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Sobre a apropriação de Heidegger à filosofia prática de Aristóteles, em especial quanto ao conceito de Phrónesis

On Heidegger's appropriation of Aristotle's practical philosophy, especially regarding the concept of Phrónesis

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

0000-0002-8572-8302

kahlmeyermertens@gmail.com

UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná

Recebido: 24/10/2024

Received: 24/10/2024

Aprovado:17/12/2024

Approved: 17/12/2024

Publicado: 31/12/2024

Published: 31/12/2024

RESUMO

O tema do artigo é a apropriação heideggeriana da filosofia prática de Aristóteles, e como isso implicaria no conceito de “phrónesis”; questiona-se sobre qual seria o papel reservado a este conceito aristotélico em suas investigações na década de 1920. Objetiva-se indicar como esta é pensada em duas importantes obras desse período, o Relatório Natorp e Platão: Sofista. Meta relacionada é compreender como o conceito aparece no âmbito das interpretações fenomenológicas sobre o estagirita, especialmente na Ética a Nicômaco. Pretende-se indicar que a phrónesis (tratada como circunvisão e trazendo em si a gênese do existencial cuidado) é o que pode nos orientar praticamente em nossos comportamentos, proporcionando uma visão do aberto e implicando na interação com nosso ser. Caberá indicar como a phrónesis está ligada a um modo de desencobrimento do ser-aí e evidenciar como o ente que somos se dá à futura fenomenologia-existencial de Heidegger.

Palavras-chave: Heidegger; interpretações fenomenológicas de Aristóteles; filosofia prática; phrónesis; circunvisão.

ABSTRACT

The theme of the article is the Heideggerian appropriation of Aristotle's practical philosophy, and how this would imply the concept of “phrónesis”; The question is what role this Aristotelian concept would play in his investigations in the 1920s. The aim is to indicate how this is thought of in two important works from this period, the Natorp Report and Plato’s Sophist. A related goal is to understand how the concept appears within the scope of phenomenological interpretations of the Stagirite, especially in Nicomachean Ethics. The aim is to indicate that phrónesis (treated as circumvision and bringing with it the genesis of the existential care) is what can practically guide us in our behavior, providing a vision of the open and implying interaction with our being. It will be necessary to indicate how phrónesis is linked to a way of uncovering being-there and to highlight how the entity that we are is given to Heidegger's future existential phenomenology.

Keywords: Heidegger; phenomenological interpretations of Aristotle; practical philosophy. Phronesis; circumvision.

Introdução

São sempre inspiradoras as narrativas sobre o Heidegger dos anos de 1920 lotando auditórios e provocando significativa impressão nos ouvintes de suas preleções. Dentre elas, a mais ilustrativa é uma de Gadamer encontrada no prefácio à edição francesa de Interpretações fenomenológicas de Aristóteles (Relatório Natorp). Ali, nos conta que:

Essas interpretações tiveram tamanho impacto sobre Leo Strauss, um ouvinte do curso de Friburgo, que ele, como muitos outros, ficou tão entusiasmado que passou a propalar, por todo canto, que não era Werner Jaeger, o verdadeiro grande conhecedor de Aristóteles, tampouco Max Weber, que certamente representava, à época, o temperamento científico mais pujante da cátedra alemã, ali, ambos, comparativamente [a Heidegger], pareciam dois meninos desamparados[1] (Gadamer, 1992, p.13, tradução nossa).

Se levarmos a sério, no entanto, uma advertência do mencionado Weber (1994) sobre as “salas lotadas”, e sobre o quanto, por vezes, estudantes procuram determinado professor por motivações completamente alheias à ciência, então será necessário concentrarmo-nos em outro trecho da narrativa naquele prefácio sobre a referida preleção friburguense do semestre de inverno de 1921/22, o que vale para textos circunvizinhos, como é o caso do documento homônimo popularizado como Relatório Natorp (1922). Ali, novamente, vem à carga Gadamer (1992): “Heidegger trabalha aqui com enérgico vigor, com o ideal de ‘saber mais’ (Mãllon eidénai) que emerge da facticidade da vida humana”. (p.13, tradução nossa) Mais do que os impulsos do jovem Heidegger ou do ideal de mais saber (mehr Wissens), devemos atentar à fonte da qual ambos brotam. Diferentemente de outros temas de filosofia, a facticidade não é mero objeto num contexto significativo delimitado e ambos submissíveis à teorização. O em jogo aqui é fenômeno de nossa própria experiência humana e, como não poderia ser diferente, da própria vida do filósofo conjugada nessa experiência e, enquanto significativa, dependente de ser compreendida em tal solo.

Longo é o percurso trilhado por Heidegger na descrição fenomenológica do “fato humano” (Faktum); da “vida fáctica” (faktisch Leben), como versão clarificada deste fato; da “facticidade” (Faktizität), como determinação dessa vida e figura que, após ganho progressivo de centralidade em investigações que vão de 1919 a 1925 desenham amplo curso, desaguando no que, mais tarde, seria denominado análise fundamental do ser-aí. (Fundamentalanalyse des Daseins)[2] No fluxo desses desenvolvimentos, a filosofia de Aristóteles vem à baila fornecendo elementos para o que Heidegger pretende tratar como uma clarificação da facticidade nas tradições e da retomada de uma facticidade perdida e, depois, da apropriação do componente prático dessa filosofia como alento a uma existencial, uma filosofia da dinâmica do tornar-se na existência. Nesse esforço de apropriação de conceitos fundamentais da filosofia aristotélica, são revisitados pelo ver inspetor da fenomenologia do jovem Heidegger a “sophía” (Verstehen, compreensão), a “tékhne” (Sich-Auskenne, perícia), o “noûs” (vernehmendes Vermenine, apreensão pura), “epistéme” (Wissenschaft, ciência) e “phrónesis” (Umsicht, circunvisão) são apenas alguns desses. Tais conceitos, comparecem num repertório de obras que patenteiam a tarefa de leitura de Heidegger sobre aquele filósofo antigo, são elas: Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles: Introdução à Pesquisa Fenomenológica (1921-1922), Relatório Natorp (1922), Ontologia: Hermenêutica da facticidade (1923), Introdução à Pesquisa Fenomenológica (1923-1924), Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica (1924), Platão: Sofista (1924-1925) e Prolegômenos para uma história do conceito de tempo Heidegger (1925).

