Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e saúde
mental: uma revisão integrativa
Adolescents in social-educative measures and mental health: an
integrative review
Ana Clara Gomes PICOLLI*
https://orcid.org/0000-0002-9173-2391
Daniel Péricles ARRUDA**
https://orcid.org/0000-0002-8347-8215
Resumo: Este estudo teve por
objetivo conhecer e analisar as produções científicas nacionais, publicadas
entre 2001 e 2021, que abordam sobre a saúde mental de adolescentes que cumprem
medidas socioeducativas em meio aberto ou fechado no Brasil. Para isso realizou-se
revisão integrativa de literatura nas bases de dados SciELO, PubMed, Portal BVS e Portal de Periódicos CAPES/MEC,
totalizando 2.381 registros. Após estabelecimento de critérios de inclusão e
exclusão foram selecionados para análise 14 artigos, que foram divididos em 3
eixos de análise: patologização e/ou medicalização;
percepção de profissionais/instituição; e eventos estressores, fatores de risco
e de proteção. A análise dos resultados permitiu constatar a excessiva
medicalização e produção de diagnóstico psiquiátrico de adolescentes que
cumprem medida socioeducativa de internação, bem como as barreiras de acesso
destes a serviços de saúde mental. Também revelou trajetórias de vida marcadas
por violência e desproteção social, com forte incidência de fatores de risco e
ausência de fatores de proteção.
Palavras-chave: Adolescente. Medida socioeducativa.
Saúde mental. Ato infracional.
Abstract: Abstract: This
study aims to understand and analyse national scientific publications between
2001 and 2021 that address the mental health of adolescents who are serving
open or closed social-educational measures in Brazil. We conducted an
integrative literature review of 2,381 records held on the databases of SciELO, PubMed, Portal BVS, and Portal de Periódicos CAPES/MEC. After establishing inclusion and
exclusion criteria, fourteen articles were selected for analysis, divided into
three axes of analysis: pathologisation and/or
medicalisation; perception of professionals/institutions; and stressful events,
risk, and protection factors. The analysis revealed excessive medicalisation
and psychiatric diagnosis of adolescents serving a custodial socio-educational
measure, and the barriers these adolescents face in accessing mental health
services. It also revealed life pathways marked by violence and lack of social
protection, with a high incidence of risk factors and absence of protective
factors.
Keywords: Adolescent.
Socio-educational measure. Mental health. Infraction.
Submetido em: 3/1/2023.
Revisado em: 6/4/2023. Aceito em: 18/4/2023.
Introdução
O |
objeto deste estudo
parte das inquietações que passam pela trajetória profissional em que a autora
está inserida, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS) e na Política de
Saúde Mental brasileira. Durante o período de Residência Multiprofissional tive
a oportunidade de permanecer durante um ano em um Centro de Atenção
Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij). Nessa
instituição foi possível observar e participar da construção do cuidado em
saúde mental de crianças e adolescentes. Cuidado este coletivo, construído
cotidianamente pela diversidade de trabalhadores/as, crianças, adolescentes e
famílias que frequentam o serviço. Na intersecção entre território e Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), vive-se os desafios de consolidar o cuidado em
liberdade e acolher as necessidades trazidas pelos sujeitos e instituições.
Houve muitas inquietações durante esse processo, compartilhadas
durante as supervisões e reuniões de equipe. Uma destas está relacionada com a
atenção à saúde mental de adolescentes que cumprem medida socioeducativa,
devido aos recorrentes encaminhamentos de adolescentes a esse serviço,
principalmente dos que estão cumprindo internação ou que tiveram passagem
recente pela Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente
(Fundação CASA)[1]. Diante desses casos, houve a reflexão enquanto equipe
sobre a psiquiatrização[2] da prática de atos infracionais e sobre em que medida o
processo de institucionalização tende a desencadear sofrimento mental em
adolescentes. É a partir da força dessa inquietação que a temática do presente
artigo foi escolhida.
Maria Cristina Gonçalves Vicentim
e Gabriela Gramkow (2016), ao discorrerem sobre saúde
mental, justiça e juventude, apontam para os crescentes processos de psiquiatrização e criminalização de jovens que cometem ato
infracional no Brasil, articulando, assim, uma “[...] delicada relação entre medidas de proteção e/ou socioeducativas e
‘demandas’ em saúde mental, com os tratamentos (muitas vezes compulsórios)
sendo entendidos diferentemente pelas lógicas judiciais e pelas da saúde” (VICENTIN; GRAMKOW, 2016, p. 341,
destaque do original). As autoras ainda
ressaltam que tais demandas em saúde mental encaminhadas pelo judiciário
ao Sistema Único de Saúde (SUS) acompanham a tendência em patologizar
adolescentes pobres, encobrindo processos sociais como doença mental.
A construção da saúde mental enquanto política pública para
crianças e adolescentes é recente, data do início do
século XXI, precisamente em 2001, com a promulgação da Lei 10.216 (Brasil, 2001)
que forneceu bases para a institucionalização da Reforma Psiquiátrica
brasileira, e, também, a III Conferência Brasileira de Saúde Mental[3] que, de maneira
inédita, priorizou a discussão da saúde mental de crianças e adolescentes,
convocando o Estado a se responsabilizar por esses cuidados, a partir do
reconhecimento destes como sujeitos psíquicos e de direitos (Couto; Delgado, 2015).
Esses dois acontecimentos ampliaram a institucionalidade da saúde mental
enquanto política pública e forneceram condições concretas de possibilidade
para a inserção de crianças e adolescentes na agenda pública de saúde mental. Junto a isso, soma-se a força das mudanças promovidas por
outros ordenamentos jurídicos, como a Lei 8.069 de 1990 – Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990a), que estabeleceu uma nova concepção de
criança e adolescente, como sujeitos de direitos, pelo princípio de proteção
integral, orientando as novas políticas e ações destinadas para a infância e
adolescência.
No ano de 2002 foi publicada a Portaria nº 336 de 2002 (Brasil,
2002a), que contém um capítulo destinado a criação dos CAPSi.
