Crisis
and commercialisation of insanity under the aegis of Brazilian conservationism
Amanda Silva de JESUS*
https://orcid.org/0000-0002-9306-2096
Sandra Rodrigues SANTOS**
https://orcid.org/0000-0002-2622-5190
Palavras-chave: Saúde mental. Políticas
sociais. Conservadorismo. Mercantilização.
Abstract: This study discusses mental health measures that have been consolidated in
Brazil, taking into consideration the structural crisis of capital and the deepening
of conservatism in Brazil, which have directly affected the equitable
development of this policy. The results indicate that actions implemented during
the Temer administration and their impact on the preservation of acquired rights
had a significant impact on Mental Health Policy. Through qualitative
literature review, it aims to understand how the counter-reforms implemented in
recent years have influenced the National Policy on Mental Health, Alcohol and
Other Drugs, reinforcing the current expressions of the
social question, and confirming the resurgence of the asylum model, which has led
to a retrogression of the solid achievements of the Psychiatric Reform Movement
that had been in place since the 1980s.
Keywords: Mental health. Social policies. Conservatism.
Commercialisation.
Submetido em: 25/1/2023.
Revisto em: 26/4/2023/ 29/7/2023. Aceito em: 30/7/2023.
O |
aprofundamento
da crise estrutural do capital, não por acaso atravessada por uma forte onda
conservadora em nível nacional e mundial, vem impactando diretamente todas as dimensões da vida social (Leal, 2020).
A certeza é de que, mais que nunca, as classes dominantes, com forte incentivo
do Estado, têm buscado alternativas para garantir os mecanismos de contratendências
para a manutenção e elevação da taxa de lucro (Behring, 2011). Nesse contexto,
quem vivencia diretamente os impactos do processo de mundialização e
financeirização do capital são as classes subalternas, que têm seus direitos
sociais historicamente conquistados na mira do capital com o apoio do Estado, que
apresenta sua face de autoridade e repressão como estratégia central de
controle e intervenção sobre as demandas sociais por meio da articulação entre “[...]
violência permanente e assistencialismo minimalista” (Leal, 2020, p. 368).
A
ofensiva neoliberal mundializada e implementada nos países latino-americanos a
partir da década de 1990 foi aprofundada no Brasil de modo particular nos
governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), fato
que impactou diretamente o modo de ser e existir das organizações políticas de
classe e, por conseguinte, as possibilidades de construção de um horizonte
societário democrático e humano em curto prazo. A ausência de um projeto societário
concatenado a um cenário em que a esquerda se apresenta despreparada e
desorientada socialmente (Leal, 2020) colabora para que as políticas sociais, enquanto
terreno permanente de disputa entre as classes, sofram impactos e perdas
diretas, demarcando grandes retrocessos civilizatórios, inclusive no
âmbito da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Passos et
al., 2021).
Os
equipamentos e serviços em xeque no âmbito da Política Nacional de Saúde Mental
(PNSM), a partir dos anos de 2016, expressaram ataques
diretos às conquistas do Movimento da Reforma Psiquiátrica, mobilização de luta
propulsora da PNSM (Lei 10.216 de 2001), iniciada na década de 1980 que
demarcou o ingresso de novos atores no campo de disputa contra o modelo
manicomial – modelo vigente no Brasil do século XIX até a década de 1980 –, por
meio da participação de trabalhadores, estudantes, usuários e familiares no
processo de construção da política nacional de saúde mental sob fortes tensões
e disputas, como sinaliza Passos et al. (2021).
O
campo conservador da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) sempre esteve presente
na história da Política de Saúde Mental; ora colocando a Reforma e seus
princípios[1]
como entrave à corporação médica, ora tensionando contra os serviços substitutivos
às práticas manicomiais que resgatam a lógica hospitalocêntrica no tratamento
de pessoas em sofrimento psíquico. O fato é que a ala conservadora ganhou força
nas disputas sobre a Política Nacional de Saúde Mental, sobretudo a partir de
2016, quando se explicitou e se aprofundou o conservadorismo sempre existente nas
esferas do Estado e da sociedade civil brasileira e se colocou em voga a defesa
ao retorno de propostas manicomiais como meios de tratamento que se acreditavam
superadas na história do atendimento à saúde mental (Passos et al.,
2021).
O
escamoteamento do conjunto das políticas públicas
sociais, ao afetar a Política de Saúde Mental, tornou objeto de mercantilização
a própria loucura, num projeto de desmonte expresso pelo conjunto de 14
documentos[2],
dentre portarias, resoluções, nota técnica e decreto publicados entre os anos
de 2016 e 2019 (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020), cujos impactos imediatos se fizeram
sentir por meio do incentivo às práticas psiquiátricas expressas na inclusão dos
hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial; na possibilidade de
internação de crianças e adolescentes (ferindo o disposto na Lei n. 8.069/1990)
(Brasil, 1990); no financiamento para compra de aparelhos de eletrochoque (eletroconvulsoterapia) e na abstinência como forma de
tratamento aos usuários de drogas – contrapondo a Política de Atenção Integral
a Usuários de Álcool e Outras Drogas (PAIUAD) (Brasil, 2004). Tais mudanças
representaram forte retrocesso à Política de Saúde Mental ao propor normas
incompatíveis com a Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei n. 10.216/2001 (Brasil, 2001),
desestruturando a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e privilegiando modelos
pautados na internação (hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas).
O
incentivo e o financiamento às comunidades terapêuticas[3]
(CTs), a partir de sua inclusão no Cadastro Nacional
de Estabelecimentos de Saúde (CNES) com a edição e publicação pelo Ministério
da Saúde em outubro de 2016 da Portaria 1.482 (Brasil, 2016b), abriu a possibilidade
de inserção das Comunidades Terapêuticas no âmbito da RAPS.
