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Capitalismo, pandemia e saúde mental: um diálogo com

Iain Ferguson

 

Capitalism, pandemic, and mental health: a dialogue with Iain Ferguson

 

Alessandra Ximenes da SILVA*

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Descrição gerada automaticamente http://orcid.org/0000-0001-6362-2550

 

Tereza Cristina Ribeiro da COSTA**

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Descrição gerada automaticamente http://orcid.org/0009-0009-6178-675X

 

Não estamos todos no mesmo barco

Estamos todos na mesma tempestade

Alguns estão em superiates

Alguns têm apenas um remo

 

Damian Barr (2020)

 

A

o dialogar com Ferguson (2023) sobre o capitalismo, a pandemia e o sofrimento mental, concordamos com a associação entre a sociabilidade do capital e as suas implicações devastadoras para a classe trabalhadora num contexto de agravamento da crise do capital. No advir do ano de 2020, o mundo se deparou com um acontecimento que trouxe implicações econômicas, sociais, sanitárias e culturais de grande proporção. Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surgimento de uma nova doença provocada por um vírus do tipo coronavírus – a COVID-19. Foi considerada uma emergência de saúde pública de interesse internacional, com alto risco de se espalhar para outros países ao redor do mundo. A OMS avaliou que a COVID-19 caracterizava-se como uma pandemia ainda em 2020. No mesmo ano, foi divulgado um total de 4,5 milhões de mortes estimadas e, em dezembro de 2021, mundialmente o número de casos somava mais de 270 milhões, com cerca de 5,3 milhões de mortos.

 

Ferguson aponta questões que realmente precisam ser pensadas, e que priorizamos neste debate. Uma delas diz respeito a pensar que “[...] as respostas das classes dominantes aos impactos da pandemia na saúde mental são moldadas pelos entendimentos dominantes do sofrimento mental” (Ferguson, 2023, p. 15). Outra nos convida a refletir sobre o modelo biomédico hegemônico, ressaltando que esse padrão representa uma determinada resposta da classe dominante, demandando um esforço para se discutir e experimentar novas respostas.

 

No que tange ao desenvolvimento da primeira questão, ao abordar a maneira como a pandemia de COVID-19 se originou e espalhou seus impactos por todo o mundo, Ferguson (2023) nos convida a discutir sobre esse processo. Seria apenas um acidente natural? Até hoje as origens têm sido debatidas, mas a questão não é apenas saber se surgiu ou não de um mercado chinês na cidade de Wuhan ou de uma experiência de laboratório. A questão é que estruturas foram construídas, que relações foram estabelecidas para isso. Num momento como esse, de uma pandemia, vimos que a doença se espalhou rapidamente, mas os países a vivenciaram de formas diferentes, com muitas fronteiras fechadas e nações ricas cada vez mais a olhar para dentro de seus próprios territórios. Todavia, os países de economia periférica tiveram muitas dificuldades para garantir vacinas, insumos, equipamentos e atendimento às suas populações.

 

Para a OMS, as estatísticas revelaram até que ponto a pandemia vinha afetando os sistemas de saúde em todo o mundo, em alguns casos restringindo severamente o acesso a serviços essenciais, entre o quais, o de saúde mental. Uma preocupação particularmente delicada, devido ao aumento em 25% da prevalência mundial de ansiedade e depressão, de acordo com a entidade. Uma das principais explicações para esse aumento é o estresse sem precedentes causado pelo isolamento social decorrente da pandemia. Ligados a isso estavam as restrições à capacidade das pessoas de trabalhar, busca de apoio dos entes queridos e envolvimento em suas comunidades. Solidão, medo de se infectar, sofrimento e morte de entes queridos, luto e preocupações financeiras foram estressores que levaram à ansiedade e à depressão (Organização Mundial da Saúde, 2022).

 

Durante grande parte da pandemia, os serviços de saúde mental foram os mais interrompidos entre todos os serviços essenciais de saúde, de acordo com os relatos dos Estados-membros da OMS. O impacto emocional das perdas familiares, o sentimento de medo, a falta de socialização e a instabilidade no trabalho aumentaram o nível de estresse e sofrimento psíquico. O aumento nos transtornos depressivos e de ansiedade, que já era uma tendência dos últimos anos, atingiu patamares muito mais alarmantes com a crise sanitária. No final de 2021, a situação melhorou um pouco, mas hoje muitas pessoas continuam incapazes de obter os cuidados e o apoio de que precisam para as condições de saúde mental preexistentes e recém-desenvolvidas. Lapsos de memória, depressão e ansiedade podem estar relacionados às sequelas cerebrais da COVID-19, além dos impactos sociais do isolamento e das perdas.