Em 2004, foi criado, pelo Ministério da Saúde, o Fórum Nacional sobre Saúde
Mental de Crianças e Adolescentes (Brasil, 2004), importante espaço democrático
que possibilita a participação da população na formulação e orientação da
política de saúde mental infantojuvenil. 2005 foi o ano em que o Ministério da
Saúde publicou o documento Caminhos para uma Política de Saúde Mental
Infanto-Juvenil (Brasil, 2005), que traz considerações técnicas a respeito da
implementação da política no âmbito do SUS e reforça a necessidade do cuidado
em saúde mental de crianças e adolescentes ocorrer de forma intersetorial,
visando acolher estes sujeitos em sua totalidade.
Com a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em
2011, a partir da Portaria nº 3.088/11 (Brasil, 2011) e a promulgação da
Portaria nº 854 de 2012, que visa qualificar a informação relativa aos
atendimentos realizados nos CAPS (Brasil, 2012a), se define as estratégias e
ações de cuidado em saúde mental para esse público no âmbito do SUS. Especificamente
em relação aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa, a Lei nº 12.594
de 2012 (Brasil, 2012b) – que institui o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE) – traz que o cuidado em saúde mental ofertado a
adolescentes que se encontram em internação, deverá estar alinhado ao que
dispõe a Lei nº 10.216/01 (Brasil, 2001), que redireciona o modelo assistencial
em saúde mental a partir dos pressupostos da reforma psiquiátrica. Dois anos
depois, em 2014, a Portaria nº 1.082 (Brasil, 2014) que redefine a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei, em
Regime de Internação e Internação Provisória (PNAISARI) estabelece que o
cuidado em saúde mental de adolescentes que cumprem medida socioeducativa de
internação ocorrerá em articulação com a Atenção Básica e a RAPS e inclui nesta
política adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e
fechado.
O reconhecimento de
crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos, passíveis de sofrimento
e adoecimento mental, possibilitou a construção de uma política pública de
cuidado em saúde mental que busca atender as especificidades e complexidades
das diversas formas de viver a infância e a adolescência no país, sem que esse
cuidado seja reduzido a punição, disciplinarização e/ou normatização de
comportamentos.
Na tentativa de
aproximação do cotidiano da residência no CAPSij com
a literatura, o objetivo principal deste trabalho é conhecer e analisar as
produções científicas nacionais, publicadas entre 2001 e 2021, que abordam
sobre a saúde mental de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em
meio aberto ou fechado no Brasil. Este foi o ano definido como marco temporal
por marcar importantes conquistas para a construção dos cuidados em saúde
mental de crianças e adolescentes, como a promulgação da Lei de Saúde Mental –
Lei n. 10.216/01 (Brasil, 2001) e a III Conferência Nacional de Saúde Mental (2002b)
supracitadas.
Procedimentos
Metodológicos
Foi realizada revisão
integrativa de literatura de artigos científicos para subsidiar a pesquisa
bibliográfica. A revisão integrativa é considerada um método amplo de revisão,
por abordar pesquisas experimentais e quase-experimentais, dados teóricos e
empíricos, permitindo uma compreensão mais abrangente do tema de interesse (Mendes;
Silveira; Galvão, 2008). A revisão integrativa consiste em seis etapas, sendo
elas: 1) identificar o tema e construir a hipótese/questão de pesquisa; 2)
estabelecer critérios de inclusão e exclusão dos estudos; 3) categorizar os
estudos; 4) avaliar/analisar os estudos incluídos; 5) interpretar os
resultados; 6) apresentar a revisão/síntese do conhecimento (Mendes Silveira;
Galvão, 2008).
O levantamento
bibliográfico foi realizado nas seguintes bases de dados entre os anos 2001 e
2021: SciELO (40 publicações), PubMed (97
publicações), Portal BVS (630 publicações) e Portal de Periódicos CAPES/MEC
(1.614 publicações). A busca resultou em 2.381 registros. Foram excluídos os
textos por duplicidade, os que não estavam disponíveis na íntegra e aqueles
que, embora tivessem alguma relação com os descritores utilizados, não
correspondiam a temática da presente pesquisa, alcançando 140 artigos, que
foram lidos a partir dos títulos, resumos e palavras-chave para avaliar a
pertinência ao objeto de estudo. Feito isso, restaram 22 trabalhos, sendo
eliminados 118 textos, a partir dos critérios de inclusão e exclusão que serão
expostos adiante. Os 22 trabalhos foram lidos em sua versão integral e, nesta
etapa, 7 foram excluídos, pois foi verificado que não se inseriam nos critérios
de inclusão deste estudo. Por fim, restaram 14 artigos para serem analisados
neste trabalho.
Utilizou-se da
combinação dos seguintes descritores, no singular e plural, a partir do
operador booleano and para que a busca
estivesse dentro do foco de análise: medida socioeducativa e saúde
mental; jovem infrator e saúde mental; adolescente
infrator e saúde mental; jovem em conflito com a lei e saúde
mental; adolescente em conflito com a lei e saúde mental; ato
infracional e saúde mental; e sistema socioeducativo e saúde
mental.
Para selecionar os 14
artigos foram utilizados os seguintes critérios: 1) de inclusão: artigos de
periódicos nacionais que tratem da realidade brasileira; artigos que tenham
como foco a saúde mental de adolescentes que cumprem medida socioeducativa;
artigos publicados no período de 2001 a 2021, por ser o marco temporal
escolhido para este trabalho; artigos disponíveis no formato completo, para
poder fazer a leitura do material como um todo; 2) e de modo a corresponder com
a proposta de análise neste trabalho, foram critérios de exclusão: artigos que
não estavam no espaço temporal proposto; artigos em outros idiomas que não o
português; trabalhos não disponíveis na íntegra, publicados em anais de
congresso, dissertações e teses; e estudos duplicados nas bases de dados.
Resultados
A maior parte das
produções selecionadas são dos anos de 2017 a 2019 (9 dos 14 artigos). Apesar
de 2001 ser um ano de importantes conquistas para a construção da política de
saúde mental infantojuvenil, se verifica uma ausência de publicações
científicas neste período que relacionem esse tema com adolescentes que cumprem
medida socioeducativa. O trabalho mais antigo selecionado para essa pesquisa é
de 2004, que coincide com a intensificação das internações por cometimento de
ato infracional expressas no Levantamento Nacional do Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei - 2009 (Brasil, 2009).