Tal
medida fortaleceu o reconhecimento de instituições, de caráter essencialmente
religioso, como instâncias de usufruto do fundo público[4]
sem, todavia, estabelecer os critérios de financiamento e as diretrizes para
sua regulamentação e fiscalização. Longe de representar mera lacuna, a ausência
desses eixos fundamentais explicitou o aprofundamento do sucateamento da Rede
de Atenção Psicossocial de modo sistemático, coordenado e planejado, conforme é
possível observar na edição pelo Ministério da Saúde, em 2019, da nota técnica
11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, publicada pela Coordenação Geral de Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2019a), em que anunciou os princípios do que
ficou conhecido como Nova Política de Saúde Mental, vigorando as Comunidades
Terapêuticas (CTs) e os hospitais psiquiátricos como
pontos de atenção da RAPS e passíveis de financiamento público, que, associada
à Nova Política de Atenção Básica (PNAB) (Portaria n. 2.436 de 21 de setembro de
2017) (Brasil, 2017a), retirou as condições objetivas de articulação aos atendimentos
referenciados, territorializados e humanizados a
partir do apoio da Estratégia de Saúde da Família (ESF).
Para
Cruz, Gonçalves e Delgado (2020), o marco inicial dessa nova política deu-se
por meio da publicação da Resolução n.
32 da Comissão Intergestora Tripartite (CIT) de 14 de dezembro de 2017 (Brasil,
2017b), que estabeleceu eixos que colocaram em xeque as conquistas da Reforma
Psiquiátrica. O maior financiamento dos hospitais psiquiátricos[5],
a partir do aumento no valor de diárias e de maior custeio com base no aumento
do número mínimo de leitos de saúde mental em hospital geral, se contrapôs ao
princípio da desinstitucionalização dos atendimentos às pessoas em situação de
adoecimento mental e escancarou a centralidade do modelo hospitalar enquanto
modo de atendimento completamente esvaziado da lógica do território, eixo estruturante
da atenção psicossocial.
A
Portaria Interministerial n. 2, de 21 de dezembro de 2017 (Brasil, 2017d), ao
desvincular, ainda, a política sobre álcool e outras drogas da pasta de saúde,
retrocedeu ao proibicionismo e ao atendimento compulsório pela via do controle
e isolamento dos corpos dos pacientes e seu protagonismo, incentivando o atendimento
compulsório pela via das Comunidades Terapêuticas sem o devido acompanhamento e
a fiscalização de seu custeio e prestação de serviços, cujo modelo de
atendimento já é bastante conhecido por seu caráter religioso, punitivo e
coercitivo[6].
Se,
com a Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei n. 10.216 de 2001 (Brasil, 2001), se teve
grande avanço em relação a essa política por meio da estruturação, fiscalização
e direção dos serviços, não se pode dizer o mesmo na cena em que se colocaram
as novas normativas entre os anos de 2016 e 2019. Podemos tomar, como exemplo, o
uso da eletroconvulsoterapia, que foi bastante
presente no período dos atendimentos manicomiais de modo coercitivo e que, ao
se tornar objeto de financiamento pelo Ministério da Saúde (MS) para equipamentos
dessa prática, abriu à indústria pressão à sua produção e ao seu uso
indiscriminado, limitando-o não à lógica de casos muito específicos e ponderados,
conforme orientações de especialistas a partir da Reforma Psiquiátrica, mas à lógica
mercantil e industrial.
A
conta do conjunto de perdas no âmbito das políticas sociais, inclusive
da Política de Saúde Mental, foi depositada nas costas dos trabalhadores e das camadas
mais empobrecidas da sociedade, que tiveram retirado o direito a atendimentos públicos
humanizados, vivenciando as contradições de classe, território, gênero, raça, trabalho,
moradia, transporte e saúde impostas, não sem embates, nos últimos anos (Duarte
et al., 2020).
Esse
cenário tornou-se mais agressivo à população empobrecida no Brasil após o início
da pandemia que assolou o mundo durante três anos, causada pela COVID-19. O crescimento
da população em situação de sofrimento psíquico em decorrência de fatores de
nosso tempo e sociabilidade, que valem ser analisados em estudo específico, acirrou
as disputas pela direção política da Reforma Psiquiátrica, tornando-a palco de
contrarreformas[7] que
atravessam o conjunto das políticas sociais.
É
a partir dessas considerações que, no presente artigo, busca-se refletir em
termos gerais sobre o significado dos retrocessos ocorridos entre os anos de
2016 e 2019 no âmbito da proteção social num cenário de crise estrutural, com
destaque para seus impactos sobre a Política de Saúde Mental. Aponta-se de modo
introdutório o significado social, econômico e cultural deste processo de modo
a compreender os reflexos das medidas e normativas políticas, eticamente
intencionadas a atender aos interesses do capital e das classes dominantes nativas
e internacionais por meio de ações conservadoras e reacionárias, somadas ao
aprofundamento da pauta neoliberal, explicitando o sucateamento do conjunto das
políticas públicas sociais e contribuindo para o agravamento das expressões da “questão
social” na cena contemporânea.
Por
fim, cabe mencionar que a revisão de literatura se baseou na revisão narrativa,
com aporte da bibliografia especializada publicada sobre o tema da saúde mental
e dos principais atos normativos referentes as alterações realizadas no âmbito
da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas entre os anos 2019
e 2023. Utilizou-se dados oficiais publicados sobre a temática em questão, além
da produção de autores/pesquisadores de
significativa relevância da área. Deste modo, o estudo tem como objetivo abrir
ao diálogo, discussões e debates que já vem sendo realizados hodiernamente.
A
crise estrutural é um fenômeno mundial e vem se aprofundando desde a década de
1970. Apesar de servir de justificativa para o engodo
da crise fiscal do Estado brasileiro desde os anos 1990, observa-se que,
a crise sanitária causada pela pandemia da COVID-19, escancarou a crise
estrutural enquanto fenômeno mundializado e sistêmico, que hoje apresenta
limitações para as quais o próprio sistema não traz mais “[...] soluções
internas à dinâmica contraditória que ele mesmo produz” (Herrera, 2015, p. 8). Tem-se
uma crise estrutural fruto da longa onda de estagnação que se manifesta na
segunda metade dos anos 1970
e apresenta determinações
específicas entre os anos de 1990 e 2000, levando os países centrais a investirem
permanentemente em mecanismos para retomar e manter as estratégias de
superlucros do capitalismo por todo o planeta (Mandel, 1982).
No
Brasil, as estratégias para enfrentamento do engodo da
crise fiscal foram orientadas pelas potências hegemônicas[8]
e se consolidaram por meio de incentivos financeiros condicionados ao
sucateamento de serviços e políticas sociais calcado no redimensionamento do
fundo público para os interesses do capital financeiro com forte protagonismo
do Estado.