 

Para fins de análise desse contexto, não se pode considerar a pandemia apenas como uma crise sanitária isolada, mas, sim, associada a uma crise econômica estrutural já existente, conjuntura na qual as expressões pandêmicas fomentam ainda mais o aumento de desigualdades sociais precedentes. Ferguson (2023) chama atenção para o fato de que essa análise requer a mediação com a sociabilidade capitalista, questionando “[...] o modelo da psiquiatria biomédica – que vê o sofrimento mental como doença, com suas origens em cérebros e genes defeituosos” (Ferguson, 2023, p. 11). Outros elementos apontados pelo autor são: “[...] as abordagens informadas sobre o trauma, que veem o sofrimento mental como originado principalmente em nossas experiências de vida, e não em nossos cérebros” (Ferguson, 2023, p. 11). Ressalta ainda que alguns profissionais de saúde mental argumentaram que “[...] o impacto cumulativo dos estressores poderia levar a outro tipo de epidemia, ou seja, o transtorno de estresse pós-traumático” (Ferguson, 2023, p. 11, grifo do autor). Ferguson (2023) analisa criticamente as origens dessas abordagens, que estariam em dois conjuntos de experiências. “A primeira é a experiência das guerras imperialistas e o trauma que delas resulta. A segunda são os traumas cotidianos de racismo, sexismo e exploração que compõem o que se passa por vida normal sob o capitalismo” (Ferguson, 2023, p. 11). O autor no decorrer do seu artigo, analisa as implicações desses elementos, questionando a sociabilidade capitalista e as suas implicações para os sujeitos que vivem sob a égide do sistema.

 

Capitalismo e pandemia: a saúde mental posta em xeque

 

A conjuntura atual desnuda a profunda crise estrutural do capital, que se estende desde a década de 1970, se agrava em 2008, e põe em xeque as contradições das expressões da questão social que têm proporcionado desigualdades decorrentes do sistema capitalista, agravadas pelo contexto da pandemia da COVID-19.

 

O aprofundamento da pobreza da classe trabalhadora, aliado à ausência de condições sanitárias de responsabilidade do Estado, tais como saneamento básico e política habitacional, deixa a população ainda mais vulnerável ao adoecimento e morte pela COVID-19. A capacidade da sociedade de se defender das doenças e pandemias depende de fato e unicamente de um genuíno sistema de políticas públicas de saúde, assistência social, moradia, trabalho e saneamento básico.

 

As contrarreformas neoliberais iniciadas na América Latina na década de 1990 assumem feições ainda mais drásticas no contexto atual, com uma política ultraneoliberal posta em curso mundialmente desde a crise capitalista de 2008. Ao analisar essa ofensiva, Antunes (2020) destaca: “[...] estamos vivendo um capitalismo acentuadamente destrutivo que é responsável por uma corrosão ilimitada dos direitos sociais do trabalho e que nos oferece como resultante uma massa imensa de indivíduos sem trabalho e sem salário” (Antunes, 2020, p. 184).

 

O ultraneoliberalismo é um novo momento do neoliberalismo, adequado aos desdobramentos da crise do capitalismo que se agudizou nos últimos anos, ampliando o ajuste fiscal, restringindo e extinguindo direitos sociais, fazendo as políticas sociais estarem permeadas pelo neoconservadorismo e utilizando fake news como estratégia de governo. Essas características, num contexto de pandemia, acarretam vários desafios no enfrentamento da COVID-19, com diferentes especificidades em escala mundial.

 

Para um melhor entendimento sobre a questão, Mészáros (2002) enfatiza que todos os limites do capital foram ativados e aponta que a manutenção da estabilidade de um sistema erigido sobre toda uma série de antagonismos estruturais explosivos é algo absolutamente impensável sem a superposição de camadas artificiais, cuja função essencial é a perpetuação da ordem dominante e o retardamento do momento da verdade. Para o autor, a ativação dos limites absolutos do capital, enquanto sistema de reprodução, surgiu no horizonte histórico e não se poderá evitar o enfrentamento da questão de como superar os pressupostos estruturais destrutivos do “[...] modo estabelecido de controle metabólico” (Mészáros, 2002, p. 217). O autor assevera:

[...] quanto mais mudam as próprias circunstâncias históricas, apontando na direção de uma mudança necessária das contraditórias e cada vez mais devastadoras premissas estruturais irracionais do sistema do capital, mais categoricamente os imperativos de funcionamento devem ser reforçados e mais estreitas devem ser as margens dos ajustes aceitáveis. É por isso que, nas últimas décadas, a máxima de que não há alternativa aos ditames materiais prevalecentes se tornou o axioma indiscutível do sistema do capital, mais categoricamente os imperativos de funcionamento devem ser reforçados e mais estreitas devem ser as margens dos ajustes aceitáveis (Mészáros, 2002, p. 217).

