Memória corporal, regressão e repetição: as formulações de Sándor Ferenczi sobre o trauma a partir de sua experiência na Primeira Guerra Mundial
Body memory,
regression, and repetition: Sándor Ferenczi’s formulations on trauma based on
his experience in World War I
João Alves Maciel Neto
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora
Fátima Caropreso
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora / University of Essex
Recebido: 02/03/2025
Received: 02/03/2025
Aprovado:31/03/2024
Approved: 31/03/2024
Publicado: 08/05/2025
Published: 08/05/2025
Resumo
Recebidas controversamente na década de 1930, as hipóteses de Sándor Ferenczi sobre o trauma vêm sendo reconhecidas na psicanálise contemporânea, devido ao seu valor clínico. Contudo, ao analisar trabalhos anteriores desse autor, é possível identificar uma teorização mais ampla sobre o trauma. Neles, Ferenczi pauta-se em sua experiência como médico na Primeira Guerra Mundial para discutir as consequências de uma invasão excessiva de estímulos no aparelho psíquico, como os efeitos do desligamento da consciência no momento do trauma, os danos causados à onipotência e a repetição do trauma em menor escala como forma de alcançar o reequilíbrio psíquico. O objetivo desse artigo é analisar as hipóteses sobre o trauma que Ferenczi elabora nesse momento e mostrar que elas possuem repercussões metapsicológicas, ainda pouco estudadas, que podem auxiliar a compreensão do funcionamento psíquico e contribuir para uma visão mais acurada do seu pensamento e de seu papel na história da psicanálise.
Palavras-chave: Psicanálise; Ferenczi; Neuroses de guerra; Neurose traumática; Trauma.
Abstract
While Sándor Ferenczi's hypotheses on trauma
were met with controversy in the 1930s, they have gained recognition in
contemporary psychoanalysis for their clinical value. However, when we analyze his earlier works, a broader and still
under-explored theory of trauma can be found. In these writings, drawing on his
experiences as a physician during World War I, Ferenczi examines the
consequences of overwhelming stimulus invasion on the psychic apparatus, such
as the effects of consciousness shutdown at the moment of trauma, the
disruption of omnipotence, and the repetitive enactment of trauma on a reduced
scale as a means of psychic re-equilibration. This study aims to analyze Ferenczi's early hypotheses on trauma and
demonstrate their significant, yet under-examined, metapsychological
repercussions. By doing so, it can contribute to a deeper understanding of
psychic functioning and offer a more accurate perspective on Ferenczi’s thought
and its role in the history of psychoanalysis.
Keywords:
Psychoanalysis; Ferenczi; War Neuroses; Traumatic Neuroses; Trauma.
Introdução
Com o início da Primeira Guerra Mundial, em julho de 1914, diversos profissionais da saúde foram convocados a atuar em hospitais militares, estações médicas, e mesmo nos campos de batalha. Nesse cenário, surgiram discussões relacionadas aos quadros patológicos resultantes da guerra. Temas como a natureza do trauma, os quadros patológicos dele derivados e os seus modos de tratamento se tornaram recorrentes (Eros, 2017; Sanfelippo, 2017). A psicanálise participou ativamente desse debate, e forneceu uma perspectiva alternativa àquelas de caráter organicista e localizacionista, como as influenciadas por médicos como Hermann Oppenheim (1858-1919). Como a guerra propiciou o atendimento de pacientes vindos de situações inusitadas e extremas, a própria teoria psicanalítica também avançou nesse período. As investigações sobre os efeitos da guerra tiveram forte impacto na reformulação de elementos da metapsicologia e da clínica psicanalíticas, assim como notável dimensão sociopolítica (Tavares & Iannini, 2020).
Sándor Ferenczi foi um dos autores que contribuiu para essa discussão. Ele atuou em instituições militares pertencentes ao exército húngaro durante todo o conflito, favorecendo o reconhecimento público da psicanálise como método de tratamento (Muñoz & Correia, 2022). Essa experiência também lhe permitiu levantar novas hipóteses sobre o funcionamento psíquico. Segundo Erös (2018), embora Ferenczi já viesse teorizando sobre os efeitos da relação entre sujeito e ambiente, foi a sua experiência como médico militar que o colocou diante das consequências de inúmeros eventos de extrema violência. Nessa linha, Harris (2010) observa que, durante esse período, Ferenczi avançou sua compreensão sobre temas como os estados mentais primitivos, a regressão e o trauma. Dessa forma, suas publicações sobre as neuroses de guerra representam um momento importante de suas concepções sobre o trauma.
Apesar de sua relevância, a obra de Ferenczi foi ofuscada após sua morte em 1933, devido, entre outros fatores, à forma final de sua teoria do trauma. Duramente criticada por Freud e por seus contemporâneos, essa teoria permaneceu como uma mancha na reputação de Ferenczi até a década de 1980, quando começou a ser reavaliada em seus aspectos clínicos e teóricos (Dal Molin, 2016). Muitos aspectos de sua obra, no entanto, permanecem ainda pouco compreendidos, de forma que uma análise de seu percurso teórico e dos fundamentos de sua teoria se faz relevante.
