
Sofistas e céticos: da semântica dos nomes ao vilipêndio histórico[1]
Sophists and skeptics: from the semantic of names to historical vilification
Wesley Rennyer Porto
UFCA – Universidade Federal do Cariri
Recebido: 01/04/2025
Received: 01/04/2025
Aprovado: 24/06/2025
Approved: 24/06/2025
Publicado: 11/07/2025
Published: 11/07/2025
Resumo
Mais do que qualquer escola de pensamento, os primeiros sofistas foram os que mais clara e tangivelmente anteciparam, em suas posições gnosiológicas, uma forma de pensamento afim com a tradição cética pirrônica. No entanto, para além da conformidade de pensamento entre sofistas e céticos, essas duas “escolas” partilharam do mesmo tipo de recepção hostil dispensado pela tradição filosófica – recepção da qual se originou a desqualificação histórica que pôs o pensamento cético-sofístico em um lugar de somenos na história das ideias. Com isso, os próprios termos se corromperam, deixaram de significar o que originalmente significavam e adquiriram conotações depreciativas. À visto disso, pretendemos analisar neste trabalho o sentido primeiro e as nuances históricas dos termos σοφιστής e σκεπτικός, assim como investigar o longo processo de desqualificação filosófica que essas duas tradições sofreram, a fim de que a acepção originária dos termos e o repúdio histórico dessas duas tradições possam ser esclarecidos.
Palavras-chave: sofística; ceticismo; vilipêndio histórica.
Abstract
More than any school of thought, the early Sophists were the ones who most clearly and tangibly anticipated, in their epistemological positions, a form of thinking akin to the Pyrrhonian skeptical tradition. However, beyond the conformity of thought between the Sophists and the Skeptics, these two 'schools' shared the same type of hostile reception from the philosophical tradition – a reception that led to the historical disqualification which placed the skeptical-sophistic thought in a lesser position in the history of ideas. As a result, the terms themselves became corrupted, no longer meaning what they originally meant, and acquired pejorative connotations. In light of this, the aim of this work is to analyze the primary meaning and the historical nuances of the terms σοφιστής and σκεπτικός, as well as to investigate the long process of philosophical disqualification that these two traditions underwent, so that the original meaning of the terms and the historical repudiation of these two traditions can be clarified.
Keywords: sophistry; skepticism; historical vilification.
1. Considerações histórico-semânticas sobre o termo sofista
O termo σοφιστής guarda profunda relação com os substantivos gregos σοφός e σοφία, os quais são traduzidos, tradicionalmente, por sábio e sabedoria. Em seus usos mais remotos, que remete ao Período Arcaico, σοφιστής em nada diferia de σοφός: sofista e sábio eram termos intercambiáveis. Mas o que era propriamente um sábio? Na época de Homero e Hesíodo, o sábio se identificava com alguém que possuía uma técnica particular. O sentido homérico de sábio, conforme Guthrie (1971) e depois Kerferd (1981) assinalaram, não era senão o de alguém que detinha alguma habilidade em um ofício particular. Sob esse prisma, podemos dizer que o sentido primevo de sábio estava intimamente relacionado à capacidade, perícia ou ao domínio de alguma arte (τέχνη), o que faz do construtor de barcos, do auriga, do músico, do arqueiro, do carpinteiro, assim como do adivinho e do conselheiro, sábios; mas sábios em seus respectivos ofícios ou artes.
Esse sentido de sábio, porém, não tardou em ganhar contornos semânticos distintos, quando por volta dos séculos VII e VI a.C. – período no qual a Grécia testemunhou o advento de legisladores, de governantes autocráticos e a intensificação das relações com a Pérsia e a Ásia Menor – o termo passou a denotar o homem de conhecimento geral e de grande prudência. É precisamente esse significado de σοφός que veremos atrelado às figuras dos Sete (filósofos, estadistas, poetas e legisladores gregos), cuja sabedoria foi apreciada nas regiões mais influentes da antiga Hélade, como a Jônia, a Ática e o Peloponeso.
As sentenças remanescentes da literatura gnômica, muitas das quais são atribuídas aos Sete Sábios, fornecem-nos indícios importantes sobre a abrangência de conhecimento e a adequada prudência que tão destacadamente associaram-se ao conceito de σοφός. De um modo geral, as sentenças sapienciais visavam destacar dois elementos indispensáveis para a composição do σόφος no contexto dos Sete: primeiro, a noção de amplitude de conhecimento, a chamada polimatia (πολυμαθία); segundo, a moderação ou prudência (φρόνησις). Vejamos, então, como algumas das máximas que versam sobre esses dois aspectos estão dispostas nos registros gnômicos. No primeiro caso, os Ἐπτὰ Σόφοι legaram pelo menos três importantes máximas que denotam com muita propriedade o valor da polimatia para o sábio. Elas admoestam os homens dizendo:
Μελέτη τὸ πᾶν.
Estuda a totalidade.[2]
Ἐφόδιον ἀπὸ νεότητος εἰς γῆρας ἀναλάμβανε σοφίαν· βεβαιότερον γὰρ τοῦτο τῶν ἄλλων κτημάτων.
Faz da sabedoria provisão de jornada desde a juventude até a velhice; pois é mais seguro isso do que outras posses.[3]
Μανθάνων μὴ κάμνε.
Não canses de aprender.[4]
Abarcar o universo multifacetado do saber, preenchendo a alma com as mais variadas habilidades e os saberes mais vantajosos à vida (seja pública ou privada), assim como dedicar-se à aquisição constante de novos conhecimentos, foram pressupostos vitais para a constituição da figura do sábio no Período Arcaico. Em suma, σόφος denotava o homem que se dirigia ao conhecimento e abraçava, tanto quanto a razão o permitisse, o propósito da erudição, da polimatia, do saber universal. “Faz da inteligência um guia” (νοῦν ἡγεμόνα ποιοῦ), diz uma sentença de Sólon (DL, I, 60), exortando os homens a se deixarem conduzir pelo intelecto, que, a seu ver, é o que instrui e orienta. O sábio deve instruir-se sobre a totalidade das coisas, deve colher da árvore do saber todos os frutos que lhe são acessíveis.
No segundo caso, isto é, naquele cujas sentenças sapienciais aludem à moderação e à prudência como essenciais ao sábio, outras três máximas traduzem com profunda exatidão esse outro importante aspecto:
Μηδὲν ἄγαν.
Nada em excesso.[5]
Εὐτυχῶν μὲν μέτριος ἴσθι, δυστυχῶν δὲ φρόνιμος.
Sê moderado quando afortunado, mas prudente, quando desafortunado.[6]
Φρόνησιν ἀγάπα.
Ama a prudência.[7]
A moderação e a prudência são incontestavelmente dois dos maiores indicadores de sabedoria do mundo grego antigo. Abdicar de qualidades tão essenciais à boa condução das ações na vida prática, deixando-se enredar pelas teias dos excessos, sempre foi visto na Antiguidade como uma larga via para o infortúnio. Se voltarmos o nosso olhar para a literatura grega, sobretudo para a tragédia ática, encontraremos uma miríade de exemplos nos quais se evidenciam os terríveis efeitos da ὕβρις. Notemos, porém, que a sabedoria reinante no Período Arcaico, antecipando a poesia trágica, estava perfeitamente ciente desse fato, e por isso mesmo louvou, com entusiasmo, a moderação. Vê-se na tragédia um eco do que já ensinavam os primeiros poetas, vide Hesíodo, que, em Trabalhos e Dias, adverte os homens de que “a desmedida é má para o pobre mortal / ὕβρις γὰρ τε κακὴ δειλῷ βροτῷ” (v. 214). À luz desses elementos, quando pensamos o sentido de sábio no período dos Sete, notamos que a φρόνησις é tão imprescindível quanto a πολυμαθία, ambas compondo, num amálgama de qualidades superiores, as características fundamentais do conceito de σοφός.
Atingimos, aqui, um ponto crucial para se compreender a relação entre os termos σοφός e σοφιστής, visto que este, em seu sentido mais originário, confunde-se com aquele: o substantivo grego σοφιστής, por remeter à tradição de homens sábios que acima aludimos, designa tão somente o homem de vasto saber e prudência – que é precisamente o sentido arcaico de sábio que descrevemos. O sofista/sábio, portanto, não era senão o homem polímata e prudente. Todavia, para se encontrar o liame que une os sofistas da primeira geração com a tradição dos mais antigos sábios, é preciso retornar aos poetas. Como assinalamos, os poetas também, ao lado dos Sete, foram designados sábios. Esse ponto é relevante para que possamos entender que não basta ao sábio possuir uma sabedoria intransitiva, que esteja encerrada nele mesmo e da qual os demais homens não possam usufruir. O sofista é também um mestre, um instrutor. Ora, e quem mais do que os antigos poetas da Grécia foram verdadeiros educadores do povo helênico? Lembremo-nos de que:
Desde o início, sophia era de fato associada ao poeta, ao vidente e ao sábio, todos que eram vistos como reveladores de visões de conhecimento recebidas de maneira não acessíveis de outra forma aos mortais. [...] Do século V a.C. em diante, o termo ‘sophistés’ é aplicado a muitos desses primeiros ‘sábios’ – a poetas, incluindo Homero e Hesíodo, a músicos e rapsodos, adivinhos e videntes, aos Sete Sábios e a outros antigos sábios, aos filósofos pré-socráticos, e a personagens como Prometeu, sugerindo poderes misteriosos (Kerferd, 1981, p. 24).
