (epístamai) quer dizer ser capaz de. “Eu sei”, neste sentido, quer dizer: sou capaz, hábil, estou a cavaleiro de, detenho o domínio de, não preciso olhar de novo do começo, eu tenho em mira o ente tal como ele é. À ἐπιστήμη (epistḗmē) pertence o poder ser ensinado e o poder ser aprendido. Aquele que aprende não precisa novamente encontrar tudo de novo. O que há de ser aprendido pode lhe ser ofertado na ἀπόδειξις (apódeixis), na demonstração ou prova (Beweis). A demonstração depende de proposições últimas, axiomas, princípios. A ἐπιστήμη (epistḗmē) faz uso dessas proposições, mas ela não as apreende ou descobre tematicamente. A ciência faz uso de pressuposições e o que se torna presente nessas posições não é tema de sua demonstração. O que não pode ser demonstrado, no entanto, pode ser mostrado (Aufweis). O discurso discute algo enquanto algo. Mas aquilo que é primeiro e extremo não pode ser chamado em causa enquanto algo. Daí que o descobrir dos princípios precisa ser conduzido sem discurso – ἄνευ λόγου (áneu lógou). Uma divisão não é aqui mais possível. O princípio é indivisível. Aqui só vale a ἐπαγωγὴ (epagōgḗ), a indução, não enquanto generalização, mas enquanto o trazer a coisa em causa diante de um simples ver. Não se trata, aqui, de um perceber que se alcança no discutir, mas de um puro perceber, um puro νοεῖν (noeîn) (Heidegger, 2016, p. 77-78).
Na φρόνησις (phrónēsis) e na σοφία (sophía) o puro perceber vige de modo mais decisivo. A intelecção circunspecta – φρόνησις (phrónēsis) – capta de modo mais pleno a ação, seu princípio e seu fim. Na deliberação (Entschluss) a ação é previamente visada e visualizada em seu fim, isto é, em seu estar pronta, em seu acabamento. Depois, é preciso providenciar aquilo que leva a alcançar isso que é visado ou visualizado. Isso requer a discussão sobre a situação concreta. A reflexão sobre a situação concreta em que se há de agir termina em uma αἴσθησις (aísthēsis), isto é, em uma supervisão simples das circunstâncias. O término da reflexão é, por sua vez, o princípio da ação. Em jogo está, então, algo como um συλλογισμός (syllogismós) prático. A premissa maior do silogismo é o bem da ação, pelo qual eu resolvo. A premissa menor é a discussão da situação captada em um perceber simples no agora, no instante. Desta dupla estrutura decorre a ação instantânea. O extremo da reflexão é a entrada da ação. A ação é o τέλος (télos), o fim, que na deliberação fora antecipado como ἀρχή (archḗ), princípio (Heidegger, 2016, p. 78-79). Assim, a intelecção circunspecta descobre o princípio e o fim, toda a ação. A obra, neste caso a ação, não cai fora da reflexão, mas ela constitui, justamente, sua consumação. A intelecção reta pertence à ação. E vice-versa: o que age retamente consegue inteligir o que deve ser posto na deliberação. Aquilo que constitui propriamente o bem da ação não se mostra a não ser para o σπουδαῖος ἀνήρ (spoudaíos anḗr), para o homem reto, que é aplicado e cuidadoso, solícito e sério (Heidegger, 2016, p. 79-80).
Considerações finais
Heidegger não traz uma exposição mais detalhada da σοφία (sophía), do compreender. Correspondentemente, o texto da conferência não traz a quarta estação que estava prevista e que concernia ao ser-verdadeiro, ao ser-aí e ao ser em referência à tarefa da ontologia (Heidegger, 2016, p. 59). No decorrer do que foi exposto, vemos que o ser-verdadeiro do λόγος ἀποφαντικός (lógos apophantikós) se funda no ser-verdadeiro do ser-aí, o qual se dá segundo os cinco modos do ἀληθεύειν (alētheúein), do ser-descobridor, do comportamento que descobre o ente no seu ser. Poderíamos completar, dizendo que o comportamento descobridor se radica na abertura, no âmbito aberto, do mundo. Mas: “o âmbito aberto surge da liberdade. Liberdade é a essência do homem. A essência do homem tem o seu fundamento no ser” (Harada, 2009, p. 227).
Destarte, a busca pela essência da verdade que começa com a concordância ou adequação tende a encontrar o seu fim na consideração da relação entre o ser humano e o ser. É o que ocupou toda a meditação de Heidegger ao longo de seu caminho de pensamento. No mesmo ano de 1924, na preleção sobre o Sofista de Platão, Heidegger abre um caminho de reflexão no domínio das questões concernentes à ontologia. Mas uma ontologia do ser-aí, isto é, da presença humana em seu caráter de ser-verdadeiro (abridor e descobridor) só vai se pôr como uma nova tentativa de fundamentação da ontologia como tal e como um todo com Ser e Tempo. Mas deixemos para uma outra ocasião um aprofundamento destas questões.
Referências bibliográficas
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Marcos Aurélio Fernandes
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília. Doutorou-se em Filosofia pela Pontificia Università Antonianum de Roma (2003). Tem experiência na fenomenologia, a partir de Heidegger. Além disso, dedica-se a estudos do pensamento medieval, sobretudo o franciscano, com destaques para a mística franciscana e para o pensamento escolástico de Boaventura e João Duns Scotus. Dentre outras publicações, é autor do livro “À Clareira do Ser: Da Fenomenologia da Intencionalidade à Abertura da Existência” (Daimon Editora, Teresópolis-RJ, 2011) e do livro “Na clareira do Ser: exercícios de aclaração da existência” (CRV, Curitiba, 2024).
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[1] Traduzimos “Tatbestand” por firmeza fatual, considerando que a palavra latina correspondente a “Bestand” é “firmitas”. “Bestand” quer dizer também, basicamente, existência, continuidade, permanência, duração. “Firmitas” quer dizer firmeza, mas também solidez, consistência. Poder-se-ia traduzir também por solidez ou consistência fatual.
[2] Cf. Platão, República 524b; Teeteto 209a.