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Martin Heidegger e Aristóteles. A interpretação da σοφία na Metafísica I, capítulos 1-2

Martin Heidegger and Aristotle: The Interpretation of Sophía in Metaphysics I, Chapters 1-2

Bento Silva Santos

0000-0001-6111-1693

benedictus1983@yahoo.com.br

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo

Recebido: 17/12/2024

Received: 17/12/2024

Aprovado:29/12/2024

Approved: 29/12/2024

Publicado: 31/12/2024

Published: 31/12/2024

RESUMO

O objetivo do artigo consiste expor as intenções de Heidegger a partir da interpretação dos capítulos 1 e 2 do Livro I da Metafísica de Aristóteles em seus elementos mais importantes. Tais intenções são explicitadas no chamado Natorp-Bericht de 1922. Destacarei de modo particular a interpretação fenomenológica da σοφία aristotélica. Desse modo, Heidegger julga fundamentais não somente o sentido de que as virtudes dianoéticas (σοφία e φρόνησις) provenham da iluminação do trato da vida fática com o mundo do entorno (Umwelt), mas também o fato de que a σοφία, enquanto tendência para o contemplar puro, seja uma forma derivada, arraigada na facticidade do Dasein e, portanto, com base em uma propriedade ontológica originária.

Palavras-chave: fenomenologia; hermenêutica; ontologia; facticidade; mobilidade.

ABSTRACT

The aim of this article is to present Heidegger's intentions based on the interpretation of chapters 1 and 2 of Book I of Aristotle's Metaphysics in their most important elements. These intentions are made explicit in the so-called Natorp-Bericht of 1922. I will highlight in particular the phenomenological interpretation of Aristotelian wisdom (σοφία). In this way, Heidegger considers fundamental not only the sense that the dianoetic virtues (σοφία and φρόνησις) come from the illumination of the interaction of factic life with the world-around (Umwelt), but also the fact that σοφία, as a tendency towards pure contemplation, is a derived form, rooted in the facticity of Dasein and, therefore, based on an original ontological priority.

Keywords: phenomenology; hermeneutics; ontology; facticity; mobility.

Introdução

O objetivo de minha análise consiste em explicitar a apropriação heideggeriana dos capítulos 1 e 2 do Livro I da Metafísica de Aristóteles. A interpretação dessas passagens começa explicitamente no primeiro período friburguense seja, em primeiro lugar, na preleção do semestre de verão de 1922, Interpretações fenomenológicas de tratados escolhidos de Aristóteles sobre lógica e ontologia (GA 62), seja, em segundo lugar, no Relatório-Natorp do mesmo ano, seja, por fim, de maneira mais detalhada, na preleção marburguense do semestre de inverno de 1924/1925, Platão: O Sofista (GA 19). Com base sobretudo no Natorp-Bericht (Relatório-Natorp), a partir das modalidades fundamentais do orientar-se do homem em seu mundo (θεωρία, ποίησις, πρᾶξις)e dos correspondentes “saberes” (σοφία, τέχνη, φρόνησις), destacarei especialmente a interpretação fenomenológica da σοφία: deixando de lado a simultaneidade dos fenômenos da poíēsis e da theōria segundo a visão de Aristóteles, Heidegger julga fundamentais, de um lado, o sentido de que ambas as virtudes dianoéticas (σοφία e φρόνησις) provenha da iluminação do trato da vida fática com seu mundo e, de outro lado, o fato de que a σοφία, enquanto tendência para o contemplar puro, seja uma forma derivada, arraigada na facticidade do Dasein e, portanto, com base em uma proridade ontológica originária. A σοφία, enquanto tendência originária do ser-aí, se realiza precisamente através do caminho que vai da relação produtiva (tέχνη) ao comtemplar puro (θεωρεῖν). Desse modo, a ênfase da apropriação heideggeriana recai, não tanto na autonomia da σοφία – seja a partir de seu objeto, seja a partir do comportamento do próprio ser-aí (Heidegger, 1992 [GA 19], p. 122-125) –, mas, sim, na “conexão de sentido entre trato cuidadoso e iluminação” (Heidegger, 2005 [GA 62], p. 78) inerente à vida fática.

1. O fenômeno do “conhecer” enquanto modalidades de iluninação (Erhellung) oriundas do trato da vida fática em seu caráter fundamental de movimento κίνησις

A julgar pelos suplementos (Beilagen) acrescentados pelos editores à publicação da preleção friburguense do semestre de verão de 1922 (GA 62), intitulada Interpretações fenomenológicas de tratados escolhidos de Aristóteles sobre lógica e ontologia, as intenções de Heidegger são inequívocas sobre sua apropriação direta dos textos aristotélicos: conquistar uma compreensão principial da ontologia aristotélica (ser – sentido) (referida aos entes da natureza), na qual os seus conceitos fundamentais se tornem determinações plenas para a tendência de temporalização no conhecimento, a saber: “remissões para a conquista da pré-disponibilidade (Vorhabe)[1], reivindicações do questionar, extensão da explicação, originariedade da conceitualidade” (Heidegger, 2005 [GA 62], p. 118). Esta nova compreensão da ontologia de Aristóteles implica então o fato de que os fenômenos do “conhecer” (τὸ εἰδέναι) e do “saber” (τὸ ἐπιστάσθαι), em sua mais própria tendência do observar e do deterninar – isto é, enquanto precisamente conhecimento dos princípios, das causas e dos elementos[2] ou, em termos heideggerianos, trazer à familiaridade a visão do porquê (Woraus, Warum, Womit: donde, porquê, com-quê) no ter expressamente uma pré-disponibilidade (Vorhabe) (Heidegger, 2005, p. 123-124) , surgem e crescem como motilidade da vida mesma no trato com seu mundo em um organizar, produzir, tratar e determinar. Refiro-me aqui, de modo especial, às virtudes intelectuais do νοῦς e da φρόνησις: antes de toda contemplação teorética, a origem do conhecimento humano provém de uma certa iluminação inerente ao trato (Umgang), que possui o sentido da custória do ser. Como Heidegger declina tais virtudes fenomenologicamente em seus textos do primeiro período friburguense e nos cursos marburguenses?

De um lado, deparamos com o νοῦς [enquanto apreender puro: vernehmen] que precede o λόγος, quando este último é compreendido no sentido estrito de afirmação e negação (âmbito do discurso apofântico enquanto constitui o lugar do verdadeiro e do falso, ou seja, esfera do juízo predicativo). Sob esse aspecto, o “elemento genuinamente objetual do νοῦς é aquele que esse apreende sem discurso (ἄνευ λόγου), sem a modalidade do chamar em causa algo em relação às suas determinidades-enquanto-que-coisa”[3]. A divisão, enquanto um apreender que decompõe [o que apreende] no discutir como determinar sintético, não é mais aqui possível. Na medida em que o νοῦς apreende os princípios com um ato de tipo intutitivo, unitário e indiviso, o falso não pode acontecer no νοεῖν (vernehmen). Esse “tomar” da apreensão (o nehmen do vernehmen) não implica um apoderar-se do apreendido, mas um tomar enquanto tomar à sua guarda (In die Acht nehmen) o que aparece no recolhimento em e pelo λέγειν (“dizer” [sagen deriva do alto alemão sagan, que significa mostrar] e “pôr” [legen]) (Zarader,1998, p. 232-233). Desse modo, o νος, à medida que, em todo discutir concreto, deixa-ver o sobre-o-quê (Worüber) de todo falar, ou seja, “a coisa chamada em causa” (no Besprechen)[4], está na verdade e nele não há falsidade, ou seja, o “a-partir-de-onde” está disponível sempre enquanto não-velado. Por quê? Porque apreende a ἀρχή como evidente e a mantém no olhar custodiada ou salvaguardada “como orientação fundamental constante”[5]. Tal é o âmbito da verdadeira apreensão que está em jogo aqui na apropriação heideggeriana do νος aristotélico como fio condutor das demais modalidades de desvelamento dos princípios .