O grande índice de
produções científicas que abordam a saúde mental de adolescentes que cumprem
medida socioeducativa a partir de 2016 – verificado neste trabalho – coincide
com a posterior promulgação da PNAISARI, que orienta e estabelece critérios e
fluxos para a operacionalização do cuidado integral em saúde de adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa.
A maioria das
publicações são da região sudeste – 11 de 14 trabalhos – totalizando 73%, com
destaque para o Rio de Janeiro com 5 artigos (33%).
Quadro 1 – artigos
selecionados para revisão integrativa (N=19).
|
TÍTULO |
AUTORAS (ES) |
ANO |
REVISTA |
LOCAL |
RESULTADOS |
1 |
Infração juvenil feminina: uma trajetória de
abandonos |
DELL'AGLIO, Débora Dalbosco;
SANTOS, Samara Silva dos ; BORGES, Jeane Lessinger. |
2004 |
Interação em Psicologia |
Curitiba |
Os eventos estressores
vivenciados podem ser facilitadores para o cometimento de atos infracionais. |
2 |
|
DELL'AGLIO, Débora Dalbosco;
BENETTI, Sílvia Pereira da Cruz; DERETTI, Luciana; D'INCAO, Daniela Bergesch; LEON, Joana Severo. |
2005 |
Paidéia |
Ribeirão Preto |
Eventos estressores que se
constituem como fatores de e revelam um ciclo de violência na vida das
adolescentes. |
3 |
A patologização do
jovem autor de ato infracional e a emergência de "novos" manicômios
judiciários |
VICENTIN, Maria Cristina Gonçalves; GRAMKOW,
Gabriela; ROSA, Miriam Debieux. |
2010 |
Journal of
Human Growth and Development |
Santo André |
Necessário ampliar o olhar/ação para a complexa
trama na qual esses jovens se inserem socialmente. |
4 |
|
ANDRADE, Renata Candido de; ASSUMPÇÃO JUNIOR,
Francisco; TEIXEIRA, Ivan Abdalla; FONSECA, Vilma Aparecida da Silva. |
2011 |
Ciência & Saúde Coletiva |
Rio de Janeiro |
Alta prevalência de transtornos
psiquiátricos entre adolescentes que respondem por ato infracional. |
5 |
Risco e proteção para o engajamento de
adolescentes em práticas de atos infracionais |
SILVEIRA, Maria Angélica de Souza da; MARUSCHI,
Maria Cristina; BAZON, Maria Rezende. |
2012 |
Journal of
Human Growth and Development |
Santo André |
Adolescentes que respondem por
ato infracional são expostos a menos fatores de proteção. |
6 |
Medidas judiciais atinentes à atenção em saúde
mental de adolescentes em conflito com a lei |
SOARES, Ricardo Henrique; OLIVEIRA, Marcia
Aparecida Ferreira de; LEITE, Keler Cristina;
NASCIMENTO, Gustavo Chiesa Gouveia. |
2017 |
Interface - comunicação, saúde,
educação |
Botucatu |
Expressão de processos de psiquiatrização no espaço forense. |
7 |
A atenção em saúde mental aos adolescentes em
conflito com a lei no Brasil |
COSTA, Nilson do Rosário; SILVA, Paulo Roberto
Fagundes da. |
2017 |
Ciência & Saúde Coletiva |
Rio de Janeiro |
Alta prevalência de diagnósticos de transtorno
mental e utilização de medicação psiquiátrica. |
8 |
Drogas - Pra que te
quero? Drogadição e Adolescência na Voz dos Socioeducadores |
JIMENEZ, Luciene; MARQUES, Vanda Regina. |
2018 |
Psicologia, teoria e pesquisa |
Brasília |
Uma política para
estes adolescentes deve atentar para além do ato infracional e do uso de
drogas. |
9 |
|
RIBEIRO. Débora Stephanie; RIBEIRO, Fernanda
Mendes Lages; DESLANDES, Suely Ferreira. |
2018 |
Cadernos de Saúde Pública |
Rio de Janeiro |
Isolamento de adolescentes e
profissionais às ações e políticas de saúde mental do território. |
10 |
Comportamento
antissocial nos jovens como sequela da privação: contribuições da clínica winnicottiana para as políticas públicas |
ONOCKO-CAMPOS, Rosana |
2018 |
Interface - comunicação, saúde,
educação |
Botucatu |
Necessidade
de repensar as políticas públicas para jovens infratores. |
11 |
A função reflexiva em adolescentes em conflito
com a lei e em adolescentes escolares |
FAVARETTO, Taís Cristina; BOTH, Luciane Maria;
BENETTI, Sílvia Pereira da Cruz. |
2019 |
Psico |
Porto Alegre |
Importância de intervenções
clínicas voltadas para a avaliação e desenvolvimento da FR, ampliando
possibilidades de prevenção. |
12 |
Atenção em saúde mental para adolescentes
femininas em Unidades Socioeducativas: dilemas de governança e medicalização |
SILVA, Paulo Roberto Fagundes da; GAMA, Fabiana
Lozano; COSTA, Nilson do Rosário |
2019 |
Saúde em debate |
Rio de Janeiro |
A privação de liberdade pode
produzir medicalização que ameaça o direito de adolescentes no campo da
saúde. |
13 |
Discursos sobre as demandas de saúde mental de
jovens |
RIBEIRO. Débora Stephanie; RIBEIRO, Fernanda
Mendes Lages; DESLANDES, Suely Ferreira. |
2019 |
Ciência & Saúde Coletiva |
Rio de Janeiro |
Sobrevalorização dos
profissionais enquanto vocalizadores das demandas. |
14 |
Traços de personalidade de adolescentes
infratores e vitimizados por meio do Eysenck Personality Questionnaire
Junior (EPQ-J) |
PINTO
JUNIOR, Antonio Augusto; TARDIVO, Leila Salomão de la Plata Cury; ROSA, Helena Rinaldi; CHAVES, Gislaine;
BELIZÁRIO, Gabriel Okawa |
2019 |
Mudanças |
São Bernardo do Campo |
As experiências de vitimização
intrafamiliar e de prática de atos infracionais podem levar ao
comprometimento da saúde mental. |
Fonte: Sistematizado durante
a pesquisa.
