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A consciência e a vida no limite da tragédia: Considerações nietzschianas acerca da disposição afirmativa

Consciousness and life on the bound of tragedy. Nietzschean considerations about the affirmative disposition

Adilson Felicio Feiler

0000-0001-7352-927X

feilersj@yahoo.com.br

FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

Recebido: 20/03/2025

Received: 20/03/2025

Aprovado:24/03/2025

Approved: 24/03/2025

Publicado: 31/03/2025

Published: 31/03/2025

Resumo

O pensamento nietzschiano se propõe, em suas máximas e sentenças, desconstruir tudo o que o monumento da razão tem edificado sob a forma de consciência. Por essa razão, diante das situações dramáticas que se apresentam, não é o caso de se conscientizar sobre elas, mas antes as experienciar. A consciência, ao interpor o exercício da razão, falsifica o fato, ao passo que a vivência acolhe o que neste se apresenta de mais amplo e genuíno. Somente para além do exercício da consciência que o filósofo alemão compreende ser possível o encarar da tragédia, pois não se pensa nela, mas simplesmente a vive. E é pela vivência e não ciência do elemento trágico que Nietzsche aponta um caminho possível de afirmação da vida. Este projeto pode ser realizado na medida em que a vida é resgatada em sua dimensão integral e primigênia, sem o influxo de elementos que a ela não pertencem. E um caminho imediato à vida é o da experiência dela, para além de tudo o que se fizer em termos de operação científica. O presente trabalho se propõe mostrar que quando se estabelece qualquer esforço no intuito de se fazer ciência sobre algo se está operando um corte no exercício de se direcionar para a vida, pois se antepõe elementos que não permitem com que ela se apresente como é em si mesma, em seu acontecer, para interpor mecanismos que imiscuem a sua realidade própria da vida. O abandono da experiência mais íntima da realidade em detrimento de seu aspecto formal periférico faz com que toda a vida e ao que dela faz parte se relegue ao plano do irrisório. Toda a teorização sobre a vida nada mais é senão a sua falsificação, que é a própria consciência, como lentes que se apresentam diante da realidade.

Palavras-chave: Nietzsche; consciência; tragédia; vida; afirmação.

Abstract

Nietzsche's thought proposes, in its maxims and sentences, to deconstruct everything that the monument of reason has built in the form of consciousness. For this reason, faced with the dramatic situations that arise, it is not a case of becoming aware of them, but rather experiencing. Conscience, by interposing the exercise of reason, falsifies the fact, while experience embraces what appears to be broader and more genuine in it. Only beyond the exercise of conscience does the German philosopher understand that it is possible to face tragedy, as one does not think about it, but simply lives it. And it is through the experience and not awareness of the tragic element that Nietzsche points out a possible path to affirm life. This project can be carried out to the extent that life can be rescued in its integral and original dimension, without the influx of elements that do not belong to it. And an immediate path to life is that of its experience, beyond everything that is done in terms of its scientific operation. This work aims to show that when any effort is made with the intention of becoming aware of something, there is a cut in the exercise of directing oneself towards life, as elements are put in front of it that do not allow it to present itself as it is in itself, in its happening, to interpose mechanisms that interfere with their own reality of life. The abandonment of the most intimate experience of reality to the detriment of its peripheral formal aspect causes all of life and what is part of it to be relegated to the plane of the derisory. All theorizing about life is nothing more than its falsification, which is consciousness itself, like lenses that appear before reality.

Keywords: Nietzsche; conscience; tragedy; life; affirmation.

Introdução

O exercício filosófico nietzscheano inscreve-se num registro que excede o esforço de esclarecer, decodificar e destrinchar, para, antes, apresentar-se como um movimento de desconstrução e dissolução de todos os constructos interpostos pela razão. No entanto, Nietzsche lança-se a este empreendimento não exatamente pelo mero exercício de desconstruir, todavia estabelecer, propor um caminho que conduza a superação de toda uma era que se firmou: o niilismo. Por essa razão, mais do simplesmente considerar Nietzsche como o filósofo iconoclasta e proclamador da derrocada dos valores morais, a que se perceber em sua filosofia um vetor que aposte em um objetivo: o da vida. Neste sentido, o filósofo elege os meios que auxiliam a que tal objetivo possa cumprir-se, a saber, que a vida se afirme em meio a cultura que, em si mesma, é niilista.

Este projeto pode ser realizado na medida em que a vida possa ser resgatada em sua dimensão integral e primigênia, sem o influxo de elementos que a ela não pertencem. E um caminho imediato à vida é o da experiência dela, para além de tudo o que se fizer em termos de operação científica. Quando se estabelece qualquer esforço no intuito de se fazer ciência sobre algo, opera-se um corte no exercício de se direcionar para a vida, pois se antepõe elementos que não permitem com que se apresente como é em si mesma, em seu acontecer, para interpor mecanismos que imiscuem a sua realidade própria da vida. Assim, quando, por exemplo, depara-se com determinadas imagens atribui-se um nome. Ao proceder desse modo se esconde a realidade mais imediata sob a capa de signos linguísticos que não correspondem a realidade própria do objeto a que se está referindo. Todo este esforço não é outro senão o de nomear, por exemplo, o que acaba resultando em um movimento de distanciamento e perda daquelas características que fazem de uma coisa ser ela. A consciência é este movimento. Por isso, o filósofo a considera como o produto do desenvolvimento humano menos acabado, ou seja, a expressão que afasta o humano daquilo que é para assumir uma espécie de falsificação.

O abandono da experiência mais íntima da realidade em detrimento de seu aspecto formal periférico faz com que toda a vida e ao que dela faz parte relegue-se ao plano do irrisório. Toda a teorização sobre a vida nada mais é senão a sua falsificação. Pois a vida se manifesta a cada instante em sua plenitude, sendo, portanto, instantes que assim como se apresentam com toda a sua vivacidade, também logo se dissolvem, num processo constante. A consciência é como lentes que se apresentam diante da realidade, impedindo de enxergá-la tal como se apresenta. No momento em que se depara com esta mesma realidade, a visão que se tem não é outra, senão a de um embotamento da mesma, causado por artifícios que se lhe antepõe, impedindo assim o encontro com a sua realidade tal qual ela é em si mesma. Mediante a consciência, todo o movimento que se opera vem atrasado, uma vez que não atinge a realidade nela mesma e sim em seus efeitos. Por essa razão, por consciência se compreende tudo o que há de mais inacabado e incongruente relativamente ao desenvolvimento orgânico. Deste desenvolvimento o que resta é somente o seu efeito, como fruto apodrecido de uma árvore, o que, por isso, torna-se incapaz de ser usufruído e sim caldado aos pés. Na medida em que se persistir em acessar o mundo pela consciência, o que se alcança é a sua falsificação e engano. Como seria, por exemplo, o fato de nomear a realidade da qual se depara como verde, dura ou fria. Ora, para evocar tais conclusões, deve se passar necessariamente antes pela faculdade do intelecto que associa uma dada realidade com algo já pré-determinado, sendo nada senão engano.