O objetivo deste artigo é analisar, a partir de uma perspectiva histórico-conceitual, as primeiras ideias de Ferenczi sobre o trauma, formuladas durante o período da Primeira Guerra Mundial. Os dois principais textos objetos desse estudo são Sobre os dois tipos de histeria de guerra (Ferenczi, 2023b) e A psicanálise das neuroses de guerra (Ferenczi, 2023a).
Essa segunda publicação faz parte de um livro homônimo sobre o tema, que consistiu no compilado das falas de Ferenczi, Ernst Simmel e Karl Abraham, proferidas na mesa principal do V Congresso Internacional de Psicanálise, ocorrido em 1918. O livro contém também uma introdução redigida por Freud e um artigo de Ersnt Jones (1879-1958). Em suas colocações, além de retomar ideias de sua primeira publicação, Ferenczi (2023b) também faz um recenseamento do que vinha sendo publicado sobre as neuroses de guerra. Esse material só foi traduzido para o português, a partir do texto original em alemão, em 2023, o que reforça a justificativa da retomada dessas ideias de Ferenczi no contexto da produção brasileira relativa à história e filosofia da psicanálise.
Contextualização histórica
Poucos meses após a Primeira Guerra Mundial ser oficialmente declarada, Ferenczi foi convocado pelo governo húngaro a prestar serviços médicos ao exército. Em setembro de 1914, ele foi enviado ao agrupamento militar da cidade de Pápa, na Hungria. Em 1915, foi promovido a médico chefe do agrupamento, como relatou na carta enviada a Freud em 2 de fevereiro daquele ano (Brabant; Falzeder; Giampieri-Deutsch, 1996). Até esse momento, tudo que Ferenczi tinha escrito sobre o conflito era um pequeno texto no qual argumentou que a guerra coloca o sujeito de frente a camadas mais profundas e ocultas de seu psiquismo (Ferenczi, 2011a). Segundo o autor, essas camadas seriam dificilmente acessíveis à investigação científica em tempos de paz, pois neles os valores sociais mais elevados imperam grande parte do tempo. A guerra, por sua vez, teria colocado o ser humano em contato íntimo com “a criança, o selvagem e o primitivo” (Ferenczi, 2011a, p. 283) em seu interior.
O modo como Ferenczi aborda as neuroses de guerra vai se alterando à medida que ele passa a atender mais soldados que retornavam da linha de frente e a investigar seus sintomas. O primeiro relato está presente em uma carta enviada a Freud em abril de 1915, sem data assinalada. Ele comenta que estava tratando um soldado com um quadro de “hemiplegia resultante do choque da explosão de uma granada” (Brabant et al., 1996, p. 60). Embora o diagnóstico dado pelos outros médicos presentes atribuísse à paralisia uma causa orgânica, Ferenczi defendeu que a causa era histérica, derivada de eventos anteriores ao choque da explosão. O caso não é retomado nas correspondências, nem descrito dentro da categoria nosográfica das neuroses de guerra, no entanto, dois pontos abordados são considerados novamente no contexto da discussão sobre essa classe de neuroses – a paralisia histérica e a dificuldade de identificar se uma neurose foi causada pela guerra, ou derivada de um evento anterior e deflagrada pela guerra.
A primeira menção escrita de Ferenczi a neuroses causadas pela guerra data de julho de 1915, quando ele pede para ser transferido de Pápa para Budapeste. Para que a transferência ocorresse, ele “deveria escrever um memorando explicando a necessidade de criar um abrigo em Budapeste para os ‘mentalmente incapacitados’ pela guerra (lesões orgânicas e neuroses traumáticas)”[1], (Brabant et al., 1996, p. 71). Essa distinção entre causas orgânicas e psíquicas é importante, pois foi ao não identificar lesões que justificassem uma causa orgânica que Ferenczi voltou-se às causas psíquicas (Hamburger, 2018). Seu interesse crescente por esses quadros o levou a solicitar uma licença do trabalho em Pápa para visitar instituições voltadas às neuroses e psicoses de guerra nas cidades de Viena e Graz, na Áustria. Ferenczi diz a Freud que essa foi uma “viagem de estudo” (Brabant et al., 1996, p. 76).
A transferência foi concedida a Ferenczi em dezembro de 1915, e ele foi alocado na ala de doenças nervosas do Hospital Militar Maria Valeria, em Budapeste. Em fevereiro de 1916, já como chefe dessa ala, ele apresentou sua primeira conferência sobre as neuroses de guerra durante uma reunião científica, a qual foi publicada, em 1916, com o título de Dois tipos de neurose de guerra” [2].
Dois tipos de neuroses de guerra
Ao início de sua conferência, Ferenczi (2023b) diz que trata-se de uma comunicação preliminar, baseada no exame, realizado ao longo de dois meses, de 200 pacientes da ala de doenças nervosas do hospital. Segundo seu relato, a maioria dos pacientes apresentava quadros de tremores, paralisias ou rigidez dos membros. Eles alegavam ter adoecido após o arremesso para longe, o soterramento devido à proximidade a uma explosão, um resfriamento violento devido a quedas de temperatura ou mergulhos em águas congelantes, assim como devido a outros tipos de acidentes, ou mesmo à exaustão. Ferenczi explica que parte desses soldados eram acometidos por paralisias e tremores generalizados, e parte por paralisias de membros específicos. Em ambos os casos, a atribuição de uma causa psíquica foi feita após a verificação de que não havia registros de lesões que pudessem provocar tais sintomas, assim como da consideração da ampla variação individual – os membros paralisados variavam muito de um paciente para outro. Esses fatores indicaram que a atribuição de uma causa orgânica era insuficiente.
