
O Problema da Hipótese na Linha Dividida da República de Platão
The Problem of the Hypothesis in the Divided Line of Plato's Republic
Weriquison Simer Corbani
weriquison.corbani@ifes.edu.br
IFES – Instituto Federal do Espírito Santo
Recebido: 02/02/2025
Received: 02/02/2025
Aprovado:17/02/2025
Approved: 17/02/2025
Publicado: 06/03/2025
Published: 06/03/2025
Resumo
Ao lançar a imagem da Linha, no Livro VI da República, Sócrates diz que a alma passa por quatro estágios de investigação: suposição (εἰκασία), crença (πίστις), pensamento discursivo (διάνοια) e inteligência (νόησις). No terceiro estágio, embora a investigação já trate da hipótese das Formas, o tipo de operação intelectual que encontramos aí não permite avançar para o próximo, correspondente à Forma do bem. Isso ocorre porque pela via do pensamento discursivo, que envolve processos lógicos, não é possível alcançar o “princípio de tudo”. Há, então, que abandonar a investigação por hipóteses e fazer uso exclusivo de outro tipo de operação intelectual, não mais instrumental, mas intuitiva. É por essa razão que apenas pela via da nóesis, da visão direta, se pode chegar ao conhecimento do bem. Esse artigo faz uma análise da distinção desses dois tipos de operações de raciocínios presentes na Linha dividida.
Palavras-chave: hipótese, linha dividida, bem, Platão.
Abstract
When presenting the image of the Line in Book VI of the Republic, Socrates explains that the soul progresses through four stages of investigation: supposition (εἰκασία), belief (πίστις), discursive thinking (διάνοια), and intelligence (νόησις). In the third stage, although the investigation already addresses the hypothesis of the Forms, the type of intellectual operation found at this level does not allow advancement to the next stage, which corresponds to the Form of the Good. This is because, through discursive thinking, which involves logical processes, it is impossible to reach the "principle of everything." It is therefore necessary to abandon hypothesis-based investigation and rely exclusively on another type of intellectual operation, no longer instrumental but intuitive. For this reason, only through the path of noesis, or direct vision, can one attain knowledge of the Good. This article analyzes the distinction between these two types of reasoning operations present in the Divided Line.
Keywords: hypothesis, divided line, good, Plato.
Introdução
No comentário à República, Julia Annas (1981, p. 6) diz que Platão “quer combinar valores da perfeição intelectual, que exigem que a vida seja dedicada ao estudo, e valores da atividade prática, que exigem que se melhore o mundo político que está em confusão”. Essa leitura parece ganhar força se levarmos em conta o testemunho da Carta VII, que, como sabemos, narra as três viagens que Platão fez à Sicília e, lá, na ocasião das duas últimas, aproveitando as aptidões filosóficas de Dionísio II, o filósofo teria tentado colocar em prática o governo do rei-filósofo,[1] que a República realiza mais tarde no plano literário.
De fato, nesta obra Platão reúne tanto profundidade filosófica quanto política. O diálogo aborda uma infinidade de temas, entre os quais, o principal é o problema da justiça (δικαιοσύνη), lançado no Livro I (330d). Juntamente com o Banquete, Fédon e Fedro, a República pertence à segunda fase da escrita de Platão, compondo o grupo dos chamados diálogos médios, da maturidade do autor. De acordo com a cronologia relativa das obras, a República foi redigida após o Mênon e o Fédon e anterior ao Parmênides, integrando a fase de elaboração da teoria das Formas.[2]
Após a redação dos diálogos socráticos, que caracteriza a primeira fase da escrita de Platão, Sócrates continua a exercer influência nos diálogos seguintes e isso se dá porque, em alguma medida, Platão considera que muitas das suas ideias são o resultado da influência de Sócrates (Annas, 1981, p. 04). A ideia do Bem, por exemplo, tudo indica ser um desdobramento da ética socrática (Stenzel, 1940, p. 28), o que faz muito sentido se considerarmos os primeiros diálogos, que abordam mais as questões morais, como culminando na República, onde a teoria das Formas está mais completamente desenvolvida, como mostra a imagem da linha dividida.