Esta prioridade do νοῦς, compreendido aqui como iluminação do trato observador na vida fática, demonstra uma possível direção da mobilidade da vida segundo as duas direções básicas da σoφίαφρονήσις (Heidegger, 2005, p. 404), e isso em conformidade com uma precisa hierarquia do processo do “compreender” assumido no sentido especificamente prático e com base seja na conexão genética no Livro I, capítulo 1, da Metafísica de Aristóteles, seja a partir da conexão da pesquisa da Física como solo para a pesquisa ontológica (κίνησις): αἴσθησις (sensação), μνήμη (memória), ἐμπειρία (experiência), τέχνη (técnica), σοφία (sabedoria) (φρονήσις) (circunspecção). Esta hierarquia do conhecimento é chamada formação da circunvisão [ou circunspecção] (Umsicht) da livre mobilidade do ser do Dasein humano em seu mundo (Heidegger, 1993 [GA 22], p. 25), isto é, uma hierarquia que exibe a multiplicidade das possibilidades e das modalidades do desocultar (ἀληθεύειν = tirar do ocultamento, tornar não-velado [...], saber como conhecimento apriopriado: certeza) (Heidegger, 1993, p. 25) o que está velado: σοφότερον, μᾶλλον σοφός (ἐνδόξον)[6]. Ora, na formação da circunvisão da livre mobilidade, que caracteriza o comportamento fundamental do ser-verdadeiro do Dasein humano, é possível entrever uma atitude originária determinada somente a partir da motilidade da vida enquanto cuidar (Sorgen). Nessa atitude residem as modalidades de iluminação do fenômeno do “conhecer” humano que, com base na interpretação dos capítulos 1 e 2 do Livro I da Metafísica, é sempre visto em seu caráter fundamental de movimento. As modaliades do trato da vida fática são as seguintes: “iluminação, clarificação (‘iluminação’ em sentido formal), ver-ao-redor, circunspecção, contemplar, observar, determinar observador (compreender), compreender autêntico” (Heidegger, 2005, p. 115). Essas madalidades de iluminação são assumidas do trato fático, mantendo-se nele e para ele; por isso,

O compreender é principialmente interpretado enquanto um como (Wie) do trato [a (i)luminação do trato – circunspecção (Umsicht)], que carrega consigo a possibilidade da formação para um trato independente. A independência do trato entendedor temporaliza um próprio como (Wie) da vida, e precisamente enquanto θεώρια, o mais elavado e autêntico como (Wie) do Dasein humano (Heidegger, 2005, p. 115-116).

Daí a explicitação fenomenológica dos principais modos do desvelar e do compreender no Relatório-Natorp: Sοφία (o autêntico compreender observador) e φρονήσις (a circunspecção solícita: fürsorgende Umsich) serão interpretadas como as autênticas modalidades realizadoras do νοῦς: do puro apreender (vernehmen) como tal”[7].  Sob este aspecto, o νοῦς dos homens é o mesmo que um διάνοειν, isto é, um chamar em causa (ansprechen) algo enquanto algo, um νοεῖν que se determina unicamente sobre o fundamento do λόγος, isto é, expressa “o observar mediante, que é um falar, λέγειν” (Heidegger, 1992 [GA 19], p. 180). Isso significa que o νοῦς humano em sua lida com o mundo do entorno (Umwelt) possui o caráter do διά (διά-νοεῖν) precissamente porque é determinado pela maneira de ser que pertence proprimanete aos homens. O νοεῖν, portanto, se dá sempre no espaço de um ente que tem λόγος, realizando-se na linguagem e através da linguagem (Cf. Agnello, 2006, p. 86): “o νοεῖν tem o caráter fundamental do apreender. O  νος é o apreender puro e simples, isto é, aquele que originariamente dá, torna possível um a-que [horizonte] (Worauf) para qualquer ‘trato-com’ (Umgangmit) orientado em geral”[8]. Nesse sentido, apreender através do λέγειν implica sempre ser conduzido para o seio de uma situação bem determinada e, desse modo, chamar em causa [ansprechen] algo enquanto algo (etwas als etwas).

Ao interpretar o νοῦς aristotélico como um “puro apreender”, isto é, enquanto um “desocultar (Aufdecken) dos princípios sem discurso”[9], como uma faculdade pré-linguística, Heidegger não somente subtrai a exegese aristotélica dos critérios interpretativos dos paradigmas hermenêuticos do realismo e do idealismo, mas também exclui da concepção metafísica presente no mundo grego qualquer forma de separação entre mente e mundo, linguagem e realidade pré-linguística, graças à influência da fenomenologia que considera sujeito cognoscente e objeto conhecido como co-originários (Agnello, 2006, p. 67-68). Aristóteles e os gregos, desse modo, designam as coisas mesmas – isto é, o algo enquanto algo no λέγειν – não distinguindo entre um sujeito e um objeto, mas como πράγματα, ou seja, as coisas que foram produzidos [a partir de alguma coisa], digamos, a partir da árvore, por exemplo, que está no bosque: o tronco, em vez de ser mero lenho, coisa física (sentido ôntico ou pré-ontológico), vem ao meu encontro no trato mundano no caráter da “utilizabilidade para...”, da disponibilidade para a construção de um navio. O tronco tem o caráter do ser útil à..., do ser utilizável para...” (sentido ontológico): nesse caráter da “utilizabilidade para...” (Verwendbarkeit zu...) pertencente ao tronco reside o caráter de ser visado na fenomenologia hermenêutica de Heidegger (Heidegger, 2002, p. 300).

De outro lado, temos a virtude da φρόνησις, que é verdadeira porque realiza uma apropriação total dos “princípios do πράττειν; ἀληθεύειν [o ser no verdadeiro, o desvelar] na φρόνησις é mais originário do que no θεωρεῖν, uma vez que este último realiza o ἀληθεύειν ‘perspectivamente’, ao passo que φρόνησις o realiza ‘respectivamente’”, ou seja, a φρόνησις, que des-cobre (ent-decken), torna transparante (não-velado = unverborgen) em si uma ação (Heidegger, 2005, p. 414; Heidegger, 1992, p. 53) . Trata-se do âmbito concreto do trato pragmático com o mundo. Em termos do Relatório-Natorp, Heidegger declina a estrutura fenomenológica dos fenômenos do θεωρεῖν e da φρόνησις aristotélicos assim:

o compreender puramente observador traz em custódia o ente que juntamente com o seu ‘a-partir-de-onde’ é no modo no qual é sempre e necessariamente aquilo que é; a circunspecção [o ver-se ao redor ou circunvisão] que discute, em compensação, [custodia] um ente que em si mesmo no seu ‘a-partir-de-onde’ (Von-Wo-Aus) pode ser diversamente.[10]

Além disso, deparamos também com a distinção paradoxal entre σοφία e θεωρεῖν: enquanto θεωρεῖν é derivado, como ilustração da queda, e “a mais elevada temporalização do ver-ao-redor, do observar” (Heidegger, 2005, p. 116), “σοφία, ao contrário, atravessou a paragem ou morada (Aufenthalt): a radicalização do θεωρεῖν, um modo do ocupar-se, que se origina da τεχνή, constitutivo originarinamente tanto para a prática quanto para o teorético” (Heidegger, 2005, p. 414-415). No caso de uma compreensão fenomenológica da σοφία, o que significa atravessar esta paragem como absorver-se em (Aufgehenin’) algo cujo horizonte é desprovido do compreender enquanto um modo do trato da vida extraído de seu caráter fundamental de motilidade? Trata-se da paragem existencial em uma decisão que seja capaz de cuidar da coisa mesma (im Da-sein) junto da qual, a cada vez, é: “tal demorar-se (Verweilen), em uma primeira aproximação e na maioria das vezes, não é um demorar-se contemplativo apenas, mas precisamente um estar-ocupado com algo”, afirmará Heidegger seja em Ontologia (Hermenêutica da facticidade - 1923) (Heidegger, 1988 [GA 63], p. 87), seja em Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica (1924) quando falava da eliminação do medo a propósito da discussão dos antigos sobre o ser da natureza e do ser-aí do mundo: “a possibilidade autêntica é constituída pela διαγωγὴ, pela ‘paragem’ (Aufenthalt) na pura contemplação do mundo, ao qual não pode acontecer mais nada” [...]. “A possibilidade mais elevada da existência, sim, que faz com que a ameaça não continue mais a existir, é o puro θεωρεῖν e, por isso, a genuína ἡδονή, a ciência” (Heidegger, 2002 [GA 18], p. 290). A paragem é, portanto, uma intensificação particular da mobilidade do cuidado, no qual a vida adquire um novo estado, de tal modo que aquilo sobre o que se espanta torna-se objeto do cuidado[11].