O
Estado brasileiro, atrelado ao capital financeiro, vem engendrando, desde a década
de 1990, um conjunto de ações econômicas, sociais, políticas e ideológicas articuladas
às premissas e aos interesses das classes dominantes no contexto de crise capitalista.
A corrente de privatizações de instituições, serviços e políticas se sustenta na
responsabilização da sociedade civil pelas demandas das classes subalternas, enquanto
a gestão da “questão social” se efetiva pela via da política social compensatória,
reeditando a face do Estado penal ao criminalizar e encarcerar a pobreza e
militarizar a vida cotidiana (Behring, 2009).
A
combinação entre violência e assistencialismo no âmbito da atuação estatal aprofunda
o fosso da desigualdade social e étnico/racial já existente, escancarando a
típica e contraditória relação sócio-histórica brasileira entre centro e periferia,
brancos(as) e negros(as)/indígenas, pobres e ricos, ou seja, a desigualdade
social e racial. Tem-se a radicalização da questão social acompanhada
pela destruição do sistema de proteção social enquanto projeto que se efetiva
sobretudo a partir dos governos de Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro, cujos
maiores exemplos do escamoteamento em termos gerais foram:
a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 (Brasil, 2016a) – que congelou os
gastos públicos pelo período de 20 anos, estimulando “[...] subfinanciamento e
cortes na saúde, num cenário de contratação temporária de trabalhadores,
precariedade dos serviços [...]” (Caputo et al., 2020, p. 96) –, a Reforma
da Previdência Social e a flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), que contribuíram fortemente para a precarização e exploração da força de
trabalho num contexto de desemprego estrutural.
Tais
contrarreformas, somadas ao aprofundamento da burocratização historicamente
constituída no âmbito do Estado brasileiro, incumbiram-se de reeditar e
fortalecer o redirecionamento do papel deste, influenciado pela política de ajuste
neoliberal sob um viés político e ideológico conservador, à custa das
condições de vida dos trabalhadores(as), deixando-os(as) subjugados(as) à
dinâmica do mercado, principalmente sob o jugo do capital financeiro a partir de
seu domínio e sua imposição sobre o capital produtivo (Bravo, 2006).
O
golpe jurídico, midiático e parlamentar[9]
que depôs a então presidente Dilma Roussef e permitiu a entrada de Michel Temer
na presidência em 2016 antecipou o processo de destruição dos direitos sociais
e abriu brechas para seu desmonte estrutural no governo de Jair Messias Bolsonaro
(2019-2022), demarcando perdas que afastaram do horizonte social em curto prazo
princípios como democracia, liberdade e justiça social, acabando com conquistas,
como mudanças assistenciais, técnicas e culturais construídas nos últimos 20 anos
no âmbito das políticas sociais, inclusive, da Política Nacional de Saúde
Mental (Passos et al., 2021).
Passos
et al. (2021, p. 45), ao apontar as conquistas fruto das lutas sociais
iniciadas pelo Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) e Movimento Nacional
da Luta Antimanicomial (MNLA) na década de 1980, demarca sua importância
enquanto processo social e político para a consolidação dos serviços
substitutivos que ganharam respaldo jurídico e normativo a partir da Lei n. 10.216/2001,
conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Ela menciona que, desde sua gênese,
a Política de Saúde Mental enfrentou condicionantes objetivos, dado que seu
nascimento se gestou sob o taco do “contexto de adequação do país às medidas
neoliberais”. Ainda assim, a autora considera que a Política de Saúde Mental
teve avanços significativos até os anos de 2015, mas não sem amplas disputas no
âmbito de sua direção política, sobretudo devido à forte ofensiva dos
interesses da ala conservadora da Reforma Psiquiátrica, bem como da indústria
de equipamentos médicos, cujos representantes científicos, aliados a
especialistas conservadores tanto da área médica quanto do âmbito estatal, não
se cansam de defender a eletroconvulsoterapia (ECT) e
a internação como alternativas de tratamento às pessoas em situação de
sofrimento psíquico (Passos et al., 2021). Ou seja, a privação de
liberdade e o controle sobre os corpos são um marco de disputa permanente nessa
política que retorna em pauta na atual conjuntura calcado em princípios conservadores/fundamentalistas
que sempre estiveram à espreita enquanto propostas e alternativas de
atendimento e tratamento da loucura.
Passos
et al. (2021) situa os avanços da Política de Saúde Mental no Brasil a
partir do primeiro governo do PT, iniciado em 2003, quando foi possível,
segundo a autora, efetivar a expansão dos serviços de base territorial, como os
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Tipo I e II (atendimentos diurnos),
bem como insumos e equipamentos necessários à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Essa expansão, segundo Passos, contribuiu para constituir alternativas aos
manicômios, mas, contraditoriamente, não abrangeu na proporção necessária a
criação de Centros de Atendimento Psicossocial de Tipo III, voltados para o
atendimento em situações de crise em saúde mental e demais serviços que
poderiam contribuir dando o suporte necessário a esses usuários. Além disso, foram
incluídas no âmbito da RAPS as Comunidades Terapêuticas enquanto serviço de saúde
destinado a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial
transitório, dando a essas instituições direito a subsídio do Sistema
Único de Saúde e abrindo brecha para a ala conservadora atuar em seus
interesses particularistas (Passos et al., 2021).
Para
Passos et al. (2021), o ano de 2016, já no governo de Michel Temer, demarca
o início de perdas concretas na Política de Saúde Mental, haja vista o cenário de
alterações constantes na Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas
(CGMAD) no Ministério da Saúde, expressando as tensões e os interesses
políticos presentes no governo de Michel Temer no que se refere ao
fortalecimento das posições contrárias aos fundamentos da Reforma Psiquiátrica.
As
ações de cariz conservador que se aprofundaram a partir de 2016 no governo de
Michel Temer se iniciaram já no Governo Dilma (2015-2016), cujo maior exemplo foram
as normativas que defendiam a privação de liberdade e a religião como forma de cura.