Assim, da mesma forma a própria busca da origem dos acontecimentos e situações está, na maioria das vezes, associada a um porquê de algo ser da forma que é. No mesmo instante em que se busca dar alguma explicação a algo ser da forma que é, acessa-se a consciência. Desse modo, todo o conjunto de vivências experienciado passa pelo crivo interpretativo, ou seja, submete-se à explicação de algo ser da forma que é, fazendo com que se perca em termos de acesso a experiência pura, desvinculada dos mecanismos da razão, que, a todo o instante, insurge-se a impor seus próprios critérios. Tais critérios ao se imporem sobre a vida falsificam-na, pois não permitem com que se acesse a esta na sua fonte primigénia e sim mediante segmentos que a distanciam. Logo, a consciência se desenha como um estado espiritual e psíquico, caracterizado como um estado doentio. Por este estado, a ciência e a consciência é que determinam todo o transcorrer das várias experiências, fazendo com que estas percam aquilo que, basicamente, a caracterizam: a inocência. Pela inocência é que a grande saúde pode promover o avanço do ponteiro da vida, fazendo a tragédia começar. Pelo captar do inocente vir a ser de todas as coisas, naquilo que este manifesta de mais genuíno e singular, sem a interposição de elementos que interrompam o seu expressar direto é que a vida pode ser afirmada. Pois a vida é um fato, e como tal, precisa ser experienciada, ou seja, vivida, e não traduzida em mecanismos explicativos que lhe deem suporte, mediante um pensar consciente. A consciência exerce sobre a vida uma espécie de afastamento daquilo que poderia traduzir o que há de mais singular e genuíno. Toma-se assim a causa pelos efeitos, deixando de lado o que é o essencial para permanecer com os acidentes, o que é fundamental para permanecer com o periférico, deixa-se a afirmação para permanecer com a negação e a falsificação.

A proposta que segue se configura em três movimentos. Num primeiro momento reconstrói-se o percurso que a consciência leva para se constituir enquanto tal. Para tanto, os processos conscientes são submetidos a um procedimento genealógico, partindo de um desenvolvimento biológico pelo qual esta percorre em sua constituição. Este primeiro movimento é intitulado “O desenvolvimento do processo inacabado da consciência.” Na sequência, é apresentado, como resultado do inacabamento do processo da consciência, a sua interface com a vida. Desse modo, constata-se em que medida a consciência traduz a vida naquilo que esta apresenta de mais genuíno e singular. Intitula-se este segundo movimento de: “A interpretação e tradução da vida pela consciência.” Para, finalmente, no terceiro e último movimento mostrar a distância que se apresenta entre consciência e vida marcada pelo trágico. Neste sentido, se mostra de que modo entre consciência e vida o elemento trágico pode assumir a função de limite para que o aspecto afirmativo da vida se mostre com todo a sua força. Intitula-se este terceiro movimento de “A tragédia como limite estrutural entre consciência e vida.” Espera-se, com este trabalho, trazer maiores esclarecimentos, com base nas reflexões nietzschianas, acerca das possíveis relações entre consciência, vida e tragédia. Neste intuito, espera-se aprofundar os vários aspectos ligados à crítica nietzschiana à consciência e a todos os processos a ela ligados.

O desenvolvimento do processo inacabado da consciência

Dado que a concepção filosófica nietzschiana é baseada em uma concepção orgânica, tudo o que se apresenta em oposição a esta dimensão é considerado baixo, pequeno e degenerado. É, justamente, neste contexto que Nietzsche se refere à razão e ao que a esta se relaciona. A razão, tal como ele mesmo já menciona ao princípio de seu escrito de juventude: Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, foi o momento mais mentiroso da história do mundo, contudo, foi apenas um instante.[1] Estas menções de Nietzsche nestas duas passagens de seus escritos revelam o quanto o filósofo tem na razão a maior parte de suas críticas. O filósofo, por elas, apresenta o princípio de todos os problemas pelos quais atravessa a cultura. O problema da falsificação e negação de tudo o que poderia constituir de grande, forte e elevado para a cultura. Ora, se o orgânico vem perfazendo um lento e longo processo de desenvolvimento, este tem na razão e na consciência um entrave para o seu acabamento[2], resultando, por isso, em apequenamento, fraqueza e incompletude. “– A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte” (Nietzsche, 1999, FW/GC, I, 11, KSA, 3.382)[3]. Aquilo que a cultura atribui como valor mais alto, o que seria a razão e a consciência, como o ápice de um desenvolvimento, acaba sendo nada, a não ser a sua derrocada e consequente decadência. O psicólogo francês Théodule Robot, de quem Nietzsche se inspirou, compreende que viver é assimilar, portanto “[...] é, por essência, um fato biológico; por acidente, um fato psicológico” (Ribot, 188, p. 01,). A memória é, neste registro, uma das condições fundamentais da vida, e que, também, “[...] depende diretamente da nutrição” (Ribot, 1881, p. 51,). Assim, se a nutrição é base fundamental da vida, então a sua conservação e reprodução são seus processos essenciais.[4] Nesta mesma linha, também destaca-se o pensamento de Alfred Victor Espinas, para quem a vida se constitui como um organismo de corpos vivos mediante uma troca recíproca de atos psíquicos e uma consciência individual viva, um organismo de ideias.[5] Contudo, é fundamental compreender que Ribot e Espinas eram pensadores ligados àquela discussão francesa que envolvia as psicologias científica e metafísica. E que, por isso, para a leitura biológica de Nietzsche aquelas abordagens esbaravam no problema da consciência, como um entrave para se experimentar a vida em sua imediatidade singular.

A consciência conduz a toda sorte de erros que se expressam na impossibilidade de acessar o fato, o instante que se experiencia, senão apenas efeitos, rasgos falaciosos enganosos do que se atribui como sendo verdadeiro. Ao interpor-se entre o fato e o observador, a consciência age como uma lente a fazer enxergar a realidade de acordo com o que esta determina. Com isso, troca-se o contato direto e experiencial com o fato por uma expressão enganosa que dele faz a consciência e seus processos falaciosos. Ao mesmo tempo em que pelos processos da consciência alcança-se fantasia, esta se reveste de uma tirania a se exercer contra tudo o que aponta para a experienciar e vivenciar a vida em sua plenitude e integridade. O aspecto tirano da consciência depreende-se de sua arrogância por se julgar obter a verdade, como o âmago de tudo o que é de mais alto e venerável na face da terra. O grande e maior perigo disto reside num sentimento de comodismo resignado, pois o processo de melhoramento acaba estagnando por se acreditar estar no auge e suprassumo de tudo o que há de mais forte e elevado. Com isso, o processo de desenvolvimento se torna inacabado, uma vez que já não há mais nenhum empenho em lançar-se à aventura do melhoramento. Estanca-se o desenvolvimento biológico pela interversão de processos contrários a tudo o que pode fomentar o desejo e a vontade de superação. Wilson Antonio Frezzatti propõe concentrar a atenção em autores que fazem parte da segunda metade do século XIX, “[...] contemporânea ao desenvolvimento da doutrina da vontade de potência. É necessário, para entender o papel das leituras biológicas de Nietzsche, entender quais as questões principais acerca da vida na biologia daquele período” (Frezzatti, 2018, p. 33).

Por ser última, a consciência, dentro do processo de desenvolvimento orgânico evoca algo que dela se depreende: o último homem. É este a quem Nietzsche opõe o além do homem, aquele capaz de interpor superação, frente ao processo degenerativo que rebaixa e apequena. Desse modo, consciência e último homem se associam a uma significação que aponta para o niilismo em sua versão passiva. Se para a consciência teceram-se tantos elogios no sentido de considerá-la como o maior dos avanços alcançados pela civilização, então não resta nada mais senão a estagnação diante do maior dos eventos então acontecidos. A consequência lógica de um tal evento é o do cansaço e resignação, próprio daqueles que se consideram satisfeitos diante do fato de que se realizou tudo o que poderia ser realizado, restando nada mais. Por essa razão, já não há mais motivo por que lutar, já que nada mais pode ser agregado ao que outrora se conquistou. A luta é, pois, um requisito fundamental para que a vida seja afirmada, como recorda o embriologista alemão Willhem Roux: “A luta das partes do organismo” (Roux, 1881, p. 01). A atuação dessa luta se dá como “Adaptação funcional” (Roux, 1881, p. 01). A luta, dentro deste contexto que aponta Roux, atua para além de um princípio meramente mecânico[6] de seleção natural para adaptação funcional das partes do organismo, também como um princípio finalista, portanto metafísica, que é “[...] a capacidade de autoformação do necessário” (Roux, 1881, p. 217). As lutas das partes seguem a adaptação às modificações dos acontecimentos vitais.