Tendo em vista o conceito de “phrónesis”, o artigo quer incursão nos contextos das obras Relatório Natorp e Platão: Sofista, com o propósito de oferecer um painel de como o conceito aparece no seio das interpretações que Heidegger faz da filosofia prática de Aristóteles, principalmente no “Livro VI” da Ética a Nicômaco.

1.              Aristóteles no Relatório Natorp(-Misch)

Registros biográficos de Heidegger documentam que cedo ele se tornou leitor de Aristóteles, mas, se essas leituras, de início, se processaram por exigência de sua formação clerical, logo passaram a ser tarefa de seu pensamento, como o filósofo mesmo declara (Heidegger, 2009). Todavia, não nos enganemos, as apropriações que Heidegger faz de Aristóteles, a partir de 1921, são sobremaneira diversas das anteriores (Buren, 1994). Estas traziam a orientação aristotélico-tomista invariável nos meios cristãos da época e, num período no qual o neorrealismo tomava assento nos estudos escolásticos e os neokantianos se exercitavam sobre o Da interpretação e os Analíticos (Aristotle, 1938) com franco interesse na doutrina aristotélica dos enunciados,[3] seria de se estimar que traços dessas tendências também fossem ali identificados. As interpretações posteriores trazem claramente a marca da fenomenologia e, desconstruindo o que as traduções fizeram de Aristóteles, visam a compreender a experiência fática esquecida em séculos de encurtamento de contextos promovidos pela tradição, para, a partir disso, chegar a alcançar mais propriamente um saber originário dessa facticidade, gesto de radicalização do projeto de uma ciência originária da vida (fática), nutrido desde o ano de 1919, por ocasião de sua obra Problemas Fundamentais da Fenomenologia (Heidegger, 1993).

Texto emblemático desta fase é Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles: Indicação da Situação Hermenêutica (Relatório Natorp) (1922). Com título homônimo à preleção ministrada no semestre anterior (1921-22) (a qual já preparava os próximos passos, por meio de análise circunstanciada dos traços-força das interpretações tradicionais da filosofia aristotélica até época atual, indicando sedimentações históricas encobridoras dos acenos ao solo fático-originário que o pensamento aristotélico resguarda), temos nesse breve informe, obra no mínimo pitoresca. Heidegger escrevera o relatório, meio à pressa, com um propósito pragmático, é documento por meio do qual ele, então Professor precário (Privatdozent), esperava uma nomeação uma cátedra universitária. Até onde se tem notícia, enviou o documento a mais de um titular esperando acolhida (sabe-se que ao neokantiano Paul Natorp, em Marburgo, e ao diltheyano Georg Misch, em Göttingen). Embora o documento não tenha surtido o esperado efeito (afinal não fora daquela vez que Heidegger conseguiu a pretendida colocação),[4] prestou-se bem a patentear o que o filósofo tinha nas mãos, como informa Gadamer (1995): “[…] em 1922, meu próprio professor Paul Natorp me deu para ler um manuscrito que Heidegger lhe enviara, uma introdução às interpretações de Aristóteles. A leitura desse manuscrito […] me tocou como um choque elétrico” (p. 4, tradução nossa). Ora, não tivesse Natorp reconhecido valor ali, sequer recomendaria a leitura a seu jovem orientando aspirante a filósofo.

Uma olhada ao texto do Relatório Natorp e logo vemos não se tratar de obra de elaboração extensa; com pouco mais de cinquenta páginas, temos Heidegger falando de sua fenomenologia em dois terços de sua extensão, com Aristóteles aparecendo apenas na terceira e última parte.[5] Da análise dessas, é possível depreender que mais do que interpretação canônica de Aristóteles, temos este pensamento dando alento àquilo que futuramente seria a ontologia fundamental de Heidegger, projeto filosófico para o qual o Relatório Natorp é esboço.  Enquanto programa de pesquisas, tal documento arrola uma série de leituras pretendidas, seriam os: “Livros A, B e Γ”, da Física, na busca do conceito de movimento (Bewegung); para compreender o modo de investigação aristotélico, Heidegger estudará o “Livro A”, da Metafísica e, por fim, a Ética a Nicômaco. Desta última, Heidegger se ocupa maioritariamente de seu “Livro VI”, no qual serão abordadas as assim chamadas virtudes dianoéticas; Heidegger pretende indicar como o ser-aí se desvela ou, dizendo com mais propriedade, como aquilo que logo será denominado de ser-aí se descerra compreensivamente como sentido no âmbito da vida e da própria compreensão de si.