A tentativa heideggeriana de distinguir entre σοφία e θεωρεῖν, relacionando a primeira virtude, prioritariamente, à φρόνησις, isto é, à chamada “verdade prática”, a despeito do fato de que a σοφία é sempre para o Estagirita a “razão teorética” (diánoia theōritikē)[12], revela que não está em jogo uma interpretação ortodoxa de Aristóteles, tampouco uma interpretação no sentido clássico do termo. Por exemplo, Heidegger retorna o argumento principal de Aristóteles (isto é, contra a primazia da φρόνησις) ao próprio Aristóteles dizendo: como a σοφία, fixada no eterno e necessário, poderia ser a virtude eminente para exercer a felicidade se ela desvia-se do “ser-aí do homem”, se ela encontra seu objeto eminente além do vir-a-ser deste ente mortal e contingente (histórico) exposto à possibilidade constante de não ser? A σοφία aristotélica não se ocuparia, desse modo, do “ser-aí humano em seu ser que é γένεσις, πρᾶξις, κἱνησις (gênese, ação, movimento)” (Heidegger, 1992, p. 167). Se uma interpretação deve ir além daquilo que se encontra inicialmente presente no texto, longe de ser uma inserção de sentido, trata-se precisamente de “desencobrir aquilo que estava inexpressamente presente junto aos gregos” (Heidegger, 1992, p. 77-78), uma vez que o ser-aí humano “é um ente parcicular que descobre o outro ente e a si mesmo não somente em um momento sucessivo, mas φύσει. Com seu ser são já descobertos para ele o mundo e ele mesmo, indeterminado, vago, incerto. O mundo: o mais estreito, o próprio ser” (Heidegger, 1993, p. 25).

 Com base no esforço de “desruição” da conceitualidade de Aristóteles – questionando especialmente as determinações do ser-presente [Gegenwärtigsein] e do ser-produzido [Hergestelltsein] com relação aos φύσει ὄντα –, Heidegger procura traços de uma associação de seu pensamento com a vida fática, que possa servir como estrutura preliminar para compreender a filosofia em termos mais próximos da existência humana em sua facticidade do que como contemplação do absoluto distante que não afeta mais o nossso coditiano mundano. Nesse período, o objeto da investigação filosófica para Heidegger é o existir fático enquanto é interrogado quanto ao seu caráter de ser. Exemplo emblemático dessa tentativa será a substituição da genealogia da σοφία encontrada em Metafísica I, capítulos 1-2, pela associação fundamental de σοφία e θεωρία  e a redução de σοφία à sua origem prático-produtiva. Para Heidegger a σοφία é, portanto, uma tendência originária do Dasein, que se realiza inevitalmente através do percurso que vai da relação produtiva à contemplação pura sob uma prioridade ontológica (SEGURA PERAITA, 2002, p. 125). Na mera “parte introdutória” de quase 200 páginas à interpretação do Sofista na GA 19 (Heidegger, 1992, 21-188) assistimos à interconexão da interpretação de Heidegger sobre Aristóteles (enquanto um intérprete do texto aristotélico) e seu próprio projeto fenomenológico-hermenêutico, uma interconexão marcada pela tensão entre a primazia aristotélica da theōria e a intenção heideggeriana de modificá-la para mostrar seu caráter derivado. A julgar pela indicação do próprio Heidegger, em carta de 19 de novembro de 1922 endereçada a Karl Jaspers[13], sobre a existência de extensas interpretações já realizadas em 1922, a preleção marburguense do semestre de inverno de 1924-1925 ainda reflete as interpretações heideggerianas de Aristóteles de 1922 do primeiro período friburguense, ou seja, são a conclusão de um movimento histórico-destrutivo da conceitualidade que coincidiu com a filosofia como tal: “vida fática jamais se apropriará de si mesma autenticamente sem destruição histórica; práxis jamais compreenderá a si mesma autenticamente sem teoria. O esquema da destruição histórica resulta obviamente em uma espécie de primazia da θεωρία” (Thanassas, 2012, p. 47) que, enquanto σοφία (φρόνησις), será compreendida no interior de um âmbito fático, histórico e temporal.  

Uma vez feitas essas considerações preliminares sobre as intenções de Heidegger na abordagem do fenômeno do compreender a partir de uma atitude originária à base das modalidades de iluminação, passemos ao exame da apropriação fenomenológica da σοφία nos primeiros capítulos de Metafísica I de Aristóteles no Relatório-Natorp (1922), mas sem deixar de mencionar a abordagem mais detalhada na preleção marburguense intitulada Platão: o Sofista (1924/1925)[14].

2. A σοφία compreendida a partir do fio condutor da facticidade no Relatório-Natorp

Após comentar programaticamente o Livro VI da Ética a Nicômaco, Heidegger volta-se para uma interpretação prelimnar dos capítulos 1 e 2 do Livro I da Metafísica a fim de explicitar o problema fundamental da facticidade dentro da qual será enraízada a σοφία, que é para Aristóteles “o modo mais elevado de existência para o homem”e,  ao mesmo tempo, “a ἀρετή da τέχνη” (Ética a Nicômaco VI, 7; 1141 a 12) (Heidegger, 1992 [GA 19], p. 56-57). Daí as indicações iniciais de duas modalidades de trato do Dasein para com seu mundo. De um lado, a πιστήμη (ciência) e a σοφία que pertencem à parte “científica” da alma desvelante, ou seja, “aquela com a qual contemplamos os entes cujos princípios não podem ser diversamente”: trata-se do ἐπιστημονικός, isto é, daquilo que pode contribuir para desenvolver o saber, daquele λόγος que serve de auxílio ao desenvolvimento do saber. Nesse primeiro tipo de ter a linguagem, à medida que o ser desses saberes precisam ser necessariamente do modo como eles são, não podendo se comportar de outra forma, “a existência tanto do vivente quanto do mundo na toalidade é determinada enquanto αἰών (eternidade/presente)” (Heidegger, 1992, p. 33). Assim, no âmbito daquilo que promove o saber, Heidegger apresenta a primeira modalidade de trato em 1922: “o compreender que determina por via do observar [ἐπιστήμη] é somente uma modalidade no qual está custodiada o ente: o ente que necessariamente e na maioria dos casos é o que é”[15].

De outro lado, a τέχνη (técnica) cujo objeto é aquilo que se precisa primeiramente produzir enquanto algo diverso (ἔργον = obra), ou seja, aquilo que ainda não é, mas que será (ἔσόμενον) (Heidegger, 1992, p. 40) e a φρόνησις, que tem como objeto de reflexão a própria vida (ζῷη) na medida em que possui como finalidade a práxis. Nesse caso, trata-se do mesmo ser daquele que reflete, ou seja, do próprio Dasein: “na ποιησις [produção], o τέλος [fim] é algo diverso, no caso da πρᾶξις [ação], porém, não; a mesma εὐπραξία  [agir pleno] é o τέλος [fim]” (Heidegger, 1992, p. 49). Sob este aspecto, τέχνη  e φρόνησις pertencem à parte “calculativa” (λογιστικόν) da alma, isto é, àquela que pode contribuir para desenvolver o βουλεύεθαι, o considerar com circunspecção, o deliberar; aquele λόγον que serve de auxílio ao desenvolvimento da deliberação. Nesse sentido, diferentemente da ἐπιστήμη, “o poder errar é uma prerrogativa que pertence à própria τέχνη [...]. Essa possibilidade do poder errar é constitutiva para a formação da τέχνη” (Heidegger, 1992, p. 54). O mesmo não acontece com a φρόνησις, “que não é outra coisa senão a consciência moral posta em movimento, a qual torna transparante uma ação. Não se pode esquecer a consciência” (Heidegger, 1992, p. 56). Com base na separação ontológica interna à experiência humana do mundo realizada pelo próprio Aristóteles na Ética a Nicômaco (1139 a 6 ss) – ou seja, entre as partes “científica” e “calculativa” da alma –, Heidegger afirma a propósito: “esse mundo da natureza, que é sempre assim como ele é, é em certa medida o pano de fundo, a partir do qual se destaca o poder-ser-diferente. Esta distinção é uma distinção totalmente originária [...]. Essa distinção”, continua Heidegger, – longe de tratar-se de “dois âmbitos de ser estabelecidos um ao lado do outro junto à consideração teórica” –, “é o mundo e sua primeira articulação ontológica em geral” (Heidegger, 1992, p. 29). Assim, Heidegger declina a segunda modalidade de trato a partir da qual compreenderá primaramente a concepção grega de ser: na perspectiva da parte da alma que promove a reflexão, “outra possibilidade de trato no sentido daquele que organiza, que reflete ocupando-se, subsiste em relação ao ente que pode ser também diversamente de como é, o ente que no trato mesmo deve antes de tudo ser colocado em obra, tratado ou produzido. Esta modalidade da custódia do ser é a τέχνη[16], e o que esta modalidade de saber desoculta ou desvela na alma é εἶδος (aspecto), por exemplo, da casa, o aspecto, a “‘face’, como ela deve estar aí e aquilo que constitui sua presença autêntica. Tudo é antecipado em uma deliberação na alma” (Heidegger, 1992, p. 42) [...]. “O εἶδος, portanto, é a ἀρχή [princípio]; a partir dele começa a κίνησις [movimento]. Essa κίνησις é de início a κίνησις da ποιησις [produção], do agir que surge da reflexão” (Heidegger, 1992, p. 43).