A luta tem, por essa razão, a vida como a sua meta. Não havendo nada mais o que fazer, resta somente permanecer a cogitar sobre tudo o que se deve interessar, desejar e evitar. E, diante de inúmeras situações, o que a consciência conduz a evitar, destaca-se o isolamento e a tudo o que aponta para o indivíduo, como se fosse algo perigoso. Ao invés disso, a consciência provoca a desejar o rebanho, a viver em sociedade. “O argumento do isolamento. – A repreensão da consciência. [...] – Assim fala em nós o instinto de rebanho” (Nietzsche, 1999, FW/GC, I, 50, KSA, 3.415). A consciência possui o ímpeto de provocar mal-estar naqueles que se exercem para cultivar o isolamento como busca do cuidado de si.

Contra esta tendência ao encontro de si mesmo se exerce o movimento provocado pela consciência de fuga de si mesmo, de evadir-se de si mesmo, tendo tudo o que se relaciona ao encontro consigo mesmo com algo mal, a ser, por isso, severamente reprimido. Diante de tal situação que coibi tudo o que promove isolamento, o filósofo alemão sugere a escravidão, que emerge da própria cultura gregária ao incitar a vida em rebanho. Tudo o que leva a viver o indivíduo, compreendido em sua dimensão singular, é considerado um atentado a vida da coletividade. O indivíduo[7] singular passa, de acordo com esta concepção, a ser considerado o grande inimigo a ser severamente combatido. E é isto justamente o que fala o instinto escravo: combatei o indivíduo para que o rebanho possa ser salvo. “Onde há escravidão, os indivíduos são em número pequeno, e têm contra si o instinto de rebanho e a consciência” (Nietzsche, 1999, FW/GC, III,149, KSA, 3.494). Pela consciência o instinto de rebanho é inoculado, como veneno contra o indivíduo. A consciência gera, mantém e alimenta o sentimento de que jamais se pode estar consigo mesmo, o que é considerado como pecado contra o rebanho. E pecar contra o rebanho é pecar contra o seu Pastor, o responsável por assegurar a sua vida e bem-estar, mediante o tornar aquilo que cada um é: “O que diz sua consciência? – ‘Torne-se aquilo que você é’” (Nietzsche, 1999, FW/GC, III, 270, KSA, 3.268). O tronar-se o que se é nada mais pode ser considerado senão tornar-se escravo, e escravo não de si mesmo e sim do rebanho. Ao afastar a cada um de si mesmo, a consciência aproxima ao rebanho, o que repercute em ausência do espírito, já que este somente pode ser cultivado na base do auto cultivo.

Sendo a tática da consciência alimentar a culpa (Schuldbewusstsein), como aspecto que marca de maneira indelével a vida, o viver individual faz com que se pregue à memória o elemento da consciência de que não se deve esquecer do fato de que se sacrificou o rebanho em prol de um viver individual. Desse modo, a consciência remonta a história de um erro que foi encetado pelos sentimentos morais, de que tudo foi pautado pela moral, sem que nada pudesse escapar ao seu domínio. “Com isso chegamos ao conhecimento de que a história dos sentimentos morais é a história de um erro, o erro da responsabilidade, que se baseia no erro do livre-arbítrio [...] desde que certas ações acarretam mal-estar (‘consciência de culpa’)” (Nietzsche, 1999, MAI/HHI, 39, KSA, 2.63). O erro apontado por Nietzsche nesta história dos sentimentos morais reside, sobretudo, em realizar ciência sobre a culpa que se depreende do fato de se ter abandonado o rebanho em prol do indivíduo. Com isso se admite que se é possível fazer ciência desta situação de mal-estar, criando assim, mais uma vez, um fascínio pela razão que toma como pressuposto a realidade de que há um ser sobre o qual se constrói todo um arcabouço teórico. Não que este constructo da razão auxilie a afirmar a vida, “[...] mas na verdade se refere ao esse, que é o ato de uma vontade livre, a causa fundamental da existência de um indivíduo; o homem se torna o que ele quer ser, seu querer precede sua existência. – Aí o erro de raciocínio está em, partindo do fato do mal-estar, inferir a justificação, a admissibilidade racional desse mal-estar” (Nietzsche, 1999, MAI/HHI, 39, KSA, 2.63-4). A racionalização do mal-estar, ou seja, o fazer ciência de uma dada condição humana torna tal situação distante de alcance humano para o controlar. Neste sentido, o homem já não se torna o que ele quer ser, tendo em vista o que a razão assim o estabelece, sendo a vontade não verdadeiramente livre, porém cerceada pelos domínios da razão.

A vontade[8] que deseja impele o exercício da iniciativa sobre a vida em todos os seus domínios, de modo a se experenciar a vida em sua plenitude a cada instante, a tomar contato com esta de maneira direta, e não de maneira arbitrária e até falsificada. Aquele exercício diligente de uma vontade que quer abre espaço a consciência. “A diligência e a consciência são frequentemente antagonistas, porque a diligência quer colher os frutos ainda verdes da árvore, enquanto a consciência os deixa muito longamente, até caírem e se destroçarem” (Nietzsche, 1999, MAI/HHI, 39, KSA, 2.331). O exercício voluntarista de uma vontade que quer torna-se preferível ao movimento consciente, que tem contato com o fato somente mediante expedientes tardios e embotados. Todo este embotamento dos fatos e situações, com os quais se depara, dá-se, justamente, por não se vivenciá-los naquilo que estes têm de mais original e singular. A vivência de um fato não pode ser colocada como consequência de uma consciência deste; caso contrário, acaba-se fazendo da consciência uma questão de vivência, ou seja, reduz-se a vida à consciência que dele se tem. Com isso, a vida passa a ser considerada algo destituído de suas qualidades fundamentais, a saber, a sua originalidade e não uma cópia superficial, a singularidade e não um conjunto massificado anônimo, a capacidade de superação e não algo estático e submisso.

Ao passar pelo crivo da consciência, a vida não é capaz de alcançar nenhum nível de acabamento que lhe dê consistência e solidez, senão apenas rasgos resultantes de um processo inacabado. Disto resulta uma vida encarrada como incompletude e negação. Ora, se a vida é o alvo e a meta de toda o pensamento de Nietzsche, tudo o que a ela se opõe é considerado obstáculo ao processo de seu desenvolvimento, melhoramento e acabamento. O filósofo de Naumburg busca na reflexão científica elementos que iluminem este processo de configuração de uma vida afirmada. Para tanto, detecta em meio a este processo o que nele se apresenta como ameaça e obstáculo, como visto pelas citações acima de Humano, demasiado humano e a Gaia ciência, ambas obras deste período denominado positivismo cético. E é na consciência que o filósofo constata a ameaça aos desdobramentos da vida. Consciência, como um processo da veiculação da razão ao desenvolvimento biológico, orgânico da vida. Os processos capitaneados pela consciência calcam aos pés tudo o que resulta em sentidos, compreendidos em sua dimensão orgânica, resultando, por isso, em destituição de toda a base vital. Para que a vida possa ser afirmada nada pode se lhe atravessar no sentido de interpor qualquer tipo de obstáculo a sua manifestação. Entende-se por manifestação vital, nada senão a própria experiência, ou ainda, a vivência que se apresenta de maneira o mais direta possível, organicamente falando, sem nenhum tipo de tradução ou interpretação, como soe acontecer com a consciência.