O primeiro tipo de neurose de guerra identificado por Ferenczi (2023b) consiste em uma espécie de histeria de conversão. Ele notou, a partir dos relatos dos soldados, que os membros que estes se recordavam estar em ação no momento do choque se relacionavam exatamente às partes do corpo que ficaram comprometidas em seguida, ainda que não houvesse dano físico evidente. Qualquer tentativa de movimentação desses membros era seguida por tremores violentos. A partir disso, como elucida Harris (2010), o autor passou a ler os sintomas corporais dos pacientes, ouvir seus relatos pelo viés psicanalítico, e indicar uma relação entre a ocorrência psíquica e a somática. A partir disso, Ferenczi (2023b) formula uma explicação pautada na impossibilidade de resolução psíquica da situação traumática devido à ausência de descarga de afetos, e sustenta que esses sejam considerados casos de histeria de conversão:
Devem ser entendidos como histerias de conversão, no sentido de Breuer e Freud. Também aqui, o efeito repentino e psiquicamente incontrolável (o pavor) define o trauma; as inervações que dominam no momento traumático, que são permanentemente retidas como sintomas da doença, são os sinais de que partes não resolvidas desse efeito ainda estão em ação na vida psíquica inconsciente. Em outras palavras, pacientes como esses ainda não se recuperaram do estado de pavor, ainda que conscientemente não pensem mais nisso (2023b, p. 136).
Esses pacientes estariam fixados no momento exato do trauma, situação comparável à fixação do pé no chão ante um perigo. A diferença é que na situação comum de pavor o corpo volta ao normal quando o perigo se dissipa, enquanto na comoção traumática o psiquismo não consegue eliminar o afeto de pavor (Câmara & Herzog, 2021). Esse afeto não liquidado permanece ativo no inconsciente, influenciando na formação do sintoma, e a energia associada ao trauma é emprestada aos processos corporais a ela relacionados, característica típica da histeria de conversão. Ferenczi (2023b) argumenta que esses casos de histeria de conversão podem ser classificados como neuroses “monossintomáticas” de guerra, ou seja, em que apenas uma parte do corpo é afetada. Segundo Sanfelippo (2017), uma visão econômica – no sentido psicanalítico – das neuroses de guerra é proposta nesse momento.
Ferenczi também considera a possibilidade de a ocorrência desses sintomas derivarem não apenas do trauma em si, mas também de algum fator predisponente, que levaria a uma complacência somática. Na carta enviada a Freud em 24 de janeiro de 1916, ele comenta:
Eu analisei (permiti livre associar) uma vítima de trauma de guerra por uma hora. Infelizmente, acontece que no ano anterior ao choque de guerra ele havia perdido o pai, dois irmãos (pela guerra) e a esposa pela infidelidade. Quando um homem como este precisa deitar-se por 24 horas debaixo de um cadáver, é difícil dizer o quanto de sua neurose se dá por conta do trauma de guerra (ele treme e fala em murmúrios) (Brabant et al., 1996, pp. 107-108).
Ferenczi (2023b) diz, contudo, que essa questão só poderia ser verificada através de um processo completo de análise, o que a situação de guerra não favorecia. Ainda assim, o autor pontua que, mesmo que haja uma predisposição, o elemento patogênico principal nas neuroses de guerra é a inervação ativa durante o choque. O próprio choque transforma-se em uma espécie de fator predisponente, e o excesso de excitação gerado pelo evento traumático atual, incapaz de tornar-se consciente, fixa-se então na inervação ativa. Caso houvesse uma fixação anterior, os afetos apenas encaminhar-se-iam ao local afetado pelo choque, deslocamento típico da histeria de conversão.
Essa explicação traz uma hipótese, desenvolvida por Ferenczi (1927) posteriormente, sobre os dois sistemas mnêmicos que existiriam no psiquismo: um de memórias das sensações e reações do próprio eu, sejam essas orgânicas ou psíquicas, que funcionaria à parte da associação com as representações de palavras[3], e um de memórias objetais, que teria sua expressão privilegiada pela consciência e pela linguagem verbal. Esses sistemas seriam independentes um do outro, ainda que intimamente interligados e com a possibilidade de registrarem simultaneamente a mesma vivência. Uma memória de objeto, por exemplo, poderia estar ligada à memória de uma sensação do eu. No entanto, nas ocasiões em que a consciência se fechou, como nas neuroses de guerra, torna-se possível a existência de uma memória da sensação sem que a memória do objeto hostil esteja presente.
Sobre as neuroses de guerra, Ferenczi (1927) argumenta que as paralisias dos membros consistem em lembranças de dor desprovidas de objeto, mas registradas no sistema mnêmico do eu e ainda ativas no tempo presente. Câmara & Herzog (2021) elucidam que Ferenczi desenvolve a noção de um sistema mnêmico do eu como forma de teorizar sobre o que ele observara nas paralisias dos soldados, e acrescenta ao seu funcionamento outros modos de memorização e expressão corporal, como os tiques. Os autores também argumentam que, para Ferenczi, as impressões sensoriais e motoras não seriam concebidas como se a linguagem verbal “fosse um padrão ou um referencial a partir do qual aquelas devem ser lidas; pelo contrário, o sistema mnêmico do eu protagoniza uma psicanálise das superfícies, das sensações, do movimento” (p. 37). Esse ponto será retomado mais adiante.