É precisamente na relação técnica do Dasein com o mundo que jaz a tendência para um saber mais autônomo, uma tendência à theōria arraigada no próprio Dasein enquanto sua possibilidade mais própria. Sob esse aspecto, norteando-se pela tendência de um saber mais (εἰδέναι μᾶλλον), a vida fática descuida ou até mesmo abandona seu interesse pela relação prática com o mundo, e a tendência para cuidar do si-mesmo autêntico como existência se transforma em um contemplar puro e autossuficiente e, portanto, estéril e desvitalizante. Daí as questões: o que seria o elemento histórico (das Historische) para a vida humana entendida simplesmente como puro permanecer na contemplação das archai (princípios)? Como é possível ter um saber apodítico sobre a historicidade autêntica de um ente que pode ser de outra forma, como é o caso do objeto da τέχνη? Como entender, por fim, a surpreendente afirmação de Aristóteles, segundo a qual a σοφία é a ἀρετή da τέχνη, se esta última tem por tema o ente que também pode ser de outra forma, enquanto a primeira tem por tema o que é sempre em sentido eminente? Ainda que recorramos simultaneamente à preleção do semestre de inverno de 1924/1925 (GA 19) em razão de sua abordagem mais completa, no Relatório-Natorp Heidegger se interesse por três questões em relação à Metafísica I, capítulos 1-2, que passamos a declinar na sequência desse trabalho.

A. A estrutura fenomenológica das virtudes dianoéticas – epistēmē e sophia

Primeiramente, Heidegger estabelece o objetivo de mostrar a estrutura fenomenológica tanto da ejpisthvmh quanto da sofiva, assim declinado no Relatório-Natorp: “A estrutura fenomênica do trato observador, que determina conexões causais (ejpisthvmh) segundo seu horizonte (Worauf) e referência (Bezug) intencionais; a estrutura fenomênica da maturação temporal mais elevada possível deste trato, o compreender autenticamente observador (sofiva) enquanto trazer-em-custódia as ajrcaiv[17]. Com base nessa intenção, Heidegger não se limita a traduzir o termo grego ejpisthvmh como “ciência” ou “conhecimento”, mas deixa ver aquilo que deve ser a performance do fenômeno indicado pelo conceito grego como tal, uma vez que as expressões essenciais para saber, conhecer, compreender, antes de assumirem gradualmente um sentido especificamente teorético como doutrina geral da ciência, tinham dimensões práticas no trato do homem com seu mundo do entorno (Umwelt): por exemplo, “alguém compreende a sua profissão”, isto é, “sabe” o que faz, a sua coisa (Sache); “compreende” literalmente (Heidegger, 1993, p. 207)[18]. Não é sob este aspecto que se deve compreender, fenomenologicamente, a afirmação de Heidegger segundo a qual “todo comportamento do Dasein é assim determinado enquanto pra'xi" kai; ajlhvqeia”, isto é, como ação e desocultamento? (Heidegger, 1992, p. 39). Compreende-se igualmente como Heidegger entende o tipo de causas que se tornam tema na pesquisa filosófica: “Aristóteles não deduz a ideia da ciência de um conceito abstrato, mas aprofunda o que é já entendido pelo ser-aí natural. Aristóteles procura trazer ao conceito o que já é conhecido na consciência pré-teorética” (Heidegger, 1993, p. 212). Portanto, em sua interpretação da Ética a Nicômaco, Livro VI, no ano 1922, Heidegger traduzira ejpisthvmh como “o determinar observador, discursivo e demonstrativo” e, em sua exposição sobre os dois capítulos iniciais de Metafísica I do mesmo ano, matiza sua tradução do mesmo conceito aristotélico: “trato observador, que determina conexões causais”[19]. Quanto ao conceito de sofiva, além daquela já declinada há pouco, Heidegger a definiu também em sua leitura da Ética a Nicômaco assim: “o compreender que autenticamente vê, o apreender puro” [20]. Além dessa dupla tarefa a que Heidegger se impõe em sua apropriação fenomenológica de Aristóteles, ainda pretende compreender a Física e seu objeto à luz das conclusões obtidas em Metafísica I, ou seja, “segundo a delimitação do seu objeto delineada com base na ideia de um compreender puro, segundo o seu princípio (a específica fundamentação crítica) e segundo o método da explicação categorial” [21].

Na preleção do semestre de verão de 1924 intitulada “Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica” (GA 18), Heidegger interroga os conceitos aristotélicos com base em três pontos de vista, uma vez que o que está em jogo nesse momento é o conceito em sua conceitualidade (Begrifflichkeit). Ora, “o escopo do evidenciar da conceitualidade já nisso, fazer você sentir que na conceitualidade mesma se mobiliza o que em cada pesquisa científica constitui a realização do perguntar e determinar” (Heidegger, 2002, p. 14). Daí as questões que visam compreender o fenômeno encerrado na conceitualidade de ejpisτhvmh e de sofiva e não simplesmente tomar conhecimento: 1º) Qual é a experiência fundamental que torna acessível para mim o caráter coisal, experiência implícita no trato da vida com o seu mundo? “O que estava diante dos olhos de Aristóteles como movimento, quais fenômenos de movimento viu”? São perguntas colocadas não para conhecer um conteúdo conceitual, mas para saber como é experienciada a coisa mesma, ou seja, 2º) como o primariamente chamado em causa [ansprechen] é originariamente visto? 3º) Qual é o caráter específico da compreensibilidade, a específica tendência à compreensibilidade? (Heidegger, 2002, p. 13-14). Certamente não se trata de uma tendência para um enunciado apofântico do saber teorético quando afirmo no juízo “a caneta é de cor azul”. Nesse sentido, a situação dos conceitos ejpisthvmh e de σοφία não é acessível na definição de essência, como tradicionalmente se fez com base na apreensão teorética das coisas (a partir da diferença entre gênero e espécie), mas na vida fática a partir da doação pré-teórica do significado em um mundo do entorno (Umwelt): “a conceitualidade pensada nos conceitos fundamentais” é um a experiência fundamental da coisa doada à medida que é um chamar em causa (ansprechen) algo, ou seja, “o expressar-se enquanto ‘falar sobre...’ é o modo fundamental do ser da vida, isto é, do ser-em-um-mundo”. Enquanto determinado pelo lovgo", “o modo de ser fundamental do homem no seu mundo é o falar (sprechen) com o mundo, sobre o mundo, do mundo” (Heidegger, 2002, p. 21.18). Neste falar, enquanto lidar pragmático com as coisas, já descortinamos a revalorização da práxis originária, revindicada por Heidegger como origem prático-produtiva da sophía, práxis entendida como o ser do ser-aí, orientada pela φρόνησις, a forma mais adequada da compreensão da vida em seu caráter ralacional, isto é, enquanto mundo.

Este mundo abre-se no interior do ser-aí do homem, não como um sujeito capaz de vontade enquanto condição preliminar subjetiva, mas enquanto caráter ontológico do próprio existir  humano, como afirmará posteriormene Heidegger em Ser e Tempo, § 14: “‘mundo’ não é ontologicamente uma determinação do ente, que em sua essência o Dasein não é, mas um caráter de ser do Dasein mesmo” (Heidegger, 2012, p. 64/201). Nesse falar com o seu mundo o ser humano não projeta absolutamente o sentido das coisas, caso desejemos entender o signifcado genuíno da afirmação ambígua de Heidegger: “as remissões e a significatividade são abertas no ser-aí, mas isto não significa de fato que sejam abertas pelo ser-aí” (Costa,2003, p. 221). Não está em questão aqui uma interpretação subjetivista no sentido de que a coerência que caracteriza um mundo dependa de um sujeito no qual essa se abre. Ora, ser-em-um-mundo no sentido de deixar “‘ser’, de modo preliminar, “não significa trazer ou produzir um ser, mas descobrir, na utilizabilidade, algo já sempre ‘sendo’, e deixar assim encontrar o ente que tem um tal ser”[22] (Heidegger, 2012, § 18, p. 85/253). Se digo, por exemplo, a caneta serve para escrever”, aqui a coisa mesma, enquanto ente intramundano, se dá imediatamente em um contexto de saber prático, em uma rede de remissões e com base em um trato concreto com o mundo do entorno. Saber para-quê serve uma coisa não é a mesma coisa que saber usá-la corretamente, uma vez que o saber usar é um modo particular de acesso à coisa que somente alguns possuem, implicando, portanto, níveis mais específicos de saber: o que caracteriza o ser do utilizável é a sua conformação ou funcionalidade (Bewandtnis), ou seja, o ser da coisa intramundana é o seu ser em função de: as qualidades do ente são descobertas somente no trato concreto, mas descobertas não significa criadas (cf. Costa, 2003, p. 210-212).  