O relatório tinha por objetivo indicar a chamada “situação hermenêutica” (hermeneutischen Situation). Mas que situação seria essa? Precisamente, a da filosofia de Aristóteles, esta elucidada a partir da análise de interpretações fenomenológicas. Operando fenomenológico-hermenêuticamente, Heidegger pretende levantar as posições prévias, as visões prévias e conceptualidades prévias condicionantes da facticidade dessas ideias; sim são as mesmas estruturas prévias da compreensão que veríamos futuramente em Ser e tempo, ainda que, nesse momento, nomeadas prototipicamente como: “ponto de vista” (Blickstand), “visada” (Blickrichtung) e “faixa de visão” (Sichtweite). Heidegger sabe ser necessário levar em conta estes parâmetros da compreensão para poder determinar como ir a Aristóteles tomando dele insumos para sua investigação; do mesmo modo, procede assim acautelando-se de restar ingenuamente nos circuitos tradicionais da interpretação dessas ideias, que nos deixam sempre a um passo do solo originário almejado, já que sempre as herdamos das interpretações editadas na tradição. Com isso, a investigação ganha clareza quanto ao fato de seu curso estar condicionado por elementos extrínsecos a si, mas não determinado por estes (Peraita, 2002). Heidegger se empenhará, assim, por indicar os elementos constituintes mais relevantes à vida fática, ciente de que é na compreensão que se dá o modo mais imediato de sua apreensão; que uma tal vida se dá num projeto de concretização de seu próprio ser, inclusive quando em contextos de mediania. Não sendo a vida fática algo que possuiria um traço substancial ou quiditativo, esta constitui-se ontologicamente como tarefa constante de tornar-se a si mesma no seu “[…] modo de ser difícil e dificultoso de assumir-se, então a forma genuinamente ajustada de acessar e de conservar esta abertura só pode consistir na acolhida da dificuldade que a vida traz consigo” (Heidegger, 1992a, p. 19, tradução nossa). Desse modo, concordamos com Olafson (1998) quando indica com precisão que é este intento de compreender o fenômeno da vida que aproxima Heidegger do fundamento da ética aristotélica.

Com o fito de elucidar a relação da fenomenologia da vida fática em Heidegger e o modo como isso estaria relacionado aos contextos da filosofia prática de Aristóteles, a Ética a Nicômaco entra em foco no tópico que se segue.

2.             Interpretação fenomenológica da filosofia prática aristotélica

Heidegger lê a Ética a Nicômaco como obra de filosofia prática; concentra-se em seu “Livro VI”, no qual são tratadas as mencionadas virtudes dianoéticas. São em número de cinco tais virtudes: tékhne, epistéme, sophía, noûs e phrónesis, e o filósofo as compreende como modalidades por meio das quais os entes se desencobrem (alétheuein), descerramento que é também o da própria vida fática (psykhé) que somos (Heidegger, 1992a).

Heidegger (1992a) acompanha a dinâmica de exposição do próprio Aristóteles no referido escrito de ética. Como temos ali, considera que sejam dois os modos do desencobrimento (alétheuein); primeiramente, “o que promove o saber” (epistemonikón); após, “o que possibilita o refletir” (logistikón). Com os dois em vista, Heidegger identifica que Aristóteles distingue ciência (epistéme) de saber (sophía), dessa distinção surge a delimitação de ciência, técnica e circunvisão (phrónesis), no âmbito do logistikón. Ao considerar estes como modos de desencobrimento, Heidegger identificará em todos o modo de ser da práxis (e isso, adiante, se apresentará como relevante aos nossos desenvolvimentos).

No entanto, em sua leitura de Aristóteles, Heidegger parece entrever tarefas adicionais relacionadas a tal desencobrimento: faz-se necessário compreender as cinco virtudes aí aparentes como aquelas que, ao nos dar vislumbre da multiplicidade dos fenômenos, franqueia-nos acesso à determinação fundamental desde a qual os entes podem ser puramente apropriados (Heidegger, 1992a). Em seguida, compreender o caráter fundamental do “noûs” enquanto apreensão, já que dele depende uma intuição da conexão estrutural entre os fenômenos (Heidegger, 1992a).

É por isso que na interpretação que Heidegger faz de Aristóteles identifica-se, durante certo tempo, uma ênfase na ideia de “noûs”, já que esta é apreensão pura capaz de intuir a verdade do fenômeno; desse modo, no movimento de sua própria manifestação no fenômeno, sem que haja uma ontognoseologia que mediaria o conhecimento ao posicionar a verdade (do conhecer) no juízo, reeditando a fórmula tradicional segundo a qual a verdade é sempre produto da concordância (adaequatio) entre um juízo (intellectus) veritativo e determinado estado de coisas (res). Ora, o leitor atento já deve ter identificado aqui similitudes com o intento husserliano de, por meio de uma fenomenologia, chegar intuitivamente ao conteúdo eidético dos fenômenos, isso porque, aqui também Heidegger evita o gesto teorético das ontognoseologias assumindo tomar o essencial do fenômeno sem recorrer aos expedientes da filosofia tradicional. Daí, como bem indica Sheehan (1975), o que presenciamos é Heidegger traduzindo a filosofia de Aristóteles em termos fenomenológicos, nos quais as virtudes dianoéticas são experienciadas num campo intencional, espaço de descerramento de fenômeno, no qual a verdade – antes de objeto de verificação ou de certificação – é tomada no ente que se manifesta, é a própria abertura na qual o ente pode aparecer (Heidegger, 1992a). Ao ter esses contextos diante dos olhos, nosso filósofo tem reavivada aquela antiga expectativa de que a fenomenologia viabilizaria seu propósito de uma recolocação da pergunta pelo ser, esta entrevista em suas leituras juvenis do livro de Brentano sobre Aristóteles, pois, uma vez que a verdade dos entes é o que se dá num campo de sentido no qual qualquer fenômeno ali significa o que é, então é desde este campo de sentido (noûs) que a pergunta pelo ser dos entes poderá ser recolocada em novos termos. Por fim, se, diferentemente de Husserl, Heidegger está ciente de que sua fenomenologia-hermenêutica, por mais que bem sucedida, não chega a garantir um conhecimento apodítico (dado ao fenômeno nunca se apresentar com evidência meridiana, havendo nele sempre algo de constitutivamente velado), ao menos ambas as “fenomenologias”” parecem encontrar termo comum naquilo que pode ser dito desde Aristóteles: o “noûs” está na base de todo conhecimento possível.