 

As estratégias de exploração evoluíram, principalmente com as novas tecnologias. Se, por um lado, isso representa avanços, por outro, os trabalhadores são submetidos a aumento da precarização e da flexibilização dos vínculos trabalhistas. Portanto, são os trabalhadores e a sociedade em geral que terminam por pagar as contas das crises do capital. Para evitar quedas ainda maiores nas taxas de lucros, toda a sociedade é convocada para solidarizar-se com o capital. Os trabalhadores são demitidos e os que permanecem têm seus direitos aviltados, com reduções de salários ou aumento na intensidade e precarização das condições gerais de trabalho.

 

Nesse contexto, desencadeia-se um processo de contrarreformas nas políticas sociais que se insere numa realidade econômica, social, política e cultural observada mundialmente no ciclo hegemônico do grande capital, e esse movimento atinge países de “[..] economia dependente [...]” (Marini, 2012, p. 27), como os da América Latina, evidenciando as especificidades de sua construção histórico-social.

 

Nos países de economias dependentes ou periféricas, como na América Latina, a pandemia da COVID-19 se agrava devido ao processo de expropriação secundária (Fontes, 2018), que ocorre pela destituição ou desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas, modalidade que modifica o vínculo jurídico entre grandes massas de trabalhadores e o capital, particularmente por meio de políticas públicas regressivas e repressivas, criando novas condições para extração de sobretrabalho a partir da retirada de anteparos de proteção que, em sua maioria, foram conquistas realizadas pelos trabalhadores ao longo do próprio capitalismo.

 

Através de estudos realizados pela OPAS ([2022]) nas Américas, vários países da região documentaram taxas mais elevadas de mortalidade entre as pessoas que vivem em áreas com maior concentração de pobreza, assim como entre indígenas e afrodescendentes. As Américas foram um dos continentes mais afetados pela pandemia, com 29% dos casos mundiais e 44% dos óbitos confirmados no mundo, apesar de ter apenas 13% da população do globo. Até 31 de agosto de 2022, cerca de 175,7 milhões de casos de COVID-19 haviam sido notificados nas Américas (sendo 52% mulheres e 48% homens). A América do Norte foi responsável por 55% de todos os casos das Américas, mas 62% de todas as mortes ocorreram na América Latina e no Caribe. O relatório da OMS sobre o excesso de mortes devidas à COVID-19 estima que, nas Américas, houve 3,2 milhões de mortes. O maior número de óbitos notificados está concentrado em cinco países: Brasil, Colômbia, Estados Unidos, México e Peru, tornando-se a COVID-19 uma das principais causas de morte entre os anos de 2020 e 2021 (Organização Pan-Americana da Saúde, 2022).

 

Reportagem veiculada pelo Jornal El Pais Brasil em 07/08/2021, intitulada Saúde mental da América Latina se recente durante a pandemia, chamava a atenção para a quantidade de pessoas que declaravam estar preocupadas, ansiosas e deprimidas. Nos grandes países da América Latina, os aumentos dos casos eram acompanhados quase sempre de um aumento na porcentagem de pessoas que durante esses dias declaravam ter experimentado essa sensação (Galindo, 2021). Ferguson (2023) chama a atenção para esse fenômeno quando indica os estressores mais óbvios nesse processo, entre os quais se destacam: o aumento do desemprego e da pobreza, situações que possuem grande impacto na saúde mental; o fato de que bilhões de pessoas foram forçadas a ficar em quarentena e em autoisolamento; a situação de trabalhadores que foram forçados a trabalhar sem distanciamento social ou sem equipamentos de proteção individual e até mesmo com sintomas da COVID-19; a condição de dezenas de milhares de pessoas que perderam familiares muito antes do tempo; e a realidade de muitos trabalhadores de saúde e assistência social que passaram por sofrimento moral, fator que leva a estresse e esgotamento e cuja intensidade aumentou consideravelmente durante a pandemia devido à falta de leitos, EPIs e acesso a testes.