A sabedoria do poeta é generosa, dirige-se aos homens causando-lhes grande impacto pedagógico, por isso mesmo, aos olhos dos gregos, “instrução prática e conselho moral constituíam a função central do poeta” (Guthrie, 1971, p. 29). Nesse quesito, as palavras de Platão, no Fedro (245a), são bastante significativas, pois é no referido diálogo que nos é exposto que “o delírio e a possessão das Musas” (ἀπὸ Μουσῶν κατοκωχή τε καὶ μανία), depois de arrebatar uma alma tenra e consagrada, enquanto glorifica os feitos do passado, também “educa a posteridade” (τοὺς ἐπιγιγνομένους παιδεύει). A poesia sempre foi o esteio a partir do qual a educação grega, de um modo geral, pôde florescer.
O educar (παιδεύειν) do poeta, que instrui os homens no caminho do reto agir, do dever, da verdade, da honra e da piedade, é, sobretudo, σοφία facultada aos homens de modo inteiramente generoso. Na realidade, seja oriunda dos poetas, dos videntes, dos músicos ou dos legisladores, a sabedoria daqueles que, em um passado remoto da Grécia, foram chamados de σοφισταί, perfaz uma unidade que abarca múltiplas especificações, isto é, embora os antigos sábios pudessem diferir quanto à especificidade de sua σοφία, eles formavam, do ponto de vista pedagógico e malgrado as peculiaridades de seus respectivos saberes, uma sólida unidade do ponto de vista paidêutico, visto que todos, invariavelmente, educavam. Aqui, decerto, é importante trazer à memória as “palavras de Protágoras”, na medida em que elas põem a figura do sofista diretamente em conexão com a tradição dos antigos sábios, os quais ocultavam sua sabedoria a fim de evitar inveja e diatribes:
ἐγὼ δὲ τὴν σοφιστικὴν τέχνην φημὶ μὲν εἶναι παλαιάν, τοὺς δὲ μεταχειριζομένους αὐτὴν τῶν παλαιῶν ἀνδρῶν, φοβουμένους τὸ ἐπαχθὲς αὐτῆς, πρόσχημα ποιεῖσθαι καὶ προκαλύπτεσθαι, τοὺς μὲν ποίησιν, οἷον Ὅμηρόν τε καὶ Ἡσίοδον καὶ Σιμωνίδην, τοὺς δὲ αὖ τελετάς τε καὶ χρησμῳδίας, τοὺς ἀμφί τε Ὀρφέα καὶ Μουσαῖον· ἐνίους δέ τινας ᾔσθημαι καὶ γυμναστικήν, οἷον Ἴκκος τε ὁ Ταραντῖνος καὶ ὁ νῦν ἔτι ὢν οὐδενὸς ἥττων σοφιστὴς Ἡρόδικος ὁ Σηλυμβριανός, τὸ δὲ ἀρχαῖον Μεγαρεύς· μουσικὴν δὲ Ἀγαθοκλῆς τε ὁ ὑμέτερος πρόσχημα ἐποιήσατο, μέγας ὢν σοφιστής, καὶ Πυθοκλείδης ὁ Κεῖος καὶ ἄλλοι πολλοί. οὗτοι πάντες, ὥσπερ λέγω, φοβηθέντες τὸν φθόνον ταῖς τέχναις ταύταις παραπετάσμασιν ἐχρήσαντο.
Ora, eu afirmo que a arte sofística é antiga, e dos homens antigos que a praticavam, temendo dela algo odioso, disfarçavam-na e encobriam-na, uns sob a forma de poesia, como Homero, Hesíodo e Simônides, e outros sob a forma de ritos iniciáticos e profecias, como fizerem Orfeu, Museu e seus adeptos. Tenho observado, também, que alguns outros [encobriam-na] sob a forma de ginástica, como Ico de Tarento e aquele que nos dias de hoje não é inferior a nenhum sofista, Heródico de Selimbra, originalmente de Mégara. E o vosso Agátocles, que é um grande sofista, criou como disfarce a música, assim como Pitoclides de Ceos e muitos outros. Todos eles, como digo, receando a inveja, fizeram uso dessas artes como disfarce (Platão, Protágoras, 316c-d).
A despeito das razões que levaram muitos desses homens a omitir a designação de sofista, é-nos particularmente importante destacar que foi a essa plêiade multifacetada de sábios que Protágoras se vinculou, muito embora, diferentemente dos seus “pares ancestrais”[8], ele jamais tenha ocultado o seu ofício, visto que declarava sem reservas ser um sofista no sentido educativo do termo. Como “diz” Protágoras: “eu admito ser um sofista e educar os homens” (ὁμολόγω τε σοφιστὴς εἶναι καὶ παιδεύειν ἀνθρώπους) – uma sentença que denota parte essencial da atividade de todos os antigos sofistas, visto que todos eles foram eminentemente educadores, mestres, preceptores: a missão paidêutica dos sofistas representava ao coração mesmo da atividade desses pensadores.
1.2 A depreciação histórica da sofística
É a partir do século V a.C., quando a prosa adquire primazia pedagógica em relação ao verso e a sociedade grega passa por profundas transformações políticas e sociais[9], que o termo σοφιστής adquire de fato a acepção de “educadores profissionais que davam instrução a jovens e faziam exibições públicas de eloquência por remuneração” (Guthrie, 1971, p. 35). O sistema democrático da Atenas de Péricles, cujo coração era a assembleia (ἐκκλησία), notabilizou-se por promover os ambientes políticos onde os cidadãos atenienses podiam discutir os assuntos concernentes aos cultos religiosos, às finanças, à preparação militar e à justiça (Starr, 2005). É natural que dessa efervescência político-democrática surgisse, como forma de atender à demanda crescente da boa oratória, do bem falar, mestres que habilitassem os cidadãos para tal tarefa, donde a oportuna inserção dos sofistas:
Se é verdade que os institutos da democracia ateniense representam o espaço político no qual se medeiam as tensões e lutas econômicas e sociais da sociedade grega desse período [século V a.C.], essa mediação política impõe todavia novas exigências e novas habilidades: a exigência de homens capazes de sustentar e de fazer prevalecer uma tese, impondo-a à maioria da assembleia e, portanto, a exigência de homens que possuam a “técnica” do discurso, ou seja, uma “habilidade” não necessariamente ligada a certa classe social. Os sofistas se apresentam, então, em primeiro lugar, como os “novos mestres”, aqueles que satisfazem a essa nova exigência do “saber falar”, que não é uma exigência puramente retórica, mas tem um claro valor político e social: expressar-se de modo convincente, obter consenso, fazer valer as próprias razões, significava libertar-se de um complexo de inferioridade em relação às classes aristocráticas tradicionalmente detentoras do poder e do consenso (Casertano, 2010, p. 17).
À luz desse quadro sinóptico, que descreve o contexto e o ofício dos primeiros sofistas do século V. a.C. (Protágoras, Górgias, Pródico etc.), torna-se mais nítido o quanto a figura do sofista atrelou-se à imagem de alguém perito no manejo do λόγος; tratava-se, essencialmente, de um mestre do pensar e do falar. Uma sentença lapidar para a caracterização do sofista, em razão da sua concisão e clareza, foi preservada por Ateneu (DK85A8), ao mencionar que, na tumba de Trasímaco, lia-se: “Minha terra natal [era] Calcedônia; e minha arte a sabedoria” (πατρὶς Χαλκηδὼν· ἡ δὲ τέχνη σοφίη). Esse saber não é outro senão o saber da eloquência, e o sofista, como veremos o jovem Hipócrates defini-lo no Protágoras (312d), não é senão “um mestre em tornar o falar maravilhoso” (ἐπιστάτην τοῦ ποιῆσαι δεινὸν λέγειν).
A sabedoria, enquanto sabedoria do domínio oratório, vista também como técnica, arte, ou mesmo profissão, evoca outro aspecto fundamental que marcou a atividade sofística na Antiguidade, que é o seu reconhecido profissionalismo. A ideia de instrutores profissionais que ensinavam mediante pagamento, tornou-se, no período de vida de Sócrates, a descrição mais habitual e difundida acerca dos sofistas e de suas práticas. Com frequência notável, os diálogos de Platão testificam esse entendimento genérico sobre os sofistas, sempre enfatizando o caráter remunerativo da atividade sofística, percepção que também se notará nas descrições de outros autores do século IV a.C.
Não é difícil imaginar como a presença desses mestres-profissionais-estrangeiros, os quais enriqueciam mediante a venda de seus conhecimentos, pôde gerar em Atenas (e em outras πόλεις) profundo sentimento de animosidade junto àqueles que desaprovavam suas novidades. Antes mesmo de o mundo testemunhar a grande polêmica que Platão levaria a cabo contra os sofistas, Aristófanes, na comédia, acusou esses novos mestres (sem nem mesmo poupar Sócrates) de exercerem uma influência nefasta sobre a πόλις ateniense. Em As Nuvens (331-333), numa passagem que se tornou célebre, Aristófanes demonstrou todo o seu repúdio aos sofistas de sua época, classificando-os como adivinhos de Túrio (Θουριομάντεις), picaretas da medicina (ἰατροτέχνας), janotas de cabelos cumpridos cobertos de joias (σφραγιδονυχαργοκομήτας), contorcionistas de coros cíclicos (κυκλίων τε χορῶν ᾀσματοκάμπτας) e homens charlatães de coisas celestes (ἄνδρας μετεωροφένακας). Nas mãos do comediógrafo, o termo σοφιστής, como observou Guthrie (1971), tornou-se sinônimo de insulto, denotando sobretudo charlatanismo e fraude.
