
Resenha
Better never to have been: the harm of coming into existence de David Benatar
BENATAR, David. Better never to have been: the harm of coming to existence. New York: Oxford University Press, 2006.
André Mário Gonçalves Oliveira
USP – Universidade de São Paulo
Recebido: 24/07/2025
Received: 24/07/2025
Aprovado: 25/08/2025
Approved: 25/08/2025
Publicado: 08/09/2025
Published: 08/09/2025
As efervescentes questões antinatalistas ganharam força após a publicação, em 2006, de Better Never to Have Been: the harm of coming into existence[1], obra do autor sul-africano David Benatar. Sem qualquer cerimônia ao se autodeclarar antinatalista e ao postular que seu antinatalismo é de natureza moral, Benatar estabelece como meta do livro argumentar que, independentemente do que possa ser considerado bom durante a existência, ainda assim, há, em alguma certa medida, privações que tornam a existência involuntária um dano suficientemente grave para que adotemos sua posição em relação ao nascimento de novas pessoas.
Apesar de já ter completado quase duas décadas desde sua publicação, o livro continua relevante nas discussões sobre o antinatalismo, especialmente diante da crescente preocupação com o destino da humanidade, que, mesmo diante das constantes ameaças à sua permanência no planeta Terra, insiste em continuar existindo.
O que parece ser, à primeira vista, o argumento principal da posição defendida pelo autor é a qualidade de vida que os humanos levam em diferentes partes do mundo. Ele ressalta constantemente que há, de fato, muito sofrimento envolvido em existir, independentemente de raça, posição social ou econômica, localização geográfica ou momento histórico. Entretanto, ao longo das sete partes em que o livro é dividido — incluindo a introdução e a conclusão —, o que se delineia como argumento central é o problema da assimetria entre existir e não existir. Em outras palavras, o que parece ser mais relevante para o autor não é a quantidade de males presentes na existência, mas o fato de que, na inexistência, não há nenhum mal — e isso não torna a inexistência “melhor” por si só, já que somente faria sentido falar em mal (ou bem) se houvesse alguém para senti-lo.
Trata-se, portanto, de lamentar o sofrimento de quem existe, mas não a ausência de prazeres de quem nunca existiu. No artigo intitulado O antinatalismo benatariano e o pessimismo metafísico de Schopenhauer (2024), o autor demonstra que o, admitidamente, principal argumento de Benatar — o argumento da assimetria — não se limita a contabilizar os aspectos positivos e negativos da existência, dos quais nenhuma vida escapa, e, a partir dessa operação comparativa, extrair a conclusão de que há uma grande disparidade que tornaria a inexistência completamente desejável. Assim, prossegue o autor:
De acordo com o filósofo sul-africano, embora não haja, na inexistência, um ser para usufruir da ausência de dor, essa ausência de sofrimento ainda é considerada um bem. Em contrapartida, a ausência de prazer seria um mal apenasse esse ser inexistente viesse a existir e, então, experimentasse essa falta (Benatar, 2006, p. 30). Se não há nada de ruim em nunca ter existido — ou seja, se a ausência de dor é um bem e a ausência de prazer, na falta de alguém para experimentar essa privação, também é um bem — então a inexistência é preferível, pois, ao existir, ao menos um sofrimento, como podemos concordar, surgirá inevitavelmente e atuará como fator desestabilizador (Oliveira, 2024, p. 6).
Better Never to Have Been, ainda sem tradução oficial para o português, leva o leitor a refletir sobre a qualidade de sua própria vida por meio de exemplos diretos e questões ousadas — tanto para o ano em que foi publicado quanto para os dias atuais —, já que ainda é um tabu tratar abertamente de temas como aborto, extermínio em massa e suicídio. O livro aborda tais questões com naturalidade e, como obra precursora e de referência, desafia a literatura filosófica da época.
Para afastar de sua posição filosófica possíveis objeções de cunho otimista que possam colocar em xeque seu antinatalismo, o autor apoia-se em uma condição psicológica segundo a qual as pessoas tendem a ter uma visão distorcida da própria vida. Com isso, tem-se a impressão de que quaisquer argumentos contrários ao antinatalismo apresentado na obra poderiam ser refutados pelo simples fato de se basearem em uma percepção enganosa da própria existência, como se esta fosse vista através de um véu ilusório. Especificamente, a questão psicológica referida pelo autor como polianismo, bem como o argumento central da obra, a assimetria, têm sido protagonistas de debates recentes, nos quais autores imbuídos de otimismo procuram refutar Benatar.