Foi realizada leitura e
análise dos artigos selecionados e posterior divisão dos trabalhos por eixos.
Os eixos obtidos a partir da categorização são: patologização
e/ou medicalização (6); percepção de profissionais/instituição (4); e eventos
estressores, fatores de risco e de proteção (4).
Patologização e/ou medicalização
Os trabalhos deste eixo
apontam para o crescente processo de psiquiatrização
da prática de ato infracional (Vicentin; Gramkow;
Rosa, 2010), com a alta prevalência de diagnósticos de transtornos
psiquiátricos e de medicalização de adolescentes privados de liberdade (Andrade
et al., 2011; Costa; Silva, 2017; Silva; Gama; Costa, 2019).
Vicentin, Gramkow e Rosa (2010) discorrem sobre o crescente processo
de psiquiatrização de jovens que respondem por ato
infracional no Brasil, além do processo de criminalização que estes já sofrem.
As autoras indicam a presença de um importante contingente de adolescentes com
diagnósticos de transtorno mental e sem o devido tratamento em unidades
socioeducativas de São Paulo. Pesquisas já realizadas em unidades
socioeducativas alertam para o fato de o transtorno de personalidade ser
totalmente compatível com a lógica institucional (Vicentin; Gramkow;
Rosa, 2010).
Andrade et al.
(2011) apresentam que, os resultados da pesquisa realizada, sugerem que a
prevalência de transtornos psiquiátricos em adolescentes privados/as de
liberdade é maior que aquela esperada para a população geral com a mesma idade,
indicando que jovens privados/as de liberdade possuem alto risco para problemas
mentais. A psiquiatrização de adolescentes autores/as
de ato infracional encobre como doença mental processos sociais que discriminam
a pobreza e o desinvestimento da sociedade para com eles/as, desvelando a
tendência à patologização de setores pobres da
juventude brasileira (Vicentin; Gramkow; Rosa, 2010).
Estudos demonstram uma
escassez do debate sobre a questão de gênero no ambiente socioeducativo, porém
a prevalência de transtornos mentais em adolescentes privadas de liberdade tem
sido mais alta (Andrade et al., 2011; Costa; Silva, 2017; Silva; Gama;
Costa, 2019). Andrade et al. (2011) apresentam que, na subamostra
realizada com adolescentes infratores/as considerados/as violentos/as, em todas
as áreas diagnósticas investigadas, as meninas tendem a ter mais transtornos
mentais em relação aos meninos. Em alguns estados do país, a proporção de
adolescentes medicalizadas por questões de saúde
mental durante a internação chegou a 90% (Silva; Gama; Costa, 2019).
O levantamento
realizado por Silva, Gama e Costa (2019) sugere que o modelo de atenção à saúde
mental aderido por cada Unidade Socioeducativa influi na prevalência de
diagnósticos psiquiátricos e utilização de medicamentos durante a internação. Dos
três estados pesquisados (Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul),
dois tinham o modelo de governança verticalizado, com pouca ou nenhuma
articulação com a rede municipal de saúde, sendo os atendimentos em saúde
mental realizados dentro da própria unidade (Silva; Gama; Costa, 2019). Costa e
Silva (2017) chamam a atenção para a participação residual dos CAPS nos
atendimentos a adolescentes em medida socioeducativa de internação.
Estudos afirmam que
adolescentes envolvidos com a violência são expostos a alguma forma de exclusão
e/ou sofrimento, tendo sua saúde mental comprometida (Pinto Junior et al.,
2019). Essas experiências de violência, vividas ao longo da infância e/ou
adolescência, tendem a prejudicar a adaptação do sujeito e interferem na forma
como estes atuam no ambiente. Pinto Junior et al. (2019) afirmam que a
vivência e/ou exposição à violência na infância e adolescência se mostram como
um grave problema de saúde pública, o que exige o desenvolvimento de políticas
públicas para prevenção desse fenômeno.
Onocko-Campos (2018) reitera
a necessidade de o Brasil investir em políticas sociais públicas de proteção a
esses/as jovens e suas famílias, para que possam romper com o ciclo de
desigualdade e exclusão a qual são acometidos. A autora também traz a
importância da capacitação e supervisão clínica para trabalhadores/as que
cuidam destes/as jovens, para que possam exercer suas funções sem reproduzir
uma lógica punitiva para com os/as adolescentes.
Percepção de
profissionais/instituição
Nesta categoria os
artigos trazem, principalmente, o debate sobre o processo de psiquiatrização das decisões judiciais referentes aos
adolescentes que respondem por ato infracional e fazem uso de substâncias
psicoativas (Soares et al., 2017); as dificuldades do trabalho em rede
para o cuidado em saúde mental de adolescentes que cumprem medida
socioeducativa (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018;
Jimenez; Marques, 2018); a não adesão dos municípios na responsabilização sobre
adolescentes inseridos no sistema socioeducativo (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018; Jimenez; Marques, 2018); e o recorrente
uso de substâncias psicoativas por estes/as adolescentes (Jimenez; Marques,
2018; Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2019).
Soares et al.
(2017), realizaram a análise de decisões judiciais de 5 processos referentes a
adolescentes que fazem uso de substâncias psicoativas, a fim de verificar a
orientação teórico-técnica do campo da saúde mental adotada pelo judiciário.
Verificou-se a expressão de processos de psiquiatrização
no espaço forense, visto que, em 3, dos 5 processos analisados, houve a dupla
aplicação de medidas protetivas e socioeducativas de internação ou
semiliberdade, que, de acordo com os/as autores/as, restringe a possibilidade
desses adolescentes serem inscritos no serviço de rede comunitária de atenção
psicossocial proposto pela reforma psiquiátrica aos CAPS.