O leitor atento não pode esquecer, portanto, que a morte de Sócrates é uma tragédia política para Platão, que testemunha o mestre (um sábio) ser condenado e morto pelos próprios atenienses. Ao escrever a República, Platão está preocupado com a decadência moral e política do seu povo, em grande medida, ocasionada pela relativização dos valores sociais. Neste sentido, uma maneira de ler a República, pode ser tomar Platão como estando preocupado com o ceticismo moral ateniense, motivado, como é notório em muitas de suas obras, pelo ensino dos sofistas. Nesse sentido, todo o esforço de Platão então vai na direção de tentar encontrar um parâmetro moral seguro que sirva de norte para conduzir os indivíduos até às virtudes morais. Na República, a realização desse projeto político está intrinsecamente arraigada à ontologia e epistemologia que o diálogo oferece, uma vez que é a partir dessa base teórica e metodológica que se pode construir alternativas a uma vida política estável. Neste sentido, a filosofia é um alicerce importante que ajuda garantir a ordem da pólis.
Os Livros VI e VII, especificamente, constituem o que se convencionou chamar de “Ensaio sobre o Bem” (Pereira, 2014, p. XVI), mas, de modo geral, nesta parte da República Platão se dedica a pensar a preparação do filósofo, no sentido de investigar a “maneira e a partir de que ciências e exercícios haverá salvadores da constituição” (502c-d). Nutridos com uma boa formação, os guardiões podem, ao fim, chegar ao saber mais elevado, que é a intelecção da ideia do Bem.
Neste artigo mostraremos, portanto, que na República Platão melhora a aplicação do método das hipóteses (tratado no Mênon e no Fédon) e avança em direção à ideia do bem, que se encontra além do nível hipotético (511b).
Em 509d-511e, Sócrates nos apresenta a dialética por meio da imagem da linha dividida. Toma, portanto, uma linha, a divide ao meio (estabelecendo os planos sensível e inteligível) e divide novamente cada uma dessas partes de modo a obter quatro segmentos. No primeiro segmento encontramos imagens, reflexos e sombras e tudo que lhes assemelha. No segundo, encontramos seres vivos, plantas e objetos do mesmo gênero. O terceiro, já no inteligível, é o segmento dos objetos matemáticos e afins. E, por último, o segmento onde se encontra “o princípio de tudo” (511b), a ideia do bem (ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα). Sócrates diz que a alma, ao percorrer este caminho, passa por quatro estágios: o da suposição (εἰκασία), da crença (πίστις), do pensamento discursivo (διάνοια) até chegar à inteligência (νόησις), que advém pela filosofia. Ao final, vê-se que só é dialético aquele que alcança a ideia suprema, a ideia do bem. Tendo atingido o cume, o filósofo faz então um caminho descendente, reconhecendo, nos segmentos abaixo, que o fundamento de cada coisa, o princípio absoluto, é o bem, que é o télos da dialética.
Há uma notável diferença entre o que consta na República e o que foi apresentado no Fédon, no que diz respeito ao método das hipóteses. Na República, Platão deixa claro as limitações da matemática, que só é capaz de alcançar o terceiro segmento da linha, relativo à diánoia. Neste sentido, o bem, o belo e a justiça, em si, só o filósofo pode conhecer, porque é o único que é capaz de ir além do nível hipotético. É por essa razão que Platão orienta neste diálogo que os filósofos se tornem reis ou os reis filósofos, um assunto que é levantado desde o Górgias (521d), desenvolvido na República (473c-d) e ainda tratado no Político (266e-267c). Na República, o filósofo é o mais preparado para ser o político porque ele é o dialético e, tendo conhecido a ideia do bem, é o único capaz de tornar a pólis mais justa (435b; 540d).