As seis menções que o autor faz ao filósofo Arthur Schopenhauer — sendo duas delas em notas de rodapé — sugerem parte de sua inspiração na metafísica da vontade, o que, por sua vez, pode indicar uma tensão interna em sua proposta, já que, nesse caso, não se trataria propriamente de uma posição moral, conforme Benatar defende de maneira consistente. Além disso, a referência que o autor sul-africano faz a Immanuel Kant também revela consonância com um importante desdobramento do Imperativo Categórico, que proíbe o uso de pessoas como meios para fins.
As poucas menções ao filósofo da Vontade não devem, porém, passar despercebidas. Logo no início da obra, a referência a Schopenhauer pode ser notada de modo indireto, pois, quando Benatar aceita que a reprodução é tida como algo tão natural que aparenta não exigir consideração ou justificação, há um alinhamento com a concepção schopenhaueriana segundo a qual o ato de trazer novas vidas à existência é considerado amoral — não tendo, portanto, valor de bom ou ruim — por tratar-se de um impulso incontrolável que serve unicamente ao interesse da própria Vontade[2], isto é, à manutenção da espécie.
É digno de nota que, no capítulo 3, assim como o capítulo 6, o autor dedique a epígrafe de abertura ao segundo tomo da obra Parerga e Paralipomena, especificamente ao capítulo XII, no qual Schopenhauer elenca diversas perspectivas do sofrimento[3] que, no caso de Benatar, são utilizadas para justificar um antinatalismo moral, ao passo que, na obra do filósofo alemão, a raiz de toda essa infelicidade é de ordem metafísica. O terceiro capítulo do livro aqui resenhado é o mais relevante para quem busca discutir uma origem comum entre o antinatalismo moral de Benatar e o pessimismo metafísico de Schopenhauer. Também nesse capítulo ocorre a primeira menção direta ao filósofo da Vontade. O autor credita a Schopenhauer a façanha de perceber, desde muito cedo em sua filosofia, que viver é uma constante batalha para escapar de um estado de insatisfação[4] (dissatisfaction) e que, como resultado dessa luta, tudo o que se obtém é uma satisfação transitória, a qual logo dará lugar a um novo desejo.
Aquilo que Benatar denomina The Harm Principle (o princípio do dano) permeia todo o seu livro como uma espécie de argumento coringa, ao qual ele recorre sempre que uma objeção à sua posição possa ser levantada. Para sustentar esse argumento, o autor utiliza exemplos de doenças que podem ser transmitidas ao feto como justificativa da aceitação, por parte das pessoas — que ele chama de “medianas”, por não admitirem que trazer novas vidas à existência representa sempre um dano —, do aborto, o qual, segundo ele, constitui uma das esferas do antinatalismo.
Ora, se um dano considerado evitável — como doenças, deficiências etc. — pode ser usado para justificar o aborto, então, salienta o autor, o antinatalismo está ainda mais bem fundamentado. Isso porque, seguindo o princípio do dano, as condições inevitáveis da vida já constituem, por si só, uma realidade suficientemente negativa para justificar, assim como no caso das más condições evitáveis, a decisão de não trazer ninguém à existência.
Na verdade, o infortúnio de as sociedades não conseguirem acolher adequadamente pessoas com necessidades especiais apenas torna a vida dessas pessoas ainda mais miserável. No entanto, Benatar também destaca o fato de que mesmo indivíduos sem deficiências aparentes sofrem por não terem desenvolvido determinadas habilidades que poderiam lhes ser úteis — e cuja ausência causa um sofrimento inevitável.
Paraplégicos podem necessitar de acesso especial ao transporte público, mas o fato de que ninguém consegue voar ou percorrer longas distâncias em alta velocidade significa que mesmo aqueles que podem usar as pernas precisam de meios de transporte. Nossas vidas certamente são menos satisfatórias por sermos tão dependentes. Nossas vidas também são menos satisfatórias porque somos suscetíveis à fome e à sede (ou seja, incapazes de ficar sem comida e água), ao calor e ao frio, entre outras coisas. Em outras palavras, mesmo que a deficiência seja uma construção social, as incapacidades e outras características desfavoráveis que marcam a vida humana normal já são suficientes para tornar nossas vidas muito difíceis — na verdade, muito mais difíceis do que normalmente reconhecemos (Benatar, 2006, p. 119. Tradução minha).