A interpretação e tradução da vida pela consciência

Se a consciência acabou reduzindo toda a vida a processos circunscritos pelo registro da razão, então, o desafio é o de realizar o processo contrário, o de reduzir a consciência à vida. Ou seja, tornar todos os processos mediados pela razão um canal direto que passe pela vivência, como experiência eminentemente vital, sem as lentes ofuscantes da consciência. Com respeito a crítica nietzschiana da consciência, Tereza Cristina Calomeni sublinha “[...] o caráter ilusório e ficcional” (Calomeni, 2011, p. 228) que este mecanismo exerce sobre a vida.[9] Por essa razão, questiona-se em que medida uma vivência pode ser interpretada, tende em vista a consciência? E, em assim se procedendo, em que medida esta poderia se realizar sem prejuízo da integridade da vida, em sua genuína singularidade? O processo de interpretar não estaria operando interpolações e, até mesmo, falsificações naquilo que se compreende a vida em sua originalidade e singularidade? Desse modo, para ser um intérprete de alguma vivência é preciso desvencilhar-se de um de seus mecanismos: a razão. Ora, se a vida é a expressão mais forte do mundo orgânico, e este é movido pelos sentidos, pulsões, instintos e fantasias, então nada pode se antepor o acesso à fonte destas experiências orgânicas, sob pena de falsificar a própria vida com as experiências que seguem-na.

Uma das formas de interpretação da vivência que Nietzsche apresenta é aquela que falta aos fundadores de religiões que é a honestidade com que se tem realizado suas vivências. “Há uma honestidade que sempre faltou aos fundadores de religiões e pessoas desse tipo: – eles nunca fizeram de suas vivências uma questão de consciência para o conhecimento” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 319, KSA, 3.550-1). A princípio, ao ler esta passagem pode-se entender que o filósofo esteja incentivando antepor às experiências religiosas a consciência, quando, é, antes, exatamente o contrário. O que Nietzsche está apontando é a falta de clarividência que se tem de se estar fazendo da experiência religiosa uma questão de consciência. No fundo, o que o filósofo quer é que se caia na real situação daquilo que se está realizando, para que, desse modo, se possa avaliar em que medida tal experiência reflete verdadeiramente os sentidos.[10] “O que foi que vivi realmente? Que sucedeu então em mim e à minha volta? Minha razão estava suficientemente clara? Minha vontade estava alerta para os enganos dos sentidos e foi valorosa ao defender-se das fantasias?” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 319, KSA, 3.551). Para que uma experiência goze de toda a sua vitalidade é preciso que se abra a um processo de honradez e probidade consigo mesmo, sem criar nenhum tipo de subterfúgio que venha a esconder a sua real vivência, sob pena de se esconder em uma fantasia e engano sobre si mesmo. Por essa razão, mais do que estar em contra a razão é estar em contra a processo de realizar experiência consigo mesmo. E esta última ultrapassa a consciência. O submeter-se a si mesmo a experiência equivale a: “Querermos ser nossos experimentos e nossas cobaias” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 319, KSA, 3.550-1). Ou seja, tais experimentos conduzem a realidade do si mesmo, fazendo tudo convergir a experiência o mais singular possível, sem a intrusão de elementos estranhos a ela. E na medida em que supera todos os elementos de estranhamento caminha-se na direção da honestidade consigo mesmo. Ser honesto consigo mesmo é dar ouvidos à voz de si mesmo e não à voz daquilo que se antepõe a si mesmo, a saber: a voz da consciência. Este processo se dá a partir do fato de se concluir algo como se definiu e julgou como certo, como estando dentro dos padrões que se esperava. Ou seja, neste processo a consciência é que definiu o ato como certo, portanto, trata-se de um ato moral. “Então: quando o homem julga ‘Isso está certo’, depois conclui ‘Por isso tem de acontecer’, e faz o que assim reconheceu como certo e definiu como necessário – então a essência do seu ato é moral!” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 335, KSA, 3.560-1). É a consciência o caminho, mediante o qual é indicada a moral.[11] E, sendo a moral a responsável pela decadência que tem entrado a cultura, há que se estabelecer um embate frente a ela no sentido de não considerar a cultura delineada pela moral. Mediante a consciência coloca-se o “dever” como a meta a ser alcançada. Ora, o dever se eleva como uma peça estranha a se coibir toda e qualquer manifestação humana. Por isso, é necessário detectar em toda a manifestação experiencial humana o que contribui para fomentar a expressão daquilo que traduz, com mais força, os aspectos originais e singulares destas experiências, bem como aquilo que os inibe.

Isso está certo’ é um ato – não se poderia julgar de uma maneira moral e de um amaneira imoral? Por que você acha isso, justamente isso moral? O aspecto do “dever” traduz sempre uma realidade que se estabelece sobrepondo-se a outra, no sentido de coibi-la. Desse modo, se ativa a consciência ao apontar para a moral? – ‘Porque minha consciência me diz que é assim; a voz da consciência nunca é imoral, pois somente ela determina o que deve ser moral!’ (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 335, KSA, 3.561)

Todo o “deve ser” se mostra como importação externa e estranha sobre algo que se experiencia em termos mais genuínos pelos sentidos, impulsos e afetos. “‘Isso está certo’ tem uma pré-história nos seus impulsos, inclinações, aversões, experiências e inexperiências” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 335, KSA, 3.561). Toda aquela base de certo e erado não está alicerçada sobre a consciência intelectual, todavia antes na capacidade de conscientizar-se do papel que a consciência exerce sobre a vida no sentido de afastar a vida daquilo que a caracteriza, a saber, de todo aquele conjunto de impulsos e afetos, inclinações e experiências que constituem a vida naquilo que esta tem de mais fundamental. À medida em que se dá ouvido à consciência, mas se fortalece aqueles parâmetros de certo e errado, os quais foram estabelecidos sobre uma base moral, afastando assim a vida de todo aquilo que a caracteriza enquanto fundamento instintual basilar. E, sendo a vida constituída mediante esta base, é um contrassenso estabelecer juízos universais para a caracterizar. Desse modo, tudo aquilo que se é considerado como a minha consciência, jamais pode ser considerado como a consciência: “[...] em nenhuma circunstância você chamaria mais de dever e consciência a este seu ‘dever’ e esta sua ‘consciência’” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 335, KSA, 3.562). A universalização de uma consciência, que, em si, somente pode ser considerada no singular, está, desde a sua base, fundada numa compreensão moral. Uma vez que a moral possui a tendência a universalizar tudo aquilo que de per si não tem como universalizar, sob pena de se incorrer em toda a sorte de generalizações indevidas, destituindo a vida daquilo que a caracteriza enquanto conjunto de pulsões e afetos em luta por assenhoramento. Ora, quando a consciência, baseada nesta generalização, interpreta a vida, acaba por afastá-la daquilo que a constitui.[12]