O método na imagem da Linha
De acordo com Robinson (1941, p. 69), método e intuição se complementam na imagem da linha dividida. Essa talvez seja a afirmação que melhor distingue a República do Mênon e do Fédon, no que diz respeito ao processo de investigação filosófica que pressupõe o uso do método. Enquanto os dois diálogos que antecedem à República se restringem apenas ao método, a República avança e mostra, na linha dividida, que o método precisa ser coroado pela intuição (1941, p. 69). Ao contrário do que se pode pensar, não há contradição em unir método e intuição, visto que se complementam e são necessários para a boa e ordenada pesquisa, como sugere a orientação platônica. Antes, porém, de entrar definitivamente neste assunto, vamos analisar com calma a imagem da linha dividida e ver como o método das hipóteses aparece nesta imagem.
No passo 503e Sócrates diz que aqueles que se tornarão guardiões, filósofos, “precisam de se exercitar em muitas ciências, para ver se são capazes de aguentar estudos superiores”. Mais adiante, Adimanto pergunta a Sócrates se há algo mais elevado que a justiça, temperança, coragem e sabedoria, virtudes que acabaram de ser analisadas no diálogo (504d). Na sequência Sócrates diz que a ideia do bem é o estudo mais elevado (ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα μέγιστον μάθημα, 505a). Em 506d, com a intervenção de Gláucon, Sócrates é pressionado a fazer uma “exposição sobre o bem”. Incapaz, porém, de dar conta dessa empreitada, o mestre recorrerá então a um símile: “eu quero é expor-vos o que me parece ser filho do bem e muito semelhante a ele” (506e). O resultado disso, como se pode ver na imagem do sol (507b-509d), [3] é que Sócrates afirmará que assim como o sol está para o visível, o bem está para o inteligível (508b-c), estabelecendo, desse modo, as bases da ontologia platônica da República.
A imagem da linha dividida (509d-511e) surge imediatamente após este relato e apresenta um quadro que situa as partes sensível e inteligível e, ao mesmo tempo, estabelece os níveis de saber de acordo com as divisões ali apresentadas. Sócrates diz: “Supõe então uma linha cortada em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível” (509d). Com os cortes efetuados, vemos surgir quatro seções, duas relativas ao sensível e duas relativas ao inteligível. De modo que o esquema ficaria assim:
No sensível:
● seção 1: das sombras e reflexos (509e-510a)
● seção 2: dos seres vivos, plantas e objetos (510a)
No inteligível:
● seção 3: dos objetos matemáticos (números, figuras etc. 510b; 510c)
● seção 4: do “princípio absoluto” (510b)
Na passagem final da narrativa (511d-e), Sócrates revela que essas quatro seções estão relacionadas a quatro operações da alma, ou seja, caso a alma, em um processo de pesquisa, venha a voltar-se à seção 1, não obtém nada mais que suposição (εἰκασία), se fixar-se na seção 2, opera apenas com crença (πίστις), na seção 3, opera com entendimento (διάνοια) e, por fim, na seção 4, opera com inteligência (νόησις). Por agora, nos interessa refletir sobre as seções 3 e 4, que é onde Platão trata especificamente das hipóteses, no terceiro segmento, e do fim da dialética, no último segmento.
Hackforth (1942, p. 01), contra a visão de que o terceiro segmento da linha é o lugar reservado à “doutrina dos objetos matemáticos intermediários” atribuída à Platão por Aristóteles,[4] argumenta que o que encontramos, nesta seção 3, são de fato Formas, uma vez que o que há aí se situa no segmento superior da linha. A interpretação de Hackforth é de que Platão constrói a linha dividida, não só para ilustrar os quatro estágios de inteligência, conforme descrevemos acima, mas, sobretudo para encaminhar de modo mais completo a discussão sobre as virtudes (justiça, temperança, coragem e sabedoria) que vem antes no diálogo (504a; 504d). De acordo com essa leitura, a justiça e as demais virtudes só seriam, ao fim, compreendidas pelo guardião, se clareadas pela ideia do Bem, o princípio absoluto que está situado no último segmento da linha. Esta interpretação pressupõe que os objetos que se encontram no penúltimo segmento da linha são, antes de tudo, Formas morais (1942, p. 02).[5] Se pensarmos que Sócrates está preocupado, não com uma amostra particular de justiça, mas com a própria justiça em si, então tomar as virtudes como sendo Formas parece não ser algo tão absurdo.