Concorde Soares et
al., 2017, o cumprimento de medida socioeducativa de internação se mostra
incompatível com a lógica de atenção comunitária do CAPS, uma vez que a
internação interfere diretamente na dimensão do território do/a adolescente,
o/a impedindo de se apropriar dos recursos e potencias do território e de
fortalecer seus vínculos familiares e comunitários. Os/as autores/as ainda
referem que essa contradição restringe o tratamento de saúde mental desses/as
adolescentes à esfera clínica e ambulatorial na sede do CAPS. A pesquisa aponta
para o potencial desterritorializante de medidas
socioeducativas de internação e identifica que apenas um processo se configurou
pertinente aos preceitos da reforma psiquiátrica, devido ao encaminhamento ao
CAPS para tratamento em saúde mental e aplicação de medida socioeducativa de
liberdade assistida, que de acordo com os/as autores/as não compromete a
dimensão de território do/a adolescente (Soares et al., 2017).
Ribeiro, Ribeiro e Deslandes (2019) identificam que a vocalização das
necessidades em saúde mental de adolescentes é feita por intermediação dos
profissionais da instituição socioeducativa, demonstrando pouco acesso direto
dos adolescentes às equipes de saúde mental para apresentarem suas próprias
demandas. Isso, além de reforçar lógicas de poder, tende a retratar a
necessidade de funcionários da unidade – como é o caso de encaminhamentos por
problemas disciplinares – em detrimento do que é expresso pelos/as adolescentes
enquanto necessidade. As autoras destacam a ausência de agentes socioeducativos
na identificação dessas demandas, mesmo sendo considerados como potenciais
interlocutores para as equipes de saúde mental, devido ao trabalho realizado na
instituição (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2019).
Identificou-se a
dificuldade de articulação e do trabalho em rede para atendimento das
necessidades de saúde mental de adolescentes que cumprem medida socioeducativa
(Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018; Jimenez; Marques,
2018). Ribeiro, Ribeiro e Deslandes (2018) discorrem relatos de trabalhadores de
unidade socioeducativa que apontam problemas nas relações entre as equipes
socioeducativas e os CAPS, como também entre o Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (Degase) e a Coordenação de Saúde
Integral e Reintegração Social (CSIRS) com as Secretarias Municipais de Saúde. Esses/as profissionais ressaltam que, além dos problemas nas
relações supra mencionadas, existem dificuldades de infraestrutura, como a
falta de transporte que garanta o acesso de adolescentes aos serviços da rede,
e também o baixo quantitativo de agentes socioeducativos (Ribeiro; Ribeiro; Deslandes, 2018).
A pesquisa de Jimenez e
Marques (2018) aponta dificuldades de acesso aos CAPS pelos adolescentes e
socio-educadores, sendo as principais queixas trazidas pelos/as profissionais:
distância geográfica do CAPS; os procedimentos burocráticos de encaminhamento;
a ausência de um plano terapêutico que considere as particularidades de
adolescentes (por se tratar de um CAPS-AD adulto); a falta de comunicação do
CAPS com socioeducadores; a não realização pelo CAPS
de busca ativa de adolescentes que não aderem ao serviço; e a possibilidade do
tratamento ofertado pelo CAPS oportunizar o contato com drogas prescritas, que
podem potencializar os efeitos se utilizadas com outras substâncias que os/as
adolescentes já faziam uso.
Socioeducadores respondentes da
pesquisa de Jimenez e Marques (2018) destacam que a dificuldade no acesso a
serviços de tratamento se mostra um sofrimento social maior do que o próprio
uso de substâncias. As autoras afirmam que os serviços de atenção básica à
saúde não são reconhecidos por socioeducadores como
espaços para o cuidado de adolescentes usuários de drogas, sendo considerados
como equipamentos voltados às ações de saúde orgânica.
Quanto a dificuldade de
trabalho intersetorial entre os serviços e instituições municipais com as unidades
socioeducativas de internação, Ribeiro, Ribeiro e Deslandes
(2018) destacam como isso interfere nas relações estabelecidas entre
profissionais das unidades com profissionais da rede de saúde. Profissionais
das unidades socioeducativas reforçam que a integração com a RAPS é uma
necessidade e é urgente. As dificuldades na relação com as Secretarias
Municipais de Saúde acabam por isolar adolescentes e profissionais das unidades
em relação às ações e políticas de saúde mental do território (Ribeiro;
Ribeiro; Deslandes, 2018).
A PNAISARI reafirma a
responsabilidade sanitária dos municípios por adolescentes que estão em
unidades socioeducativas de seu território. Ribeiro, Ribeiro e Deslandes (2018) concluem que cabe às Secretarias
Municipais de Saúde incorporar adolescentes em privação de liberdade na
população de abrangência de seus serviços territoriais, de modo a contribuir
para a garantia e o acesso desses/as jovens à saúde em todos os níveis de
complexidade, que inclui a saúde mental.
O uso de substâncias
psicoativas por adolescentes que cumprem medida socioeducativa apareceu em dois
trabalhos. Jimenez e Marques (2018) discorrem que, de acordo com profissionais entrevistados/as,
a maioria dos/as adolescentes relataram fazer uso de maconha, de forma
recreativa ou eventual, outras drogas como cocaína e crack aparecem em menor
número. Profissionais entrevistados/as por Ribeiro, Ribeiro e Deslandes (2019) apontam que o uso de drogas aparece como
uma demanda frequente de saúde mental e alguns discursos destes profissionais
referem que adolescentes pobres tendem a usar a droga para estabilizar o humor
devido à ausência de outros meios culturais/esportivos/escolares para realizar
o mesmo.
O uso prejudicial da
maconha foi relacionado por socioeducadores pela
falta de perspectivas dos/as adolescentes, mas as autoras destacam que também
pode ser relacionado ao alto controle social em que estes jovens são
submetidos, seja pela polícia, pelo tráfico de drogas e pelo sistema
socioeducativo (Jimenez; Marques, 2018). Jimenez e Marques (2018) concluem seu
trabalho indicando a fragilidade da execução de políticas públicas para
adolescentes usuários de drogas, que resultam, entre outras coisas, na
medicalização que pode potencializar o efeito de drogas já utilizadas e na
internação de adolescentes em instituições totais – como a Fundação Casa ou as
Comunidades Terapêuticas. As autoras sinalizam que uma política de atenção a
adolescentes usuários de drogas deve atentar para as heterogeneidades presente
neste complexo universo.