Outras condenações foram importantes para a formação do estereótipo pejorativo que durante séculos caracterizaram os sofistas. Muitas delas advieram de autores que, assim como Aristófanes, repudiavam a nova educação sofista e seus métodos, o que sem dúvida contribuiu para o desenvolvimento do processo histórico de vilipêndio que a sofística sofreu. O soldado e historiador Xenofonte, discípulo de Sócrates, também pôs sua pena a serviço da detratação dos inimigos do mestre, de modo que não olvidou, em sua Memorabilia (I, VI, 13), de assinalar causticamente que “aqueles que vendem a sabedoria a quem a queira, em troca de dinheiro, são chamados sofistas” (τὴν σοφίαν ὡσαύτως τοὺς μὲν ἀργυρίου τῷ βουλομένῳ πωλοῦντας σοφιστὰς [...] ἀποκαλοῦσιν), e ainda acrescentou, para concluir, que esses homens são “tal como prostitutos” (ὥσπερ πόρνους).
Isócrates, quando por volta 390 abriu sua escola de retórica, em seu discurso intitulado Contra os sofistas, criticou tanto a erística quanto o ensino da eloquência política de modo desonesto. Para Isócrates (292, 9), esses instrutores gananciosos e limitados, apenas exibiam “o quanto eles próprios eram estúpidos” (οὕτω δ’ ἀναισθήτως αὐτοί); por isso, buscando se distinguir dos sofistas – em particular das doutrinas que ele julgava como equivocadas –, Isócrates (293, 11) simplesmente expressou que “desejaria que se calassem os charlatães” (βουλοίμην ἂν παύσασθαι τοὺς φλυαροῦντας). Pode parecer paradoxal que o orador ateniense, que se considerava um sofista, tenha atacado a “classe” à qual pertencia; porém, é preciso entender que Isócrates não condenou indistintamente todos os sofistas, mas apenas aqueles que se utilizavam da arte retórica de maneira inescrupulosa. O orador ateniense, embora tenha se identificado como sofista, traçou uma clara distinção entre seus ensinamentos e os daqueles que denominou de “sofistas medíocres / ἀγελαίων σοφιστῶν” (Panat., 18).
De qualquer forma, por mais que tenhamos catalogado alguns autores clássicos que se insurgiram contra os sofistas, é preciso dizer que nenhuma dessas críticas foi tão decisiva para o descrédito histórico da sofística quanto aquelas redigidas por Platão e, posteriormente, por Aristóteles. A verdade é que Sócrates e Platão nutriram verdadeira aversão à prática de ensinar mediante pagamento. Para ambos, que enxergavam a relação entre mestre e discípulo como uma relação de genuína φιλία, a inclusão do dinheiro nesse vínculo não apenas era ignominiosa, mas também destruía o respeito e a afeição mútuos entre pupilo e mestre. Não é por outra razão que vemos Platão destacar a presença do dinheiro, enquanto elemento corruptor, na biografia de alguns sofistas: no Fédon (91d), é dito que Protágoras adquiriu mais riqueza com a sua sabedoria do que o célebre escultor ateniense Fídias; no Eutidemo (304c), Platão destaca que os dois irmãos sofistas eram capazes de ensinar qualquer mediante um bom pagamento em dinheiro; no Hípias Maior (282d), o Sócrates platônico não deixa de sublinhar que Górgias e Pródico, pelo sucesso de suas exibições públicas, auferiram lucros espantosos ensinando os jovens.
Mas o repúdio platônico aos sofistas não se nutre apenas da dicotomia que existe entre as formas de ensino gratuito e remunerado. Não; na verdade, Platão preocupou-se em traçar uma distinção nítida entre o filósofo e o sofista, tendo em vista que os filósofos, desde as comédias aristofânicas, costumavam ser confundidos com os sofistas – vide o exemplo marcante de Sócrates em As Nuvens. A indistinção era tal que, como observou Grote (1850), qualquer ateniense que no período da Guerra do Peloponeso tivesse sido perguntado sobre qual era o maior sofista de Atenas, não hesitaria em responder que era Sócrates. Perante esse cenário de imprecisão, Platão procurou estabelecer uma distinção objetiva entre o sofista e o filósofo, tarefa que, ao longo de sua obra, demandou diferentes abordagens, as quais vão desde a distinção entre retórica e dialética, até a distinção entre saber aparente e saber real.
O filósofo (ou dialético) admite uma realidade eidética, estável e principalmente verdadeira, a qual não está submetida às opiniões particulares dos homens. Diferentemente do fluxo cambiante das aparências, as ideias não estão sujeitas à alteração ou corrupção, mas são a expressão do que é verdadeiro. O discurso filosófico, nesse sentido, busca corresponder a essa dimensão ontológica fixa e imperecível, ao passo que a toma como medida de aferição das coisas e prisma pelo qual se pode compreender o fluxo das aparências. Em suma, podemos dizer que Platão (Timeu, 27d-28a) concebe o que é sempre (τὸ ὂν ἀεί) como a instância máxima da realidade, o qual é “apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, sendo sempre em si mesmo” (τὸ μὲν δὴ νοήσει μετὰ λόγου περιληπτόν, ἀεί κατά ταυτὰ ὂν); enquanto o que vem a ser (τὸ γιγνόμενον), sendo objeto de opinião e fundado em sensação irracional, “nunca realmente é” (ὄντως δὲ οὐδέποτε ὄν). Como muito apropriadamente sintetizou Casertano (2010, pp. 43-44), o filósofo, para Platão, considera que “o eterno serve para medir o temporal; o objetivo, o subjetivo; o ser, o devir”.
O sofista (ou erístico), de maneira oposta, apegado ao reino das aparências, careceria de um μέτρον objetivo por meio do qual poderia discernir o verdadeiro e o falso; assim, toda a sua elocução, desprovida de qualquer referência arquetípica para medir as coisas, tornar-se-ia, em última instância, um falar vazio, uma retórica morta, uma elocução que visa meramente ao triunfo verbal sobre o interlocutor. Os sofistas, então, embora professem ser “mestres da virtude / ἀρετῆς διδασκάλους” (Fédon, 91b), nada mais seriam que homens hábeis em “lutar com palavras / τοῖς λόγοις μάχεισθαι” e “refutar / ἐξελέγχειν” todo tipo de argumento, “quer seja falso, quer seja verdadeiro / ἐάν ψεῦδος ἐάν ἀληθὲς ᾖ” (Eutidemo, 272d). Essa é, pois, toda a erística: tão somente inanis disputatio.
O exemplo mais ilustrativo da tentativa platônica de definir o sofista, talvez em razão da forma com que Platão progride em sua análise, encontre-se no diálogo O Sofista. O referido texto nos apresenta pelo menos sete definições a respeito do sofista, algumas das quais julgamos imprescindíveis para a tarefa de dimensionar a hostilidade de Platão aos seus antagonistas. Tendo esse fim em vista, rememoremos como a sofística é inicialmente caracterizada por Platão: ele a chama (223b) de arte da caça (τέχνης θηρευτικῆς), mas, sendo caça de jovens ricos e ilustres (νέων πλουσίων καὶ ἐνδόξων γιγνομένη θήρα), a qual promove uma educação aparente (δοξοπαιδευτικῆς). Adiante (224d), Platão nos diz que a sofística nada mais é do que um gênero de comércio de conhecimento (μαθηματοπωλικὸν γένος), e, o sofista (226a), “senão [...] o gênero lucrativo da arte da erística, da antilógica, da disputa, da luta e da agonística” (οὐδὲν αλλ’ ἢ [...] ἐριστικῆς ὂν τέχνης, τῆς ἀντιλογικῆς, τῆς ἂμφισβητητικῆς, τῆς μαχητικής, τῆς ἀγωνιστικῆς). O sofista (233c), então, possui meramente um certo “saber [...] opinativo” (ἐπιστήμην [...] δοξαστικὴν), “mas não [um saber] verdadeiro” (ἀλλ’ οὐκ ἀλήθειαν); trata-se, pois (235a), de um ilusionista (γόητα) ou imitador (μιμητήν), que (254a) “refugiando-se na obscuridade do não-ser” (ἀποδιδράσκων εἰς τὴν τοῦ μὴ ὄντος σκοτεινότητα), torna-se, de fato, o legítimo avesso dos que amam o saber, porquanto o filósofo (254b) está “sempre devotado à forma do ser” (τῇ τοῦ ὄντος ἀεὶ [...] προσκείμενος ἰδέᾳ).
É difícil não reconhecer, dadas as definições acima, que a condenação da arte sofística por Platão foi ampla e severa. Mesmo que não possamos considerá-lo como o único a ter conferido ao termo σοφιστής um significado pejorativo, visto que outros escritores também contribuíram para isso, dá-se com Platão a consumação e a ampliação do sentido negativo que tão estreitamente se uniu ao referido termo. Se tivermos isso em mente, talvez as palavras de Grote (1850), perdoadas em seus prováveis excessos, tornem-se mais compreensíveis: segundo o historiador inglês, Platão, ao associar atributos desonrosos ao sofista, conferiu um sentido muito mais pernicioso ao termo do que o sentimento vago de antipatia associado a ele, sentido que, reforçado por Aristóteles, ressoaria por muitos e muitos séculos.