Dessa forma, observa-se que a disputa e as tensões atravessam o movimento de
consolidação da Política Nacional de Saúde Mental em vários momentos de sua
trajetória, mas foi efetivamente a partir do governo de Michel Temer que essa
disputa se aprofundou com grandes perdas para os usuários e trabalhadores.
Nos
anos de 2016 e 2017, tem-se o acirramento da agenda neoliberal após o golpe
midiático, parlamentar e jurídico que permitiu a Michel Temer assumir o governo
federal e realizar ações na Política Nacional de Saúde Mental que recaíram,
principalmente, sobre: a) a rede de serviços substitutivos à Rede de Atenção
Psicossocial; b) o incentivo à destinação do fundo público às Comunidades Terapêuticas
e aos hospitais psiquiátricos; e c) o estímulo às práticas manicomiais que
resgatam a lógica hospitalocêntrica.
Duarte
(2018) aponta com precisão como, por meio da Portaria n. 3.588/2017 (Brasil,
2017c), foi redesenhada uma nova Política de Saúde Mental pautada na hegemonia
do saber médico e na indústria de leitos em detrimento da rede de
atendimento territorial e comunitária, de modo que, a partir de 2017, irrompeu-se
a agenda de desmonte sobre a Política de Saúde Mental de maneira efetiva.
Passos
et al. (2021) concorda com Duarte (2020) quando demonstra que, a partir
de então, a Coordenação Nacional de Saúde Mental consolidou uma série de ações que
sucatearam os serviços substitutivos ofertados pelo Sistema Único de Saúde, cuja
aprovação da Portaria GM/MS n. 3.588/2017 (Brasil, 2017c) escancarou o caráter
mercadológico, ideológico e econômico das medidas acionadas por Quirino
Cordeiro Júnior (2017), o então Coordenador Nacional da Saúde Mental, explicitando
o processo de sucateamento que desembocou na promulgação da Nova Política de
Saúde Mental[10].
Junto
dessa nova política, teve-se o incentivo financeiro às instituições religiosas,
que disputaram com êxito o fundo público com destino a investimentos em Comunidades
Terapêuticas. Assim, o foco se tornou as internações enquanto meio de
tratamento fundado na abstinência e não mais na redução de danos dos usuários,
que, atrelado à potencialização de um modelo centrado em instituições médicas,
redimensionou o tratamento com base na vida comunitária para um tratamento
promotor de estigmas e segregação, totalmente oposto à lógica de
desinstitucionalização prevista na Reforma Psiquiátrica.
Nota-se
que ainda continua explícito e potencializado como modo de ser desta dimensão
da política que, até o presente momento, em 2023 (Brasil, 2023), os
atendimentos a esse público junto ao Ministério da Saúde sigam vinculados à
Secretaria de Segurança Pública com forte ênfase às medidas de controle e
repressão da população usuária de álcool e outras drogas, não considerando tal
expressão da questão social como determinação do modo de produção e reprodução
da vida sob o capitalismo, enquanto demanda colocada ao Estado e ao conjunto
das políticas públicas sociais, sobretudo à saúde pública. De modo geral, como
aponta Passos et al. (2021), as ações demonstraram claramente a ênfase
em pautas que consideram a privação de liberdade e o controle sobre os corpos, tendo
como finalidade “[...] incentivar a institucionalização dos usuários da saúde
mental e atender a interesses de grupos que historicamente disputam a direção
deste campo” (Passos et al., 2021, p. 50).
A
partir das alterações realizadas na PNSM, percebe-se que se aprofundou o
sucateamento dos serviços e das políticas públicas de prevenção e promoção em
favor da terceirização[11] dos
serviços públicos de responsabilidade estatal, além da precarização dos
vínculos empregatícios, que impactam diretamente essa política, tendo essa
sua estrutura fortemente impactada no âmbito das três esferas do governo, indo
de encontro aos interesses políticos e ideológicos, em sua grande maioria, privatistas
e particularistas, o que tem desestruturado não apenas essa política social,
mas todo o sistema de proteção social, deixando à mercê do mercado e do
terceiro setor o conjunto de demandas sociais dos trabalhadores, cujos direitos
deveriam estar garantidos pelo Estado. O desafio colocado, assim, está em
entender o impacto das alterações realizadas e seus efeitos em curto e longo
prazo, lutando para sua reversão em favor dos atendimentos territoriais e
comunitários de qualidade a partir da nova conjuntura e do momento político que
se constitui no horizonte brasileiro a partir deste ano de 2023.
As
relações de produção capitalistas inviabilizam a priorização da vida, mas não
toda e qualquer vida. Como bem sinaliza Duarte (2020), as vidas cerceadas e
privadas de toda e qualquer forma de proteção social estão em territórios
específicos, pertencem a uma classe, um gênero, uma raça e um trabalho e têm
suas moradias determinadas socialmente. Com isso, não estamos sinalizando aqui
um determinismo fundado na perspectiva positivista-funcionalista da sociedade,
mas entendendo que “[...] os homens fazem a sua própria história; contudo, não
a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas
assim como se encontram.” (MARX, 2011, p. 25-26).
No
Brasil, a tragédia anunciada ao colapso do sistema de proteção social
brasileiro, que vinha sendo sucateado com reduções de investimentos e propostas
de privatizações e terceirização desde meados da década de 1990, se aprofundou
exponencialmente nos anos subsequentes, mas, sobretudo, a partir do conservadorismo
nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, conseguindo consolidar em menos
de quatro anos a maior retirada de direitos sociais assegurados na história do
país, alinhados aos interesses privatistas e particularistas políticos,
econômicos e ideológicos das classes dominantes nativas e imperialistas. A extrema-direita,
desde que assumiu a gestão do país em 2016, utilizou de manobras para impor
ações já ultrapassadas no âmbito das políticas sociais, incluindo a Política de
Saúde Mental, e atacou as poucas conquistas consolidadas em favor dos
interesses de mercado.