 

Ferguson (2023) enfatiza que avaliar a crise econômica e sanitária não é simples, por várias razões. As implicações da pandemia não são estáticas, pois estão em constante mudança. Para analisá-las, deve ser levado em consideração que diferentes segmentos da população são mais ou menos afetados em momentos diferentes, dependendo da natureza da ameaça material e emocional. Um elemento fundamental da sua análise baseada em resultados de pesquisa é a definição psiquiátrica como ansiedade e depressão. Chama a atenção para o cuidado e evitar medicalizar ou patologizar o que pode ser reações normais a uma crise avassaladora. O autor, ao se referir a estudos realizados na Grã-Bretanha, afirma que os dados apontaram que os níveis de sofrimento já eram altos antes da pandemia e as expressões da questão social, tais como pobreza, desemprego e racismo, significam que os problemas de saúde mental afetam desproporcionalmente certos grupos da sociedade. Essas evidências denotam que o sistema capitalista ativou todos os seus limites, como Mészáros (2002) assevera, e a pandemia da COVID-19 tem agravado a crise econômica, sanitária, social e cultural.

 

Vale a pena ressaltar que nesse processo necessita desvelar a função do Estado no capitalismo como produto da divisão social do trabalho. Surgiu da autonomia crescente de certas atividades superestruturais, mediando a produção material, cujo papel era sustentar uma estrutura de classes e relações de produção. Mandel (1985) aponta que as funções do Estado são: 1) criar as condições gerais de produção; 2) reprimir qualquer ameaça das classes dominadas; e 3) integrar as classes dominadas, garantindo que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante. Há um consenso de que a economia mundial está em um processo de crise econômica profunda desde fins de 2008. No entanto, há diferentes opiniões acerca do tamanho da crise e de suas implicações, mas pode-se afirmar que, ao se referir às economias dependentes, como no caso brasileiro, são várias as implicações desse processo que colocam em xeque os direitos dos trabalhadores, o tamanho do Estado e as políticas sociais.

 

Esse processo tem seu ápice, na década de 1970. Mandel (1990), ao se referir à crise estrutural do capital, situa as recessões generalizadas de 1974/1975 e 1980/1982. Essa análise é realizada a partir de uma leitura histórica do modo de produção capitalista e das suas implicações, explicitadas através do reaparecimento do desemprego massivo, da ofensiva universal do capital contra a classe operária, da miséria que se ampliou no Terceiro Mundo, e das ameaças crescentes que pesavam sobre as liberdades democráticas e sobre a paz, em razão da própria deterioração da situação econômica do capital.  Para Mandel (1990), “[...] o regime capitalista é um regime condenado. Ele ameaça cada vez mais destruir a substância da civilização material e da cultura humana”. (Mandel, 1990, p. 8) Além disso, afirma que historicamente o capitalismo fracassou, de modo que seus limites estão evidenciados nos crescentes níveis de miséria e iniquidade social.

 

Pandemia e saúde mental na realidade brasileira

 

No Brasil, a pandemia teve a marca do governo neoconservador, de caráter neofascista e ultraneoliberal do Presidente Jair Bolsonaro, que chegou ao poder apoiado pelas camadas mais reacionárias da burguesia brasileira, consolidando a ofensiva do capital na destruição dos direitos sociais e trabalhistas. O contexto de chegada da pandemia no país já era de um quadro de estagnação econômica e de contrarreformas trabalhista e previdenciária, além de um aumento significativo do trabalho informal. Nesse processo econômico, político e social, ocorre o desmonte da política de saúde mental, empreendido nos governos Temer e Bolsonaro. No Governo Temer, pode-se destacar, em especial, a Resolução n.º 32 (14/12/2017) (Brasil, 2017), que significou o primeiro marco legal de contrarreforma na política de saúde mental. No Governo Bolsonaro, o desmonte avança com a Nota Técnica n.º 11 do Ministério da Saúde (04/02/2019) (Brasil, 2019), que propõe a mudança do modelo assistencial, intitulando-se Nova Política Nacional de Saúde Mental e questionando o modelo e a direção da política. Representou um retrocesso ao propor o aumento de leitos em hospitais psiquiátricos e ao não considerar os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) como serviços substitutivos. Essa nota técnica gerou grande mobilização e posicionamento de entidades nacionais e internacionais.