Aristóteles, seguindo os passos de Platão, também se uniu às fileiras dos autores antigos que condenaram a sofística. O Estagirita manteve uma posição substancialmente similar à do mestre, subscrevendo, como lemos em suas Refutações Sofísticas (165a20), que “a sofística é sabedoria aparente, mas não real, e o sofista é quem ganha dinheiro pela sabedoria aparente, porém não real” (ἔστι γὰρ σοφιστικὴ φαινομένη σοφία οὖσα δ’ οὔ, καὶ ὁ σοφιστὴς χρηματιστὴς ἀπὸ φαινομένης σοφίας ἀλλ’ οὐκ οὔσης). Noutro momento, dessa vez na Metafísica (1004b20), Aristóteles reafirma que “a sofística é apenas sabedoria aparente” (ἡ [...] σοφιστικὴ φαινομένη μόνον σοφία ἐστι). De um modo geral, Aristóteles entende que o filósofo difere do dialético, mas difere principalmente do sofista, quem cultiva uma sapiência ilusória, sendo, portanto, o antípoda do filósofo.
As opiniões depreciativas sobre a sofística, oriundas da pena de diferentes e importantes escritores, produziram séculos e mais séculos de indiferença ao valor filosófico que reside nas ideias dos antigos sofistas. A imagem milenar desses pensadores como impostores ambiciosos, falsos sábios, paroleiros amantes de discórdias e tantas outras caracterizações infamantes, fixou no imaginário de boa parte dos homens letrados a falsa ideia de que na sofística nada há senão ardis falaciosos, estratagemas pueris e truques retóricos. Somente com o florescimento do intelectualismo hegeliano, que absorveu e incorporou a negativismo epistêmico dos sofistas ao todo do movimento do Espírito, que os sofistas passaram a ser considerados, entre muitos historiadores alemães da filosofia, como autênticos e profundos pensadores – visão que pouco a pouco espraiou-se pela Europa e, com o passar dos anos, alcançou os demais continentes, visto que a essa altura já havia se tornado evidente, como assinalou Karl Joël, que “a própria história refuta, de fato, a imagem da sofística como mera degenerescência e decadência” (Joël, 1921, p. 674).
1.3 Notas semântico-filológicas sobre o termo σκεπτικός
Diferentemente da terminologia σοφιστής, acerca da qual bons trabalhos já vieram a lume, os termos σκεπτικός (cético) tem recebido pouca atenção dos estudiosos. Aqui, portanto, analisaremos as particularidades lexicais que o termo encerra, pondo em curso uma investigação histórico-etimológica que sirva ao esclarecimento das características semânticas desse vocábulo. Logo em seguida, tal como fizemos em relação à sofística, voltaremos nossa atenção ao exame da longa história das depreciações que almejaram fazer dos céticos os arautos da doutrina da desesperança e do estupor, atribuindo-lhes a “moléstia” da apatia mortificante como resultado necessário da sua doutrina.
Pois bem, para se chegar à composição e ao uso do termo grego σκεπτικός, devemos primeiro retornar ao verbo a partir do qual esse e outros vocábulos correlatos se originam. Essa investigação etimológica nos conduz diretamente ao verbo σκέπτομαι (dirigir o olhar, examinar, considerar etc.), verbo do qual provêm dois conjuntos terminológicos importantes, isto é: I) aquele formado pelo vocalismo em ômicron, que abrange os termos σκοπός, σκοπή, σκοπιά e o verbo contrato σκοπέω; e, também, II) o grupo formado pelo vocalismo em épsilon, no interior do qual temos os adjetivos verbais em -τός (ἄ-σκεπτος, εὔ-σκεπτος etc.) e os termos σκεπτικός, σκέψις, σκέμμα, σκεπτοσύνη, σκεπτήριον e σκεπτώριον[10]. Construído sobre a raiz grega σκεπ-, que por sua vez deriva da raiz indo-europeia *spek-[11], σκέπτομαι, cujo correspondente exato em latim é o verbo speciō (ver, observar, olhar), aparece já na poesia épica de Homero, sendo também empregado, posteriormente, por diversos autores dos períodos Arcaico e Clássico. Parece peculiar a σκέπτομαι uma forma de ver, de observar ou dirigir o olhar que não é meramente passiva, mas que envolve algum tipo de empenho, a saber, o de procurar ver, buscar enxergar – fator que sugere uma semântica diferente de verbos como βλέπω e ὁράω.
Esse esforçar-se para ver, enquanto pressuposto indispensável de qualquer investigação diligente, denota, por sua vez, a atitude particular de observação que será de suma importância para o entendimento da atitude do σκεπτικός. O caráter atuante e vivo do ver que σκέπτομαι designa, aparece também, de modo menos abstrato, no substantivo σκοπός, o qual significa, desde Homero, guardião, espião, ou simplesmente quem vigia algo, o que decerto aponta para um tipo de agente cuja ação de olhar atentamente é parte constitutiva ou característica de sua classe: sem o olhar atento, o guardião, o espião ou o vigia não cumprem com a função para a qual são designados. Ademais, o verbo denominativo de σκοπός, isto é, σκοπέω, preserva em seu leque semântico os tipos de ação que são próprios das classes que σκοπός alude, como por exemplo: observar, inspecionar, vigiar etc.
As características semânticas dessa família terminológica auxiliam na compreensão do σκεπτικός enquanto filósofo. Observemos que, em seu sentido originário, ὁ σκεπτικός significa tão somente aquele que examina, que observa, que reflete, que olha atentamente, acepções que assinalam, sobretudo à luz do vínculo com σκέπτομαι, o caráter de envolvimento e empenho de observação que perfazem a atitude cética. Na esteira dessa mesma compreensão semântica, o gramático e escritor latino Aulo Gélio, em suas Noctes Atticae, registrou de que modo a terminologia grega σκεπτικοί fora compreendida em seus dias:
Quos Pyrrhonios philosophos vocamus, ii Graeco cognomento σκεπτικοί appellantur; id ferme significat quasi quaesitores et consideratores: nihil enim decernunt, nihil coustituunt; sed in quaerendo semper considerandoque sunt, quidnam sit omnium rerum, de quo decerni constituique possit.
Aqueles que nós chamamos filósofos pirrônicos, esses são denominados pelo cognome grego σκεπτικοί (céticos); que significa, aproximadamente, investigadores ou examinadores: nada realmente julgam, nada estabelecem; mas estão sempre examinando e investigando, o que quer que seja dentre todas as coisas de que possa ser julgado e estabelecido (Gélio, Noites Áticas, XI, V).
O cético, portanto, se nos mostra como um investigador de extrema circunspecção, um observador diligente, alguém que se põe a examinar o objeto, sem, entretanto, ambicionar discerni-lo em seu ser nem tampouco fundamentá-lo ontoepistemologicamente: nada julga, nada estabelece. Notemos que, na passagem supracitada, o emprego do gerúndio no ablativo, acompanhado da preposição in, transmite-nos com bastante acuidade a postura filosófica do cético quanto à natureza da sua investigação, na medida em que a junção entre a noção infectiva do gerúndio e a de imobilidade, transmitida pelo locativo, produz uma harmonização de aspectos contrários: uma harmonia antitética que aponta para um gênero de investigação que acolhe, numa unidade sintética de opostos, movimento e repouso, indicando, com isso, que os céticos permaneciam sempre imóveis (ideia locativa) num ato contínuo (infectum) de pesquisar e inquirir a realidade.
Mas o que exatamente o cético investiga? E em que difere a investigação empreendida pelos σκεπτικοί da investigação dos demais filósofos? É possível extrair da dinâmica de investigação pirrônica algo que confira ao cético uma identidade filosófica? Para elucidar a primeira questão, lembremo-nos de que Sexto Empírico (AM, VII, 27) concebe o homem como um animal amante da verdade (φιλάληθες ζῶον), ou seja, o animal-homem aparece em Sexto como o ente para o qual a busca pela verdade se dá como um modo próprio de ser, o que torna o cético, enquanto homem, um inquiridor do que é, um inquiridor do real, o qual aspira discernir, assim como os demais filósofos, “o que é verdadeiro e o que é falso nas coisas / τί τε ἀληθές ἐστιν ἐν τοῖς πράγμασι καὶ τί ψεῦδος” (PH, I, 12). Se reconhecermos que a investigação cética se dirige à realidade com o propósito de distinguir as coisas que são e as que não são, podemos dizer que não há qualquer diferença substancial entre o objeto de investigação cética e o dos demais filósofos: ambos perscrutam a realidade.
Todavia, por mais que o objeto de investigação de céticos e dogmáticos seja o mesmo, não podemos inferir disso (não sem incorrer em algum equívoco interpretativo) que eles possuam um mesmo modo de investigar e uma mesma postura perante os resultados de suas inquirições. Na realidade, a investigação cética possui particularidades que divergem da dos demais filósofos, de modo que falar da especificidade da ζήτησις cética, nolens volens, implica trazer a lume aspectos intrínsecos ao modo cético de filosofar, o qual não se reduz à perscrutação do real em suas diferentes modalidades, mas que, em razão dos fins da própria Σκέψις, faz da atividade investigativa um mecanismo de problematização das doutrinas filosóficas. Por essa razão, os autores que fornecem alguma definição sobre os céticos pirrônicos, subscrevem sistematicamente o elemento zetético em seus quadros conceituais, o que faz da investigação cética um preceito que, na dinâmica conjunta com os elementos aporético e suspensivo, confere ao cético uma identidade filosófica sui generis: peculiaridade que se funda em um modo de filosofar não dogmático, destituído de teticidade discursiva e que se plenifica na experiência suspensiva.