Histeria de angústia, regressão e repetição
Ferenczi (2023b) relata que, em outras ocasiões, os pacientes sofriam de tremores generalizados, e alguns tinham a própria capacidade de andar comprometida. Quando esses soldados tentavam caminhar sem algum tipo de apoio, apresentavam palpitações, aumento na frequência cardíaca, suor excessivo e ansiedade. Após entrevistá-los, o autor constata que eles também foram atingidos por explosões, soterrados, ou passaram por situações extremas de privação ou frio. Nessas situações, eles perderam a consciência e a recuperaram apenas ao acordar no hospital. Os tremores e a dificuldade de caminhar, por sua vez, tinham começado mais tarde, durante a primeira tentativa de se levantar da cama e andar novamente. Quanto aos sonhos por eles relatados, a maioria repetia as situações traumáticas vividas em combate. Além disso, a hiperestesia dos sentidos era outro sintoma frequente desses quadros.
Ferenczi (2023b) considera que esse segundo tipo de neurose de guerra consiste em um tipo de histeria de angústia. Nesses casos, o conteúdo afetivo relacionado ao trauma psíquico teria sido recalcado por se associar diretamente ao aniquilamento da autoconfiança dos soldados afetados. Desse modo, é possível dizer que houve um forte golpe em sua ilusão de onipotência, como sugere Frankel (2017). Qualquer sinal de que a experiência à qual foram expostos pudesse se repetir evocava angústia nesses pacientes. Para Ferenczi (2023b), os distúrbios motores atuariam como expressões de uma fobia, como a de se levantar, e funcionariam como evitações de atos que poderiam levar a irrupção de angústia. Esta, contudo, se manifesta nos tremores generalizados, de modo a prevenir a repetição do próprio evento traumático que rompeu a autoconfiança.
A partir disso, Ferenczi (2023b) retoma algumas hipóteses sobre a regressão, notadamente a suposição de que os quadros psicopatológicos acompanham regressões neuróticas a fases anteriores do desenvolvimento psíquico (Ferenczi, 1916). Os casos de histeria de angústia traumática associados à dificuldade de andar evidenciariam uma tendência de regressão psíquica ao primeiro ano de vida, período em que a criança não é capaz de se manter em pé sem auxílio. O autor reitera sua hipótese ao afirmar que “tal regressão nunca está ausente da sintomatologia das neuroses, já que mesmo as fases aparentemente já superadas por completo nunca perdem totalmente sua atração e sempre se reafirmam quando a oportunidade é favorável” (Ferenczi, 1916, pp. 145-146).
Essa ideia é expandida em seu segundo artigo sobre as neuroses de guerra, através da noção de ganho secundário da doença. Ferenczi (2023a) comenta que as solicitações de pensões ao governo e a possibilidade de não retornar ao campo de batalha consistem apenas em ganhos secundários. É importante mencionar que o número elevado de solicitações de pensões era um problema enfrentado pelos governos, o que levou à descrença quanto à veracidade dos quadros neuróticos, o que culminou na criação do termo pejorativo “neuroses de pensão” (Bonomi, 2001). Já o ganho principal da doença, segundo Ferenczi (2023a), consistiria no “próprio prazer de permanecer no abrigo seguro da situação infantil outrora abandonado com relutância” (p. 63). A partir desse comentário, Dean-Gomes e Kupermann (2020) indicam que as neuroses traumáticas colocam o psiquismo em uma direção contrária àquela do sentido de realidade. Embora exista uma tendência de retorno a um estágio anterior de menor desprazer por trás do processo de aquisição do sentido de realidade, esse processo tem como pré-requisito o reconhecimento do mundo. Ele demanda a renúncia da onipotência em troca da possibilidade de realizar um exame mais preciso da realidade (Ferenczi, 1916). No entanto, as neuroses traumáticas promovem o desinvestimento do mundo e o reinvestimento no eu, pois são provocadas por uma força devastadora vinda, justamente, da realidade externa, da qual não se quer mais saber.
Com isso, a regressão psíquica adquire uma função ainda mais ampla dentro das concepções psicopatológicas e metapsicológicas de Ferenczi. Em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios, Ferenczi (1916) sustentara que o psiquismo, como um todo, é movido pela tendência a retornar a um estado anterior de menor desprazer – em última instância, à ausência de perturbações uma vez experienciada na vida intrauterina, período de satisfação absoluta dos desejos. Seria essa tendência que impulsionaria o psiquismo a se desenvolver, visto que ela demandaria um maior conhecimento do mundo para uma satisfação mais efetiva dos desejos. Ele argumentara, ainda, que os sintomas presentes nas neuroses de transferência podem ser entendidos como regressões a modos de satisfação encontrados em etapas anteriores no desenvolvimento em que houve uma fixação, como sustentado por Freud (2010b). Em seu primeiro trabalho sobre as neuroses de guerra, Ferenczi (2023b) também identificou um traço regressivo nas neuroses traumáticas, e ampliou o escopo da relação entre a regressão e a psicopatologia. Já em seu segundo texto sobre essa temática, Ferenczi (2023b) comenta que o ganho extra visado pelo psiquismo traumatizado relaciona-se ao prazer obtido na sensação de amparo presente em um estágio infantil, ao qual o psiquismo do sujeito traumatizado por uma realidade avassaladora tenta retornar para dela escapar. Logo, é possível notar a dimensão atrativa fundamental que as vivências onipotentes primitivas possuiriam na estruturação e, também, na desestruturação psíquica.