Como se pode notar, embora considere, sob diversas perspectivas, os sofrimentos que podem ser classificados como sociais — e, portanto, contornáveis ou completamente evitáveis —, o autor preocupa-se primordialmente com o fato de que é impossível livrar-se dos infortúnios aos quais até mesmo o homem mais rico, mais forte, mais habilidoso ou mais sortudo está sujeito.
Better Never to Have Been não tem como propósito oferecer esperança ao leitor, mas sim apresentar uma espécie de ultimato quanto à condição da vida. Com isso, o autor ensaia demonstrar como seria possível extinguir a vida humana sem, com isso, causar ainda mais danos a ela.
Benatar estima que cerca de 106 bilhões de pessoas já tenham existido, das quais apenas 6% ainda estão vivas (Cf. Benatar, 2006, p. 167). Pela primeira vez, no entanto, uma população tão numerosa encontra-se concentrada simultaneamente no planeta, e é isso que leva o autor a contemplar a possibilidade de uma extinção em massa de seres vivos — como, de fato, já ocorreu anteriormente na Terra — ou de uma extinção gradual[5] (phased extinction), que poderia se dar por meio da redução dos nascimentos.
Essa diminuição, embora possa ocorrer de maneira voluntária, dificilmente teria como objetivo consciente o desaparecimento da espécie humana. Em vez disso, visaria à melhoria das condições de vida, ou seja, à redução do sofrimento social, sem levar em consideração aquilo que é inevitável: o sofrimento intrínseco à existência, o qual somente cessaria mediante uma extinção em massa de forma repentina.
Nas palavras do autor: “I’m under no illusions” [6] (2006, p. 184). Assim, Benatar reconhece que não está discutindo como ou quando esse processo ocorrerá, mas sim o que deveria ocorrer, ou o que seria melhor que ocorresse.
Destarte, esta obra — que, em 2017, inspirou a publicação do livro The Human Predicament: A Candid Guide to Life’s Biggest Questions[7], do mesmo autor, o qual reforça os argumentos apresentados no primeiro e faz apenas alguns acréscimos à teoria já existente — constitui uma leitura indispensável tanto para aqueles que se dedicam ao estudo acadêmico do antinatalismo e de questões morais quanto para os que desejam contemplar as implicações da existência e da inexistência, levando o leitor a refletir se, de fato, toda existência constitui, necessariamente, um dano.
Referências Bibliográficas
BENATAR, David. Better never to have been: the harm of coming to existence. New York: Oxford University Press, 2006.
BENATAR, David. The human predicament: a candid guide to life’s biggest questions. New York: Oxford University Press, 2017.
OLIVEIRA, André Mário Gonçalves. O antinatalismo benatariano e o pessimismo metafísico de Schopenhauer. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 15, n. 1, pp. 1-27, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688376. Acesso em: 30 de out. 2024.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora da Unesp, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga und Paralipomena – Band II. In: Schopenhauer, A. Sämtliche Werke – Band V. Org.: W. F. von Löhneysen. Stuttgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.
André Mário Gonçalves Oliveira
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e Mestrado em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Poliglota e entusiasta por línguas estrangeiras, é membro do grupo de estudos em Filosofia, Educação, Linguagem e Pragmática da Faculdade de Educação da USP e filiado à Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação (SOFIE). Seus principais interesses de pesquisa abrangem pessimismo, filosofia da educação, ética, metafísica, educação e ensino de língua estrangeira.
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[1] Melhor nunca ter existido: o dano de vir à existência (tradução livre).
[2] Cf. Schopenhauer, 2005, pp. 461-462.
[3] Não apenas o sofrimento humano, mas também o sofrimento animal é objeto de consideração. Na página 102, Benatar menciona Arthur Schopenhauer de maneira direta, pois, assim como este, valoriza a relevância do sofrimento animal. No caso de Benatar, observa-se a extensão de seu antinatalismo também aos animais, ao passo que Schopenhauer busca estabelecer que os animais, embora em menor intensidade que os humanos, também sofrem.
[4] Cf. Benatar, 2006, pp. 76-77.
[5] Cf. Benatar, 2006, p. 184.
[6] Não estou sob ilusões (Tradução minha).
[7] A condição humana: um guia sincero para as grandes questões da vida (tradução livre).