Vejamos, então, como os termos cético, zetético, aporético, efético e pirrônico são articulados na definição dessa espécie particular de filósofo, observando, primeiramente, a definição do biodoxógrafo Diógenes Laércio:
οὗτοι πάντες Πυρρώνειοι μὲν ἀπὸ τοῦ διδασκάλου, ἀπορητικοὶ δὲ καὶ σκεπτικοὶ καὶ ἔτι ἐφεκτικοὶ καὶ ζητητικοὶ ἀπὸ τοῦ οἷον δόγματος προσηγορεύοντο. ζητητικοὶ μὲν οὖν ἀπὸ τοῦ πάντοτε ζητεῖν τὴν ἀλήθειαν, σκεπτικοὶ δ’ ἀπὸ τοῦ σκέπτεσθαι ἀεὶ καὶ μηδέποτε εὑρίσκειν, ἐφεκτικοὶ δ’ ἀπὸ τοῦ μετὰ τὴν ζήτησι πάθους· λέγω δὲ τὴν ἐποχήν· ἀπορητικοὶ δ’ ἀπὸ τοῦ τοὺς δογματικοὺς ἀπορεῖν καὶ αὐτούς. Πυρρώνειοι δὲ ἀπὸ Πύρρωνος.
Todos esses eram chamados pirrônicos por causa do mestre, mas aporéticos, céticos, e ainda eféticos e zetéticos devido a algum tipo de preceito. Zetéticos, decerto, em razão de sempre investigar a verdade, céticos, por incessantemente examinar e jamais encontrar, eféticos, pelo estado de alma subsequente à investigação – quero dizer, suspensão do juízo –, aporéticos, por deixar em aporia os dogmáticos e eles mesmos. “Pirrônicos”, por causa de Pirro (DL, IX, 69-70).
O trecho mostra que a designação de pirrônicos (πυρρώνειοι) se deve ao fato de os filósofos em questão seguirem a doutrina filosófica de Pirro, enquanto as outras alcunhas, como explica Diógenes, derivam da adoção de algum tipo de preceito comum ou inerente à Σκέψις. À luz dessa compreensão, a passagem esclarece que a denominação céticos (σκέπτικοὶ) se deve ao fato de os pirrônicos examinarem incessantemente e jamais terem encontrado aquilo que buscam. Esse examinar, demarcado pelo infinitivo médio σκέπτεσθαι, é o olhar atento e ativo do qual tratamos anteriormente. Trata-se do impulso inicial e característico do cético: o θαυμάζω pirrônico mediante um ver meticuloso. O cognome de zetéticos (ζητητικοὶ), por sua vez, é explicado pela investigação da verdade empreendida pelos céticos – mais do que isso, na realidade. Como já esboçamos, a ζήτησις pirrônica ultrapassa a busca da verdade e a problematização das teses dogmáticas. Eis que aparece, então, a designação aporéticos (ἀπορητικοὶ), exposta como o resultado da capacidade dos céticos de conduzirem a si mesmos e os seus adversários a um impasse ineludível. Por fim, explica-se a denominação de eféticos (ἐφεκτικοὶ) em razão do estado de alma subsequente à investigação, estado este que, em rigor, nada mais é do que a suspensão cética do juízo – ἐποχή.
A compressão do cético, oriunda da pena de Diógenes, assinala de forma bastante adequada como o cético grego fora interpretado na Antiguidade. Na realidade, a formulação dessa definição já havia sido esboçada por Sexto Empírico, não para conceituar o cético, mas sim para elucidar a própria via cética (σκεπτική ἀγωγή):
Ἡ σκεπτικὴ τοίνυν ἀγωγὴ καλεῖται μὲν καὶ ζητητικὴ ἀπὸ ἐνεργείας τῆς κατὰ τὸ ζητεῖν καὶ σκέπτεσθαι, καὶ ἐφετικὴ ἀπὸ τοῦ μετὰ τὴν ζήτησιν περὶ τὸν σκεπτόμενον γινομένου πάθους, καὶ ἀπορητικὴ ἤτοι ἀπὸ τοῦ περὶ παντὸς ἀπορεῖν καὶ ζητεῖν, ὡς ἔνιοί φασιν, ἢ ἀπὸ τοῦ ἀμηχανεῖν πρὸς συγκατάθεσιν ἢ ἄρνησιν, καὶ Πυρρώνειος ἀπὸ τοῦ φαίνεσθαι ἑμῖν τὸν Πύρρωνα σωματικώτερον καὶ ἐπιφανέστερον τῶν πρὸ αὐτοῦ προσεληλυθέναι τῇ σκέψει.
A via cética, portanto, é também chamada “zetética”, devido à atividade de investigar e examinar, “efética”, devido ao estado de alma gerado após a investigação acerca do que se examina, “aporética”, certamente, em razão de lançar aporia e investigar sobre tudo, como alguns dizem, ou por manter a incerteza entre a afirmação e a negação, e “pirrônica” devido a Pirro se nos mostrar ter se dedicado ao ceticismo de modo mais tangível e conspícuo que aqueles antes dele (PH, I, 7).
A fim de assinalar os elementos cardinais do ceticismo, Sexto Empírico explica que que a Σκέψις é zetética, aporética, efética e pirrônica porque seus membros são zetéticos, eféticos, aporéticos e pirrônicos. A partir desse truísmo, Sexto quer mostrar que o ceticismo, enquanto filosofia, reúne investigação, aporia e suspensão do juízo, e esse amálgama de preceitos é a espinha dorsal dessa corrente filosófica: a reunião e dinamização desses elementos conferem ao pirronismo sua peculiaridade filosófica. Em outras palavras, podemos dizer que o prelúdio da trajetória pirrônica se dá com a ζήτησις (estágio da perscrutação do ser), e dela emerge, como resultado da controvérsia e da equivalência entre os discursos, a ἀπορία que obstaculiza o investigar, então, em face da impossibilidade de assentir ou rejeitar as conclusões das especulações filosóficas, o cético termine em ἐποχή. Não obstante a aparente simplicidade desse diagrama cético, estamos diante de uma pedra de toque fundamental à compreensão do cético pirrônico, tão fundamental que Sexto não abriu mão de descrever esse itinerário, explicando que os céticos “chegaram até a filosofia com o desejo de alcançar a verdade” (ἐπὶ ταύτην ἦλθον πόθῳ τοῦ τυχεῖν τῆς ἀληθείας), porém, “tendo se defrontado com o equilíbrio da disputa e com a anomalia das coisas, suspenderam o juízo / ἰσοσθενεῖ δὲ μάχης ἀνωμαλίᾳ τῶν πραγμάτων ὑπαντήσαντες ἐπέσχον” (PH, I, 12).
Tal como observamos nas palavras de Sexto, o percurso filosófico cético desemboca invariavelmente na suspensão do juízo (ἐποχή), essa instância a partir da qual desponta um modo próprio de ser, uma disposição peculiar do intelecto, uma identidade filosófica. Ἐποχή, expressão máxima da experiência pirrônica de pensamento, é πάθος, quer dizer, é estado de alma no qual todo ajuizar positivo é suspenso, retido, paralisado. Dá-se com essa afecção uma contenção (ou esvaziamento) do impulso que impele o homem ao julgamento, ao veredito, à deliberação; o intelecto, na medida em que entra em repouso, vence a precipitação ajuizante, a positivação opinativa, o dogmatizar – eis em que consiste fundamentalmente a suspensão cética do juízo. Conforme descreveu Sexto (PH, I, 10): “suspensão do juízo é um estado de repouso do intelecto em virtude do qual nem negamos nem afirmamos nada” (ἐποχή δέ ἐστι στάσις διανοίας δι’ ἣν οὔτε αἴρομέν τι οὔτε τίθεμεν), ou seja, a ἐποχή é o momento e hora do nada proposicional, da nulidade tética, da ausência deliberativa. Em suma: o estado efético não apenas previne o juízo dogmático, mas inaugura, ipso facto, uma postura filosófica singular que se consolida na reticência de julgamento.
1.4 Inação e irracionalidade: a condenação dogmática do ceticismo
A sutil presença do pirronismo na Grécia, no Egito e em Roma não passou despercebida pelos dogmáticos. Muitas escolas filosóficas combateram a ameaça que as ideias céticas representavam. Contra o preceito efético do ceticismo, muitas vozes dogmáticas se insurgiram, questionando a compatibilidade de tal preceito com as ações que os homens são obrigados a realizar em vida. Ora, se a ἐποχή é de fato um estado de repouso do intelecto em razão do qual o cético nada consente ou rejeita, como ele poderia efetivamente agir no mundo? Ao suspender o juízo o cético não estaria se condenando à completa inação? Viver não é contrário a toda forma de abstenção de julgamento? Era nítido, na compreensão de muitos, que a tentativa de viver sob um estado suspensivo equivalia a autocondenar-se a um tipo de torpor prático incompatível com a vida cotidiana, uma vez que a vida prática demanda ações e que as ações pressupõem assentimento ou crença.
Essa objeção, talvez a mais conhecida argumentação anticética da Antiguidade, provinha, sobretudo, de membros de escolas de filosofia rivais ao ceticismo[12], os quais embaraçados pelas aporias teóricas, recuaram, então, à esfera prática, julgando ter encontrado nesse domínio a vulnerabilidade do ceticismo, já que concebiam que a própria vida havia se encarregado de demonstrar que toda a profusão dialética dos céticos nada mais era que um profundo devaneio da razão.
Se os sofistas foram acusados de serem hábeis charlatães, por meio do argumento da inação (ἀπραξία), como ficou conhecido, os dogmáticos acusaram os céticos (tanto acadêmicos quanto pirrônicos) de defenderem uma via totalmente absurda: uma insânia impraticável cujo único desfecho seria a estagnação mortificante. Os antigos céticos, pelos registros de que dispomos, conheceram bem tais objeções e lhes deram resposta, porém, mesmo assim, os contra-argumentos céticos não foram suficientes para frear os efeitos da crítica da ἀπραξία, as quais seriam sentidos por séculos.