Em 504c-d, Sócrates diz que para o guardião alcançar o estudo mais elevado, “ele tem de ir pelo caminho mais longo”. Tal caminho é justamente o percurso que a alma faz, com o auxílio da dialética, até a ideia do bem. É por essa razão que as Formas que estão situadas no terceiro segmento da linha são, por assim dizer, Formas “imperfeitamente conhecidas, porque ainda não são conhecidas à luz da ideia do bem”, como frisar Hackforth (1942, p. 02, tradução nossa).
Nossa interpretação, corroborando com a de Hackforth, é de que o terceiro segmento da linha é o espaço já reservado às Formas. Além disso, defendemos ser inteiramente possível a este terceiro segmento o movimento dialético descendente, no sentido de que tais Formas são de conteúdo inteligível e, portanto, conhecidas pelo dialético.
O problema da matemática
A limitação do matemático consiste em não ser capaz de conhecer as Formas como o dialético as conhece, porque nunca alcançou a Forma do bem. Sabemos que o método das hipóteses é certamente uma alternativa metodológica inspirada nas matemáticas, mas seu conteúdo, para o dialético, não se limita a objetos matemáticos. Daí o filósofo lidar com Formas morais (507b). O matemático se restringe a investigar unicamente por meio de hipóteses e não tem em mira outras Formas, que não as Formas matemáticas. A referência ao método dos geômetras, neste trecho da linha, se justifica mais pela aproximação que se pode fazer para apresentar o método dialético, do que como algo que tenha força para transcender e explicar o que uma coisa é em essência, como faz o filósofo por meio da dialética.[6] O máximo que o matemático consegue fazer é operar, numa escala descendente, das hipóteses das Formas para objetos sensíveis, como vimos no Fédon (101d-e).
De acordo com Robinson (1941, p. 160), o relato que Platão faz do uso das hipóteses pelos geômetras na linha dividida faz parecer que apenas a matemática utiliza hipóteses, mas a dialética também utiliza. Ao descrever os dois segmentos do inteligível, Sócrates (510b) diz: “a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objetos que então eram imitados, é forçada a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão”. Isso para se referir ao terceiro segmento. Quanto ao quarto e último segmento, diz: “ao passo que, na outra parte, a que conduz ao princípio absoluto, parte da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz o caminho só com o auxílio das ideias”.
Mas há uma diferença fundamental entre dialética e matemática que precisa ser destacada. Embora tanto uma quanto a outra fazem uso das hipóteses, a dialética não tem vinculação com sensíveis, como tem a matemática. Platão deixa claro que o ponto de partida dos matemáticos é o sensível, quando eles querem alcançar realidades suprassensíveis (510d-e), já a dialética vai das hipóteses ao princípio não hipotético.
Aqui, Platão parece ter visto que os próprios matemáticos não investigam a fundo suas práticas, uma vez que não são capazes de chegar ao conhecimento das causas daquilo que investigam e nem são capazes de justificar as hipóteses que utilizam (533b-c). Segundo Robinson (1941, p. 159), a prova de que os matemáticos desconhecem seus pontos de partida está na incapacidade deles de fornecerem qualquer logos sobre tais pontos.
Em resumo, Platão critica os matemáticos porque eles pensam partir de certezas irrefutáveis quando, na verdade, suas certezas não passam de hipóteses, embora pareçam não estar atentos a isso. A linha dividida vem mostrar, então, que a dialética, ao contrário da matemática, sempre considera suas premissas apenas como hipóteses que, a qualquer tempo, podem sofrer alterações ao longo do percurso de investigação, até que se chegue à ciência (Robinson, 1941, p. 162), em outras palavras, à dialética.