Eventos estressores,
fatores de risco e de proteção
Os artigos deste eixo
apontam que, adolescentes que cumprem medida socioeducativa, tendem a ter um
histórico de vida marcado por fatores de risco e baixa incidência de fatores
protetivos, havendo sobreposição de experiências negativas e alta prevalência
de eventos estressores ao decorrer de suas vidas (Dell’aglio;
Santos; Borges, 2004; Dell’aglio et al., 2005;
Silveira; Maruschi; Bazon,
2012; Favaretto; Both; Benetti, 2019).
Os/as autores/as
indicam para a fragilidade e ruptura de vínculos familiares de adolescentes que
respondem por ato infracional. Em sua pesquisa, Dell’aglio,
Santos e Borges (2004) demonstram que 68% das adolescentes residiam com sua
família biológica antes da internação por medida socioeducativa, entretanto,
14% delas não possuíam mais contato com a família e apenas 16% permaneceram
junto à sua família durante todo o período de infância e adolescência. As
pesquisadoras relatam que essas adolescentes passaram por repetidas rupturas
nos vínculos afetivos, relacionadas a perdas e separação de pessoas
significativas em suas vidas. A sequência de abandono e separação foi
verificada pela sucessão de cuidadores ou pela falta destes ao longo da
infância e adolescência das respondentes, e, pela aproximação e afastamento das
figuras maternas e paternas no decorrer de suas vidas. As autoras alegam que as
trocas sucessivas de cuidadores potencializam os efeitos do abandono e da
rejeição (Dell’aglio; Santos; Borges, 2004).
Dell’aglio et al. (2005)
descrevem que os eventos familiares apresentados como de maior impacto para as
adolescentes foram não receber cuidado/atenção dos pais e ser impedidas de ver
os mesmos, indicando a importância da presença da família durante a
adolescência. Dell’aglio, Santos e Borges (2004)
constataram que as adolescentes relataram fugas de casa devido a ocorrência de
maus-tratos e, por consequência, passaram a ter vivências de rua, o que as
levaram a ter contato direto com o uso de drogas, exploração sexual e entrada
na vida infracional, evidenciando que a violência esteve presente na vida
dessas adolescentes desde suas relações iniciais.
As pesquisas também
abordam a existência de eventos estressores relacionados ao acesso e
permanência à educação, através do relato de dificuldades de adaptação escolar
demonstradas por adolescentes que cumprem medidas (Dell’aglio
et al., 2005; Silveira; Maruschi; Bazon, 2012; Favaretto; Both; Benetti, 2019). Silveira, Maruschi e Bazon (2012) afirmam
que, há poucas indicações feitas por adolescentes que cometeram ato infracional
sobre aspectos positivos que envolvam a escola, pelo contrário, os relatos
demonstram a desmotivação de muitos em relação aos estudos, a maioria apresenta
evasão escolar, repetência e defasagem, associado a baixo
desempenho escolar.
Dell’aglio et al. (2005)
discorrem sobre os relatos das adolescentes relacionados à escola, que envolvem
repetência (68% das respondentes), expulsão de sala de aula, mudanças de
escola, mau relacionamento com colegas e dificuldades de adaptação/ajustamento
no ambiente escolar. Nesse sentido, Favaretto, Both e Benetti (2019) acrescentam haver grande número de reprovações entre
adolescentes que cumprem medida socioeducativa, como também, os pais desses/as
jovens apresentam menor escolaridade. Silveira, Maruschi
e Bazon (2012) frisam que, manter bom relacionamento
com amigos/as, professores ou pessoas significativas que o/a faça se sentir
querido/a e amado/a se apresentam como importantes fatores de proteção, por
favorecer a adaptação escolar.
Estudos alertam para a
presença de violência intra e extrafamiliar no
decorrer da vida de adolescentes que cometem ato infracional. Dell’aglio, Santos e Borges (2004) puderam observar a
exposição direta e/ou indireta de adolescentes a um contexto social e familiar
marcado por agressões físicas e verbais, ameaças e abuso sexual. Dell’aglio et al. (2005) descrevem eventos
estressores de maior impacto vivenciados e reconhecidos pelas adolescentes, que
são expostas a diversas formas de violência, como ser abusada sexualmente,
ficar grávida e realizar aborto. O índice de abuso sexual exposto por essa
pesquisa chegou a 34% das respondentes. As autoras apontam o envolvimento de
parte das respondentes com companheiros violentos, e sugerem a reprodução do
ciclo de violência (Dell’aglio et al., 2005).
A gravidez na
adolescência, problemas financeiros, a violência em suas várias expressões, o
uso de drogas, a falta de apoio familiar e de perspectiva nos estudos são
expostos como fatores de risco presentes no desenvolvimento desses/as
adolescentes, desvelando a presença de uma trajetória de desenvolvimento
marcada por fatores de risco e uma falta de fatores protetivos, seja por parte
da família, da comunidade, da sociedade ou do Estado (Dell’aglio;
Santos; Borges, 2004; Dell’aglio et al., 2005;
Silveira; Maruschi; Bazon,
2012; Favaretto; Both; Benetti, 2019). Dell’aglio et
al. (2005) compreendem que a exposição a variados fatores de risco
certamente contribuí para o comportamento infrator, tendo também impacto no
bem-estar psicológico desses sujeitos.
Discussão
A maioria dos trabalhos
analisados abordam a saúde mental de adolescentes que cumprem medida
socioeducativa de internação, sendo de menor número os referentes a outros
tipos de medida. Houve o predomínio de pesquisas com adolescentes do sexo masculino
e pouca discussão sobre as questões de gênero no ambiente socioeducativo,
quando isso ocorreu foi em pesquisas com o foco em unidades socioeducativas
femininas ou em estudos de comparação por gênero.
Verifica-se uma
ausência de discussão sobre a questão étnico-racial, que foi abordada em apenas
2 trabalhos sob a forma de dados estatísticos (Costa; Silva, 2017; Silva, 2019).