Ferenczi (2023b) também aborda a repercussão econômica do trauma no psiquismo ao se referir a outro sintoma das neuroses de guerra, a hiperestesia. A partir de sua compreensão desse sintoma, é possível identificar uma concepção inicial sobre o fenômeno da repetição. Nesse momento, ele dialoga diretamente com as ideias de Freud sobre o assunto, ainda que, em certos pontos, ambos proponham resoluções diferentes às questões ensejadas pela repetição e pela relação desta com a dinâmica econômica do psiquismo traumatizado (Moreno & Coelho, 2013; Dal Molin, 2016).
Segundo Ferenczi (2023b), o impacto do choque produziria uma falha na redistribuição da energia afetiva pelo aparelho psíquico. Mesmo quando a atenção fosse capaz de perceber a aproximação do evento traumático, os estímulos seriam tão intensos que o psiquismo não seria capaz de redistribuir de modo estável a excitação gerada, o que provocaria a descarga da excitação por vias patológicas. Como a consciência se fecharia diante de tais estímulos, surgiria uma discrepância entre ela, que os excluiu de si para se proteger do choque, e o restante do aparato neuropsíquico. O reequilíbrio das excitações só poderia ser atingido caso a consciência também reconhecesse a real fonte afetiva do trauma, reassumindo as excitações desprazerosas que dela foram excluídas. A hiperestesia dos sentidos operaria como uma espécie de repetição do trauma em menor escala. Sobre a redistribuição excitatória e sua relação com a hiperestesia, Ferenczi (2023b) diz:
Isto é alcançado por meio de certa atitude “traumatofílica”, pela hipersensibilidade dos sentidos, que então supre gradualmente, em pequenas doses, a consciência com tanta expectativa e abalos angustiados quanto ela gostaria de ter sido poupada durante o abalo. Nesses pequenos traumas constante e sistematicamente repetidos, em cada expectativa de toque, em cada pequeno ruído ou brilho repetido, teríamos que ver – seguindo a visão freudiana – uma tendência de cura, a tendência de equilibrar uma distribuição perturbada da tensão no organismo (pp.148-149).
Através de pequenas repetições do trauma, portanto, o psiquismo gradativamente passaria a tomar consciência e a descarregar as excitações derivadas do abalo traumático, mas que ficaram no inconsciente e levaram ao desequilíbrio excitatório. Assim, o sujeito manter-se-ia psiquicamente preso à formação traumática, e reagiria ao trauma no presente, uma vez que essa reação não foi possível no momento de sua ocorrência (Dal Molin, 2016). Moreno e Coelho (2013) apontam que esse processo funciona como um mecanismo de descarga, no qual as excitações excluídas da consciência são gradualmente eliminadas. Desse modo, a economia psíquica se reequilibraria gradualmente.
Ferenczi (2023b) também retoma os casos de sonhos de angústia derivados do trauma, e atribui a eles uma função semelhante àquela da hiperestesia. Ao comentar que a assimilação entre repetição diurna e sonhos traumáticos já fora feita por Freud, Ferenczi sublinha que, no caso dos sonhos, não chega a ser necessário que um estímulo externo desperte no psiquismo o estado de alarme, sendo a psique a responsável por recriar oniricamente o momento traumático de modo a tentar lidar com ele. As repetições oníricas também seriam parte de uma tendência para o reequilíbrio tensional.
Duas questões relacionadas a esses pontos são importantes. A primeira consiste no fato de que Ferenczi não menciona de onde ele retirou essas considerações atribuídas a Freud – o conceito de compulsão à repetição só seria postulado quatro anos depois desse texto de Ferenczi. Segundo Tavares e Iannini (2020), é possível que elas derivem de conversas pessoais entre os autores, o que a correspondência de ambos corrobora. A segunda diz respeito às particularidades da concepção de Ferenczi sobre os fenômenos repetitivos. Para pensar sobre isso, é necessário considerar as ideias elaboradas por Freud sobre a repetição até aquele momento, e alguns pontos discutidos nas cartas trocadas entre eles.