Duas operações do raciocínio
O professor Cornford (1932, p. 37) observa que é na linha dividida que Platão pela primeira vez contrasta dois modos de operação relativos à parte racional da alma: diánoia e nóesis. Para o autor, essa distinção não quer dizer que as Formas matemáticas (510d) são conhecidas apenas pela diánoia e as Formas morais (507b) são conhecidas pela nóesis. As Formas morais não são uma classe superior. A diferença que há entre elas é relativa a suas naturezas. As Formas matemáticas podem ser representadas no plano sensível, como é o caso de alguém desenhar um quadrado ou contabilizar certo número de coisas, ao passo que as Formas morais não são passíveis de representação sensível, visto que não seria possível desenhar a ideia de justiça, por exemplo, em qualquer plano, embora saibamos tal ideia é fundamental à vida social.
Nesta linha de raciocínio, pode-se dizer que as Formas morais são mais difíceis de serem conhecidas que as Formas matemáticas. Outro ponto a ser observado é que as Formas matemáticas podem ser objetos da nóesis, desde que aquele que as investiga o faça, pela dialética, à luz do princípio absoluto (511d). Neste sentido, um matemático poderia, pela nóesis, conhecer as Formas matemáticas (porque são inteligíveis), bastaria que as olhasse a partir da ideia do bem.
Há, então, uma diferença fundamental entre esses dois tipos de conhecimento. Enquanto a nóesis pode ser descrita como o movimento ascendente da intuição que vai da hipótese das Formas morais em direção ao princípio absoluto (a Forma do bem), a diánoia deve ser entendida como o movimento descendente do raciocínio dedutivo (Cornford, 1932, p. 43) que envolve articulação de premissas e conclusão. Esta é uma distinção bastante relevante que podemos estabelecer entre o Fédon e a República. No Fédon, vemos que o movimento dialético parte da hipótese das Formas em direção descende até as conclusões, ao passo que na República o movimento dialético assume uma direção ascendente partindo das hipóteses ao princípio que não admite hipótese.[7] Em outras palavras, na República a hipótese continua sendo um componente importante da dialética, mas o próprio movimento vai além do método hipotético e “faz caminho só com o auxílio das ideias” (510b), tendo como guia a intuição.
Em linhas gerais, podemos afirmar que o conhecimento que advém pela nóesis pressupõe a intuição porque se dá num “ato imediato de visão”, num “salto repentino”, enquanto o conhecimento que deriva da diánoia está atrelado a um “processo contínuo” de investigação pela via do pensamento discursivo (Cornford, 1932, p. 48). Cornford (1932, p. 48) sustenta que os dois movimentos do pensamento, diánoia e nóesis, podem ser empregados nos dois segmentos superiores da linha dividida, ou seja, tanto o poder analítico da nóesis, quanto o processo de raciocínio dedutivo da diánoia podem se voltar às Formas matemáticas ou morais. Quanto a nós, não estamos seguros de que, pela dianóia, se possa chegar ao último segmento da linha, embora concordemos que, pela dialética, é possível descer da ideia do bem para as demais ideias no terceiro segmento. Nossa posição se justifica por estar calcada na compreensão de que o conhecimento da Forma do Bem na etapa final da dialética, através da nóesis, não envolver processos de raciocínios ou articulações lógicas de premissas e conclusões, mas apenas visão direta, intelecção imediata do princípio de tudo.
O próprio texto, nas palavras de Sócrates, diz que, pelo poder da dialética, o raciocínio faz das hipóteses uma espécie de apoio “para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão” (511b-c). Neste sentido, há uma diferença substancial entre o estado mental do matemático e o estado mental do filósofo, a saber, a mente do matemático não tem nóesis, mas dianóia (Cornford, 1932, p. 50). É por isso que, para Platão, apenas o filósofo tem uma “visão perfeitamente clara” (nous) do princípio, uma vez que é capaz de uma “apreensão intuitiva” da ideia do bem (Cornford, 1932, p. 51).[8]
Desenvolvimento e unidade da dialética
A noção de intuição, em Platão, está associada à matemática. Segundo Stenzel (1940, p. 38), a intuição é a representação do universal no particular. De acordo com essa interpretação, o modelo matemático de alcançar o universal a partir da abstração de particulares foi aproveitada pela filosofia mesmo em teorias de pensadores antigos. No caso específico dos diálogos de Platão, Stenzel pensa que a noção de ideia como essência dos particulares é derivada do modelo matemático que prevê que, em alguma medida, o universal já está presente em casos particulares. Neste sentido, ainda que não fosse capaz de chegar a definições conclusivas acerca dos seres, seria possível à filosofia uma visão intuitiva do universal. É daí, de acordo Stenzel, que Platão construiu a doutrina das ideias.