Apenas se terá capacidade de avaliar o que representa a consciência à medida em que se aprender a viver sem ela. Para tanto, o desafio é o de buscar exercer o ofício de interpretação e tradução da vida para além da consciência. “– O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tronar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.590). A má consciência de algo, seja uma ideia ou percepção sensível, faz com que desperte um sentimento do quanto teria sido melhor caso não se tivesse tal consciência. Portanto, passa-se a constatar o quanto era melhor antes de ter a consciência, em que se dispunha apenas a agir de maneira livre, sem nenhum tipo de premonição e/ou preocupação. Com isso, a vida inteira é vivida sem a necessidade de que seja refletida como através de um espelho. O acesso se dá de maneira direta à vida, pois, caso contrário, ao se utilizar de algum espelho para isso, com o embaçamento que este possui pode traduzir a vida com toda a sorte de imperfeições e irregularidades. Todos os expedientes que se exercem como meios de tradução e interpretação de uma experiência vital, sejam estes espelhos, fotografias ou outras imagens, acabam por comprometer a própria capacidade de fruição da vida em sua dimensão o mais genuína possível. Estes expedientes são, na maioria das vezes, utilizados pela necessidade que se tem de comunicar o conteúdo daquilo que se experiencia a outros. Por essa razão “[...] sob a pressão da necessidade de comunicação” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.591), a consciência para a operar uma “[...] uma rede de ligação entre as pessoas” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.591) passa a operar gregariamente. Para comunicar o conteúdo daquilo que passa internamente, em termos de experiência vital, por ser algo singular, se faz necessário o uso de artefatos que sejam de fácil absorção pelo rebanho. Ora, ao traduzir toda essa gama de experiências em palavras, gestos e outros sinais do gênero, incorre-se no perigo de deturpar a própria experiência vivida, falsificando-a.

A obrigação de se comunicar todo este conteúdo de experiências vividas é consequência de uma necessidade de expressão de tudo aquilo de que se carece a seus pares: “[...] precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de ‘consciência’” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.591). Para que pudesse exprimir tudo aquilo o que sentia, portanto saber dizer o que sentia, fez com que os mecanismos conscientes fossem ativados, e expressos em forma de comunicação.[13] Portanto, estes acabam sendo extratos linguísticos distantes daquilo que se considera a base sob a qual se assenta toda a gama de experiências vivenciais, que satisfazem, simplesmente, a necessidade de tornar compreensível o que se passa internamente ao rebanho e não com a experiência mesma, o que reflete a própria vida. Desse modo, se compromete a vida em função da satisfação do rebanho sedento por explicações e clarificações, as quais acabam sendo sombras e falsificações de tudo o que é a experiência vital interna. Toda e qualquer experiência vital interna escapa ao registro e tradução em forma de comunicação externa, “[...] pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas apenas do tomar consciência-de-si da razão) andam lado a lado” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.592). A consciência é um movimento que inclui a própria razão, mas ainda a ultrapassa. O tornar consciente vai na direção de se dar conta da própria existência a atuação da razão, ou seja, saber-se movido pela razão que atua em todo o proceder vital. E todo esse exercício de consciência de si enquanto movido pela razão foi crescendo na medida em que se foi sofrendo a necessidade de transmitir tudo isso aos outros em forma de linguagem, e, ao fazê-lo resulta em falsificação desta mesma experiência vital. Cada experiência vital é única, e em sua singularidade não pode ser jamais reproduzida por qualquer mecanismo de tradução sob pena de a deturpar e degenerar. Logo, tais experiências vitais singulares podem apenas ser classificadas em uma única ordem, aquela que se exime o todo e qualquer ordenamento, que é o fenômeno do trágico. Como experiência trágica, a vida possui uma única demanda, para além de toda o exercício consciente de interpretação e tradução, o simples atuar expresso em disposição afirmativa.

A tragédia como limite estrutural entre consciência e vida

Para que a vida possa ser afirmada com toda a sua expressão de força é preciso que toda a experiência seja vivida de modo o mais singular possível. E a vivência de uma vida pautada por tal singularidade somente é possível mediante um fruir de experiências que são vivenciadas no próprio acontecer imediato, como próprio deslindar da tragédia. O aspecto trágico da vida é justamente o que nela há de mais singular e imediato, portanto, sem a consciência de que se está vivenciando tal experiência. Por essa razão, ao despir-se de todo a qualquer resquício consciente, é possível experimentar, com toda a pureza, o aspecto trágico da vida sem nenhum tipo de explicação do porquê as coisas se apresentam da forma que são.[14] Não se gasta energia buscando inquirir o porquê do nada, apenas se acolhe e se frui do fato, em sua mais pura singularidade. E, nesta atmosfera singular, com Nietzsche, se pergunta: “[...] de onde deveria estão originar-se a tragédia? Porventura do prazer, da força, da saúde transbordante, de uma plenitude demasiado grande? (Nietzsche, 1999, GT/NT, Tentativa de autocrítica, 4, KSA, 1.16). Neste âmbito do trágico, permeado pelo prazer, pela força e pelo transbordamento da saúde “[...] a consciência é tão só um accidens [acidente] da representação, não seu atributo necessário e essencial; que, portanto, isso que denominamos consciência constitui apenas um estado de nosso mundo espiritual e psíquico (talvez um estado doentio)” (Nietzsche, 1999, FW/GC, IV, 354, KSA, 3.598). A consciência não corresponde àquilo que há de mais íntimo na vida como um todo, senão algo acessório e periférico.[15] Ou antes, é a consciência uma espécie de erro de percurso, e um erro que conduz a própria perda de si mesmo e, consequente, enfermidade e doença. Faz-se necessário, por isso, o estabelecimento de uma terapia da existência que venha a curar o que nela se tornou impossível de se viver, pela dissolução de todo o aspecto consciente nela expresso.

Tudo o que passa pelo crivo dos mecanismos da consciência torna baixo e nivelado, ou seja, tudo o que se torna consciente contribui para perder aquilo que se constitui enquanto novidade e criação, para se contentar com o que é mesmidade, enquadramento, número. No entanto, apesar de baixo e incipiente a consciência exerce um senhorio, um mando, como foi apresentando anteriormente e também como atesta Zittel: “A consciência é comparada por Nietzsche a uma autoridade soberana (Herrscher), que, no entanto, não tem qualquer ciência dos procedimentos que acontecem em seus domínios” (Zittel, 2019, p. 372). Quando se fala em consciência é necessário recordar que se refere a uma gama muito grande que a compreende, cuja classificação poderia ser a de níveis que passam do mais geral ao mais individual.[16] Por isso, a consciência poderia ser a consciência institucional, a consciência do senso comum e a consciência pessoal. A consciência institucional estaria ligada a todos aqueles fatores conscientes que constituem as instituições, por isso, neste nível de consciência há a presença de elementos altamente sistematizados que tornam a consciência algo extremamente rígido expresso em ordenamentos que se expressam em leis. A consciência ligada ao senso comum é aquela em que os mecanismos conscientes permanecem em um nível menos rigoroso que o anterior, pois os mecanismos conscientes pervadem a vida naquilo que esta apresenta em termos de sinais, ditos e situações que permeiam o dia a dia, sem a força de lei. Em seu nível pessoal, a consciência se expressa dentro do âmbito subjetivo, influenciando a sua maneira de pensar e agir enquanto sujeito, contudo, “[...] mesmo a consciência mais pessoal sucumbe à magia niveladora do ‘grande número’” (Nietzsche, 1999, FW/GC, V, 368, KSA, 3.618). Mesmo sendo uma consciência à nível subjetivo, traz a influência do rebanho, que acaba influindo na maneira de pensar e agir subjetivos, o que, por sua vez, compromete toda a sorte de possibilidades de criar e constantemente distanciar-se do rebanho. Muito embora Nietzsche traga expresso o termo “consciência”, nesta última passagem, acima citada, como Gewissen, que é o seu sentido moral se consciência, e não Bewusstsein, o sentido biológico, como se tem seguido no decorrer deste trabalho.