O conceito de compulsão à repetição, inserido formalmente na psicanálise em 1920, tem suas raízes já nas primeiras formulações metapsicológicas que Freud elabora no Projeto de uma psicologia (Freud, 2003), como argumentam Caropreso e Simanke (2006). Visto que esse trabalho foi publicado apenas em 1950, não sabemos se Freud comunicou suas ideias a Ferenczi, no entanto, alguma delas foram retomadas em Além do princípio de prazer (Freud, 2020), incluindo aquelas próximas ao que Ferenczi (2023b) propõe sobre a repetição traumática e o reequilíbrio tensional. No Projeto de uma psicologia, Freud (2003) sustenta que, após a ocorrência de um trauma, denominado nesse momento “vivência de dor”, a rememoração da representação do objeto hostil ligado a essa vivência e a evocação de afetos desprazerosos se impõem ao funcionamento mental, caracterizando um tipo de processo primário. A contínua repetição desses afetos e a rememoração das representações a ele associadas possibilitariam o seu domínio por parte do Eu, ou seja, permitiriam a ligação dos estímulos que atuavam livremente no psiquismo. Assim, a recordação do objeto hostil e o desprazer dele resultante poderiam ser evitados. Portanto, no Projeto de uma psicologia, Freud introduz a ideia de que um processo de ligação extenso e repetido é o que permite o reequilíbrio excitatório e inibe a ocupação de uma recordação dolorosa. No entanto, após a escrita desse manuscrito, à medida que a fantasia ganhou importância em sua obra, Freud deixou em segundo plano suas hipóteses sobre a maneira como o psiquismo reage a situações traumáticas, retomando-as apenas em 1920 (Caropreso & Simanke, 2006).
Na 18ª conferência introdutória à psicanálise, A fixação no trauma, o inconsciente, publicada no ano seguinte ao primeiro texto de Ferenczi sobre as neuroses de guerra, Freud (2014) retoma esse ponto e relaciona as neuroses traumáticas à ocorrência de sonhos que repetem o trauma, assim como cita que uma fixação no momento do trauma leva à formação de sintoma. Comenta, também, que a palavra “traumática” deve ser entendida através do fator econômico dos processos psíquicos, e que o trauma traria ao psiquismo um aumento tão grande de estímulos que o desequilíbrio gerado não poderia ser revertido pelas vias comuns. Contudo, ele não se refere ao reequilíbrio excitatório proporcionado pela repetição, assim como não menciona o seu potencial curativo, como trazido por Ferenczi (2023b) no texto sobre as neuroses de guerra, e por ele próprio no Projeto de uma Psicologia (2003).
A hipótese de que a repetição seria um modo de dominar as excitações não ligadas, incluindo aquelas derivadas do trauma, é (re)apresentada e desenvolvida por Freud, de forma explícita, apenas em Além do princípio de prazer (Freud, 2020), publicado na virada da década. Ali, porém, Freud repensa as noções de repetição e trauma como parte de uma argumentação maior, na qual também reconsidera certos postulados psicanalíticos como a primeira dualidade pulsional e o domínio do princípio do prazer, processo do qual Ferenczi também estava a par (Padovan & Pinto, 2020).
É possível pensar, portanto, que há certa particularidade nas ideias de Ferenczi sobre a repetição desde suas primeiras incursões sobre o tema. Esse tópico é abordado em uma carta que Freud envia a Ferenczi em 31 de julho de 1915, já durante a guerra e no ano anterior ao primeiro texto de Ferenczi sobre as neuroses dela derivadas. Nessa carta, é possível encontrar um indício de que as hipóteses de Ferenczi sobre a repetição efetivamente baseiam-se em ideias que eles discutiram, e que o autor estava dando às mesmas uma interpretação particular. Em resposta a uma carta de Ferenczi que não fora encontrada pelos editores da correspondência entre os dois autores, Freud diz:
Lembrei-me muito claramente de sua ideia sobre a repetição abreviada de cada ato psíquico, e não creio tê-la subestimado. Pelo contrário, gostei de imediato; apenas mantive minha distância da mesma pois ela pertencia a você. Ela também me parecia, naquele momento, ser incapaz de ser completada. Em sua forma e aplicação atuais, não hesito em reconhecê-la como um complemento legítimo e uma consequência necessária de minhas visões sobre o psiquismo. Mantenho que um indivíduo não deva criar teorias – estas devem surgir em sua casa como hóspedes não convidados enquanto este se ocupa da investigação de detalhes; e agora essa teoria chegou nesse ponto. Mas você deve desenvolvê-la por conta própria quando tiver a chance; não a adotarei, ainda que eu a aceite (Brabant et al., 1996, pp. 73-74).
Podemos verificar duas coisas a partir desse trecho. A primeira consiste no fato de que Freud reconhece que as ideias de Ferenczi sobre a repetição complementam as suas próprias visões sobre o psiquismo. Isso fica mais claro se colocarmos lado a lado o que Freud (2003) traz no Projeto de uma psicologia, e retoma a partir da conferência A fixação no trauma, o inconsciente (2014), e o que Ferenczi traz sobre as neuroses traumáticas (2023b). A segunda consiste na consideração de que algo nas hipóteses de Ferenczi sobre os fenômenos repetitivos é próprio ao seu pensamento. Moreno e Coelho (2013) notam que essa diferença está no modo como o aparelho retoma o equilíbrio tensional através da repetição. Para Freud, isso seria atingido pela ligação dos estímulos sem representação, enquanto Ferenczi protagoniza as descargas corporais de excitação, como um tipo de catarse fracionada, independentemente de haver representação. Ao menos a princípio, essas visões não são incompatíveis, mas propõem diferentes meios de alcançar o reequilíbrio tensional.