Temos que observar, no entanto, que o sentido de intuição que estamos explorando neste texto está especificamente associado à apreensão intuitiva do princípio absoluto, conforme o que acontece, por meio do movimento dialético, no último segmento da linha dividida. Pensamos que, no Fédon, por exemplo, ou no terceiro segmento da linha, onde já notamos a presença das Formas, o que temos é raciocínio dedutivos, ao passo que a intuição só é possível quando se vai além das hipóteses, quando o filósofo faz uso da nóesis (Kahn, 1998, p. 320).
Em relação à aplicação do método das hipóteses devemos lembrar que, embora inspirado nas matemáticas, o Mênon o relaciona à investigação que gira em torno da virtude. Lá, o método recebe críticas de Sócrates por não ser capaz de definir o que uma coisa é.[9] No Fédon o método das hipóteses, que também recebe influência dos geômetras, tem muito mais consistência, uma vez que é ancorado na doutrina das Formas (o logos mais forte), mas a dialética não aparece aí completamente desenvolvida, mesmo que se suponha que o diálogo já faça algum aceno ao Bem como princípio (99c). É na República que vemos claramente que o ponto de partida das hipóteses é a matemática, conforme descreve o terceiro segmento da linha dividida. No entanto, este conhecimento que advém pelo método hipotético dos matemáticos é possível de ser superado pelo poder da dialética (διαλέγεσθαι δυνάμει, 511b), porque a ciência dialética (διαλέγεσθαι ἐπιστήμης, 511c) é a única capaz de chegar ao princípio de tudo (παντὸς ἀρχὴν, 511b).[10]
De acordo com Kahn (1998, p. 320), Platão tem quatro método de hipóteses, que aparecem respectivamente no Mênon, no Fédon, na República e no Parmênides, mas isso não quer dizer que há uma mudança substancial no pensamento de Platão, como houvesse quatro teorias distintas, pelo contrário, o que há são aspectos diferentes de uma única teoria. As três operações intelectuais que envolvem o método das hipóteses têm as mesmas características nesses diálogos: “postular uma suposição, derivar resultados que se encaixam, e justificar, remover ou de outra forma "dar conta" da suposição”.[11] A tese de Kahn é que essas operações, com todas as suas distinções e conexões, têm como alvo realidades inteligíveis, as Formas, o que confere unidade ao método das hipóteses, como componente da dialética. Essa interpretação valoriza aquilo que Platão diz na República: que “quem for capaz de ter uma vista de conjunto é o dialético” (537c). Se for assim, mesmo que a palavra-chave para dialética nos diálogos médios (Mênon, Fédon, República e Parmênides), como diz Robinson (1941, p. 74) seja “hipótese” e a palavra-chave para os diálogos tardios (Fedro, Sofista, Político e Filebo) seja “divisão”, é possível enxergar o método dialético como uma unidade, se pensarmos que Platão sempre o utiliza para voltar-se a realidades suprassensíveis.
Para nós, essa perspectiva de leitura que leva em conta a unidade da dialética no pensamento de Platão em nada exclui a ideia de que Platão aprimorou, ao longo dos diálogos, o uso do método.