Notavelmente, é a mesma tematização das virtudes dianoéticas que nos mostrará como estas nos colocaram diante da filosofia prática de Aristóteles. Como fenomenólogo, Heidegger é antiteorético e, como intérprete fenomenológico de Aristóteles, continua a evitar, por princípio, o gesto teórico, se não o originalmente identificado na ética aristotélica, o presente em sua derivação no aristotelismo (Sadler, 1996; Brogan, 2005). Resulta daqui que o trato que Heidegger dá àquelas virtudes não é teorético, no sentido de pensar a ética e seus conteúdos como objetos de consideração hipostasiada; tal como tratada por Heidegger, essa lida é descritiva e analítica e, como tal, são formalmente indicadas como modos de ser da vida fática, no modo com que essa lida consigo mesma e dos entes que se lhe apresentam; ainda mais, não é moral a motivação de Heidegger, antes é estritamente ontológica, tal como deixa entrever o processo de ontologização ao que se submetem as chamadas virtudes dianoéticas. Em oportuna lembrança, Long (2002) nos diz que esse interesse de Heidegger, seja na necessidade de ontologizar as virtudes dianoéticas ou na tarefa de fenomenologicamente desconstruir (Abbauen) a história da metafísica (e a presentidade constante ligada à ousia, ali conjugada), requer o resgate do que há de radical na facticidade quando em jogo o conceito de ser editado na história, empenho por compreender como os antigos, já em seu turno, presenciaram o obscurecimento de seu sentido originário e como tal esquecimento chegou a determinar o curso futuro da filosofia. Tarefa como essa, permanece em pauta até nos anos posteriores, como se vê na seguinte passagem da preleção friburguense do semestre de verão de 1923:

Com a desconstrução crítica (kritischen Abbau) da tradição, não há mais possibilidade de chafurdarmos (verzetteln) em problemas só aparentemente importantes. Desconstruir significa aqui: retornar à filosofia grega, a Aristóteles, para ver como exatamente o originário decai e se encobre, e para vermos o quanto nós estamos nessa decadência (Heidegger, 1988, p. 76, tradução nossa).

Desconstruir o que a tradição – mesmo a mais tenra, entre gregos e latinos – fez de Aristóteles, o que leituras escolásticas fizeram da mesma filosofia prática, e de como essas chegam a nós, antecedendo mesmo um modo de descrever e analisar a vida fática está em jogo na citação. A abordagem da filosofia prática aristotélica evidencia que a facticidade, enquanto determinação da vida fática, não é estática como uma condição substancial, a facticidade é um fazer, é um façamo-nos e, enquanto tal, indicia o modo de ser próprio ao movimento ekstático temporal da própria vida. Na práxis, apropriada fenomenologicamente de Aristóteles como temporalidade, temos o humano em processo, projeto que libera o poder-ser em possibilidades laçadas e desde o qual se engendra tudo o quanto neste ente é ontológico. Assim, para Heidegger, tratar da filosofia aristotélica, tendo em foco a busca do pensamento originário, nos coloca em face de uma práxis que desvela (práxis kai alétheia) o fenômeno da vida, mas as ocupações e preocupações do mundo, bem como com a phrónesis, está relacionada de perto à essência “cuidante” desse projeto ekstático (Heidegger, 1992b). O que isso significa, no entanto, se torna compreensível a partir de consideração mais detida ao conceito de phrónesis.

3.             “phr-”, epicentro

É ainda enredada ao “Livro VI” da Ética a Nicômaco que se dá a tematização da phrónesis. Ali, também esta é virtude que nos licita a decidir arrazoadamente sobre qual comportamento assumir em favor do bem e do bom (eis o que a tradição consagrou como “orthos lógos”). Para Aristóteles, a phrónesis é elemento central de sua filosofia prática, estando relacionada à conduta ética.

No presente contexto, o recurso ao termo “central” não é adjetivação de ênfase, a centralidade paradigmática dessa estrutura parece mesmo insinuar sua originariedade desde a etimologia do termo, é o que nos permite ensaiar o célebre dicionário grego de Liddell & Scott (1984), ao registrar que phrónesis é vocábulo cujo radical “phr-” é comum à palavra “diáphrágma”. Como pensar a relação entre ambos? Ora, diafragma é músculo situado no meio do corpo, dividindo o torso em dois segmentos (cavidades torácica e abdominal) e, junto da coluna dorsal, ajuda a equilibrar a caixa torácica. O phr, na phrónesis, nesse caso, pode ser interpretado por nós como um epicentro ou, antes, como um eixo que desenha área na qual devem estar circunscritos os comportamentos e as decisões retas. Essa interpretação ajuda a compreender como a phrónesis, mais do que uma conduta prudencial ou espécie de sabedoria ética, aponta mais propriamente a uma práxis que delimita um ethos humano, ela é prática que nos abre a um espaço de nossa realização própria.

Heidegger, naquele relatório endereçado a Natorp, está atento a isso, já que parece compreender que a phrónesis abre um horizonte correlato a um modo concreto de lidar com o mundo por meio de uma ocupação, de uma execução, de uma manipulação; ela ainda guarda em seu ser mais próprio o seu horizonte em que se desdobra o trato que a vida humana mantém consigo mesma, assim como o modo de levar em prática um tal trato (Heidegger, 1992a). Tal como compreende Heidegger, a phrónesis constitui-se como lida circunstanciada aos entes, práxis na qual ao operarmos nos fazemos quem somos no comportamento, de sorte que, quando me comporto torno-me quem sou através do comportar. Significa afirmar que, para interpretação fenomenológica da filosofia prática de Aristóteles, a phrónesis é o que pode nos orientar praticamente em nossas ações próprias; proporciona uma visão do aberto e implica na interação contínua com nosso próprio ser. Ora, nesse caso, a interpretação heideggeriana da phrónesis parece ir mais além daquela tradicional que faz dela a virtude que orientaria a aplicação condicional dos saberes práticos a comportamentos que nos dirigiriam ao fim último (télos) que é a felicidade (eudaimonia).