B. A descrição do fenômeno do contemplar puro – theōrein

Em segundo lugar, Heidegger deseja seguir o caminho que conduziu Aristóteles a conquistar o acesso ao fenômeno do compreender puro e seu modo de interpretar. Sob o aspecto genealógico da ideia do contemplar puro, não há qualquer distinção no que diz respeito à tendência própria da vida fática enquanto lida (Umgang) prática com o mundo. Tanto o acesso ao fenômeno do compreender puro como tal quanto sua interpretação são característicos para o sentido fundamental da “filosofia”. Exemplo desse sentido é a predominância da conceitualidade grega com uma apropriação eminentemente teórica de tal modo que, tendo atravessado uma cadeia de distintas interpretações, “os conceitos fundamentais perderam suas originárias funções expressivas, entalhadas de modo determinado em regiões de objeto igualmente determinadas”[23]. A partir de compreensões teóricas do fenômeno do contemplar puro na história da filosofia, não se deu uma originariedade da interpretação da vida fática enquanto possibilidade de tomar radicalmente posse de si mesma, e isso significa para Heidegger que a vida renuncia à possibilidade de ter que ser. Nesse sentido, resgatar a vida fática em sua facticidade, na medida em que nela é inerente a possibilidade de uma existência, apropriada autenticamente e trazida em custódia que amadurece no tempo, implica questionar radicalmente “a interpretatividade transmitida e soberana nas suas motivações encobertas, nas suas tendências não expressas e vias interpretativas para avançar em direção às originárias motivações da explicação no retorno desconstrutivo. A hermenêutica coloca em obra a sua tarefa somente no caminho da destruição[24].

C. O caráter ontológico da σοφία e seu enraízamento na vida fática

Em terceiro lugar, Heidegger pretende explicitar “o caráter de ser da σοφία  enquanto tal e seu desempenho (Leistung) constitutivo para o ser da vida humana”. Esta pretensão é aqui anunciada brevemente e perseguida com paixão posteriormente, sobretudo no § 9, do capítulo primeiro, e no capítulo segundo, respectivamente, da preleção do semestre de inverno de 1924/1925 (GA 19), intitulados “a análise da σοφία  (Ética a Nicômaco VI, 6-7)” e “a gênese da σοφία  no interior do ser-aí natural dos gregos”[25], como veremos na sequência desse estudo. As três perspectivas declinadas anteriormente são interdependentes, “de tal modo que a estrutura do compreender puro torna-se compreensível somente com base em seu enraizamento essencial na vida fática”[26]. Em relação ao enraizamento da σοφία na vida fática e a partir da modalidade de sua gênese nela, as perguntas colocadas no Relatório-Natorp são as seguintes: “como está aí na partida, o que Aristóteles caracteriza como pesquisa? Onde e enquanto que-coisa (als was) isso é encontrável? Como aí chega Aristóteles e como lida com isso?” [27]. Ora, Aristóteles assume a vida fática na modalidade de seu próprio falar coloquial, cotidiano quando caracteriza o homem sábio e, desse modo, a sabedoria. Nesse sentido, trata-se do discurso sobre σοφώτερον do ser que compreende mais que outro, isto é, do discurso que “se mantém às subsunções (Dafürnahmen: [crenças assumidas]) fáticas em que a vida interpreta as suas próprias modalidades de trato”.

Aristóteles fixa tal discurso na forma comparativa, a qual “torna visível o que é que importa à vida quando chama em causa algo como σοφώτερον: o μᾶλλον ειδέναι, o ‘mais’ (das Mehr) no observar [o saber mais que, o ver mais que]”[28]. O mais sábio do que outro implica faticamente o fato de que existe uma preocupação para alcançar uma maior compreensão de maneira originária no interior de trato pragmático do ser-aí com o mundo. É precisamente nesta tendência ao “mais” na observação que a vida fática chega “a renunciar ao cuidado da execução (Verrichtung). O com-quê do trato (Womit des Umgans) operativo torna-se o a-que (Worauf) do mero observar”. Mas, sob o aspecto da gênese prática da sabedoria, “neste ‘mais’ da observação se torna visível o “aspecto” (aparência) (Aussehen) do com-quê do trato, e precisamente não como objeto do determinar teorético, mas como a-que (Worauf) do ocupar-se organizador”. Aqui está a ideia, a segunda qual o “aspecto” (por exemplo, de uma doença: ijaτreuvein = “tratar de forma médica”) possui o caráter de porquê, e este tem um sentido originariamente prático[29]. Nesse sentido, o pressuposto para realizar a τέχνη  é já viver na verdade enquanto compreender apropriado da coisa, uma vez que o “aspecto” do que deve ser produzido é dado em seu levgein.

Segundo esta interpretação fenomenológica de Heidegger sobre esta tendência de saber mais que o outro, a vida fática, enquanto sentido relacional de cuidado, abandona o interesse pelo trato pragmático com o mundo à medida que visa uma cura pelo conhecimento teorético até o seu mais elevado grau: o theōrein enquanto apreensão intelectual de coisas cujas causas não podem ser diferentes. Com base nesta relação autônoma da sabedoria enquanto mais saber, “o trato puramente observador se mostra, porém, tal que no seu a-que (Worauf) não vê mais, precisamente, a vida na qual esse [o trato] é [ou está arraigado]”. Portanto, este horizonte de um procurar específico já não é mais de tipo prático, mas fundamentalmente teórico. Não há outra conclusão senão aquela em que a sabedoria constitui para Aristóteles o extremo da tendência ao cuidado, tendência arraigada na própria vida fática como sua possibilidade mais própria: “a tendência do cuidar se transferiu ao observar enquanto tal [theōrein]. Este se torna sempre mais um trato independente e enquanto tal o a-que (Worauf) de uma ocupação (Besorgnis) própria”[30], ocupação que se tornará o “cuidado do conhecimento conhecido”, na crítica de Heidegger ao seu mestre Husserl através dos pressupostos cartesianos da fenomenologia na preleção de semestre de inverno de 1923/1924 (GA 17): isto é, no que diz respeito ao ser do conhecer, trata-se de um cuidado da certeza, “enquanto se detém em um peculiar afastamento do ser, isto é, em um estado que não permite que o conhecer assim caracterizado alcança o ser de si mesmo, mas que interroga cada ente com respeito ao seu caráter do possível ser-certo” (Heidegger, 1994 [GA 17], p. 285-286). Esta motilidade específica é “fuga do conhecer diante de si mesmo no modo do ocultar” (Heidegger, 1994, p. 288), “o ser-visível com o ente que está no mundo. Esta co-visibilidade é expressa no . O ser-aí [Dasein] é aqui e agora, no ser-sempre-a-cada-vez (Jeweiligkeit), é fática. A facticidade não é uma concreção do universal, mas a determinação originária do seu ser específico enquanto ser-aí” (Heidegger, 1994, p. 288-289).

O abandono do trato pragmático com o mundo a partir da predominância do contemplar puro é uma libertação, uma vez que não se busca a sabedoria por nenhuma utilidade, afirma Aristóteles: “assim como chamamos homem livre aquele que é fim para si mesmo e não para outro, assim consideramos esta [a σοφία], entre todas as outras ciências, como a única ciência livre, pois esta somente é para si mesma”[31]. Como o homem é escravo sob diversos aspectos –, isto é, “escravo dos pré-juízos, escravo da opinião dominante, escravo do próprio estado de ânimo, das próprias pulsões e das próprias reivindicações” (Heidegger, 1993, p. 30) –, Aristóteles compreende a σοφία como a ciência mais autêntica e mais divina, e Heidegger interpreta criticamente esta afirmação: “a ideia do divino, porém, não se desenvolveu em Aristóteles na explicação de um objetual tornado acessível na experiência religiosa fundamental; o qei'on é, antes, a expressão do caráter do ser mais elevado que resulta da radicalização ontológica da ideia do ente-movido”. Portanto, diante da interpretação tradicional, a sabedoria não é divina no sentido religioso: o puro apreender é divino precisamente porque está “livre de toda referência emocional ao seu em-direção-a-que (Worauf). O ‘divino’ não pode ser invejoso não porque esse seja o bem e o amor absolutos, mas porque em geral, no seu ser enquanto pura motilidade, não pode nem odiar nem amar”[32].