Na
periferia do sistema fundada pelo capitalismo de tipo dependente[12],
os esforços dos arautos da economia tendem a conduzir aos
portões do Hades uma gama de desprotegidos socialmente e desprovidos de
direitos que engendram a luta por sua sobrevivência. As políticas
compensatórias que se efetivaram nos últimos seis anos passaram por uma ampla
discussão no bojo de conflitos abertos no interior da extrema-direita, e as
medidas econômicas e políticas que emergiram nesse contexto como respostas às
demandas sociais sob o falso argumento de enfrentamento ao grau de pobreza e
miserabilidade alcançado, ao fim e ao cabo, escancararam que, em terras
brasileiras, retirar o direito à vida dos(as) pobres, negros(as) e povos e
comunidades tradicionais é um projeto antigo e perfeitamente reatualizável
pelos donos do poder ao se sentirem afetados em seus privilégios e acumulação
de riqueza produzida socialmente.
Desde
o início do contexto da pandemia causada pela COVID-19 (ainda em curso, mas
atenuada), o governo de Jair Messias Bolsonaro vinha se dedicando a salvar sua
própria candidatura e às grandes empresas, corporações e bancos. Prova disso foram
as disputas e tensões em torno do fundo público. O tão aclamado auxílio
emergencial, que deveria se configurar como uma política de renda mínima
efetiva, demonstrou as manobras político-partidárias, cujo único objetivo foi instituir uma
espécie de regime fiscal provisório para amenizar as expressões da pobreza e
miséria escancaradas durante o aprofundamento da crise econômica, política,
social e cultural num contexto de crescimento sem precedentes da miséria e do adoecimento
mental de grande parte da população pobre do país.
A
regulamentação das ações conservadoras e reacionárias durante o governo de Jair
Messias Bolsonaro impactou diretamente a Política Nacional de Saúde Mental sob três
dimensões singulares, mas interligadas, as quais apresentamos sumariamente a
seguir: a) dimensão econômica; b) dimensão sociopolítica; e c) dimensão
político-cultural. Abaixo detalhamos melhor essas determinações no bojo do
governo federal que deixou um país muito mais sucateado que o que encontrou.
Do
ponto de vista econômico, as medidas executadas no Ministério da Economia e no Ministério
da Saúde escancararam como o Estado dito em crise fiscal conseguiu salvar
as empresas, os bancos e os interesses privatistas sem, no entanto, debater a
destinação do fundo público aos equipamentos da política de saúde, como, por
exemplo, os equipamentos
de saúde no âmbito da Atenção Básica e da RAPS. A falácia da crise
fiscal camuflou um Estado brasileiro que se diz quebrado diante das
demandas sociais, como a garantia de equipamentos comunitários e territoriais
que permitam às pessoas portadoras de doenças mentais serem tratadas junto de
suas famílias e comunidades enquanto sujeitos de direito. Os cortes de recursos
para a Rede de Atendimento Psicossocial em todo o país[13]
prejudicaram efetivamente a atuação dos centros e serviços dessa rede em que se
encontram os equipamentos mais próximos de milhões de brasileiros que sofrem de
transtornos mentais, conformando-se como grande retrocesso nas políticas de
atendimento e demonstrando os interesses que atravessavam espaços como o Ministério
da Saúde por meio da Coordenação Geral de Saúde Mental, ao apoiarem interesses
das corporações médicas e indústrias de medicamentos e dispositivos e colocarem
em risco equipamentos como a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta
pra Casa, o Consultório na Rua, o Programa Anual de Reestruturação da
Assistência Psiquiátrica Hospitalar no Sistema Único de Saúde (SUS) e o Serviço
Residencial Terapêutico.
O
aumento de subsídios estatais para atuação de instituições privadas como as
Comunidades Terapêuticas confirmou uma Política de Saúde Mental pelo viés da
ajuda e não no patamar do direito, sendo conclamado pelo jeito de se
fazer política no Brasil, reatualizando o clientelismo ao relacionar programas
e serviços às condições eleitorais locais. O fato é que esse caráter de ajuda
tão exaltado camuflou as ações que a extrema-direita executou para o capital
financeiro nativo e internacional por meio da utilização do fundo público, ao retomar
uma medida de atendimento às pessoas que possuem sofrimento mental de forma
segregadora, distanciando-as de suas famílias e de seu convívio comunitário.
Com
relação à segunda dimensão, qual seja, a sócio-política, as medidas reacionárias
do governo federal, sobretudo no âmbito da saúde mental, despontaram dois
desafios: o primeiro relacionado às tensões internas do governo que refletiram
em mudanças arbitrárias e permanentes de cargos de importância no planejamento
e na elaboração de políticas e programas no âmbito das políticas setoriais; o
segundo esteve relacionado às contrarreformas e às novas e velhas denúncias de
corrupção generalizada que impactaram diretamente a sobrevivência dos(as)
trabalhadores(as) na medida em que desestruturaram o parco sistema de (des)proteção social existente no país.
Destaca-se
que, no jogo de legitimidade de poder, quem perdeu desmedidamente, não sem
resistência, foram os(as) trabalhadores(as). De acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui hoje mais de 9 milhões
de pessoas desempregadas. A desigualdade social e racial tem sido letal na
periferia do país, em que os mais afetados pela pobreza e desproteção social
são os(as) trabalhadores(as) negros(as), pardos(as), com menor escolaridade. Fala-se,
portanto, de acesso a programas e políticas sociais, mas, claramente, o acesso
é atravessado por determinações de “[...] classe, gênero, raça, trabalho,
moradia, transporte, território e saúde” (Duarte et al., 2020, p. 281).
Quando mais de 9 milhões de brasileiros estão desempregados e carecem de
proteção ampla, taxar as grandes fortunas deveria ser pressuposto econômico
para a garantia de renda mínima, que permitisse à população o mínimo de
dignidade humana. Num território de dimensões continentais, com níveis de
desigualdade econômica, social e étnico/racial exponenciais e um Estado que reafirma
sua apatia à realidade nacional, morrem e adoecem com transtornos mentais pessoas
pretas, pardas, pobres de fome e desproteção, sem que haja equipamentos nos
territórios que permitam sua segurança e garantia à vida de modo digno.