A objeção da apraxia, porém, não foi uma criação de todo original dos adversários dos céticos; na verdade, ela possui – ao menos em gérmen – um passado mais remoto, para o qual é salutar olhar antes de passarmos às formulações consagradas que tiveram por alvo os membros da Σκέψις. Esse recuo nos leva diretamente à Metafísica de Aristóteles: obra da qual podemos extrair o antecedente formal do argumento da inação. O maior dos discípulos de Platão (1008b10), ao criticar alguns dos pensadores considerados como predecessores do ceticismo[13], apontou para o conflito entre a visão filosófica de quem defende a ideia de que as coisas não mais são do que não são e as ações práticas, questionando um adepto hipotético de tal concepção com a famosa pergunta: “Porém, se nada ele admite, mas igualmente crer e não crer, em que seria diferente das plantas? (εἰ δὲ μηθὲν ὑπολαμβάνει ἀλλ’ ὁμοίως οἴεται καὶ οὐκ οἴεται, τί ἂν διαφερόντως ἔχοι τῶν γε φυτῶν;).
A analogia aristotélica se funda na concepção segundo a qual é necessário que todos os homens ajuízem sobre as coisas, que aceitem umas e rejeitem outras; numa palavra, que deliberem (!), pois sem deliberação o homem não seria homem, mas, diz Aristóteles, simplesmente equiparável às plantas. Embora não se possa afirmar que as reformulações do argumento da ἀπραξία tenham sido diretamente inspiradas por Aristóteles, não resta dúvida de que a consagrada “imagem vegetal” serviu muito bem à crítica da doutrina efética, afinal, essa analogia permaneceu viva na posteridade.
O termo essencial da analogia aristotélica, isto é, o substantivo neutro τὸ φύτον, reaparece na explicação sextiana do argumento da inação, evidenciando, ao que tudo indica, a conservação da força simbólica do argumento ao longo dos séculos. Em seus Adversus Mathematicos (IX, 163), ao procurar sintetizar a crítica da ἀπραξία, Sexto explica que, para os filósofos dogmáticos, aquele que suspende o juízo termina de forma ineludível confinado a um estado de inatividade, inércia, letargia (ἀνενεργησίαν); e isso fatalmente ocorreria – na opinião dos proponentes da crítica – pela seguinte razão: “sendo toda a vida escolhas e evitações, aquele que nem escolhe nem evita coisa alguma renuncia em potência à vida e se mantém ao modo de qualquer planta” (τοῦ βίου παντὸς ἐν αἱρέσεσι καὶ φυγαῖς ὄντος ὁ μήτε αἱρούμενός τι μήτε φεύγων δυνάμει τὸν βίον ἀρνεῖται καὶ τινος φυτοῦ τρόπον ἐπεῖχεν).
Grosso modo, o que se busca com esse argumento é demonstrar que a suspensão do juízo conduz o cético àquela inatividade característica das plantas. O cenário da vida humana, sendo o palco no qual toda ação se efetiva, exige, necessariamente, escolha, decisão, preferência, deliberação – elementos sem os quais a vida em sociedade se torna impossível. Por essa razão, os críticos dos céticos condenaram o irrestrito estado de repouso do intelecto, concebendo-o como um princípio contrário à manutenção da vida humana e como uma modalidade de ser consentânea às plantas. Em suma, o que se colheria da ἐποχή (julgam os dogmáticos) não seria senão a inatividade enfermiça, a paralisia vegetativa, a letargia dos arbustos.
Se lembrarmos do tratado de botânica ΠΕΡΙ ΦΥΤΩΝ (816a25), texto da escola peripatética presente no corpus aristotelicum, poderemos compreender ainda mais a metáfora dο argumento da ἀπραξία. No referido texto, explica-se que “as plantas não têm movimento a partir de si mesmas” (οὐκ ἔχουσι τὰ φυτὰ κίνησιν ἐξ ἑαυτῶν), isto é, nenhuma planta possui em si a potência de causar seu próprio movimento, “pois estão fixadas na terra” (τῇ γὰρ γῇ εἰσὶ πεπηγότα). O filósofo efético, de maneira análoga, tendo seu juízo suspenso sobre a verdade ou falsidade das coisas (nada assentindo ou rejeitando), destrói a possibilidade de ser o agente de suas próprias ações, visto que elimina, com a retenção de julgamento que jaz enraizada em sua mente, todo movimento, impulso e dinamismo que é próprio de qualquer ser animado. A ἐποχή, enfim, faria do homem uma planta.
É fácil compreender, à luz do paralelismo que o argumento tenta estabelecer entre quem suspende o juízo e uma planta, o diagnóstico feito pelos dogmáticos de que “os céticos destroem a vida, ao rejeitarem todas as coisas a partir das quais a vida se constitui / τὸν βίον αὐτοὺς ἀναιρεῖν, ἐν ᾧ πάντ’ ἐκβάλλουσιν ἐξ ὧν ὁ βίος συνέστηκεν” (DL, IX, 104). A percepção de que a suspensão do juízo elimina as condições de possibilidade de toda ação, fomenta o pensamento de que o ceticismo consiste numa doutrina antivida, letárgica, apática, a qual suprime, desde a raiz, os elementos basilares da vida humana, compelindo os homens à tola crença de que é possível conduzir-se na vida tal qual um inane vegetal[14].
A contestação anticética, porém, não termina por aqui. Ver-se-á prosperar, paralelamente à acusação de inatividade de quem suspende o juízo, a denúncia de que toda ação realizada por quem adere à ἐποχή (caso isso seja possível) é desprovida de qualquer racionalidade. Em síntese, esse tipo de crítica sustenta que qualquer ação destituída de assentimento é na verdade uma ação irracional. O peripatético Aristocles de Messene foi um dos que promulgaram essa objeção. Em sua obra ΠΕΡΙ ΦΙΛΟΣΟΦΙΑΣ, preservada por Eusébio de Cesareia (Prae. Evang. XIV, 18, 15), Aristocles menciona o encontro entre Tímon e Pirro no caminho para Delfos, e, para provar a incongruência dos pirrônicos, ele indaga: “E este mesmo admirável Pirro, por acaso saberia o que há de se contemplar se caminhasse aos jogos píticos? Ou caminhava errante, tal como os que estão loucos, ao longo da estrada? (αὐτός τε ἐκεῖνος ὁ θαυμαστὸς Πύρρων ἆρά γε ᾔδει τὸ διὰ τί βαδίζοι Πύθια θεασόμενος; ἢ καθάπερ οἱ μεμηνότες ἐπλανᾶτο κατὰ τὴν ὁδόν;).
O objetivo central das indagações de Aristocles é demonstrar que as atitudes daqueles que propõem a suspensão do juízo são desprovidas de coerência ou racionalidade. Nenhuma das ações de quem adere a uma filosofia efética poderia se justificar racionalmente, visto que não poderia haver, no âmbito prático, nenhuma ação mais digna de preferência do que outra. Esse mesmo tipo de objeção foi lançado pelo epicurista Colotes de Lâmpsaco contra Arcesilau, que, como atestam os registros doxográficos, subscrevia a suspensão do juízo. Para evidenciar a irracionalidade das ações de quem adere à ἐποχή, Colotes (Plutarco, Adv. Col., 1122e), de forma análoga a Aristocles, questionou seu adversário acadêmico no que tange à coerência entre ação e ἐποχή: “Mas como quem suspende o juízo não sai correndo à montanha em vez de ao banho, nem caminha, tendo se levantado, em direção à parede em vez de em direção à porta, quando deseja chegar à ágora?” (Ἀλλὰ πῶς οὐκ εἰς ὄρος ἄπεισι τρέχων ὁ ἐπέχων ἀλλά εἰς βαλανεῖον, οὐδὲ πρὸς τὸν τοῖχον ἀλλὰ πρὸς τὰς θύρας ἀναστὰς βαδίζει βουλόμενος εἰς ἀγορὰν προελθεῖν;). O objetivo de Colotes, aqui, é idêntico ao de Aristocles: evidenciar a impossibilidade de uma ação coerente sob o influxo da ἐποχή.
Ainda na esteira da crítica epicurista, porém identificando o ceticismo como uma doutrina que refuta a si mesma, a pena do poeta Lucrécio também serviu aos propósitos dos que condenaram o ceticismo, mostrando numa pitoresca imagem como o ceticismo imprime uma completa inversão e distorção das coisas:
Denique nil sciri siquis putat, id quoque nescit an sciri possit, quoniam nil scire fatetur.
Nunc igitur contra mittam contendere causam, qui capite ipse sua in statuit vestigia sese.
Enfim, se alguém julga nada ser conhecido, isso também não conhece,
se se possa ser conhecido, pois confessa nada conhecer.
Assim sendo, então, deixarei de contender a questão contra [esse] mesmo,
que se pôs com sua cabeça [no lugar] dos pés (Lucrécio, 2004, p. 226).