 Ora, conceber a ideia da σοφία como vida teorética sem inquietude, contemplando o ente supremo e eterno (o intelecto divino como pensamento de pensamento) e, portanto, com ausência de finalidade prática, provém da impossibilidade por parte de Aristóteles de pensar explicitamente o primado da ousía enquanto “o ente no como de seu ser”, ou seja, este “como do ser designa o ser-aí sob o modo do ser-disponível” (Heidegger, 2002, p. 22.24.25). Voltando-se para o sentido corrente de ousía (“riqueza”, “bens”, “patrimônio”, “propriedade) é possível “ouvir” como o ser-aí natural fala com seu mundo e, desse modo, descortinar a co-significação do sentido científico, filosófico, terminológico ou ontológico de ousía (Cf. Sommer, 2005, p. 67s): “o ser mesmo de um ente possui ainda momentos determinantes”, dos quais é possível ainda “dizer alguma coisa do ente no como de seu ser” (Heidegger, 2002, p. 21-22). O sentido de ser do conceito ousía está arraigado na vida concreta e quotidiana do filósofo, na atitude natural. Como bem observou Christian Sommer, em Aristóteles lidamos com uma ontologia do mundo que, comandada pelo modelo tecnológico (a partir do Herstellen no sentido de produzir e do tornar disponível [Herstellen] o ente em uma presença estabilizada e manipulável), transfere o sentido do ente intramundano (ousía: presença [Anwesenheit][33] constante e produzida) para o ser humano como tal (Cf. Sommer, 2005, p. 74-76). Mas, para Heidegger, a fenomenologia hermenêutica, longe de ser uma ontologia do ‘mundo’ enquanto “a totalidade do ente simplesmente- presente no interior do mundo”, é uma interpretação da presença do ser-aí humano em sua motilidade ontológica a partir do tempo. Em outras palavras: o tempo é o ser do movimento mesmo como motilidade do ser-aí humano, ou seja, a temporalidade (Zeitlichkeit) como sentido do ser do Dasein, e aquele modo de temporialidade (Temporalatität) que constitui o sentido do ser em geral[34]. Nesse sentido, a ideia aristotélica de um ente supremo pensando a si mesmo fora de todo movimento impede visar esta motilidade do ser-aí humano como temporalidade ek-estática: “a mobilidade um como [Wie] da temporalidade, da facticidade” (Heidegger, 1988, p. 65). Se, portanto, fenômeno em sentido fenomenológico não é tanto o que ente que aparece, mas o seu como (Wie), e considerando que a caracterização fundamental do ser-aí humano não é substancial, mas deîtica, ou seja, espaço-temporal, o existir fático só pode ser entendido como pré-disponibilidade de ser, isto é, possibilidade fática em sentido existencial: isso significa, portanto, ter-a-capacidade-de, o poder compreender um possível algo do vivenciável em geral; desse modo, o ser-capaz-de (vermögen) do ser-aí fático mostra que o compreender fenomenológico é irredutível à mera compreensão factual ou teórica. É no afã de destruir a ontologia do mundo que Heidegger interpreta fenomenologicamente as categorias fundamentais do movimento (duvnami" e ejnevrgeia) ao declinar seu programa de destruição reiterativa de Aristóteles na primeira preleção marburguense de 1923/1924. Depois de mencionar a distinção fundamental das quatro determinações do ser a partir de Metafísica E 2, 1026 a 33, Heidegger julga que tais determinações são os motivos vivos através dos quais se move a pesquisa: um dos sentidos do ser como duvnami" [→ o ente em potência  = o]n dunavmei)] e ejnevrgeia [→ o ente em ato = ejnergeiva/ o]n] é

atingido a partir da apreensão específica da vida mesma, na medida em que ser-vivente significa ser-uma-possibilidade. Ambas [isto é, duvnami" e ejnevrgeia] têm relação somente com a vida enquanto ser-aí em um mundo. ‘Vida’ é assim ela mesma algo que se apresenta mundanamente, a qual tem a particularidade de ser autêntica em seu ser-acabado-na-presença. Na ontologia grega, que é uma ‘ontologia do ‘mundo’, justamente a ‘vida’ (enquanto ser no mundo) confere o caráter privilegiado (Heidegger, 1994 [GA 17], p. 51-52).

3. Da tendência à poiēsis até sua transformação na theōria sob o aspecto de uma prioridade ontológica: simultaneidade dos fenômenos da produção e do contemplar puro (Aristóteles) ou caráter derivado da theōria (Heidegger)?

Com base nas densas análises desenvolvidas seja na preleção friburgunese do semestre de verão de 1922 (GA 62), seja na preleção marburgunse do semestre de inverno de 1924/1925 – “Platão: o Sofista” (GA 19) –, está claro que Heidegger defende a concepção segundo aqual a sofiva é uma tendência originária do Dasein, que se executa através do caminho que vai da relação produtiva ao comtemplar puro. A tendência para esta theōria é designada como tendência para o ruir, isto é, para um decair que se afasta da relação prática com as coisas das quais nos ocupamos cotidianamente em nosso mundo do entorno. A diferença entre Aristóteles e Heidegger reside precisamente nisso: enquanto Aristóteles descreve a simultaneidade dos fenômenos da poíēsis e da theōria –, mesmo reconhecendo uma prioridade temporal no que diz respeito às ciências produtivas[35] –,  para Heidegger não somente é determinante o sentido de ambas se enraízarem na facticidade, mas sobretudo o fato de que a σοφία, enquanto tendência para o contemplar puro, seja uma forma derivada, arraigada na facticidade do Dasein e, portanto, com base em uma proridade ontológica. Em que pesem esta e outras diferenças a partir de uma leitura exegética dos textos aristotélicos, para compreender a novidade da ontologização dos conceitos da filosofia prática de Aristóteles nas apropriações de Heidegger, é preciso atentar para o caráter “fenomenológico” da aproximação: nas pesquisas particulares de Aristóteles, Heidegger vê “ontologias regionais” onde tematiza a estrutura de ser específica do ente respectivamente considerado. O processo de ontologização da vida ou de uma fundação a priori da biologia já transparece na interpretação do princípio do movimento em Aristóteles, não como a percepção puramente que observa, mas como a percepção que apreende algo de apetecível, ou seja, de interessante para a o[rexi", o appetitus, com sua dinâmica do perseguir e do fugir: nesse sentido, os fenômenos do “mover-se” (kinei'n), na direção de algo no mundo a cada vez dado, e do “destacar” (krivnein) algo em relação a outro (diferenciar)[36] constituem a vida. 

Ao traduzir interpretativamente a abertura da Metafísica (A, 1, 980 a 21-27) de Aristóteles na preleção Interpretações fenomenológicas de tratados escolhidos de Aristóteles sobre lógica e ontologia (1922), Heidegger afirma: “o desejo de viver no ver [no absorver-se no que é visível] é algo, que faz parte do ser-como [modo de ser jornalístico (de ser)] do homem. Este ser-como do homem se expressa no fato de que ele (de modo preferencial) gosta de viver de uma maneira que sempre faz algo novo e conhece outros” (Heidegger, 2005, p. 17). Este ser-como do homem, enquanto ver-gostar de, está enraízado de tal modo no homem que tais modalidades de conhecer estão livres do desempenho da realização e do cumprimento de tendências de ocupação [da esfera dada de desempenho]. Nesse sentido, o sentido do “saber” aqui em Aristóteles é interpretado na direção das múltiplas maneiras do “ver” (Sehen) - isto é, como apreender no sentido mais amplo -, do estar absorvido naquilo que pode ser visto, do olhar para algo, do olhar em volta, do olhar para frente e para trás. Esse “ver”, com o destaque da perpecção sensível, “tem a preferência da abertura primária do mundo, de tal modo que o visto pode ser discutido e executado de modo mais detalhado no lovgo"” (Heidegger, 1992, p. 70). A ênfase desse “ver” está presente igualmente na paráfrase de Heidegger ao texto inicial da Metafísica de Aristóteles (“Todos os homens tendem [ojrevgonτai] por natureza ao saber”)[37]: “no ser do homem (Im Sein des Menschen) está essencialmente a cura (Sorge) do ver” (Heidegger, 1979, p. 380). Aludindo ao caráter apetitivo, como já tratado através da concupiscência dos olhos em Agostinho a propósito da “simples vontade de ver” (a curiosidade nua enquanto sentido dominante), para Heidegger a atitude teórica se enraíza na experiência “natural” e procede de uma fixação do desejo sobre o mundo que se torna assim o fim do deleite (Cf. Heidegger, 1995, p. 224).