Em uma abordagem de cunho desenvolvimentista, Sayre (2017 p. 83) chama a atenção para o fato de que, na República, o método das hipóteses e o método de reunião e divisão se unem. Como vimos anteriormente, a dialética é apresentada na linha dividida como o método que faz das hipóteses “uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses” (511b), a ideia do bem. Mas há duas passagens no diálogo que fazem menção ao método de reunião e divisão e a tradição não costuma destacá-las. A primeira delas ocorre no livro V, em 454a, lá Sócrates frisa que o dialético deve ser capaz de dividir segundo as Formas (κατ᾽ εἴδη διαιρούμενοι), tal orientação visa marcar uma oposição entre a dialética e a antilogia erística. [12] A segunda passagem está no livro VII, em 531d, onde Sócrates diz a Gláucon que o método que estão empregando em todas as ciências, deve ser capaz de levá-los até “o que há de comum e aparentado entre elas e demonstrar as afinidades recíprocas”, assim o trabalho não será em vão. Mais adiante, Sócrates diz que “quando alguém tenta, por meio da dialética, sem se servir dos sentidos e só pela razão, alcançar a essência de cada coisa, e não desiste antes de ter apreendido só pela inteligência a essência do bem, chega aos limites do inteligível” (532b).[13] Como afirmará Dixsaut (2013, p. 91), a dialética na República tem um télos: o bem.
Conclusão
O artigo buscou demonstrar que há dois tipos distintos de operações de raciocínio na linha dividida da República de Platão. E isso ocorre porque seus objetos também são distintos. Quando precisamos lidar com o pensamento lógico, processual ou instrumental, ou seja, aquele que exige articulações de premissas para chegar a uma determinada conclusão, fazemos, por assim dizer, uso da diánoia. E quando precisamos chegar ao princípio absoluto, à unidade inteligível do bem, conforme o relato do quarto segmento da linha, então, necessariamente, temos de recorrer à nóesis, esse tipo de inteligência que se dá por um ato de visão (de conjunto), direta e intuitiva. É por essa razão que o método das hipóteses, típico da diánoia, do pensamento instrumental, não é capaz de fazer a investigação avançar em direção ao princípio de tudo. No entanto, na linha dividida Platão nos mostra que a dialética pode fazer uso dessas duas operações do raciocínio, porque, após a visão súbita do bem, o filósofo pode descer novamente para a zona da diánoia e utilizar esse instrumento metodológico que é a hipótese, para chegar a determinadas conclusões. Mas, dessa vez, conhecendo o fundamento absoluto: a Forma do bem.
Após a República, Platão muda os instrumentos da dialética. A razão disso é que os objetos de investigação das obras tardias não requerem mais a matemática como modelo. Em diálogos como o Fedro, Sofista e Político o autor se aproxima das ciências naturais e passa a fazer uso do método de reunião e divisão nas investigações.
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Weriquison Simer Corbani
Pesquisador em produtividade do IFES. Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2010), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2013) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2023). Atualmente é professor de Filosofia do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). É fundador do grupo de pesquisa "PHRÓNESIS - Ética e Teoria Política" (CNPq). Participa do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) do IFES. É membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e do Centro de Estudos Helênicos (Areté). Sua tese doutoral "É a Dialética uma Ciência Política? - Um estudo político-filosófico do Político de Platão" foi finalista do Prêmio ANPOF 2024, classificada entre as quatros melhores teses na área Filosofia. É pesquisador na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia Antiga, Ética e Filosofia Política.
Agradecimentos
Conselho Nacional de Pesquisas, CNPq.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] De acordo com Giovanni Reale (1990, p. 126), essa ideia do rei-filósofo já está presente no Górgias, que foi escrito antes da primeira viagem de Platão à Sicília.
[2] Favor conferir a introdução de Maria Helena Rocha Pereira, 2014, p. XIV.
[3] Não é nosso intuito aqui analisar as três imagens – imagem do sol (507b-509d), da linha dividida (509d-511e) e da caverna (514a-517c) – que aparecem neste centro da República, mas focar unicamente na imagem da linha dividida que é onde Platão trata da questão específica do método.
[4] Favor conferir especialmente na Metafísica, 1059b, mas também em 987b, onde Aristóteles supõe que Platão concebe objetos matemáticos como estando em uma posição intermediária entre sensíveis e as formas. Cornford (1932, p. 38) também sustenta que nada há de objetos matemáticos intermediários na passagem da linha. Para um maior aprofundamento sobre a crítica de Aristóteles sobre a distinção entre ideia e número, favor conferir Cherniss, H. Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1944, Appendix VI, p. 513-524.
