Resenha
Book Review
MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
UMA GENEALOGIA DO AUTOR: A EMERGÊNCIA E O FUNCIONAMENTO DA AUTORIA MODERNA
Otávio Morato de Andrade
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais / Université libre de Bruxelles
Recebido: 02/02/2025
Received: 02/02/2025
Aprovado:17/02/2025
Approved: 17/02/2025
Publicado: 06/03/2025
Published: 06/03/2025
O que significa ser um autor? Criar, assinar, possuir? Não raro, tomamos a figura autoral como uma noção fixa, que sempre existiu ao longo das diferentes épocas e contextos. O filósofo Marco Antônio Sousa Alves nos mostra que estamos diante de algo mais amplo: a figura autoral emergiu gradativamente ao longo dos séculos, transformada por dispositivos de poder, mecanismos de exclusão e normatização econômica. O livro de Alves, Uma genealogia do autor: a emergência e o funcionamento da autoria moderna (Editora UFMG, 2021, 478p.) rastreia as origens deste fenômeno, perguntando o que é – e igualmente importante – como surgiu e como funciona o autor que conhecemos hoje.
Não é de hoje que o tema provoca inquietações. A Factory de Andy Warhol questionou cinicamente a noção de autoria individual: celebrando a reprodução mecânica, imprimia e vendia obras de arte com ritmo e lucros industriais. O escritor Jorge Luis Borges (2007) explorou a fluidez da autoria citando adágios, escritores e até livros inexistentes. Fernando Pessoa (1988; 2011) expandiu os limites do “eu” autoral por meio de seus heterônimos. No cinema, Godard (2014), Tarkovsky (1975) e outros diretores desestabilizaram a figura do autor como centro do discurso ao fragmentar a narrativa tradicional.
No campo acadêmico, Roland Barthes (1968) chegou a proclamar a “morte do autor” em favor do “nascimento do leitor”. Reagindo a Barthes, Foucault (1969; 1970; 2001) deu enfoque distinto ao tema, ao investigar a consolidação da figura do autor enquanto princípio organizador dos discursos. Roger Chartier (2021) revisitou criticamente os textos Foucaultianos, abrindo ricas divergências no tocante, por exemplo, ao anonimato, à relevância da circulação material do livro e à origem da propriedade literária.
Seguindo o rastro de Foucault e Chartier, de quem foi aluno em Paris, Alves avança as reflexões de seus predecessores, explorando a tese geral de que função-autor não decorre exclusivamente da prática da escrita, mas emerge no seio de um sistema discursivo que a legitima e regula. Alves começa rastreando as raízes da autoridade do autor na cultura medieval, e encerra sua análise no fim da Idade Moderna, delimitação temporal que lhe permite vislumbrar mais detidamente as nuances, estruturas e tensões que moldaram a autoria entre os séculos e XIV e XVIII. Apesar da ampla pesquisa histórica, sua abordagem não persegue uma linha evolutiva ou contínua da trajetória autoral, mas examina criticamente as rupturas e descontinuidades a ela imanentes.
A escolha de Foucault como referencial teórico revela-se acertada: mais de quarenta anos após a morte do filósofo francês, desconhece-se cabedal analítico tão vigoroso e completo para se analisar as relações de poder. E, se há algo de constante na autoria, é que esta não é definida somente pela criatividade ou pela originalidade, mas sobremaneira pelos jogos de força a ela inerentes. Diante das disputas e resistências que permeiam a questão autoral, uma investigação genealógica é muito conveniente para mapear os mecanismos de poder que tradicionalmente regularam a produção intelectual moderna.
Uma genealogia do autor… divide-se em duas partes. A primeira, “A autoria em questão” (Capítulos 1, 2, 3 e 4), empreende uma análise crítica da autoria enquanto conceito historicamente construído, mostrando como sua função foi estruturada por dispositivos de poder e instituições que regulam o conhecimento. A segunda parte, “A construção do autor moderno” (Capítulos 5, 6 e 7), examina como o autor se estabeleceu como autoridade intelectual, tornou-se alvo de diferentes formas de censura e regulamentação, para finalmente ser reconhecido como proprietário de sua obra e formador de opinião respeitado. Faremos um rápido sobrevoo por cada um dos capítulos a seguir.