O que está em jogo nos três primeiros níveis do “saber” (sensação-experiência-técnica) em Metafísica A 1, é o “ser-orientado do ser-aí, o ser-descoberto, e o ser-visível” (Heidegger, 1992, p. 69). É possível associar essas modalidades de “ver” a alguma relação produtiva (poiēsis) como estágio prévio à contemplação pura (σοφία), como pretende Heidegger em sua interpretação sobre o caráter derivado da theōria? Somente com base no âmbito das relações originárias de coesão entre o produzuir (τέχνη) bens de um certo tipo (a construção de uma casa, por exemplo) e a ciência (ejpisτhvmh) que alcança a verdade por meio de elaboraçãoes de raciocínios é possível vislumbrar a tese heideggeriana. Quais são os princípios dessas duas virtudes dianoéticas enquanto níveis cada vez mais específicos do apreender (Vernehmen) em geral? De um lado, em relação à τέχνη, por exemplo, “quando o mestre de obras edifica uma casa, ele vive e se move antes de tudo no ei\do" da casa, no como da sua e-vidência” (Heidegger, 2002, p. 35), e este ser relativo à produção (poiouvmenon), “enquanto circunspecção que ilumina este trato” se dá em sua plena signifcatividade mundano-ambiental: este sentido de ser da casa “tem sua proviniência do mundo do entorno originariamente dado”, integralmente experienciado[38], sua con-tingência (Mithaftigkeit) é vista. Não há produção possível sem que haja um exemplar que sirva de modelo que se deve realizar em vista da edificação da casa. De outro lado, no que diz respeito à σοφία, trata-se das conexões causais, cuja essência evoca precisamente o ei\do" formal como ajrchv da teoria. Como bem observou Carmen S. Peraita, “a inexcusável presença do eidos na técnica é a razão de que já nela se encontre a tendência a libertar-se da produção e a fazer-se autônoma. O eidos opera, portanto, como elementos vinculante essencial entre produção e contemplação” (SEGURA PERAITA, 2002, p. 130). Desse modo, afirma Heidegger no Relatório-Natorp:

à medida que se coloca a tarefa de tornar explicitamente acessível um campo de objeto, e isso não somente no determinar teorético, desde o início deve estar disponível enquanto não-velado o ‘a-partir-de-onde’ (Vonwoaus) (ajrchv) do levgein. Da ajrchv este toma, olhando para esse, o seu ponto de partida de tal modo que mantenha este ponto de partida no ‘olho’ como orientação fundamental constante.[39]

Os princípios de ambas as virtudes dianoéticas tanto da τέχνη quanto da σοφία são, portanto, originariamente evidentes: trata-se de compreender, mantendo no olhar, o ponto de partida como intencionalidade. Ambas as virtudes dianoéticas alcançam a verdade com base em um tipo de “ver”, cada vez mais específico do ponto de apreensão cognitiva, exatamente como Aristóteles descreve e distingue os distintos graus do saber humano no limiar da Metafísica I. Aliás, todas as virtudes relacionadas à parte pensante da alma se distinguem por um tipo de “ver”. Do contrário, não haveria justiticação de chamá-las de “virtudes dianoéticas”. Enfim, como compreender a estrutura do compreender puro somente “com base em seu enraizamento essencial na vida fática e na modalidade da sua gênese nesta[40]? É justamente através da gênese da sofiva na estrutura da vida fática, a partir de seu caráter temporal da experiência nos primeiros dois capítulos da Metafísica I de Aristóteles, que se torna possível descortinar a “transformação que conduz da relação temporal à condicional, desta à formal-eidética e, por último, à causal, condição imediata da contemplação e assim da preeminência do presente e da presença como sentido norteador do ser” (SEGURA PERAITA, 2002, p. 130), que é originariamente o ser-produzido: “Este ente, nisso o que é, está originariamente somente para o trato que o produz e já não mais naquele que o utiliza, na medida em que este pode tomar o objeto fabricado em diversas perspectivas, não mais originárias, do cuidar”[41].

CONCLUSÃO

No anúncio programático de sua apropriação de Aristóteles na segunda parte do Relatório-Natorp, Heidegger mostra sua aproximação peculiar dos textos do filósofo grego, uma apropriação nada convencional. Na rede heterogênea de relações com as obras de Aristóteles, tanto na primeira fase de docência em Freiburg (1919-1923) quanto na fase marburguense (1923-1928) ou até mesmo no período friburguense posterior (1928-1944), jaz um amplo leque de modulações que deixam entrever uma compreensão bem específica de Heidegger como “leitor de Aristóteles”. Nessa expressão, “leitor” implica uma interpretação refinada do Estagirita para abrir novos caminhos de investigação para o pensamento no debate filosófico do período que em Heidegger vive. Será no confronto com Aristóteles que Heidegger recuperará e atualizará os problemas filosóficos tratados em suas obras. Como bem observou Franco Volpi em sua obra “Heidegger e Aristóteles” (2010), cabe “destacar que a fecundidade do vínculo do filósofo alemão com Aristóteles não reside tanto nas interpretações dos textos como tais, mas na capacidade de recuperar e de tornar atuais os problemas filosóficos que apresentam” (Volpi, 2012, p. 25). Em uma palavra: trata-se de vivificar e reinjetar nova luz à substância especulativa do texto. Desse modo, Heidegger revitalizou, com uma apropriação fenomenológico-hermenêutica, os questionamentos fundamentais que Aristóteles colocou pela primeira vez, e isso em vista de pensar com aguda sensibilidade os problemas de nossa época, como, por exemplo, “a decadência da consciência religiosa, a crise dos valores tradicionais e a desconfiança frente à razão meramente instrumental, o fim do absoluto na Terra e a inevitável clausura do horizonte epocal da técnica” (Volpi, 2012, p. 25). Por fim, Günter Figal destacou com razão a importância decisiva de Aristóteles para Heidegger: “a ‘fenomenologia dos atos de consciência’ remonta a uma atividade que Aristóteles chama de alētheuein (desocultar). A essência da vida humana, ou “Dasein’, como Heidegger resolverá em conexão com Aristóteles, é descobrir ou revelar” (Figal, 2022, p. 63).

Referências bibliográficas

OBRAS DE HEIDEGGER

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GA 21: Logik. Die Frage nach der Wahrheit (Wintersemester 1925/26)
Ed.: Walter Biemel. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976; (21995) = HEIDEGGER, 1976.

GA 22: Die Grundbegriffe der antiken Philosophie (Sommersemester 1926)
Ed.: Franz-Karl Blust. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1993; (22004) = HEIDEGGER, 1993.

GA 23: Geschichte der Philosophie von Thomas von Aquin bis Kant (Wintersemester 1926/27). Ed.: Helmuth Vetter. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2006 = HEIDEGGER, 2006.

GA 2: Sein und Zeit (GA 2). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977 (22018) (Hrsg. Friedrich-Wilhelm von Hermann). Traduções brasileiras: Ser e Tempo. Trad. de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco,2006; Ser e Tempo. edição em alemão e português. Trad., organização, nota prévia, anexos e notas por Fausto Castilho. São Paulo-Petrópolis: Editora Unicamp-Vozes,2012 = HEIDEGGER, 2012.

GA 24: Die Grundprobleme der Phänomenologie (Sommersemester 1927)
Ed.: Friedrich-Wilhelm von Herrmann.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1975; (21989); (31997) = HEIDEGGER, 1975.

GA 25:  Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft (Wintersemester 1927/28) Ed. Ingtraud Görland. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977; (21987); (31995) = HEIDEGGER, 1977.

GA 26: Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz (Sommersemester 1928) Ed.: Klaus Held. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1978; (21990); (32007) = HEIDEGGER, 1978.

GA 80.1: Dasein und Wahrsein (nach Aristoteles) (1923/1924), In: Vorträge: Teil 1: 1915 bis 1932. (GA 80.1). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,2016 = HEIDEGGER, 2016.

LITERATURA SECUNDÁRIA

AGNELLO, C. Heidegger e Aristotele: verità e linguaggio. Genova: Il melangolo,2006 = AGNELLO, 2006.