Câmara e Herzog (2021) notam que essa ausência da relação exclusiva entre o fator traumático no inconsciente e sua ligação a uma representação, como meio de sanar o desequilíbrio tensional, é relacionada também às histerias de conversão. Podemos pensar, portanto, que no caso da repetição há igualmente uma prefiguração da ideia de um sistema mnêmico do eu, pois Ferenczi (2023b) também a concebe como algo que pode ser realizado pela via corporal. Este reagiria no presente a uma situação traumática que já não existe, mas que nele ficara impressa, e contra a qual ele ainda luta para se livrar. Portanto, já em seu primeiro texto sobre as neuroses de guerra, o autor começa a formar uma visão própria sobre o fenômeno psíquico da repetição e de sua relação com o trauma.
Ao final da conferência, Ferenczi reafirma o caráter preliminar de suas colocações, e indica que conclusões mais efetivas sobre os temas abordados poderão ser alcançadas apenas com mais tempo de observação e investigação. Em fevereiro de 1916, ele relata a Freud o conteúdo de sua conferência. Este faz considerações sobre alguns pontos[4] apresentados por Ferenczi e comenta que “um artigo com comunicações preliminares sobre as neuroses de guerra será muito bem vindo no Zeitschrift”[5] (Brabant et al., 1996, p. 115). O trabalho é publicado em maio de 1916, na revista médica húngara Gyógyászat, e no ano seguinte em alemão, no Zeitschrift. Freud comenta, na carta enviada a Ferenczi em 22 de janeiro de 1917, que o trabalho está dentre aqueles de Ferenczi que colaboraram para manter o alto padrão do periódico. Ferenczi responde a Freud, na carta de 25 de janeiro de 1917, que ainda estava insatisfeito com suas ideias e esperava alcançar mais resultados (Brabant et al., 1996).
As contribuições de Ferenczi ao estudo do trauma e de suas consequências não se encerram em seu primeiro trabalho sobre o tema. Para além de sua fala na mesa principal do V Congresso Internacional de Psicanálise, o autor abordará esse assunto ao longo de toda a sua obra posterior. Demarcar essa sua primeira contribuição possibilita não apenas entendê-la com maior precisão, mas também compreender o que Ferenczi trouxe de original para a psicanálise naquele período.
O Pós-guerra
O estudo das neuroses de guerra e a ocorrência do V Congresso Internacional de Psicanálise, em 1918, trouxeram repercussões imediatas para a psicanálise, algumas delas diretamente ligadas às contribuições de Ferenczi. Na esfera burocrática, a eleição de um novo presidente da Associação Internacional de Psicanálise pôde, enfim, ocorrer. Após a renúncia de Carl Jung (1875-1961), em 1914, Abraham ocupou o cargo até que uma nova eleição ocorresse formalmente em um congresso. Com o fim da guerra e a retomada dos congressos, a votação acontece, e Ferenczi é eleito o novo presidente (Hamburger, 2018). Os meios de publicação psicanalíticos também sofreram modificações. Como a editora de Hugo Heller (1870-1923) se viu impossibilitada de seguir financiando a publicação do Zeitschrift, foi fundada a Internationaler Psychoanalytischer Verlag (Biblioteca Psicanalítica Internacional), uma editora voltada à disseminação de trabalhos psicanalíticos (Marinelli, 2005b). Otto Rank tornou-se seu primeiro chefe, e Freud, Ferenczi e Anton von Freund (1880-1920) também integraram a equipe. O livro que a inaugurou foi Psicanálise das neuroses de guerra (Ferenczi; Abraham; Simmel; Jones; Freud, 1919). Em 1920, Jones e Rank criaram uma divisão voltada a publicações na língua inglesa, que incluiu, dentre outros projetos, o International Journal of Psycho-Analysis (Marinelli, 2005a).
No campo social, o congresso contou a presença de oficiais do governo e autoridades médicas dos governos da Hungria, Alemanha e Áustria, que buscavam soluções à crise no campo da saúde mental, e isso favoreceu uma maior notoriedade pública da psicanálise. Autoridades governamentais fizeram um acordo para a criação de centros gratuitos de tratamento, nos quais a psicanálise estaria presente. Estes, contudo, funcionaram mais como ferramentas de segregação dos pacientes da população geral do que como instituições que visavam a melhora efetiva de seus sofrimentos. A psicanálise teve neles uma posição precária, sendo muitas vezes oferecida como último recurso de tratamento (Muñoz & Correia, 2022). Ainda assim, as contribuições de Ferenczi, Abraham e Simmel, a partir de suas experiências na guerra, foram essenciais para a fundação e implementação de clínicas públicas de psicanálise, o que posteriormente veio a ocorrer (Tavares & Iannini, 2020).
Quanto ao avanço da psicanálise na Hungria, a câmara de Budapeste aprovou o financiamento do treinamento de novos analistas (Muñoz & Correia, 2022). Na área da educação, estudantes de medicina da Universidade de Budapeste se organizaram para reivindicar que a psicanálise começasse a ser ali ensinada, e entra em negociação a nomeação de Ferenczi para ocupar esse cargo. Em abril de 1919, o artigo Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? (Freud, 2010a) é escrito por Freud e publicado na revista Gyógyászat em apoio à candidatura docente de Ferenczi (Brabant et al., 1996, p. 344). A primeira versão desse artigo possui um trecho extra sobre a utilização de uma ala psiquiátrica destinada à pesquisa psicanalítica das psicoses. Essa adição foi feita pelo próprio Ferenczi por razões estratégicas (Brabant et al., 1996). Ainda em abril de 1919 a posição de docente é concedida a Ferenczi, e ele torna-se o primeiro professor efetivo de psicanálise em uma universidade.