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Alves inicia seu livro em diálogo com Michel Foucault, no intuito de abordar a emergência da função-autor e seus desdobramentos. O Capítulo 1 abre a caixa de ferramentas do filósofo francês para explorar a noção de genealogia e dispositivos de poder, demonstrando como os discursos regulam a produção do conhecimento e determinam quais vozes são legitimadas. A função-autor aparece como um mecanismo de controle que classifica, exclui e hierarquiza discursos dentro de um campo normativo. Nesta direção, Alves dá um valioso aviso aos navegantes: o “autor” não é mera decorrência de uma elite e seus bens de produção (como a prensa); é preciso considerar deslizamentos do sujeito e também as facetas produtivas do poder – mais do que o controle e a dominação, também as ultrapassagens, liberações, lutas e resistências que constituem novas experiências de pensamento.
O segundo capítulo, “O funcionamento da função-autor”, explora como a autoria firmou-se como princípio organizador dos discursos, assegurando a coerência e a autenticidade dos textos. Na transição do medievo para a modernidade, verifica-se o deslocamento da autoridade divina para o autor autoridade: portador de uma palavra que transforma o mundo, o autor passa a ser visto como alguém em quem se pode confiar. Este capítulo também destaca como as instituições acadêmicas, editoriais e jurídicas desempenharam um papel central na normalização da autoria.
No terceiro capítulo, “Uma história da figura autoral”, o livro percorre a transformação da autoria desde a Antiguidade até a modernidade. Particularmente interessantes os trechos em que Alves detalha o caráter coletivo e/ou anônimo na tradição grega e medieval, enquanto a modernidade promoveu a individualização e a propriedade intelectual do conhecimento. Ainda, este capítulo analisa como as mudanças nas práticas editoriais e nos sistemas de censura reforçaram a noção de autoria enquanto forma de autoridade legítima.
O quarto e derradeiro capítulo da primeira parte, “Os mecanismos do poder autoral”, aprofunda a relação entre autoria e poder, examinando como a economia e mesmo a biopolítica ajudaram a esculpir a função-autor. A modernidade transformou o autor em um sujeito regulado por dispositivos disciplinares e mercadológicos, consolidando sua visibilidade e legitimidade. Daí a se dizer que a autoria, para além de ser um ato criativo, é também um efeito das normas que determinam o que pode ser reconhecido como produção intelectual. Mais do que um simples nome na capa de um livro, o autor tornou-se, portanto, resultado das estruturas e modulações que operam sobre a criação intelectual e a circulação do conhecimento ao longo dos séculos.
Tal ascensão, contudo, será acompanhada de mecanismos de controle e vigilância estatal, tais como a censura e o privilégio real, que regulavam a publicação e distribuição das obras. O sexto capítulo mostra que, especialmente durante os séculos XVII e XVIII, escritores recorriam a publicações clandestinas e pseudônimos – o intelectual destacado poderia ser, ao mesmo tempo, um inimigo do poder. Alves evidencia esse embate entre autoria e repressão relatando casos históricos, como os de escritores perseguidos (Voltaire, Rousseau, Milton, etc.), obras proibidas e estratégias de resistência.
No sétimo e último capítulo, Alves avalia a consolidação da autoria como propriedade privada no século XVIII, impulsionada pelo mercado editorial e pelo surgimento dos direitos autorais. Legislações como o Estatuto da Rainha Ana (1710) e a Lei de Direitos Autorais Francesa (1793) formalizaram o domínio do autor sobre sua obra, inserindo-o nas dinâmicas econômicas e reforçando a mercantilização da criação intelectual. Esse “poder”, no entanto, não é absoluto nem isento de tensões, como revelam as ingerências dos editores e pressões da crítica pública e especializada.
As considerações finais do livro enfatizam que a questão autoral permanece em transformação, influenciada por processos históricos e pela crescente mediação tecnológica. Alves declara que, mais do que um fim em si, sua análise visa provocar novas investigações, despertando no leitor a inquietação necessária para ampliar esse debate.
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A investigação de Uma genealogia do autor... encerra-se no final do século XVIII, o que não significa dizer que esta obra envelhecerá mal. Ao contrário: diante das rápidas transformações que assistimos na contemporaneidade, a empreitada de Alves adquire crescente valor para novos pesquisadores, ao revelar a autoria como uma arena de disputas e contingências, na qual uma multiplicidade de forças interage continuamente. Com efeito, existe neste livro bastante matéria-prima para aqueles que pretendem se debruçar sobre a questão da autoria na contemporaneidade.