Nas Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles (preleções homônimas e contemporâneas ao Relatório Natorp), Heidegger enseja a ligação entre a phrónesis e a uma desenvoltura com a qual nos movemos no mundo das ocupações e preocupação, parte considerável de seu esforço ali é o de indicar que tal habilidade não é, por assim dizer, teórica. Quer dizer que, embora compreensivamente descerrado a um mundo, seus comportamentos são imediatamente pré-teóricos (vortheoretische), quer dizer, anterior a qualquer tipo de teorização (mesmo antepredicativo (vorprädikativ), utilizando a expressão de Husserl, que aponta para a anterioridade quanto a qualquer juízo enunciativo); imerso no registro prático de sua facticidade no mundo, o ser-aí apenas se comporta, acompanha os sentidos da malha referencial do mundo dessas ocupações, é conforme a ela e compreende seus sentidos e significados, contudo não se coloca de modo a teorizar sobre essas ocupações e o com o que se ocupa. É por isso que, a partir de determinado momento, a phrónesis passará a ser referida por Heidegger como “circunvisão” (Umsicht); com esta, temos a indicação formal de que o ser-aí é este constantemente envolvido nos negócios de sua existência. Ao comportar-se em seu mundo este circum-ver nos oferece uma compreensão de a quantas anda a existência, do como sabemos de nós próprios, cuidamos de ser na existência. Isso tanto conserva a essência prática de tal estrutura, quanto a alarga, apontando o quanto ela está articulada à dinâmica do ser da facticidade humana. Sendo assim, phrónesis (enquanto circunvisão) e o caráter pré-teórico dos comportamentos no mundo são o que, nessa obra, nos deixa e faz ver o cariz prático da própria vida, algo apenas propiciado pelos contextos da filosofia prática aristotélica, o que explica o fato de a Ética a Nicômaco ser preferida a outras obras nos contextos de tal filosofia.

4.             Platão: Sofista e a deliberação phronética

Se a Ética a Nicômaco é a obra prioritariamente recorrida por Heidegger, por outro lado, como referimo-nos na introdução, muitos são os títulos em que Heidegger se ocupa de Aristóteles. E as interpretações fenomenológicas da filosofia do grego, que ganham suas primeiras intuições no ano de 1921-22, logo desaguam em 1924 num impressionante estado de elaboração. 

Platão: Sofista é preleção didática ministrada por Heidegger no semestre de inverno de 1924-25, período no qual atuava em Marburgo. Embora anunciada como uma interpretação da leitura do diálogo platônico O Sofista, Heidegger faz algo diverso do constante em seu plano de ensino. Identificando a filosofia de Platão como obscura, presume que esta seria mais bem compreendida se elucidada por meio da de seu discípulo Aristóteles (este que teria lhe conhecido bem a ponto de nos oferecer a possibilidade de visão mais clara daquela filosofia). Nos seus termos:

Queremos seguir o caminho contrário, de Aristóteles de volta a Platão. Este caminho não é inaudito. Ele segue o antigo preceito hermenêutico de que, ao interpretar, deve-se seguir do claro ao obscuro. Fazemos a presunção de que Aristóteles compreendeu Platão. Também aqueles que não conhecem altamente Aristóteles verão, pelo nível da obra, que não é ousado pensar que Aristóteles teria compreendido Platão. O que se pode dizer sobre a questão da compreensão é que os que vêm depois compreendem sempre melhor os que os precederam do que eles próprios. O elemento fundamental da investigação criativa reside precisamente no fato de ela não se compreender naquilo que é decisivo. Se quisermos penetrar na filosofia platônica, faremos isso usando a filosofia aristotélica como fio condutor (Heidegger, 1992b, p. 11, tradução nossa).

Assim, Heidegger trata do obscuro (Platão), na consideração preliminar da obra, primeiras vinte páginas, e passa as próximas setecentas tratando do claro (o Aristóteles a quem vem pesquisando nos anos anteriores). É preciso advertir que não há arbitrariedade aqui, mestre na arte das preparações, Heidegger apronta o terreno para uma incursão acertada do ver fenomenológico nos terrenos tradicionais nos quais, em nossa época, chegamos a encontrar Platão. Entre fenomenologia e hermenêutica, nosso autor conjuga aqui aquele preceito segundo o qual devemos sempre partir do que nos é mais acessível para só então pretender alçar o distante; intenta fazer o círculo hermenêutico girar com o intuito de, contando com Aristóteles, chegar a compreender Platão melhor do que ele mesmo.[6] Portanto, a estratégia de seguir retroativamente dos contextos de Aristóteles aos mesmos em Platão, garante interpretação ciente dos influxos atuantes sobre as interpretações dessas filosofias, acautelando-se do risco de ser dragado pelas posições histórico-fáticas da época. E não seria exagero dizer que, com Aristóteles, Heidegger pretende tomar o que provém de Platão, mas que com o estagirita acaba se tornando mais agudo, mais radical (Heidegger, 1992b).

Mesmo em Platão: Sofista, a Ética a Nicômaco continua sendo obra que se presta a pensar o desencobrimento dos entes em geral e do próprio ser-aí; no caso deste, pelo fato de tal ente dispor-se, de diversas maneiras, ao movimento do desencobrir. Portanto, é de se presumir (com vistas a conduta de Heidegger nesse momento), que ele compreende que qualquer investigação ontológica deveria transigir com o ente que daria acesso ao sentido do ser dos entes, este capaz de evidenciar o desvelamento da verdade (alethéia). Desse modo, aqui presenciamos Heidegger – mais do que em qualquer outro lugar – articulando sua fenomenologia aos lastros da filosofia de Aristóteles de modo a ela propriamente operacionalizar uma filosofia do ser-aí.

No que chamamos de disposição ao movimento de desencobrir, vemos a phrónesis novamente voltar à pauta. No entanto, agora ela é conceito fundamental à nascente filosofia do ser-aí (Dasein); com ela se dá protagonismo ao ser-aí, como dinâmica ekstática projetada a um mundo que se descerra, e face ao qual tal ente pode conquistar seu ser à medida em que existe por ser, que cuida por ser quem se é. Isso porque, doravante, a phrónesis passa a não ser mais tão somente uma virtude prática, antes é uma estrutura da existência. É a phrónesis, já pertencendo à existencialidade do ser-aí, que dá a ele uma vista do mundo e de si mesmo, o que lhe faz essencial a essa existência e à analítica existencial dela decorrente. Desse modo, indicar como a phrónesis está ligada a um modo de desencobrimento do ser-aí em seu mundo é evidenciar o modo com que o ente que paradigmaticamente somos (não mais como o factum humano, a vida fática ou a facticidade), agora na forma de ser-aí, se dá à fenomenologia existencial de Heidegger.