Mesmo em seu sentido moral, a consciência se traduz como elemento impeditivo para que a vida se manifeste em sua realidade o mais genuína possível, que não é outro senão a que vem expressa como tragédia. Sempre que os mecanismos conscientes atuam, tudo aquilo que diz respeito ao fenômeno do trágico se inibe, já que a tragédia não questiona sobre o que é certo ou errado, simplesmente atua, age, tendo como meta a afirmação de tudo o que conduz à afirmação da vida, em seus aspectos, os mais imediatos possíveis. Para experimentar este sentimento de plenitude, superando os obstáculos que se apresentam, é preciso agir, por isso, somente “Quem sobe aos montes mais altos ri das tragédias do palco da vida” (Nietzsche, 1999, Za/ZA, I, Do ler e escrever, KSA, 4.49). Esta dimensão de vivência imediata do fenômeno do trágico é acentuada pelo fato de que para agir não se pode pensar antes, racionar-se sobre o conteúdo de sua ação, sob pena de enfraquecer e até falsificar tudo aquilo que diz respeito a ação, em sua dimensão o mais íntima possível. Por isso, ao se pensar antes de agir, se faz com que tal pensamento afaste e denigre o conteúdo da ação.[17] Por essa razão, quando se age, simplesmente se age, sem a atuação de elementos que se expressem como inibidores a ela. Ora, no fenômeno trágico, tudo que existe é a ação, sendo todo o demais nada senão embotamento, mistificação, distanciamento e paralização. Mais uma vez, por isso, se acentua o aspecto fundamental que se depreende da tragédia. Nada a ela se pode antepor como substrato senão antes algo que a sucede em termos de consequência, e uma consequência, o mais inacabada possível, como se refletiu ao se tratar sobre o desenvolvimento biológico mais inacabado do organismo humano que é a consciência. Tudo o que a ela se liga se destaca como algo que quebra aquele padrão de imediatidade, fundamental para que a vida seja afirmada em sua dimensão o mais potente possível. E é nesta potência de vida que se expressa o aspecto fundamental do trágico, a sua veia dionisíaca. “O mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo o luxo de destruição, decomposição, negação” (Nietzsche, 1999, FW/GC, V, 370, KSA, 3.620). A imediatidade da tragédia não permite refletir e valorar sobre as ações a serem colocadas em prática, sob pena de se deixar de agir e estagnar a capacidade de superação. Não se julga no destruir, decompor e negar, simplesmente se acolhe com jubilosa disposição afirmativa. E, quanto mais se afirma, mais se garante em termos de capacidade de livre atuar. Pois é somente pelo livre atuar que a vida pode ser afirmada naquilo que se lhe constitui como mais primigênio, original e, por isso, grandioso.

A vida não necessita de nenhum tipo de espelho que se lhe interponha como reflexo, como seriam todos os “[...] encantamentos e embustes da consciência que se acham em toda crença poderosa” (Nietzsche, 1999, FW/GC, V, 375, KSA, 3.627). É justamente pela consciência que os moralistas têm utilizado para aprisionar a vida, fazendo com que o seu livre fruir seja impedido. A impostação de qualquer tipo de crença torna a vida refém de algo mediante o qual se sente incapaz de se realizar. Um dos mecanismos poderosos que se tem disseminado pela consciência é a culpa. Mediante a consciência de culpa se é destituído de si mesmo, pois um outro passa a exercer domínio, no sentido de tornar escravo e refém daquele que o raptou.

O sentir-se culpado, a consciência de culpa alimenta o poder exercido sobre a vítima no sentido de a tornar incapaz de se desvencilhar de tal cadeia. Se vive literalmente em função daquele que exerce domínio, imputando submissão e obediência. Ao alimentar uma crença desta natureza moral, experimenta-se segurança firme e inabalável em algo mediante o qual já não se tem mais como viver sem o que, consequentemente faz irromper um sentimento de incapacidade de agir na direção da superação. Ora, se a tragédia consiste em acolher a fato que se mostra de maneira a mais nua e crua possível, como totalidade, numa dimensão psico-física integral.[18]  Com isso, empenha-se toda a capacidade de superação que é a acolhida afirmativa do fato com júbilo. Então, a consciência consiste em submeter-se ao fato de maneira passiva, e, por isso, incapaz de interpor ações que se abram a superação. A consciência se apresenta como o caminho da própria falsificação de si mesmo, não se permite, mediante esta, realizar qualquer movimento que conduza a afirmação de si mesmo, senão um sentimento de perda e cansaço de si e da vida. E, mediante tais sentimentos, resta somente o revolver-se aflito e desconsolado daquele que foi capturado pelos dentes da consciência. Diante de tal quadro não se pode negar a situação de uma doença que contagia todos os membros, tornando-os impossibilitados e incapazes de agir na direção da superação. Há, por isso, um sentimento de sequer reconhecer aquilo que se é. Na situação de cansaço de si mesmo, nada resta senão apoiar-se naquilo que se apresenta como a grande aurora da existência. “Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e consciência, satisfazermo-nos com o homem atual? (Nietzsche, 1999, FW/GC, V, 382, KSA, 3.636). São, portanto, tantas as ambições que a consciência apresenta, que é praticamente impossível sequer reconhecer o fato do que é o humano, ou seja, o fato do seu ser si mesmo. Tudo o que se liga ao humano em seu estado presente passa a ser desprezado, em prol de uma promessa de ganho futuro. Tal estratagema foi, por isso, o da crença cristã de Paulo, ao propor o esquecimento e mesmo negação do corpo em função de um mundo por vir. Mundo este fundado em crenças superpotentes, mas que, distantes da realidade mundana, não possuem o alcance de assegurar ao humano as capacidades mínimas de subsistência. A tática da consciência é a de, com todos os modos possíveis, afastar o indivíduo daquilo que verdadeiramente o pudesse satisfazer para o reduzir ao estado de insatisfação consigo, em prol de um alimentar de esperanças em um mundo imaginário e distante.

Toda esta situação de descrença em si mesmo pode encontrar seu antídoto na própria reversão de tudo o que representa o futuro, a meta, o objetivo, a esperança. Não mais um alimentar de esperanças em uma crença que mantém o indivíduo escravo da consciência, mas que consiga fazer com que “[...] o destino da alma dê a volta, o ponteiro avance, a tragédia comece...” (Nietzsche, 1999, FW/GC, V, 382, KSA, 3.637). É preciso que o destino da alma, tal como pensado dentro de um mundo e uma concepção moderna, não seja aquele que se coloca como um fim a se realizar num mundo que despreza este mundo da vida, mas que seja um destino repensado em função deste mundo da vida, em cuja existência, a cada instante se torna pleno. E isto a cada minuto que marca a vida em seu eterno vir a ser, num emaranhado de relações.[19] Neste intuito, a vida pode recobrar a sua capacidade e entusiasmo em superar constantemente cada revés que se desenha no decorrer de cada epiciclo pelo qual ela atravessa. Desse modo, cada indivíduo vai perfazendo o seu eterno recomeçar, mediante a tragédia, que se apresenta num constante processo de provocar a vida a se expressar como plenitude em prol da acolhida afirmativa de tudo o que se lhe vem. Logo, vida e tragédia não podem estar dissociadas por uma determinada concepção de consciência que os separa e impõe condições, mas que ao se expressarem como um todo vivo e afirmativo, veiculem o anúncio crepuscular da modernidade.