A era digital coloca em xeque a noção moderna de autoria, a começar dos modelos comerciais e das formas de controle sobre os quais essa função foi construída (Alves, 2015). Além disso, plataformas colaborativas, redes sociais e algoritmos geradores de texto desafiam a própria centralidade do autor como figura de legitimação do discurso. A popularização da IA generativa complicou esse processo: Chatbots agora produzem conteúdos apócrifos e possibilitam que terceiros se apropriem, ressignifiquem e remixem o conhecimento existente, borrando as fronteiras entre criação e reprodução. Por fim, a própria forma de encontrar e consumir conteúdo passou a ser modulada algoritmicamente (Andrade, 2022).
Diante dessas transformações profundas, a genealogia de Alves contém elementos valiosos que nos permitem formular novas perguntas acerca da (des)construção da figura autoral. A partir dela, levantam-se questões pertinentes à crise autoral na atualidade: a “colaboração” com algoritmos enfraquece ou fortalece o papel do autor? O autor desaparecerá em meio às apropriações e remixes algorítmicos, eventualmente em favor de uma escrita rizomática, acêntrica, universal – e, por que não, open source (Novaes e Andrade, 2025)? Ou, ao contrário, a autoria individual se afirmará como selo de valor intelectual, face à crescente urgência de diferenciar a criação humana da produção automatizada? Qual será o próximo ciclo dessa transformação que nos obriga a repensar, incessantemente, quem cria, quem assina e quem possui? Uma genealogia do autor... nos mostra que a pergunta sobre quem escreve nunca se esgota. Afinal, como pensar o conhecimento – e seu futuro – sem refletir sobre aqueles que o produzem?
Referências Bibliográficas
ALVES, Marco Antônio Sousa. Uma genealogia do autor: a emergência e o funcionamento da autoria moderna. Editora UFMG, 2021.
ALVES, Marco Antônio Sousa. A autoria em questão a partir de Foucault: autor, discurso, sujeito e poder. Matraga, vol. 22, no. 37, jul./dez. 2015, pp. 79-81, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doi:10.12957/matraga.2015.19932.
ANDRADE, Otávio Morato de. Governamentalidade algorítmica: democracia em risco? São Paulo: Dialética, 2022. 224p.
BARTHES, Roland. La Mort de l’Auteur. Manteia, no. 5, 1968
BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944). Traduzido por Davi Arrigucci Jr., Companhia das Letras, 21 nov. 2007.
CHARTIER, Roger. O que é um autor?: Revisão de uma Genealogia. EdUFSCar, 2021.
FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce qu'un auteur? [1969] Paris, Gallimard, 2001, v. I, Dits et Écrits.
FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours: leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970. Paris: Gallimard, 1971.
GODARD, Jean-Luc, director. Adieu au langage. 2014.
NOVAES, Thiago; ANDRADE, Otávio Morato de. Máquinas abertas e rizomáticas: reflexões sobre o software livre/open-source. No prelo. 2025.
TARKOVSKY, Andrei, director. Zerkalo (Mirror). 1975.
PESSOA, Fernando. Ode Triunfal e Outros Poemas. 1ª ed., Global, 1988.
PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos e Outros Poemas. Cultrix, 29 mar. 2011.
Otávio Morato de Andrade
Doutorando em Direito (UFMG/Université Libre de Bruxelles). Mestre em Direito (UFMG) e pós-graduado em Direito Civil (PUC-MG). Bacharel em Direito (UFMG), Administração (PUC-MG) e Contabilidade (PUC-MG). É autor do livro ‘Governamentalidade algorítmica: democracia em risco?’ (2022). Possui artigos científicos publicados nacional e internacionalmente, tratando de neurociência, economia comportamental, inteligência artificial, tecnologia e Direito. Ministrou aulas, palestras e conferências no campo do Direito Civil. Membro da Comissão de Inteligência Artificial da OAB/MG e do grupo de estudos SIGA/UFMG. É Editor-Chefe da Revista do CAAP, no âmbito da Faculdade de Direito da UFMG.
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