Num
país em que mais de 200 milhões de pessoas dependem do SUS, sucateá-lo
e enfraquecê-lo em favor da iniciativa privada no âmbito da política de saúde significou
a insegurança e desproteção de cerca de 80% (Simeon, 2020)[14]
da população, que depende exclusivamente do atendimento público em caso de
necessidade. Presenciou-se no último governo, portanto, o colapso do Sistema
Único de Saúde brasileiro, que vem padecendo de recursos desde a implementação
da Emenda Constitucional n. 95/2017 (Brasil, 2016a), que levou o SUS a perder
mais de 20 bilhões de seu orçamento federal, sendo que, em 20 anos, estima-se
chegar à casa dos 743 bilhões de acordo com dados apresentados no Jornal Brasil
de Fato (Souza, 2020). Assim, vislumbra-se a derrocada crescente e trágica do
maior sistema público de saúde do mundo, que conta com serviços gratuitos de
forma universal, o que vem impactando diretamente as estratégias de prevenção e
promoção no âmbito da Atenção Primária e Rede de Atendimento Psicossocial. Nesse
caminho, o subfinanciamento reflete os baixos investimentos em infraestrutura e
o número insuficiente e precário de equipamentos e profissionais, o que colapsa
ainda mais o já debilitado sistema de saúde público e dificulta assistência especializada,
humanizada e territorializada que esteja centrada na
promoção e prevenção no âmbito da saúde pública.
Esses
fatores encaminham para se pensar a terceira dimensão mencionada e que impacta
fortemente a Política de Saúde Mental, qual seja, político-cultural, que está
intimamente articulada às demais. A cultura política brasileira, com traços
fortes de favoritismo e clientelismo, coloca, nesse momento de crise estrutural,
um fosso ainda mais profundo entre os que têm acesso e os sem acesso,
demarcando quem vive e quem morre, realizando um darwinismo social perpassado
pelo patrimonialismo cultural. Ora, em um país que possui mais de 62 milhões de
pessoas vivendo em condições de extrema pobreza (Pobreza [...], 2021), a ideologia
do favor representa uma manifestação cultural da ideologia dominante que se
reatualiza no presente com tendências políticas e socioculturais despolitizantes e cria uma postura de conformismo e subserviência
favorável à lógica vigente. O apelo à solidariedade, nesse ponto, refere-se não
à solidariedade de classe, mas à perspectiva da ajuda, da caridade a partir da refilantropização da questão social, retirando-a da esfera
do Estado e jogando sua responsabilidade para a sociedade civil.
Destarte,
torna-se patente compreender as forças sociais constituídas nesse cenário da
história e que implicam, também, uma compreensão de que nesse processo se deve
levar em conta os elementos objetivos, mas também os subjetivos, pois a hegemonia
“[...] é algo que opera não apenas sobre a estrutura econômica e sobre a
organização política da sociedade, mas também sobre o modo de pensar, sobre as
orientações ideológicas e sobre os modos de conhecer” (Gruppi,
1978, p. 5).
Portanto,
o fortalecimento da luta pela Reforma Psiquiátrica é, mais que nunca, uma
necessidade colocada a toda a sociedade, haja vista que os retrocessos na
Política de Saúde Mental afetaram o conjunto da população que tem sido
controlada em seus corpos e na possibilidade de atendimentos humanizados, territorializados e resguardados pela orientação técnica e
profissional devida, encontrando cada vez mais ações e instituições
fortalecidas pelo orçamento público que pautam atendimento com viés extremamente
conservador e fundamentalista de caráter intensamente privatista e
proibicionista.
Nesse
ínterim, as alterações legislativas e a incorporação de instituições privadas
se mostraram totalmente alheias aos princípios da Reforma Psiquiátrica,
colocando como horizonte um processo de (re)manicomialização da Política de Saúde Mental cujas
principais expressões são: a) as internações psiquiátricas; b) o aumento e
incentivo por meio de repasse de recursos públicos às Comunidades Terapêuticas;
e c) o incentivo ao uso de eletrochoques (Passos et al., 2021). O
desafio, então, não está ainda em avançar e consolidar as conquistas fruto do Movimento
da Reforma Psiquiátrica, mas em recuperar as sucessivas perdas que foram acumuladas
desde 2015 e que expressam um enorme retrocesso civilizatório no campo
dos direitos sociais (Passos et al., 2021).
Não
pretendemos, neste breve escrito, esgotar o debate sobre a temática proposta. Longe
disso, a intenção foi sistematizar nosso entendimento acerca das principais
questões que afetaram nos últimos seis anos a Política Nacional de Saúde
Mental, sobretudo numa conjuntura marcada pelo conservadorismo e reacionarismo
do governo que se encerrou no último dia 01 de janeiro de 2023. A finalidade
foi trazer uma síntese de estudo, a partir de revisão de literatura de caráter
narrativo, acerca da compreensão e posicionamento diante da grande ofensiva que
a Política de Saúde Mental sofreu. De modo que, longe de esgotar a temática
abordada, o texto tem como objetivo contribuir e abrir ao diálogo junto às
discussões e debates que já vem sendo realizados hodiernamente.
As
contrarreformas propostas e realizadas associaram-se ao crescimento vertiginoso
da miserabilidade e do empobrecimento dos trabalhadores. As tendências destrutivas
dessa era de alienação, de coisificação, de opressão de gênero, raça, classe,
sexos, de segregação urbana e rural, de intensificação da exploração e
superexploração do trabalho, de destruição da vida e da natureza, encontraram
solo favorável e fértil, impulsionadas pela expansão e reprodução do capital,
cunhando seu processo de valorização e favor da desvalorização da vida, impactando
diretamente os direitos sociais e a dignidade da existência humana no país.
O
Brasil tornou-se a prova mais concreta de que, na periferia do capitalismo, os
Estados conservadores ditam quem morre e quem vive, à medida que as
desigualdades econômica, social e étnico/racial historicamente constituídas foram
intencionalmente aprofundadas por meio de ações e decisões governamentais. O
rei está nu e não se quis ver, parafraseando Hans Christian Andersen (1997).
As
dimensões das medidas em torno da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras
Drogas adotadas pelo governo brasileiro desde os anos de 2016 no enfrentamento
às demandas das pessoas em sofrimento psíquico minimamente esboçadas neste
trabalho trouxeram resultados/consequências da tragédia e desumanidade anunciadas
e escancararam a forma como essa expressão da questão social vem sendo paliada
e não enfrentada historicamente.