Ser cético, nessa acepção, é pôr a vida de cabeça para baixo; é inverter e subverter a ordem natural que governa a vida dos homens; é fazer do contrassenso a bússola moral e do paradoxo a regra do pensamento. À medida que se multiplicaram as críticas ao ceticismo, cresceu, também, o grau de virulência dos ataques aos céticos, tal como podemos ler nas páginas do estoico Epicteto, que, ao censurar o ceticismo, adota um tom de superlativa hostilidade, tão hostil que nem mesmo o longo e retumbante debate travado entre céticos e antigos membros da Στοά (Zenão, Cleantes, Crisipo) foi capaz de produzir. A ácida pena do estoico romano assim sentenciou:
[...] ὁ ἀγνοῶν, τίς ἐστι καὶ ἐπὶ τί γέγονεν καὶ ἐν τίνι τούτῳ τῷ κόσμῳ καὶ μετὰ τίνων κοινωνῶν καὶ τίνα τὰ ἀγαθά ἐστι καὶ τὰ κακὰ καὶ τὰ καλὰ καὶ τὰ αἰσχρά, καὶ μήτε λόγῳ παρακολουθῶν μήτ’ ἀποδείξει, μήτε τί ἐστιν ἀληθὲς ἢ τί ψεῦδος, μήτε διακρῖναι ταῦτα δυνάμενος οὔτ’ ὀρέξεται κατὰ φύσιν οὔτ’ ἐκκλινεῖ οὔθ’ ὁρμήσει οὔτ’ ἐπιβαλεῖται, οὐ συνγακαθήσεται, οὐκ ἀνανεύσει, οὐκ ἐφέξει, τὸ σύνολον κωφὸς καὶ τυφλὸς περιελεύσεται δοκῶν μέν τις εἶναι, ὢν δ’ οὐδείς.
[...] aquele que ignora quem ele é e para que nasceu, e em que tipo de mundo [existe], e com quem ele o compartilha, e [ignora] o que são as coisas boas e as más, o que são as honrosas e as desonrosas, e nem segue a razão ou a demonstração, nem o que é verdadeiro ou o que é falso, não sendo capaz de distinguir estas coisas, nem desejará conforme a natureza nem evitará, nem se agitará nem descansará, não assentirá, não dissentirá, não suspenderá o julgamento; em suma, ele vagueará surdo e cego, pensando ser alguma coisa, quando ele realmente é nada (Epicteto, 1952, p. 426).
O exagero caricatural, a desqualificação impetuosa, a redução proposital do cético à condição de um ente que, insciente, perambula surdo e cego, demonstra o grau de hostilidade que a crítica pouco arrazoada do ceticismo foi capaz de atingir. Epicteto, ignorando de que modo os antigos céticos instituíram um critério prático a partir do qual poderiam se conduzir na vida, pinta um quadro extremamente nefasto do ceticismo. No fundo, para Epicteto, o ceticismo é uma patologia da alma que se dissemina pela sutileza discursiva, marca do ardil e das cavilações das palavras. Nesse sentido, o pirrônico e o acadêmico, ao apregoar suas ideias, apenas espalham a doença que leva os homens a tomar por verossímil o que é absurdo, promovendo, desse modo, o desalento e a aflição onde quer que seus princípios prosperem, “fato” que encorajou o velho estoico a admoestar quem o ouvia assim: “Se os sofismas pirrônicos e acadêmicos são o que nos afligem, apliquemos sobre eles a cura / εἰ σοφίσματα ἡμᾶς Πυρρώνεια καὶ Ἀκαδημαικὰ τὰ θλίβοντα ἐστιν, ἐκείνοις προσάγωμεν τὴν βοήθειαν” (Epicteto, 1952, p. 172). Cura, aqui, que não é senão o completo afastamento e a radical abjuração das doutrinas pirrônica e acadêmica.
Enquanto parte inseparável desse processo de depreciação filosófica, o aviltamento colérico disfarçado de crítica conscienciosa, tão logo as condições históricas permitiram, transformou-se em escárnio puro e simples. Talvez o exemplo mais destacado de como o cético pirrônico foi ridicularizado no Período Helenístico venha de pena de Luciano de Samósata, escritor sírio que reservou parte da sua obra satírica, intitulada ΒΙΩΝ ΠΡΑΣΙΣ, para zombar causticamente do cético e da sua doutrina. Escrito em forma de diálogo, o texto exibe um espetacular leilão de modelos filosóficos, tais como o pitagórico, o cínico, o estoico, o cético e outros, os quais são vendidos pelo preço que condiz com o préstimo de suas respectivas doutrinas. Além de Zeus, que acompanha todo o processo, Hermes é o vendedor dos modelos filosóficos, tendo como principal interlocutor a figura do Comprador. No trecho reservado à “homenagem” ao modelo pirrônico, duas passagens merecem atenção. A primeira, pelo aspecto caricatural da postura gnosiológica do pirronismo, a segunda, por mesclar o escárnio com o vilipêndio. No primeiro trecho temos:
ΕΡΜΗΣ. [...] ὅμως δὲ τὶς καὶ τοῦτον ὠνήσεται;
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. Ἔγωγε. ἀλλὰ πρῶτον εἰπέ μοι, σύ τί ἐπιστασαι;
ΠΥΡΡΩΝ. Οὐδέν.
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. Πῶς τοῦτο ἔφησθα;
ΠΥΡΡΩΝ. Ὅτι οὐδὲν ὅλως εἶναί μοι δοκεῖ.
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. Οὐδὲ ἡμεῖς ἄρα ἐσμέν τινες;
ΠΥΡΡΩΝ. Οὐδὲ τοῦτο οἶδα.
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. Οὐδὲ ὅτι σύ τις ὢν τυγχάνεις;
ΠΥΡΡΩΝ. Πολὺ μᾶλλον ἔτι τοῦτο ἀγνοῶ.
HERMES. [...] Não obstante, quem há de comprar este?
COMPRADOR. Eu, pelo menos. Mas primeiro me diz: o que tu sabes?
PIRRÔNICO. Nada.
COMPRADOR. Que queres dizer com isso?
PIRRÔNICO. Que, em minha opinião, nada existe absolutamente.
COMPRADOR. Então nós não existimos?
PIRRÔNICO. Nem isso eu sei.
COMPRADOR. Nem sequer que tu existes?
PIRRÔNICO. Isso eu ignoro ainda muito mais (Luciano, 1960, p. 506).
Logo adiante, o escárnio de Luciano, eivado de um aviltamento indisfarçável contra o cético pirrônico, assume contornos mais insultuosos:
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. [...] ἀλλὰ τί σοι τὸ τέλος τῆς ἐπιστάσεως;
ΠΥΡΡΩΝ. Ἡ ἀμαθία καὶ τὸ μήτε ἀκούειν μήτε ὁρᾶν.
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ. Οὐκοῦν τὸ τυφλὸς καὶ ἅμα κωφὸς εἶναι λέγεις;
ΠΥΡΡΩΝ. Καὶ ἄκριτός γε προσέτι καὶ ἀναίσθητος καὶ ὅλως τοῦ σκώληκος οὐδὲν διαφέρων.
COMPRADOR. Mas qual é a finalidade da tua posição?
PIRRÔNICO. A ignorância, e nem ouvir nem ver.
COMPRADOR. Então dizes ser ao mesmo tempo cego e surdo?
PIRRÔNICO. Também, e, além disso, incapaz de julgar e estúpido, numa palavra: em nada diferente de um verme (Luciano, 1960, p. 508).
A caricatura cômica da concepção gnosiológica pirrônica, que não destoa em absoluto do modo como muitos interpretaram o pirronismo, visa ressaltar o suposto caráter paradoxal dos princípios pirrônicos, sugerindo, sobretudo, que o pensamento cético é uma excentricidade indigna de ser levada a sério. O segundo trecho do diálogo, por sua vez, possui uma tônica mais infamante, visto que declara ser a ignorância (ἀμαθία) o fim último da Σκέψις. O cético é qualificado como alguém que vaga surdo e cego (τυφλὸς καὶ κωφὸς), designação que também encontramos em Epicteto, sendo adicionado, ainda, que o cético pirrônico é incapaz de jugar (ἄκριτός) e estúpido (ἀναίσθητος), características que denotam os efeitos molestos dos preceitos pirrônicos e o quão distantes seus adeptos estão de uma boa forma de viver.
A incompatibilidade entre orientação filosófica e vida prática sempre foi um alvo especial da sátira romana. Parece-nos bastante acertada a afirmação de Roland Mayer (2006, p. 206) sobre essa peculiaridade. Ele nos diz que: “O que especialmente fez do filósofo um objeto de zombaria satírica foi a impraticabilidade de suas doutrinas”. Se levarmos isso em consideração, não nos surpreenderíamos se a “sátira” luciânica estivesse em alguma medida influenciada pela famosa analogia entre a figura do cético e uma planta. Na realidade, se examinarmos a definição aristotélica das plantas, perceberemos que a designação vegetal é de fato concorde com os atributos elencados por Luciano, haja vista que não ouvir, não enxergar e ser incapaz de julgamento e de percepção era como se concebia ontologicamente uma planta na Liceu. Lembremo-nos, a título de exemplificação, do que diz Aristóteles sobre a natureza das plantas em seu ΠΕΡΙ ΨΥΧΗ (424a30), isto é, que “as plantas não têm percepção sensível” (τὰ φυτὰ οὐκ αἰσθάνεται).
Em função das observações aludidas, é lícito perguntar se não haveria no “leilão do cético” a presença mais ou menos velada da crítica da ἀπραξία em sua forma simbólica mais expressiva. Dito de outra forma, o que indagamos aqui é sobre a possibilidade de a famosa analogia da planta ter servido como referência para que Luciano desenvolvesse sua caracterização infamante do cético. Teria Luciano absorvido a detratação antecedente contra o cético e ornado o seu vitupério com ela? Seria tal hipótese realmente o caso? Essas são perguntas que, embora razoáveis de serem feitas, talvez jamais possamos responder, visto que Luciano não extrai das qualidades pejorativas que elenca que o cético é uma planta, mas sim que é idêntico a um verme (σκώληκος) – escolha que coaduna melhor com a estética do ultraje que o autor parece perseguir[15].