Levantamento realizado pelo SINASE demonstra que 40% dos adolescentes incluídos
no sistema socioeducativo se identificam como pretos/pardos, 23% como brancos,
0,8% amarelos, 0,2% indígenas e 36% não tiveram sua raça/cor declarada (Brasil,
2019)[4]. É
notória a relevância e necessidade de as pesquisas discutirem seus resultados
considerando a questão étnico-racial, tendo em vista que é um elemento
estruturante das relações sociais brasileiras (Rocha, 2014). Outrossim, a
partir da noção de que o processo de adoecimento também está associado a
determinantes sociais (Brasil, 1990b), não apenas de ordem material, mas também
social, entende-se as dinâmicas raciais como elementos significativos para a
determinação da saúde.
Grande parte das
investigações aqui expostas trouxe a questão da psiquiatrização
de adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação, revelando a
grande incidência de medicalização desses/as jovens durante o período que
permanecem internados/as. Essa constatação reforça práticas que tem por
centralidade a doença e tendem a individualizar questões que poderiam ser
tratadas no coletivo, considerando o contexto e as demais necessidades dos/as
adolescentes, fazendo com que o/a adolescente tenha centralidade nos processos
de cuidado e não a doença ou determinados comportamentos.
Trabalhos também
revelam as barreiras de acesso aos serviços de saúde mental pela população em
estudo, sendo uma das principais queixas de trabalhadores/as de unidades
socioeducativas a falta de comunicação e dificuldade de acesso a serviços de
saúde mental, uma vez que, tão ou mais importante que identificar as necessidades
em saúde mental é garantir o acesso e o acompanhamento, se necessário, de
adolescentes a serviços de saúde do território.
A falta de integração
das Unidades Socioeducativas com os dispositivos do SUS em suas respectivas
localidades, caminha contra as normativas que tratam sobre a saúde mental de
adolescentes no sistema socioeducativo. O SINASE (Brasil, 2012b) delibera sobre
o direito de adolescentes realizarem tratamento em saúde mental em serviços
comunitários, conforme dispõe a Lei de Saúde Mental. A PNAISARI (Brasil, 2014)
também delibera a articulação com a RAPS e a Atenção Básica para o cuidado
integral em saúde de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Neste
mesmo caminho, a Resolução nº 177 de 2015 (Brasil, 2015), do Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), dispõe sobre o direito de
crianças e adolescentes não serem submetidos à medicalização excessiva,
privilegiando protocolos clínicos com alternativas não medicalizantes
que envolvam um trabalho multidisciplinar e intersetorial.
Percebeu-se que as
trajetórias de vida dos/as adolescentes pesquisados/as pelos/as autores/as são marcadas por violência e desproteção social, com forte
incidência de fatores de risco e ausência de fatores de proteção, exigindo atenção
não apenas das pesquisas, mas principalmente do poder público para com esses
jovens e suas famílias. A garantia e ampliação de direitos exige a efetivação
de políticas públicas que atuem sobre as necessidades reais dos sujeitos, além
de ações destinadas a instituições e trabalhadores/as que atuam junto dessa
população.
Foi observada a utilização de alguns termos como
jovem/adolescente infrator, delinquência, adolescente em conflito com a lei e
privação de liberdade que, além de reforçar estigmas e a responsabilizar unicamente
os/as próprios/as adolescentes pela prática do ato infracional – que variadas
vezes respondem por ele sem que haja de fato o processo socioeducativo,
retornando para o mesmo contexto e não mobilizando o Estado, a comunidade/sociedade
e as famílias enquanto parte desse processo –, tendem a identificar esses
sujeitos exclusivamente pelo cometimento de determinadas atitudes, reduzindo-os
ao ato infracional. A prevalência da utilização de termos que reforçam
estereótipos a jovens que cumprem medida socioeducativa tende a demonstrar as
resistências, no plano cultural, da superação de visões depreciativas referentes
a condição de classe social, território e raça/cor dos/as adolescentes e suas
respectivas famílias (Garcia; Lima, 2020).
Essa resistência em superar
o uso de termos depreciativos, bem como a responsabilização unilateral dos
próprios/as adolescentes e suas famílias pela prática do ato infracional, são
formas históricas de reproduzir a criminalização da pobreza. A reprodução da criminalização
da pobreza e a preferência em aplicação de medidas socioeducativas de privação
de liberdade – que se manifesta através do encarceramento de jovens que, em sua
maioria, são negros e pobres – evidencia o abandono do Estado e a preferência à
institucionalização e em práticas punitivas em vez de investir na proteção
social desses/as adolescentes (Garcia; Lima, 2020).
Para muitos
adolescentes que respondem por ato infracional, a aproximação com o Estado
ocorreu mediante a punição e aplicação de medida socioeducativa e não por
práticas de proteção social, fazendo com o que o acesso destes a políticas e
programas sociais se desse somente após iniciar o cumprimento de medida
socioeducativa.
Mesmo com
uma lei que considera todos iguais, as oportunidades de acesso a bens, serviços
e programas sociais são mediadas pela raça/cor e origem de classe de seus
demandantes. A juventude negra tem sido a principal vítima dos processos de
violência e de precárias condições de acesso à escola e ao mercado de trabalho.
Quando o adolescente vivencia a experiência do conflito com a lei, os processos
de estigmatização e legitimação de práticas violentas – iniciados no
encarceramento e seguidos de maus tratos, tortura e, no limite, eliminação
física – são naturalizados (Garcia; Lima, 2020, p. 73).
Os objetivos das
medidas socioeducativas, de acordo com as normativas nacionais, vão para além
da responsabilização e desaprovação da conduta, pois também intencionam a
integração social do/a adolescente e a garantia de seus direitos, concorde sua
condição de pessoas em desenvolvimento. Para além de uma discussão semântica, é
possível identificar diferentes visões do descumprimento da lei durante a
adolescência presentes na sociedade que refletem nas produções acadêmicas. Concorde
Garcia e Lima (2020), existem resistências de diversos planos para a
implementação efetiva do ECA e demais legislações que garantem a proteção e os
direitos dos/as adolescentes. Para os referidos autores, o Estado, ao não
implementar o que dispõe essas legislações, tem a inteira responsabilidade sobre
a desproteção dessa população
O que se observa no plano real é a atuação – vigorosa – do
aparelho estatal nas políticas de segurança pública e não nas políticas
sociais. A omissão do Estado permeia a vivência desses jovens, restringindo o
acesso à cidadania por intermédio da efetivação de uma subalternidade orientada
aos meninos e às meninas das classes populares (Garcia; Lima, 2020, p. 77).