A
ausência de uma diretriz única e a abertura de espaço institucional para a ala
conservadora da Reforma Psiquiátrica contribuíram para uma série de concessões
à iniciativa privada, ao terceiro setor e aos interesses particularistas que impactaram
diretamente na tomada de decisão dos estados e municípios que, tendo
fragilização em seu orçamento fiscal, seguem agindo de modo isolado e
fragmentado diante das demandas sociais que chegaram à Rede de Atendimento
Psicossocial.
Os
esforços e apelos à mercantilização da saúde e à solidariedade cristã, cuja
máxima reside na afirmativa de que todos estão juntos no mesmo barco,
escancaram que apenas alguns possuem lugar a bordo, enquanto a grande maioria
segue se afogando, sem nada para se apoiar e se salvar senão a organização
política e a luta enquanto classe social: eis o desafio de nosso tempo!
A
afronta aberta à proteção social, com destaque para a Política de Saúde Mental,
desse modo, diz respeito a uma determinação típica da contenção fiscal e corresponde
ao sistema socioeconômico em vigor (pois não temos, apesar da mudança de
governo, proposta de mudança substancial), em que o modus operandi se
desenvolve tendo como base a destruição da proteção social e da força humana de
trabalho, mantendo o controle sobre os corpos e sua potência de liberdade,
emancipação e autonomia.
Desse
modo, a catástrofe que ainda assola o país é enorme. Elementos aqui evidenciados
apontam para reflexões que levam a apreender que a crise econômica estrutural redimensionou
e reatualizou medidas conservadoras de (des)proteção
social mistificadas por meio de ações que fortaleceram a responsabilização dos
sujeitos pelas expressões da questão social e isentaram o Estado de respondê-las,
delegando esse movimento ao campo privado, que favoreceu essencialmente as
indústrias farmacêuticas, o corporativismo médico, as Comunidades Terapêuticas
e as indústrias de equipamentos médicos.
O
horizonte a ser vislumbrado nessa realidade social perpassa, portanto, dois
possíveis caminhos: o fortalecimento dos movimentos de luta pela proteção
social de modo amplo, incluindo a luta pelo conjunto de princípios e diretrizes
apontados pela Reforma Psiquiátrica, confrontando abertamente as contrarreformas
normatizadas, ou observar ser sucumbido à morte o conjunto de políticas
sociais, incluindo a Política de Saúde Mental, que se tornou mais que
necessária em um país em que cerca de 86% (Passos, 2019) dos brasileiros
possuem algum tipo de transtorno mental, situação que, devido à pandemia da COVID-19
e, por conseguinte, ao aprofundamento da crise econômica, do desemprego e da desproteção
social, certamente, só tende a aumentar. Ou seja, mais que nunca, é necessário
reafirmar os princípios da Reforma Psiquiátrica: a promoção do cuidado em saúde
mental a partir da liberdade, da emancipação e dos direitos humanos de modo
amplo e efetivo (Passos et al., 2021) ainda que nos limites desta
sociabilidade adoecedora por condição.
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________________________________________________________________________________________________
Sandra
Rodrigues dos SANTOS Trabalhou no delineamento e revisão crítica.
Graduada
em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e Exatas – UFVJM.
Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui
experiência na área de Serviço Social, com ênfase no campo das políticas de
educação, assistência social e saúde. Realiza pesquisa a partir dos seguintes
temas: Serviço Social, crítica da economia política, tradição marxista e teoria
social crítica.
Amanda
Silva de JESUS Trabalhou na concepção e delineamento do
artigo.
Mestra em
Política Social pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. Assistente
Social na Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (ADAI). Tutora
na Especialização em Gênero, raça, etnia e sexualidade na formação de
educadores da Universidade do Estado da Bahia.
________________________________________________________________________________________________
* Assistente
Social. Mestra em Política Social. Tutora na Especialização em Gênero, raça,
etnia e sexualidade na formação de educadores da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB, Teixeira de Freitas, Brasil). Assistente Social na Associação de
Desenvolvimento Agrícola Interestadual (ADAI). Rua Garastazu,
nº 240, Linhares (ES), CEP.: 29900-240. E-mail: amandasilvaj@yahoo.com.br.
**
Assistente Social. Mestranda em
Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Juiz de Fora. (UFJF, Juiz de Fora, Brasil). Professora Substituta do
Curso de Serviço Social da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri. (UFVJM, Teófilo Otoni (MG), Brasil). Rua do Cruzeiro, nº 1, Jardim São
Paulo, Teófilo Otoni (MG), CEP.: 39803-371. E-mail: sandra.rodrigues@estudante.ufjf.br.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso
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desde que você respeite os termos da licença.
[1] Podemos considerar como princípios da Reforma
Psiquiátrica brasileira: a reorientação do modelo assistencial; a mudança da
perspectiva de cuidado às pessoas acometidas de transtorno mental; a alteração quanto
à concepção de território; a modificação da concepção de clínica; a conformação
e a estruturação da política de saúde mental; a luta pela constituição de um modelo
protetivo e de promoção à saúde integral com financiamento que incentivasse modificações
na construção da política e de transformação da cultura com relação ao cuidado,
de modo a incentivar a reconstrução de representações sociais acerca da loucura.
[2] Cf. Cruz, Gonçalves e Delgado (2020). Nesse
artigo, os autores realizam uma análise minuciosa das normativas que foram editadas
e publicadas entre os anos de 2016 e 2019, demonstrando seus impactos e
retrocessos sobre a PNSM.
[3] Em 25 de abril de 2018, foi publicado o Edital
1/18 pela SENAD/MJ (MS, MT e MDS) (Brasil, 2018), em que se realizou o
credenciamento de Comunidades Terapêuticas para receberem financiamento da
União.
[4] Santos (2018) aponta como, desde a instituição da Lei n. 11.343 de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas) (Brasil, 2006), o Estado brasileiro reconheceu as Comunidades Terapêuticas (CTs) como instituições aptas a oferecer serviço público de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. Tal concessão colocou essas instituições no páreo do fundo público junto aos recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). A implementação desse serviço, desse modo, colocou em xeque o modelo de saúde previsto pela Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2004) ao violar seus princípios, sobretudo pelo controle dos corpos via isolamento social e de caráter essencialmente religioso, apontando graves violações científicas, morais e simbólicas (Santos, 2018). Cabe mencionar o quanto as CTs foram incentivadas e fortalecidas durante os anos de 2016 e 2019 pela pressão da bancada evangélica fortificada na última gestão do governo federal.