[5] Embora esta interpretação afirme que no terceiro segmento da linha encontramos Formas morais, estas não são as únicas. Há neste segmento, de acordo com Hackforth (1942, p. 2), Formas matemáticas e, ainda, Formas de espécies naturais. Além disso, tanto no terceiro quanto no último segmento encontramos as mesmas Formas, o que vai fazer com que o filósofo as enxergue no último segmento é o poder da dialética à luz do princípio absoluto indemonstrável, a própria ideia do bem.
[6] No Político, o Estrangeiro diz que é preciso praticar a dialética “até sermos capazes de dar e receber razão de cada coisa” (διὸ δεῖ μελετᾶν λόγον ἑκάστου δυνατὸν εἶναι δοῦναι καὶ δέξασθαι, 286a4-5) e a dialética, segundo ele, lida com “realidades incorpóreas, que são as mais belas e importantes, e só podem ser mostradas por meio do lógos e nada mais” (τὰ γὰρ ἀσώματα, κάλλιστα ὄντα καὶ μέγιστα, λόγῳ μόνον ἄλλῳ δὲ οὐδενὶ σαφῶς δείκνυται, τούτων δὲ ἕνεκα πάντ᾽ ἐστὶ τὰ νῦν λεγόμενα, 286a5-8). Ser dialético é ter a capacidade de expor por palavras as coisas que são (ἀλλὰ καὶ προσαποφαίνειν οἴεσθαι δεῖν ὡς βραχύτερα ἂν γενόμενα τοὺς συνόντας ἀπηργάζετο διαλεκτικωτέρους καὶ τῆς τῶν ὄντων λόγῳ δηλώσεως εὑρετικωτέρους, 287a2-3). No Filebo, a dialética busca sempre o idêntico e imutável (κατὰ ταὐτὰ δὲ καὶ ὡσαύτως ὄντα ἀεί, 61e2-3).
[7] Embora o Fédon ainda não trate, expressamente, da Forma do bem como vemos na República, o diálogo leva a constatar que Sócrates já conhece o Bem. É por essa razão que em 99c da obra Sócrates diz que “é o Bem o verdadeiro elo que liga entre si todas as coisas e as suporta”. O Fédon não mostra como se chega ao Bem, mas isso não quer dizer que tal princípio não esteja pressuposto.
[8] Cornford (1932, p. 51, tradução nossa) considera que a noesis, em oposição à diánoia, pode ser descrita como “um ato intuitivo de apreender, por um caminho ascendente, uma ideia ou verdade a priori implícita em uma conclusão”.
[9] Kahn (1998, p. 70) defende que as Formas já estavam previstas no Mênon, embora saibamos que o diálogo não as cita diretamente. Sua tese sustenta que o fato da alma rememorar conhecimentos de outras vidas pressupõe que ela já tenha tido contato com realidades supra-sensíveis. Contudo, é no Fédon que elas de fato aparecem explicitamente.
[10] Cf. Kahn, (1998, p. 319, 320 e 326).
[11] Tradução nossa.
[12] Anna Lia (2006, p. 223) observa que o termo antilogia está relacionado às posições contrárias assumidas no discurso pelos oradores, que objetivam, ambos, anular o discurso oposto. Neste trecho do diálogo, a antilogia está associada à erística e carrega o sentido de não ter a preocupação de chegar à verdade. A dialética (διαλέγεσθαι), ao contrário, é, de acordo com Sócrates, o caminho a ser escolhido. Kahn (1996, p. 298) partilha da mesma opinião que Sayre, sustentando que o método de síntese e divisão aparece neste trecho da República.
[13] Vê-se então que a República chega a apresentar (mas não desenvolve) a dialética (531c-d) como método de reunião e divisão como caminho para chegar ao conhecimento da ideia do bem (532b). Isso nos mostra que, embora as Formas, do modo como são tratadas na República, não sejam diretamente exploradas pelos diálogos tardios, a dialética, através do método da reunião e divisão, continua a ser nesses diálogos a via para se chegar às realidades supra-sensíveis.