Em uma sociedade
capitalista baseada na desigualdade, estruturada pelo racismo e sexismo, é de
suma importância a luta pela garantia e ampliação de direitos historicamente
conquistados. É preciso assegurar a juventude brasileira, principalmente a que
sofre mais impactos com as políticas punitivas do Estado, a garantia da proteção
social. As instituições que recebem e acolhem esses/as adolescentes e,
principalmente, o Estado, precisam incorporar, de fato, a perspectiva de
proteção e socio educação. Responsabilizar é diferente de punir.
Considerações Finais
O resultado das buscas
nas bases de dados revelou muitos trabalhos, entretanto, ao se olhar
atentamente para as produções em formato de artigo científico, percebeu-se
poucos estudos nacionais com foco na saúde mental de adolescentes que cumprem
medida socioeducativa e, dos existentes, há alta incidência de trabalhos
direcionados a medidas de internação.
Essa pesquisa não
simboliza todos os trabalhos nacionais que têm por objeto a saúde mental de
adolescentes que cumprem medida socioeducativa, não sendo passível de
generalização, pois a busca para a revisão não foi realizada em todas as
plataformas existentes. A escolha metodológica de alcance desse estudo ocorreu
de acordo com a possibilidade de tempo e condições para que o trabalho fosse
desenvolvido.
A análise dos
resultados permitiu observar que a assistência e promoção da saúde mental de
adolescentes que cumprem medida socioeducativa, especialmente de internação,
possui desafios complexos para sua efetivação, seja pela dificuldade de
articulação de rede e/ou pelas práticas institucionais dos estabelecimentos
socioeducativos de excessiva medicalização e produção de diagnósticos
psiquiátricos, no sentido de reproduzir uma prática psiquiátrica funcional a
manutenção do poder que tem por centralidade a doença/diagnóstico,
desconsiderando o contexto e as demais necessidades desses sujeitos. Diante
disso, o presente estudo correspondeu as hipóteses elaboradas anteriormente no
projeto de pesquisa, que se referia a tendência a medicalização de
comportamentos considerados desviantes ou inadequados praticados
por adolescentes e a patologização da prática de ato
infracional.
Compreende-se que, a
lógica institucional dos estabelecimentos socioeducativos, se orientados por
práticas punitivas e/ou coercitivas, tendem a propiciar condições para o adoecimento/sofrimento
mental e/ou o aumento destes se já pré-existentes. A partir do exposto é
possível identificar uma distância considerável entre o que preconiza a
legislação brasileira no que se refere a adolescentes que cometem ato
infracional e a realidade vivenciada por essa população.
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2010.
________________________________________________________________________________________________
Ana Clara Gomes PICOLLI Trabalhou na concepção,
delineamento, análise e interpretação dos dados e na redação do artigo.
Bacharel em Serviço
Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Especialista em Saúde
Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Atualmente
cursa o mestrado em Serviço Social e Políticas Sociais no Programa de
Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), é integrante do Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão sobre
Crianças, Adolescentes e Famílias (GCAF/UNIFESP).
Daniel Péricles ARRUDA Trabalhou no
delineamento e revisão crítica.
Arte-educa(a)dor, rapper e poeta conhecido como
Vulgo Elemento. Pós-doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP); doutor em Serviço Social pela PUC-SP e mestre
em Serviço Social (bolsista do Ford
Foundation International Fellowships
Program, turma de 2010) pela PUC-SP. Tem especialização Multiprofissional em Saúde
Mental e Psiquiatria pela Escola de Educação Permanente do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (EEP HCFMUSP) e
em Arte-Educação pelo Centro Universitário Senac. É graduado em Serviço Social pela PUC Minas. Em
formação em Psicanálise no Instituto Langage.
Professor da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP), campus Baixada Santista, vinculado ao curso de
graduação em Serviço Social, ao Departamento de Saúde, Educação e Sociedade
(DSES) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Vivências
Artísticas, Culturais e Periféricas.
________________________________________________________________________________________________
* Assistente
Social. Especialista em Saúde Mental. Mestranda do Programa de Pós-graduação em
Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo. (Unifesp,
São Paulo, Brasil). Edifício Central, R.
Silva Jardim, 136, Vila Matias, Campus Baixada Santista,
Santos (SP), CEP.: 11015-020. E-mail: acgpicolli@unifesp.br.
** Arte-educa(a)dor, rapper e poeta conhecido como Vulgo Elemento. Doutor
em Serviço Social. Professor do curso de graduação em Serviço Social, ao Departamento de Saúde, Educação
e Sociedade (DSES), da Universidade Federal de São Paulo. (Unifesp,
São Paulo, Brasil). Edifício Central, R.
Silva Jardim, 136, Vila Matias, Campus Baixada Santista,
Santos (SP), CEP.: 11015-020.
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[1] Instituição vinculada à
Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania de São Paulo que tem a missão de
executar medidas socioeducativas de privação de liberdade e semiliberdade à
adolescentes de 12 a 21 anos incompletos. De acordo com informações da instituição,
a região da Baixada Santista conta, atualmente, com 5 unidades, localizadas nos
municípios de Praia Grande (2), São Vicente (1), Santos (1) e Guarujá (1).
[2] Vicentin, Gramkow
e Rosa (2010) define como processo de psiquiatrização
a “[...] predominância dos saberes e fazeres psi na
gestão das problematizações e dos conflitos que setores da juventude vêm
colocando ao campo social” (Vicentin; Gramkow; Rosa,
2010, p. 62).
[3] A Conferência Nacional de
Saúde Mental é um importante espaço de participação popular, onde é debatido e
proposto as diretrizes e princípios que regem a política pública de saúde
mental; ela é precedida de conferências estaduais e municipais e até o ano de
2021 foram realizadas 4 conferências nacionais nos anos de 1987, 1992, 2001 e
2010.
[4] As classificações preta, parda, branco, amarelo e indígena são aqui apreendidas como construções sociais e são também os termos adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para classificar a população brasileira.