[5] Os hospitais psiquiátricos foram ampliados
considerando o porte do município e o número de habitantes. Logo, os municípios
mais prejudicados foram os pequenos, que não receberam o recurso e, para atendimento
aos seus pacientes, foram obrigados ao deslocamento até os hospitais
centralizados. Tais hospitais são providos de equipe multiprofissional, mas não
de estrutura física e tampouco de referência aos territórios-base, desse modo,
apresentam-se como ambulatórios psiquiátricos que se distanciam em muito dos eixos
previstos na proposta de desinstitucionalização da Reforma Psiquiátrica, na
medida em que, para usufruírem de maior financiamento, devem exatamente
estimular a internação, o isolamento e a desterritorialização do serviço,
visando a realização de maior número de internações e manutenção de 80% da
capacidade de ocupação, devendo ter mais de 8 leitos para realizar o credenciamento.
O modelo de financiamento a que nos referimos consta na Portaria do Ministério
da Saúde de n. 3.588 de 21 de dezembro de 2017 (Brasil, 2017c), que altera as Portarias
de Consolidação n. 3 e 6 de setembro de 2017 e trata da Rede de Atenção
Psicossocial.
[6] Em 2018 foi publicado o Relatório de Inspeção
Nacional das Comunidades Terapêuticas – 2017 (Conselho Federal de Psicologia; Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate À Tortura; Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do
Ministério Público Federal, 2018),
realizado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Mecanismo
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Conselho Federal de Psicologia
(CFP), em que se visitaram 28 estabelecimentos de tratamentos terapêuticos. Por
meio das visitas, foram identificadas várias formas de violação a direitos como:
contenções por meio da força e intervenção medicamentosa e alojamento em
condições precárias, sem abertura para comunicação com familiares, em que as
pessoas eram tratadas como doentes.
[7] Consideramos as contrarreformas na
perspectiva colocada por Behring (2003) e reforçada por Cardoso (2021) de que
“A premissa aqui assumida é a de que as contrarreformas são instrumentos do
capital para enfrentar as crises do modo de produção capitalista e
confrontam-se com direitos assegurados através de reformas institucionais.
Assim, as contrarreformas políticas favorecem o grande capital porque sua
estrutura e seu gerenciamento são adequados para a organização e a
reorganização da vida política do Brasil que, por processos históricos,
propiciam o lucro e a acumulação dos capitais nacional e internacional”
(Cardoso, 2021, p. 85).
[8] A referência
para esse marco é o conhecido Consenso de Washington de 1989, em que,
sustentado no argumento de medidas de combate à pobreza e ajustamento
macroeconômico nos países em desenvolvimento da América Latina, financeiras,
Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos estabeleceram um conjunto de grandes medidas cujas
condicionalidades demonstraram o interesse no aprofundamento do endividamento
público, bem como na expropriação do fundo público desses países e no
direcionamento das políticas sociais na América Latina, com ênfase em programas
focalizados, assistencialistas e seletivos. Para aprofundamento nesse tema, vale
a leitura do livro de Renata Cardoso: Cardoso (2021).
[9] Cardoso
(2021) realiza um detalhamento sobre esse momento do governo federal do Partido
dos Trabalhadores (PT) e sinaliza a importância que teve, no processo de
deposição da então presidente Dilma Roussef, o parlamento, a mídia e o Poder
Judiciário. A pesquisadora não deixa de considerar a conjuntura vivenciada nos
anos de 2014 a 2016, bem como as mudanças societárias que são atravessadas
pelas disputas de classe nacionais e internacionais do ponto de vista social,
político e econômico.
[10] Cf. O Observatório Brasileiro de Informações
Sobre Drogas (OBID). Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/obid/nova-politica-nacional-de-saude-mental.
Nesse portal, encontra-se o conjunto de normativas que explicitam a nova
política. A série de resoluções e portarias revela o retrocesso quanto à Lei
da Reforma Psiquiátrica ao desmontar a RAPS, direcionar o fundo público às
instituições religiosas como as Comunidades Terapêuticas e explicitar como a
bancada evangélica foi fundamental no maior retrocesso no âmbito da PNSM.
[11] Druck (2016) afirma que “[...] a terceirização
do serviço público no Brasil, além de ser um dos mecanismos mais importantes e
eficientes de desmonte do conteúdo social do Estado e de sua privatização, é a
via que o Estado neoliberal encontrou para pôr fim a um segmento dos
trabalhadores, o funcionalismo público, que tem papel crucial para garantir o
direito e o acesso aos serviços públicos necessários à sociedade, e sobretudo à
classe trabalhadora, impossibilitada de recorrer a esses serviços no mercado.
São várias as modalidades de ataques aos direitos, ao padrão salarial e às
condições de trabalho do funcionalismo, consubstanciadas nos ajustes fiscais
implantados pelos vários governos desde o início dos anos 1990 até hoje,
ajustes esses recomendados e exigidos pelas instituições e classes que
representam o capital financeiro globalizado” (Druck, 2016, p.18).
[12] Para tanto,
conferir Fernandes (1975).
[13] Segundo Cruz, Gonçalves, Delgado (2020), “Em 14 de
novembro de 2018, a portaria n. 3.659 suspendeu, com base na resolução 36 da
CIT, o repasse do recurso financeiro destinado ao incentivo de custeio mensal
de 72 CAPSs, 194 SRTs, 31
Unidades de Acolhimento e de 22 Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral,
integrantes da RAPS em todo o Brasil, por ausência de registros de
procedimentos nos sistemas de informação do SUS nestes serviços específicos [...]
No mesmo molde, em 22 de novembro de 2018, o MS editou a Portaria n. 3.718,
amparada pela resolução 35 da CIT, exigindo ‘a devolução imediata dos recursos
financeiros’ de implantação de serviços que supostamente descumpriram
requisitos” (Cruz, Gonçalves, Delgado, 2020, p. 10).
[14] O exemplo
mais bárbaro dessa proposta está no Decreto n. 10.530/2020, que previa a
privatização da Atenção Primária. O Decreto foi revogado após a mobilização
nacional de vários segmentos sociais.