COSTA, V. La verità del mondo. Guidizio e teoria del significato in Heidegger.Milano: Vita e Pensiero, 2003 = COSTA, 2003.

FIGAL, G. Fenomenologia - Heidegger depois de Husserl e dos gregos, In: DAVIS, B.W. (ed.). Martin Heidegger. Conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 59-72 = FIGAL, 2022.

SEGURA PERAITA, C. Hermeneutica de la vida humana. En torno al Informe Natorp de Martin Heidegger. Madrid: Trotta Editorial, 2002 = SEGURA PERAITA, 2002

SOMMER, Ch. Heidegger, Aristote, Luther. Paris: PUF,2005 = SOMMER, 2005.

THANASSAS, P. Phronesis vs. Sophia: on Heidegger’s Ambivalent Aristotelianism, The Review of Metaphysics 66 (2012) = THANASSAS, 2012.

VOLPI, F. Heidegger y Aristóteles. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012 = VOLPI, 2012.

YFANTIS, D. Die Auseinandersetzung des frühen Heidegger mit Aristoteles: ihre Entstehung und Entfaltung sowie ihre Bedeutung für die Entwicklung der frühen Philosophie Martin Heideggers (1919-1927). Berlin: Duncker & Humblot, 2009 = YFANTIS, 2009.

ZARADER, M. Heidegger e as palavras da origem.Lisboa: Instituto Piaget,1998 = ZARADER, 1998.

Bento Silva Santos

Possuo bacharelado em Teologia pelo Pontifício Ateneo de S. Anselmo (Roma - Itália) (1990), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (Itália) (1993), mestrado (1998) e doutorado (2001) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Realizei quatro estágios pós-doutorais: 2007 (na PUC-SP) com bolsa de Pós-Doutorado Júnior do CNPq; 2010 (na PUC-RIO) com bolsa da CAPES no âmbito do PROCAD/UFES/PUC-RIO/PUC-PR; 2016 (na PUC-CHILE - Santigo); 2022 (na UnB/PPGFIL com Bolsa de Pós-Doutorado Sênior do CNPq). Desde 2010 sou bolsista de Produtividade em Pesquisa, nível 02, do CNPq. Sou Professor Titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. Fui coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Mestrado/Doutorado) da Universidade Federal do Espírito Santo por dois mandatos consecutivos (2017-2019 & 2019-2021). Tenho experiência nas áreas de Filosofia e Teologia, com ênfase em Filosofia Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: Metafísica; Mística medieval, Fenomenologia e Hermenêutica; Estratégias de apropriação das Filosofias Antiga e Medieval por parte da Filosofia contemporânea, sobretudo com base nas preleções acadêmicas de Martin Heidegger ministradas nas Universidades de Freiburg (1919-1923) e Marburg (1923-1928).

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[1] O termo alemão significa literalmente “ter-prévio”. Outras traduções possíveis: pré-disponibilidade, posse prévia.

[2] Aristóteles, Física A 1,184 a 10-16.

[3] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger 2005, p. 381. Cf. Aristóteles, Metafísica Z 4; Q 10, 1051 b17-1052 a4.

[4] Cf. M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger 2005, p. 354: “o olhar ao redor de si (Umsicht) se realiza no modo do chamar em causa (Ansprechen) e do discutir (Besprechen) da objetualidade do trato”. Cf. também M. Heidegger, Dasein und Wahrsein (nach Aristoteles) (1923/1924), In: Heidegger, 2016, p. 65-66.

[5] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 382.

[6] Aristóteles, Metafísica A 1, 982 a 13ss; a 15 ss: “mais sábio do que [outro]”, “mais sábio”, “opinião”.

[7] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 376.

[8] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 380.

[9] M. Heidegger, Dasein und Wahrsein (nach Aristoteles) (1923/1924), In: Heidegger, 2016, p.  78.

[10] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 382.

[11] Ver a passagem paralela na GA 63: “É uma coisa errônea – justamente para poder ver a mobilidade da vida, para conduzi-la objetualmente à posse preliminar (Vorhabe) da explicação categorial – pretender participar na mobilidade como tal. Vê-se a mobilidade propriamente apenas a partir da “paragem” (“Aufenthalt”) genuína a cada vez (jeweilig). A paragem existencial, nesta paragem; o que estabelecer como estado de quietude? Mas, precisamente por isso a tarefa suprema consiste em alcançar uma paragem genuína e não uma paragem arbitrária; a paragem diante do possível salto da decisão preocupada; não se fala dela, mas está constantemente aí. Na paragem é visível o movimento e, desse modo, e a partir dela, enquanto genuína paragem, a possibilidade do contramovimento”: Heidegger, 1988, p. 109.

[12] Aristóteles, Ética a Nicômaco VI, 2,1139 a 26-27.

[13] Citada na preleção friburguense de 1922: M. Heidegger, 2005, p. 441-442: “quando retornei aqui, Husserl me aguardava com a notícia do anúncio em Marburg sobre minhas preleções sobre Aristóteles, etc.; Natorp desejava uma orientação concreta sobre meus projetos de trabalho. Em seguida, trabalhei três semanas, recolhi notas extraídas de meus próprios textos, e escrevi uma ‘Introdução’”. Trata-se certamente tanto do Relatório-Natorp (publicado inicialmente em 1989; em seguida, em 2003 e, de forma definitiva, em 2005) quanto da preleção friburguense do semestre de verão de 1922 publicada na GA 62 no ano de 2005.

[14] Cf. Fontes: GA 62, In: Heidegger, 2005, p. 13-113: “Tradução e interpretação de Metafísica A 1 e A 2 [§§ 6-12]”; Idem, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387-390; GA 19, In: Heidegger, 1992, p. 57-64; GA 22, In: Heidegger, 1993, p. 24-31 (§§ 9 e 10: “Diferentes modos do descobrir e do compreender”; “Ulterior caracterização da sofiva”, respectivamente). Ver o comentário geral de SEGURA PERAITA, 2002, p. 113-132; Para a gênese do sentido do teorético e a determinação da theōria como a mais elevada motilidade da vida em Metafísica A, 1-2; Q, 6 e L, 6, ver também Yfantis, 2009, p. 149-164.

[15] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 375.

[16] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 375.

[17] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387.

[18] Transcrição de Hermann Mörchen.

[19] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 376.387.

[20] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 377.

[21] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387.

[22] Tradução modificada.

[23] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 367.

[24] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 368.

[25] Heidegger, 1992, p. 57-64 (§ 9, capítulo primeiro); p. 65-131 (§§ 10 a 17: Die Genesis der sofiva im natürlichen Dasein).

[26] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387.

[27] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387.

[28] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387-388.

[29] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p.388.

[30] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 389.388

[31] Aristóteles, Metafísica I, 982b 24-28.

[32] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 389.

[33] Heidegger, 1994, p. 46: “Oujsiva dá o caráter fundamental do ente enquanto ser: a presença. Ela é co-significada implicitamente nos chamados conceitos de ‘coisa’ (Ding)”. O termo “Ding” indica a “coisa em sentido corpóreo, material, distinguindo-se, portanto, da expressão “Sache”, que se refere à “coisa em questão”, à “questão”, à “causa”.

[34] O termo alemão Temporalität diz respeito à “determinação-de-tempo” de todos os fenômenos, começando com a “temporialidade (Temporalität) da existência qua ser para o mundo mesmo”. Daí a definição do projeto heideggeriano aí entre 1925-1926: “A tarefa de uma cronologia fenomenológica é a investigação da determinação-de-tempo dos fenômenos, isto é, de sua temporialidade (Temporalität) – e portanto a investigação do próprio tempo”: Heidegger, 1976, p.  409.200. Em 1927 com Sein um Zeit Heidegger distinguirá a temporalidade (Zeitlichkeit) do Dasein da temporialidade (Temporalität) do ser simplesmente, o que não era o caso no ano de 1926, onde tratava-se do tempo como um “Existenzial do Dasein” e, sob este aspecto, constitui o fundamento da lógica. 

[35] Cf. Aristóteles, Metafísica I, 2, 982b, 22-24: “quando já existiam quase todas as coisas necessárias e também aquelas relativas ao descanso e ao bem-estar, então começou a buscar-se esta forma de conhecimento (hJ toiauvth frovnhsi")”.

[36] Cf. Aristóteles, De anima G 2, 426 b 10.

[37] Aristóteles, Metafísica I 1, 980 a, 21.

[38] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 398-399.

[39] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 382.

[40] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 387.

[41] M. Heidegger, Natorp-Bericht, In: Heidegger, 2005, p. 398.