Tanto quanto nas investigações anteriores, a filosofia prática aristotélica permanece no foco, continuando a ser a phrónesis conceito central, o que faz com que torne essa preleção um escrito decisivo para os estabelecimentos tanto de uma analítica existencial, quanto de uma ontologia fundamental, anos mais tarde, em Ser e Tempo (1927) (Kahlmeyer-Mertens, 2013). No entanto, antes de chegarmos a apontar quaisquer desdobramentos da phrónesis na obra, há todo um movimento de exposição e análise que Heidegger precisa fazer da matéria para poder firmar o que para nós é conceito de importância. Heidegger tratará da distinção do alétheuein na forma do saber (epistemonikón) e da reflexão (logistikon), indicará que, para Aristóteles, ambos acenam ao originário (arkhé). Heidegger mostra que, tal como compreendida por Aristóteles, a phrónesis é uma espécie de em-virtude-de, acenando que em toda reflexão a sempre um propósito envolvido. Heidegger aponta que a phrónesis é sempre para si própria, ao passo que a técnica é em virtude do deveniente na produção. O filósofo lê Aristóteles divisando os modos de o ente se desencobrir, seriam esses a ciência (epistéme) e o saber (sophía). Desde sua interpretação, Heidegger já apropria essas duas modalidades compreendendo-as como atuantes no ver fenomenológico, já que esta pode ser tratada como o ver intencionalmente dirigido às idealidades (Hinsicht), ao passo que a anterior ainda visa, em geral, os entes como substanciais (o que, na linguagem de Ser e tempo, chamaríamos de “dados de antemão”, Vonhandenheit). Em continuidade a isso, enfocará a tekhné compreendendo-a como comportamento junto ao ente que está por se fazer, tomando-a como propriamente o trazer o ente ao ser por meio de tal prática, a produção técnica como desencobrimento.

A phrónesis passa então a ser tratada no âmbito da práxis apenas após essas exposições e, mais precisamente, como deliberação sobre um determinado comportamento. O filósofo então se empenha em evidenciar o quanto o sentido da phrónesis (doravante compreendida como circunvisão (Umsicht) está relacionado ao da práxis, pois qualquer deliberação implica um dispor-se ao comportamento. Em Aristóteles, essa boa deliberação é chamada eubouleusis; no entanto, para o Heidegger intérprete de Aristóteles, o operador dessa boa deliberação (o phrónebus) é aquele que não se comporta com tábuas de mandamentos, códigos de princípios, estatutos normativos ou critérios morais apriorísticos. A moral, nesses termos, é a virtude convertida em doutrina; por isso não cabe aqui. Afinal, a phrónesis não é ética, tampouco ciência ou postura mediada por linguagem, ela é o que ela pode ser, se for visão de uma ação e de deliberações concretas (Heidegger, 1992a). Portanto, a boa deliberação implica sempre um constante deliberar sobre o diverso, é sempre decisão ante o variável que na situação se descerrou, é em face da totalidade dos entes à medida em que acompanha circunvisivamente os para-quês e os em-virtudes-de nas situações, assim, dizendo de modo claro, a deliberação (boulé), tal como compreendida por Heidegger, antes de ser ética, é phronética.

5.             Arkhé e télos desde a circunvisão do ser-aí

Na delimitação assumida por nosso trabalho, um olhar sobre o campo do logistikón nos permite divisar o papel que a phrónesis possui em face da práxis e como essa permite que Heidegger formule daí o já aludido conceito de circunvisão. Com os contextos da Ética a Nicômaco diante dos olhos, o que Heidegger pretende aqui é evidenciação da existência do ser-aí; com vistas a isso, por nossa vez, o presente tópico pretende indicação de tal conceito, ainda seguindo a conceptualidade da obra Platão: Sofista.

Como vimos, a circunvisão tem ligação com certo tipo de práxis reflexiva, posto que é preciso haver um contexto prático que sustente seu surgimento enquanto modo de desencobrimento. Dito isso, não é casualidade que conceitos da filosofia prática aristotélica (como o de tekhné ao lado do de phrónesis) povoem as investigações de Heidegger nesta fase. Tal como indica Heidegger, a circunvisão (phrónesis) está sempre relacionada a um comportamento que se volta a si mesmo, que é em-virtude-de-si-mesmo; portanto, a direção da phrónesis é a que reflete desde si e para os entes na totalidade, diferentemente de sua contraparte, a tekhné, orientada em virtude do que lhe é exterior. Ao dizermos isso, fazemos mais do que distinguir fundamentalmente o modo de ser da phrónesis do da tekhné, sendo que a primeira tem em si mesma tanto sua origem (arkhé) quanto sua finalidade (télos).

Esse é o ensejo que Heidegger precisava para interpretar a circunvisão como esta que pode abrir o ser-aí a uma visão de si mesmo, i. é., a um ganho de transparência quanto a seu modo de ser. Significa dizer que – quanto a sua arkhé – a circunvisão permite que o ser-aí se disponha a seus princípios originários, de modo a colocar-se num modo de lida e saber circunvisivo em cada caso, de cada modo, consigo mesmo. Assim, nosso filósofo encontrou, na filosofia prática de Aristóteles, o conceito que evidenciaria o modo mais originário de comportamento do ser-aí no mundo, já que para ele, a phrónesis, enquanto um modo de produção, é inclusive fundamento de outras modalidades de desencobrimento da verdade, o que nos faculta afirmar que possui primado até mesmo sobre a tékhne, a epistéme e a sophía. Por outro lado, – no tocante a seu télos – a circunvisão aponta a si mesma ou, por outras palavras: o télos na circunvisão é abertura do ser-aí ao seu próprio modo de ser, é desencobrimento da verdade do ser-aí a ele próprio (Heidegger, 2012). Nessa etapa de sua investigação, a phrónesis, enquanto circunvisão, é o que permite a visualização do todo do ser-aí, justo por isso, é a phrónesis caracterizada como a “[…] pretensão de ser o modo de conhecimento mais elevado do homem […]” (Heidegger, 1992b, p. 135).