No entanto, mesmo após o fim da guerra, turbulências políticas seguiram assolando a Hungria. Após o período chamado de “Terror Vermelho”, em que o país ficou sob o poder do regime comunista soviético, entre abril e agosto de 1919, teve início o “Terror Branco”, um regime contrarrevolucionário e ultranacionalista. Esse segundo período foi marcado por atos de repressão, violência e extremo antissemitismo. Devido à lei recém postulada que limitava a 6% o número de estudantes e professores universitários que poderiam ser judeus, Ferenczi é exonerado de seu cargo de professor (Muñoz & Correia, 2022). É excluído, ainda, da Associação Médica da Hungria. Também devido às dificuldades provenientes da situação política na Hungria, Ferenczi se vê compelido a renunciar ao cargo recém-conquistado de presidente da IPA, e opta por passar seus deveres a Ernst Jones (Harmatta, 2018).
Esse período de dificuldades, ainda assim, não impede que Ferenczi continue sua prática psicanalítica. O autor recusa-se a imigrar para outro país, como Freud lhe havia sugerido fazer (Muñoz & Correia, 2022). Ele também mantém seu consultório particular, ainda que cobrando preços mais baixos de seus pacientes devido à crise financeira na Hungria (Brabant et al., 1996). Dessa forma, ele continua desenvolvendo sua técnica e investigando novas questões teóricas.
Considerações finais
As formulações iniciais de Ferenczi sobre o trauma e as neuroses de guerra foram concebidas em meio a um contexto histórico ímpar, que teve repercussão significativa na teoria e na prática psicanalítica. Para investigar essa classe de neuroses e suas consequências psíquicas, Ferenczi dispunha de sua experiência clínica no atendimento de soldados traumatizados, das discussões teóricas correntes e de um diálogo constante com Freud e seus pares. Esses pontos, pensados em conjunto, formam os eixos essenciais do processo de formação das ideias de Ferenczi sobre as neuroses de guerra.
Em seu caráter teórico, ele aborda tópicos como a dimensão econômica do trauma, a relação do sujeito com uma realidade devastadora, a dificuldade de resolução dos afetos sem representação, a repetição, a regressão e o poder atrativo das primeiras vivências infantis, além da relação deste com os processos de estruturação e desestruturação psíquica. A partir de um diálogo direto com as bases da metapsicologia e da psicopatologia freudianas daquele momento, Ferenczi enfatiza que a exclusão de um trauma da consciência não impede que o corpo se lembre do ocorrido à sua maneira, e os resquícios dessa experiência se manifestam em paralisias, sonhos e repetições. Os principais avanços de Ferenczi em sua concepção metapsicológica do funcionamento psíquico, alcançados nesse momento, são: a repetição enquanto experiência, a reafirmação da dimensão atrativa das vivências onipotentes primordiais e a prefiguração da ideia de um sistema mnêmico do eu. A recepção dessas ideias pelo meio psicanalítico contemporâneo foi consideravelmente favorável, e marcou um cenário diametralmente oposto àquele que Ferenczi enfrentou na ocasião em que apresentou suas ideias finais sobre o trauma.
Acreditamos que a realização de mais pesquisas de matriz histórico conceitual pode proporcionar não apenas uma compreensão mais acurada das propostas teóricas e clínicas de Ferenczi – ou seja, leituras que não as ostracizem de imediato, como um eco de uma velha tendência, e nem as classifiquem como grandes inovações à parte de seu contexto –, assim como podem contribuir para a identificação mais precisa de seu lugar na história do movimento e das ideias psicanalíticas. Esperamos que, com o presente artigo, tenhamos contribuído para elucidar parte desse caminho a ser percorrido.
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João Alves Maciel Neto
Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com período como doutorando visitante na Universitá degli Studi di Cagliari (UniCa). Membro do GT “Filosofia e Psicanálise” da ANPOF. Realiza pesquisas sobre a obra de Sándor Ferenczi.
Fátima Caropreso
Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora visitante na Universidade de Essex. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPQ –nível 2.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] Ferenczi, por vezes, utiliza “neuroses traumáticas” e “neuroses de guerra” como sinônimos. A diferença dessas classes está na causa do trauma. As neuroses traumáticas englobam outros fatores, como acidentes ferroviários, enquanto as neuroses de guerra consistem em neuroses traumáticas causadas por fatores relativos à guerra.
[2] Traduzido como Dois tipos de neurose de guerra (histeria) na primeira tradução para o português (Ferenczi, 1916/2011) e como Sobre os dois tipos de histeria de guerra na segunda (Ferenczi, 1916/2023).
[3] Câmara e Herzog (2021) esclarecem que Freud (1950[1985]/2003) apresentara algo semelhante no Projeto de uma psicologia. Freud argumenta que o sistema psi também armazenaria traços mnêmicos de ações motoras deflagradas, e novas ações corporais criariam imagens de movimento que futuramente poderiam ser repetidas. Para uma análise mais detalhada das bases freudianas utilizadas por Ferenczi, consultar o artigo desses autores.
[4] Essas considerações referem-se a algumas hipóteses sobre a filogênese que Ferenczi traz.
[5] Internationale Zeitschrift für Ärztliche Psychoanalyse, principal periódico de psicanálise naquele momento.