De qualquer forma, é difícil determinar os efeitos negativos que esta parte específica da desqualificação filosófica do ceticismo legou para a posteridade. Se considerarmos a influência que as obras artísticas voltadas para o escárnio e a galhofa são capazes de exercer, sobretudo no que diz respeito ao imaginário dos homens, então podemos considerar que os resultados dos ultrajes artisticamente elaborados não são insignificantes. Um exemplo emblemático da visão distorcida e caricatural do cético, que ao que tudo indica povoou parte do imaginário dos homens da Antiguidade, encontra-se em um epigrama sepulcral, preservado na Antologia Palatina, onde vemos ser ironizados tanto o patrono da Σκέψις, Pirro de Élis, quanto o preceito da suspensão do juízo:
α. Κάτθανες, ὦ Πύρρων; β. Ἐπέχω. α. Πυμάτην μετὰ μοῖραν
φὴς ἐπέχειν; β. Ἐπέχω. α. Σκέψιν ἔπαυσε τάφος.
α. Morreste, ó Pirro? β. Suspendo o juízo. α. Mesmo após o derradeiro destino tu dizes suspender o juízo? β. Suspendo o juízo. α. A tumba pôs um fim ao ceticismo (The Greek Anthology, 1919, p. 309).
O fim do epigrama é claro: tornar o pirronismo um exemplo transparente do quanto uma doutrina filosófica pode ser ridícula em função da adoção de preceitos absurdos, ilógicos e impraticáveis. O efeito do poder do ridículo não é outro senão o de desencorajar o exame, a atenção e a meditação séria acerca do objeto ridicularizado. Os homens, em sua esmagadora maioria, não se ocupam zelosamente com as coisas que são dignas de riso, que recebem a alcunha de tolices e são vistas como disparates excêntricos. Em alguma medida, parece-nos que boa parte dos enganos sobre o ceticismo tem sua origem remota no conjunto das desqualificações históricas que apresentamos, as quais foram capazes de fomentar não apenas os preconceitos que desconsideram o ceticismo filosófico antes de examiná-lo, mas também as interpretações deturpadas que rebaixam essa corrente de pensamento.
Por essas e outras razões, torna-se compreensível como as reprovações e maledicências de outrora puderam ecoar em textos modernos e contemporâneos, retroalimentando as depreciações contra o ceticismo e mantendo vivas as chamas de sua condenação – estigma que também acompanhou por séculos a sofística. Por um lado, a abordagem do fenômeno da depreciação histórica de sofistas e céticos lança luz sobre as causas que provocaram seu menosprezo; mas também aclara, por outro, o motivo de certa indiferença acadêmica a tais linhas de pensamento. Como observou Oswaldo Porchat:
A sofística, o ceticismo e os outros movimentos do pensamento posterior que se lhes pudessem assemelhar parecem constituir tão-somente momentos relativamente apagados da reflexão filosófica ao longo dos séculos, que apenas merecem um lugar secundário – quando o merecem – nos manuais de história da filosofia e nos programas universitários em que a filosofia se diz transmitida e ensinada (Porchat, 2007, p. 16).
Perante esse desprestígio histórico, em virtude do qual o valor filosófico de sofistas e céticos foi relativamente escamoteado, podemos dizer que o trabalho acadêmico de reabilitação e de desmistificação da sofística e do ceticismo, que desde o século XIX até os nossos dias vêm paulatinamente revelando a riqueza dessas duas tradições, são tarefas necessárias e sempre atuais, que devem ser mantidas e reiteradamente desenvolvidas, a fim de que os preconceitos milenares não continuem a florescer em nossa época. Ademais, ainda que tal fenômeno fosse considerado óbvio, o que não nos parece o caso, mesmo assim esse óbvio precisaria ser referido, apontado, denunciado, sob o risco de essa obviedade, em razão do silêncio a seu respeito, desaparecer do horizonte de nossas consciências. Por isso mesmo, fizemos da reconstrução da desqualificação filosófica de sofistas e céticos, assim como do exame de suas designações originárias, o escopo deste trabalho, visando, assim, a uma melhor compreensão histórica da semântica dos termos e da secular depreciação que lhes foi injustamente dispensada.
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Wesley Rennyer
Professor de Filosofia Antiga e Medieval da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Doutor em Filosofia pelo PPGFIL da UFRN. Mestre em Filosofia pela UFPB. Graduado em Filosofia e Letras Clássicas pela UFPB.
Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação
[1] O presente texto, com as devidas supressões e alterações pontuais, corresponde ao capítulo 1 da minha tese de doutorado, Sofística e pirronismo: alvorecer e plenitude da razão negativa, defendida e aprovada em 2022.
[2] Máxima atribuída a Periandro de Corinto (século VI a.C.) e preservada por Diógenes Laércio (DL, I, 99). É comum encontrarmos traduções que consideram μελέτη como substantivo e não como verbo – donde provêm soluções questionáveis para “μελέτη τὸ πᾶν”. A razão desse problema é morfológica, pois a forma μελέτη tanto pode ser considerada um substantivo quanto um verbo. A nosso ver, trata-se, na verdade, da forma dórica do verbo μελετάω, empregada na segunda pessoa do presente do imperativo, e esse entendimento se justifica pelo fato de a quase totalidade das sentenças gnômicas serem construídas no modo imperativo, tendo um sentido de mando ou de exortação.
[3] Um dos conselhos de Bias de Priene (século VI a.C.): ver DL, I, 88.
[4] Uma das Máximas Délficas preservadas por Estobeu (Cf. Anthologium, III. 1, 173).
[5] Máxima atribuída a Sólon de Atenas (Cf. DL, I, 63) – ela também aparece como uma das sentenças délficas na lista de Estobeu (Cf. Anthologium, III. 1, 173).
[6] Aforismo atribuído a Periandro de Corinto (Cf. DL, I, 97).
[7] Máxima de Bias de Priene (DL, I, 87).
[8] Como é explicado ainda no passo 316c do diálogo Protágoras, quando os estrangeiros (sofistas) chegavam a grandes cidades, e lá persuadiam os melhores dos jovens a abandonarem suas antigas conexões para se associarem a eles (na esperança que assim se tornassem ainda melhores), isso causava inúmeras intrigas e inimizades. Por essa razão, a cautela e até a dissimulação da arte sofística tornou-se uma forma de os sofistas se resguardarem (Cf. Platão, Protágoras, 316c). É provável que se trate de uma transferência do caráter pejorativo do tempo de Platão para o Período Arcaico, no qual, como vimos, não havia nenhuma conotação depreciativa do termo σοφιστής.
[9] O século V a.C. é uma referência sem paralelo na História da Grécia Antiga no que diz respeito à superabundância de personagens e obras verdadeiramente extraordinárias. Com o fim das Guerras Médicas, a cidade de Atenas, líder da Liga de Delos, expandindo sua força política, comercial e militar, tornou-se a cidade mais poderosa de toda a Grécia. Sob o comando de Péricles, Atenas teve um incrível desenvolvimento nas áreas da política, das artes, da filosofia, da arquitetura, da literatura, da diplomacia e da estratégia militar, e foi esse esplêndido florescimento cultural que atraiu muitos sofistas profissionais: “Na Atenas de Péricles também era possível acompanhar as conferências dos sofistas. Esses sábios itinerantes, mestres do pensamento e da palavra, eram inevitavelmente atraídos pela grande cidade onde podiam gozar do estatuto de metecos. Nela, mediante altas somas, ensinavam a organizar o discurso de modo que se pudesse argumentar sobre qualquer tipo de problema, em conformidade com os hábitos da democracia, que se alimentava de debates contraditórios” (Lefèvre, 2013, p. 168).
[10] Cf. Pierre Chantraine, Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, 1999, p. 1014.
[11] O leitor atento terá percebido que a raiz indo-europeia *spek- se mantém morfologicamente inalterada no radical do verbo latino speciō, mas não em σκέπτομαι. A diferença no radical de σκέπτομαι – em relação à raiz indo-europeia – se dá com a troca de posição do ‘kápa’ (κ) e do ‘pi’ (π), fenômeno linguístico relativamente raro (quando se trata do radical do termo) denominado de metátese.
[12] Principalmente estoicos e epicuristas.
[13] Sobretudo, aqui, Heráclito e Demócrito, mas também os sofistas Protágoras e Górgias.
[14] Contra os acadêmicos, que sustentavam a inapreensibilidade das coisas, objeção semelhante lhes foi dirigida: “Ergo ii qui negant quicquam posse comprendi haec ipsa eripiunt vel instrumenta vel ornamenta vitae, vel potius etiam totam vitam evertunt funditus ipsumque animal orbant animo, ut difficile sit de temeritate eorum perinde ut causa postulat dicere || Portanto, aqueles que negam algo poder ser apreendido, arrebatam estes próprios os instrumentos ou ornamentos da vida, ou antes, subvertem toda a vida desde seus fundamentos, e destituem o próprio ser vivo do ânimo, de modo que seja difícil falar da temeridade deles assim como a causa requer” (Cícero, Acadêmicas, II, 31).
[15] Embora a obra ΒΙΩΝ ΠΡΑΣΙΣ não tenha escarnecido exclusivamente dos céticos, não podemos deixar de notar que há em sua abordagem cômica a recuperação do teor virulento da imagem da cético-planta.