É possível notar que o que Heidegger opera junto ao conceito aristotélico de phrónesis é uma apropriação. No âmbito dessa filosofia fenomenológico-hermenêutica tal apropriar corresponde à transformação de um circum-ver (Umsicht), phronético, um que acompanha os comportamentos nos contextos de mútua referência entre os entes da totalidade, a uma espécie de ver contemplativo (Hinsicht), da ordem da epistéme, que se coloca diretivamente ao ente que o ser-aí é com vistas ao que lhe há de essencial, promovendo então a referida autotransparência.

Temos aqui evidência do quanto essa investigação, como ora denominada, é tão fenomenológica quanto hermenêutica, já que se pode identificar traços da preleção do ano anterior, na qual, bem como aqui, a própria vida fática se volta a compreender a si mesma. O legado de Ontologia: Hermenêutica da Facticidade (1923), então, se faz sentir na preleção Platão: Sofista, já que é interpretação fenomenológica do que na filosofia prática de Aristóteles dá testemunho de como os traços daquela facticidade podem ser resgatados das camadas de interpretações tradicionais dessa filosofia, sedimentação histórico-tradicional que faz que essas ideias de Aristóteles já apareçam em determinados circuitos, fazendo com que o originário latente ali se converta em conteúdo doutrinário capaz de ser repetido e difundido já no encurtado de seus contextos. E o que seria resgatado dos séculos de deposição das interpretações encobridoras da facticidade? Ao tomar o ser-aí desde a circunspeção que ele permite a si mesmo, a interpretação do modo de descerramento da psykhé, por meio da phrónesis, certamente não nos reconduz às noções de razão, de intelecto ou de juízo conjugadas na tradição, antes temos a apropriação originária dessa vida (psykhé),[7] não como princípio vital, antropológico ou anímico, mas como autorreflexão do ser-aí (psykhé) voltada ao que já se descerrou. Dizendo de modo claro: a circunvisão confronta o ser-aí com seu ethos e este nada tem a ver com princípios éticos doutrinários como os de bem ou de felicidade, o maior bem que o ser-aí logra dessa estrutura é a visão do como de seu ser, da essência de seu existir propriamente aí.

Nas obras que sucedem a Platão: Sofista, veremos o afastamento nem tão gradual de Heidegger quanto a circunvisão, certamente não da experiência ora descrita como a de ganho de autotransparência quanto a seu ser, mas da terminologia que talvez ainda não seja a mais precisa na designação do modo próprio do ser-aí descerrar-se e do movimento de realizar suas possibilidades com vistas ao fenômeno de si mesmo. O termo cuidado (Sorge) entra então em cena passando a referir-se a esse trato do ser-aí consigo mesmo e a possibilidade de visualizar seu todo. Aqui, também o caráter phronético de visão de uma ação e de deliberações concretas em cada caso, de cada modo, consigo mesmo permanece atuante (dessa vez como atenção ao acontecimento das possibilidades do ser-aí em sua existência, em resposta ao que este sempre faz de si nesse movimento de essencialização de si); aqui também a filosofia prática de Aristóteles tem contribuição a dar, somando-se a outros repertórios da década de 1920,[8] para as elaborações futuras da filosofia de Heidegger nos campos de uma ontologia fundamental e da analítica existencial que lhe é subordinada.

A importância que o conceito de cuidado passará a possuir em obras como Ser e tempo será sentida, entretanto, no presente artigo, na impossibilidade de desdobramentos minimamente satisfatórios que lhe caracterizaria e ante a premência de concluirmos, sua consideração ficará restrita ao aceno breve feito acima.[9]

Considerações finais

O que o artigo entrega ao final está longe de ser saldos de especialista. Em seu lugar, tudo aqui mais se assemelha a notas do que análise circunstanciada e, quando assim, apresenta contornos mais gerais da interpretação fenomenológica que Heidegger faz da filosofia prática de Aristóteles, especificamente no tocante a phrónesis. Um texto de especialista certamente teria se detido em apresentar cada uma das virtudes dianoéticas de Aristóteles, indicando, inclusive, os laços que possuem mutuamente; reconstruiria os conceitos da Ética a Nicômaco e das obras de Heidegger que se ocupam deste tratado. Ao abordar o conceito de phrónesis, focalizado em parte significativa do texto, teria apresentado pormenores como, por exemplo, as relações entre phrónesis e o noûs, a sophía, a epistéme e a tékhne; mesmo detalharia melhor o quanto em Heidegger o conceito de cuidado derivaria da interpretação da phrónesis, tema que, em nosso artigo, foi antes aludido do que explorado. Ao arrolar todas essas tarefas de desenvolvimento aos especialistas em Aristóteles ou, ainda, no Heidegger intérprete de Aristóteles (o que, concomitantemente, aponta às lacunas desse escrito), indicamos tudo o quanto seria cabido a um tema como este, por outro lado, logo constatamos o quanto isso seria impossível no espaço estreito de um artigo científico.