Conclusão

O exercício da consciência põe em marcha todo um processo de distanciamento da vida, naquilo que esta apresenta de mais original e experiencial. Por isso, o resultado deste processo conduz ao próprio abandono da vida, e mesmo a sua negação. E, quando a vida é negada, o resultado não se deixa esperar, a saber, a decadência cultural que se expressa no enfraquecimento da própria fonte de onde emana a vida: a força. A consciência atua como uma espécie de lente que se interpõe entre a experiência em si mesma e o indivíduo que a experimenta. Por isso, a experiência que o indivíduo realiza não toca a vida em sua fonte primigênia e sim naquilo que é filtrado pelas lentes da consciência. E como a consciência tem, em sua lente, um composto que é formado pela moral gregária, que convenciona previamente tudo o que cabe ser lido e interpretado, bem como a forma como tais processos devem se dar, a experiência que se realiza acaba sendo uma falsificação de tudo aquilo ao qual se pretende. Neste sentido, ao invés de uma experiência direta, acaba-se optando pautar a vida por um reflexo dessa, e um reflexo extremamente distante de sua fonte primigênia.

No decorrer destas páginas, foi apresentado, mediante um movimento triádico, o próprio percurso que percorre a consciência, desde o de sua inacabamento processual biológico, passando por como a vida é por esta mesma consciência traduzida e interpretada, para, finalmente, mostrar como a consciência estabelece um limite estrutural que impede com que se exprima a concepção mais plástica da vida, a tragédia. Mediante este percurso, foi possível obter algumas respostas no que tange aos mecanismos interpostos pela consciência, em suas mais diversas modalidades e expressões. A consciência trai aquilo que consiste o ponto mais básico da existência, o de viver a vida no que esta apresenta de mais fisiologicamente presente, enquanto pulsões e instintos em constante luta e tensão. Pois, em todo o seu esforço por enquadrar e padronizar, a consciência filtra a paralisa todo e qualquer movimento que se direcione para fora, no sentido de expressão de maximização de tudo que representa o orgânico, como processo de constante destruição e criação. Pois é em meio a este processo de destruir para criar que a vida pode se exprimir, com toda a sua força, não em imagens dela falsificados, mas em processos orgânicos.

Como umas das etapas do desenvolvimento orgânico, também a consciência tem espaço. Contudo, trata-se de uma última etapa, e, por isso, a menos significativa, porque não consegue traduzir o que é a vida, senão em rasgos muito distantes e alquebrados. Logo, por essa razão, é também apresentado como o processo mais inacabado, ou seja, o processo mais frágil e inepto para caracterizar a vida. A consciência, neste sentido, atua como uma espécie de dissolução de tudo aquilo que representam os esforços resultantes do desenvolvimento biológico. Ora, se o desenvolvimento orgânico foi perfazendo um processo de gradativo aumento e potencialização, então, o atuar da consciência representa uma interrupção neste processo. Com esta interrupção do processo, o experienciar da vida sofre uma quebra, pois se deixa de contar com um contato direto com tudo o que representa o orgânico, para ficar com aquilo que representa as interpolações da razão, a saber, com todo um mundo fictício, distante da vida e do que ela representa. À consciência se refere, por isso, tudo aquilo que há de mais frágil e inacabado. Ela não consegue atingir o âmago do que verdadeiramente toca os processos vitais, mas apenas na sua superfície periférica. Por essa razão, pelo exercício da consciência não se pode traduzir a vida, sob pena de pôr-se na direção contrária a ela, senão apenas o que na vida representa de mais apurado e incipiente.

A vida, traduzida e interpretada pela consciência, segue como resultado a sua negação. A negação de tudo aquilo que lhe é mais íntimo, a saber, os processos orgânicos que se expressam em pulsões, instintos e afetos. A tradução e interpretação da vida mediante a consciência segue um padrão lógico e racional que a enquadra, enrijece e cristaliza em ordenamentos morais prescritivos de tudo que se deve fazer. Por isso, a consciência, ao invés de viabilizar a experiência de intimidade da vida, simplesmente prescreve um ‘dever ser.’ Dever este que vem alinhado ao que se determina previamente pela massa do rebanho. A consciência não leva em conta tudo o que acontece em termos de uma experiência vital, mas, antes, o que se apresenta em termos de tradução e interpretação decodificados pela consciência, que nada mais é senão o resultado do exercício da razão. É um processo de fazer ciência de toda e qualquer experiência vital, marcada pelo que há de mais íntimo e genuíno. Neste sentido, a questão que se coloca, diante deste processo, é a de em que medida o resultado deste processo de tradução e interpretação pode reverberar em fonte de expressão daquilo que é verdadeiramente experimentado em termos vitais. E uma experiência simplesmente se dá, ocorre, sem que se interponha nenhum tipo de processos que se lhe acompanhem, sob pena de os cercearem.

Eis, portanto, o que significa a tragédia para a vida, um fato que simplesmente se dá, ocorre, diante do qual não há como estabelecer nenhum tipo de ciência ou mesmo previsão. Tudo ocorre da maneira o mais inusitada possível, e, por essa razão, o que resta é apenas vivenciá-la de modo a experienciar naquilo que possui de mais singular. O fenômeno do trágico representa, portanto, o que há de mais forte e, ao mesmo tempo, mais especificamente vital, no sentido de proporcionar um mergulho no campo da experiência. Como se trata de uma experiência singular, é algo irrepetível, que se dá no presente instante da vida e de maneira plena. E diante desta manifestação em sua plenitude, não há como dela interpor nenhuma ciência, já que, ou tal ciência permanecerá limitada, ou falsificará o conteúdo que ela expressa. A tragédia é um acontecer que provoca fruição no presente instante da vida, e tal fruição se dá não mediante o fazer ciência desse acontecer, mas uma experiência que dele se realiza.

Todas as invectivas de Nietzsche acerca do fenômeno da consciência estão direcionadas ao âmbito da vida. Ou seja, o filósofo identifica em todos os aspectos que se antepõem à experiência da vida, em sua realidade imediata, como entraves a realização de uma experiência mais plena. O atuar da consciência distancia e falsifica a experiência que se pretende acerca da vida, e, ao assim agir, corrobora para o próprio desprezo e negação dela. O elemento trágico constitui, por essa razão, o veículo mais genuíno e adequado para atuar naquele espaço que se arroga a consciência. Pela experiência do trágico é possível desfrutar da vida em toda a sua realidade genuína, o mais direta possível, não apresentando nenhum porquê de que tal experiência seja desta ou daquela forma, mas simplesmente a experienciando, dela fruindo ao máximo daquilo que oferece. A singularidade dessa experiência ativa e promove a vida no seu aspecto volitivo, de, ao invés de examinar sobre a sua episteme, se a quer, a deseja, marcando assim os limites entre consciência e vida. É por essa disposição de uma singularidade experiencial, desprovida de porquês e qualquer outra explicação, que a vida pode ser afirmada. Logo, ao invés de fazer ciência sobre o fato da vida, dessa se é levado a fazer experiência, e uma experiência que toca a dimensão mais pura, imediata e orgânica, requisitos estes presentes, de modo particular, na dimensão do trágico. A vida se constitui, pois, como um fenômeno eminentemente trágico e é mediante uma disposição trágica que pode ser afirmada.

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Adilson Felicio Feiler

Possui doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, tendo sido pesquisador visitante na Georgetown University. Realizou seu Pós-Doutorado na Pontifícia Universidade católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É Professor no PPG de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), e coordenador do PPG em Filosofia da mesma instituição, atua nos seguintes temas: Nietzsche, Hegel, moral, consciência e Cristianismo. É membro da Conselho Acadêmico da Revista Studia Gilsoniana, do Comitê Científico da Manifesto Originalia: Revista de Ensaios Teológicos, Membro da equipe editorial da Revista Philosophy Study, membro do Conselho Editorial da Revista Intuitio e da London Journals Press, do GT Nietzsche da ANPOF, vice-coordenador do GT Hegel da ANPOF, da Red Iberoamericana de Estudios Nietzscheanos e do Comitê de Ética da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Vem realizando um trabalho de pesquisa em torno ao pensamento de Nietzsche há quinze anos, mediante participação em congressos nacionais e internacionais, bem como em publicações nacionais e internacionais em livros e periódicos. Se encontra em projeto a constituição de um Grupo Internacional de Estudos sobre o Pensamento de Nietzsche envolvendo o Brasil, Argentina e Chile, a fim de ir se consolidando a Rede Internacional de Pesquisa, intitulada “Nietzsche nos Pampas”.

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[1] Cf. WL/VM, 1, KSA, 1.876

[2] Theódule Ribot a este respeito considera que “[...] as lições da psicologia, unidas àquelas da consciência nos conduzem a estabelecer este problema sob uma forma muito mais ampla; que a memória, tal como o senso comum a entende e que a psicologia ordinária a descreve; longe de ser a memória toda inteira, é apenas um caso particular dela, o mais elevado e mais complexo [...] que é o último termo de uma longa evolução e como uma eflorescência que as raízes mergulham bem antes na vida orgânica” (Ribot, p. 01, 1881).

[3] Para as citações das obras de Nietzsche adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas (Br/Cr) KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em Alemão/Português: GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimentoda tragédia), MA/HH – Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra), WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral), NF/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr – Briefe Kritische Studienasgabe (Cartas), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.

[4] “Conservar e reproduzir: todo o essencial da memória está, assim, ligado às condições fundamentais da vida” (Ribot, 1881, p. 163).

[5] “Viver é, em primeiro lugar, se nutrir e se perpetuar como espécie. É a esse duplo fim que conspiram todos os fenômenos estudados até aqui” (Espinas, 1924, p. 366).

[6] O biólogo alemão faz uma leitura darwinista do processo de agregação e desagregação de matéria do filósofo pré-socrático, Empédocles de Agrigento, quem descobriu o princípio filosófico da luta entre matérias e forças contrárias de amor e ódio: ocorreria um processo de transformação e de origem de seres vivos por seleção dos agregados mais resistentes (cf. Roux, 1881, p. 1-2).

[7] A dimensão do indivíduo singular é tão importante que, inclusive, Herbert Spencer a considera como princípio da biologia, em que a gênese, a geração e a reprodução são processos particulares da multiplicação, portanto, sempre ligados ao indivíduo. Spencer, inclusive menciona um equilíbrio dinâmico que é constituído pelas relações vitais em cada indivíduo (cf. Spencer, 1864, p. 209-223).

[8] A vontade aqui se compreende não como no sentido de uma ‘teoria psicológica’, de uma um sujeito por trás da ação. Ao contrário, como recorda Scarlett Marton, o sujeito não é o executor da ação, mas o seu efeito, o que leva se abandonar também uma concepção metafísica da vontade, como o ‘em si das coisas’. A vontade é um afeto de mando, a qual não cabe escolha, mas um sentimento livre, portanto de superioridade (cf. Marton, 2016 p. 422).

[9] A ilusão e a ficção se traduzem como uma experiência da vida distante, estranha e, por isso, falsificada.

[10] Nos Fragmentos Póstumos de 1877 Nietzsche mostra o quanto a consciência está distante de uma verdadeira experiência de fruição, de uma experiência profunda da vida. “Ao criticar a fruição da natureza, há muito a ter em conta que não se deve de forma alguma à excitação estética, por exemplo, ao escalar uma montanha alta, ao efeito do ar rarefeito e leve, à consciência da dificuldade superada, o resto, o interesse geográfico, a intenção de achar bonito o que os outros acharam bonito, o prazer antecipado de contar. (Nietzsche, 1999, NF/FP do final de 1876 e verão de 1877, 23[117], KSA, 8.445).

[11] Nietzsche distingue a consciência empregando o termo Bewustsein para se referir, “[...] a ideia que ela teria uma origem biológica [...] para advertir seu caráter falsificador” (Marton, 2016, p. 154-5) e Gewissem para acentuar seu caráter moral, que “[...] surge da introjeção de impulsos agressivos [...] que só ao fim de um longo processo adquirirá o aspecto moral de uma consciência de culpa” (Itaparica, 2016, p. 156-7).

[12] Quando se fala em generalização vem à mente a própria dimensão do rebanho, assim como da linguagem a ela ligada. “Nietzsche entende que a consciência se acha intimamente ligada à linguagem; ambas se fundam no solo comum da gregariedade.” (Marton, 2016, p. 155).

[13] Nietzsche, mesmo, em uma carta a Marie Baumgartner, ao expressar seus sentimentos, apresenta a consciência como um veículo necessário, mesmo que inconsciente “Agora que tudo ficou muito claro e claro depois de um ano estando comigo mesmo (— não consigo expressar o quão rico, quão criativo, apesar de toda a dor, sinto assim que fico sozinho —) agora, com consciência, digo a você também, sabendo que não voltarei a Basileia para ficar lá. Como vai acabar, eu não sei; mas a minha liberdade (— ah, as condições externas para isso devem ser tão modestas quanto possível —) eu conquistarei essa liberdade (Nietzsche, 1999, Br/Cr à Marie Baumgartner, de 30/08/1877, 661, KGB, 5.282).

[14] Os gregos são um exemplo bem claro deste aspecto do elemento trágico (cf. Br/Cr de Nietzsche a Francisca e Elisabeth de 15 de Fevereiro de 1873, 295, KGB, 4.122).

[15] Klaus Zittel, inclusive, neste contexto da dimensão periférica da consciência, fala de um “[...] status transitório e ocasional das unidades geradas, tal como a autoconsciência e o autoconhecimento, é um drástico limitador” (Zittel, 2019, p. 372).

[16] Vale recordar que a consciência é um tema também bastante explorado por áreas como a Filosofia da Mente, como sublima Günter Abel: “A consciência emergiu como um tema-chave na filosofia da mente contemporânea. Este é um fenómeno bastante notável, uma vez que a filosofia da consciência em particular tem tido uma má publicidade até agora e foi considerada superada” (Abel, 2001, p. 01).

[17] A ação é a expressão da força e que acaba embaçada pela consciência: “Tudo que se torna consciente é resultado do que aparece apenas na superfície de um ativo e oculto acontecer pulsional” (Zittel, 2019, p. 372).

[18] A substituição de uma visão consciente da vida pode ser lida mediante uma visão agonística: “Nietzsche pensa aqui de maneira holística, na medida em que, para ele, cada um dos conteúdos da consciência são epifenômenos e determinados por uma conjunção psico-física integral, pensada aqui de modo antagonístico. Ele compreende a relação entre impulsos e consciência como tecido agonístico, isto é, como luta de diferentes interpretações interagentes” (Zittel, 2019, p. 373).

[19] “A consciência é entendida por Nietzsche de modo estritamente relacional e funcional” (Zittel, 2019, p. 373).