Portanto, ao delimitarmos nosso tema, tal como anunciado no título, já sabíamos que o trato aqui seria o dos contornos mais grosseiros, antes o esquema de como o conceito de phrónesis comparece nas duas obras escolhidas (Relatório Natorp e Platão: Sofista) com a conceptualidade mais imediatamente encontrada aderida a esses eixos, do que exegese sutil desse nas obras de Heidegger. Ao declarar, assim, os saldos de nosso exercício de leitura do Heidegger intérprete fenomenológico de Aristóteles no tocante a phrónesis, temos que o objetivado foi o itinerário de uma leitura que aguarda pelo momento de ser preenchida com as tecnicidades e filigranas conceituais de uma interpretação especializada. Neste percurso, logramos evidência quanto a lida que Heidegger tem com a filosofia prática aristotélica não ser teorética, no sentido de pensar a ética e seus conteúdos objetivos, é lida descritiva e analítica, indicando os modos de ser da vida fática; também não é promovida por interesse ético-moral, é ontológico. Assim, quando Heidegger vai às virtudes dianoéticas está em busca do originário nesse pensamento e se vê diante de uma práxis que desencobre a vida: a phrónesis. Esta, enquanto lida circunstanciada aos entes, é também cuidado no qual nos fazemos quem somos no comportamento. A circunvisão, formulada a partir daqui, tem ligação com certo tipo de práxis reflexiva, posto que é preciso haver um contexto prático que sustente seu surgimento enquanto modo de desencobrimento. Da exposição disso resultou que na interpretação fenomenológica da filosofia prática de Aristóteles, a phrónesis é o que pode nos orientar praticamente em nossas ações próprias, proporcionando uma visão do aberto e implicando na interação contínua com nosso próprio ser. Desse modo, indicar como a phrónesis está ligada a um modo de desencobrimento do ser-aí em seu mundo é evidenciar o modo com que o ente que paradigmaticamente somos se dá à fenomenologia existencial de Heidegger.

O artigo termina compreendendo ter também indiciado o caráter engenhoso e original da leitura de Heidegger, ressaltado desde a introdução. Lembremos que o jovem Leo Strauss reputava nosso filósofo o maior conhecedor de Aristóteles da Alemanha, superando mestres no ofício da cátedra. No entanto, um olhar sobre o consignado nessas páginas nos deixa patente o quanto Heidegger, ao operar uma confrontação pensante (Auseinandersetzung) ao texto aristotélico e a tradição que lhe sucede, recupera não apenas uma ideia de facticidade perdida na história das recepções, quanto a possibilidade de Aristóteles ser tratado como autor que tem uma palavra a dizer à contemporaneidade, favor que nos coloca, renovadamente, diante daquilo que é digno de questão.

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Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

Professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Doutor em Filosofia formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] O termo alemão utilizado por Gadamer aqui é “Waisenknaben”, que pode ser traduzido por “meninos órfãos” ou apenas “órfãos”; no entanto, nem essas, nem a opção ao francês “enfants de choeur” (meninos do coro), expressa bem a ideia de fragilidade daqueles autores em contraste com Heidegger. Compreendemos que nossa tradução, assumidamente interpretativa, diz melhor dessa vulnerabilidade.

[2] Não cabendo ao escopo desse artigo a descrição desses momentos, recomendamos texto no qual já nos ocupamos disso: Cf. Kahlmeyer-Mertens (2023).

[3] A exemplo de Kommentar zu Immanuel Kants Kritik der reinen Vernunft e do que se encontra a partir da página p. 94. Cf. Cohen (2000) em nossas referências.

[4] Uma curiosidade: tal relatório foi dado como perdido até a década de 1980; Gadamer (1995) estima que fora destruído durante os bombardeios da Segunda Guerra em Leipzig. No entanto, em 1989, o Professor Hans-Ulrich Lessing, de Bochum, encontrou casualmente uma cópia íntegra do texto na biblioteca de Göttingen, era o exemplar de Georg Misch. Na década de 1920, este catedrático estava preocupado em elaborar confrontação da filosofia de seu sogro (Wilhelm Dilthey) às orientações fenomenológicas de Edmund Husserl, o que fez com que não desse atenção a Heidegger. Até onde se sabe, Misch também se incomodou com o acento à Stefan George da escrita de Heidegger, reputando-a exaltada, por isso, deu a vaga para Moritz Geiger. Considerando o fato de ser a cópia encontrada de Misch a que serve de base para a publicação de Interpretação fenomenológica de Aristóteles, no Dilthey-Jahrbuch de 1989, insisto na ideia de referir-se a este documento como “Relatório Natorp-Misch”.

[5] Na edição que tomamos por referência, o texto do Relatório Natorp possui 36p. (já livre dos aparatos dos editores e das notas), sendo que a parte dedicada a Aristóteles inicia na vigésima primeira página. Cf. Heidegger (1992a).

[6] Eis aqui a pretensão hermenêutica de Schleiermacher que, em verdade, é apropriada de Christian Wolff, quando este diz: “É natural que o intérprete que interpreta o enunciado do autor por meio da substituição de uma noção obscura por uma noção clara compreende melhor o autor do que ele próprio poderia fazê-lo” (Wolff, 2019, §929).

[7] Há nessa sentença caráter francamente interpretativo, acolhemos a premissa do filólogo Erwin Rohde (1973) segundo a qual a tradução mais adequada o vocábulo psykhé seria “vida”. Isso, sem dúvida, aproxima muito a fenomenologia da vida fática de Heidegger (e seus desdobramentos na análise fundamental do ser-aí) daquilo que ele, interpretando Aristóteles, nomeia psykhé.

[8] Temos em vista aqui o conceito de curare, na preleção Agostinho e o neoplatonismo (1920-21). Este, fruto da interpretação de Heidegger do filósofo tardo-antigo, designa uma prática de si mesmo que propicia a continência por meio da qual nos reunimos e nos tornamos unidade em face da totalidade das “criaturas”. Identificamos nessa noção, que antecede as tematizações heideggerianas da phrónesis, também traços embrionários do conceito de cuidado (Sorge), tal como veremos em 1927, já que o curare possui um sentido relacional cambiante no nexo fático-histórico da vida (Heidegger, 1995).

[9] Veja-se mais a este respeito em Kahlmeyer-Mertens (2008).