 

O impacto da pandemia na saúde mental foi muito intenso e é resultado do sofrimento vivenciado em um curto espaço de tempo. Milhões de pessoas perderam seus empregos e suas rendas, outros trabalhadores informais precisaram escolher entre trabalho e fome, diante do isolamento necessário imposto como medida para evitar a propagação do vírus e salvar vidas. O Auxílio Emergencial, mesmo representando um incremento nos orçamentos familiares, teve vários problemas de operacionalização. E não podemos nos esquecer da população de rua, que duplicou nesses últimos anos, passando de 101 mil para 222 mil pessoas (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2021). Por sua vez, os recursos para outras áreas não diretamente relacionadas à COVID-19 diminuíram, de acordo com instituições que trabalham na temática (IEPS e Cactus, 2022). O Serviço Consultório na rua teve seus recursos reduzidos de R$ 580,470 (2019) para R$ 490,436 (2021). Isso é realmente muito impactante para a classe que vive do trabalho. A classe trabalhadora empobrecida e que passa a morar na rua aumentou de modo impressionante, mostrando a barbárie do capital em meio à pandemia no Brasil (Mészáros, 2002).

 

Essa discussão corrobora o argumento de Ferguson (2023) de que a pandemia não foi um acidente, tendo sido gestada dentro do sistema capitalista e de suas contradições, em cujo processo de desenvolvimento estão aparentes os tensionamentos. As diferenças de classe social e as desigualdades sociais que fizeram com que essa pandemia fosse vivenciada de diferentes formas foram exacerbadas, seja pelo desemprego, subemprego ou rebaixamento da força de trabalho. Esses elementos necessitam ser analisados quando vamos discutir a subjetividade gestada sob essas condições. A questão é que o sofrimento identificado nessa relação tem sido apreendido como adoecimento, a partir de uma discussão centrada no sujeito que adoece. Parece que falta a ele algo. O problema tem sido tratado, estudado e validado por uma ciência ligada às classes dominantes, como defeito genético ou distúrbio, caracterizado, enfim, como uma questão individual. E dessa forma, esse sofrimento entra na cadeia produtiva – a indústria farmacêutica e de produção de insumos e equipamentos é um bom exemplo disso. Desse modo, as respostas medicalizantes também têm sido moldadas pela elite através dos entendimentos dominantes do sofrimento mental.

 

Ferguson (2023) nos convida a sair da zona de conforto para não apenas discutirmos os problemas que estão postos no modelo biomédico, levando-nos à discussão de outras possibilidades na abordagem do sofrimento humano. Nessa busca de outras possibilidades, o autor, passa a descrever a experiência inglesa com as “[...] abordagens informadas sobre trauma” (Ferguson, 2023, p. 11, grifo do autor). Chama a atenção para o fato de que essas abordagens têm sido cada vez mais usadas e aponta que “[...] localizam as origens dos problemas de saúde mental na experiência vivida das pessoas, e não em cérebros ou genes defeituosos” (Ferguson, 2023, p. 11). Essa abordagem centra a questão no impacto das situações e das experiências vividas pelo sujeito, a partir da experiência britânica com o National Health Service (NHS), que criou o Grenfell Health Wellbeing Support, sendo referência entre os programas de saúde mental, tendo como base a ação coletiva e não a abordagem individual.

 

Essa experiência nos leva a muitas reflexões sobre a reforma psiquiátrica no Brasil e a respeito dos caminhos construídos nas últimas décadas para pensar nas respostas ao sofrimento vivenciado nessa pandemia. Os referenciais biomédicos e manicomiais ainda são predominantes. Precisamos questionar os modelos atuais, que, reproduzindo o modelo biomédico, centram-se na tecnificação, no biologicismo, no mecanicismo, na fragmentação, no positivismo, nas práticas e abordagens individuais, nos referenciais morais e nas respostas às questões de saúde mental ainda dentro de um modelo manicomial. Esse modelo, ao longo dos anos, vem se ressignificando, mas não busca romper com suas bases, pois procura reatualizar seu conservadorismo através de novas roupagens modernas, para se manter firme no ataque à classe trabalhadora e na sua culpabilização pelo seu sofrimento. O ensaio nos convida a pensar em abordagens coletivas, que articulem o espaço de vida e as políticas sociais, seguindo o exemplo da experiência britânica. O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2020 (Organização das Nações Unidas, 2021) também põe em discussão o foco das abordagens individuais, ao apontar, inclusive, que a saúde mental não pode ser reduzida a sintomas. Esse debate traz a discussão da determinação social do processo da saúde mental, estando em aberto na sociabilidade do capital.

 

Considerações Finais

 

A pandemia expôs e constituiu – ao mesmo tempo – fragilidades estruturais e novas impossibilidades do capitalismo, trazendo à tona as contradições do sistema: economia e vida nunca foram tão tensionados como na atualidade. Alguns elementos não são novos, pois constituem-se como contradições que fazem parte do sistema. A razão burguesa tem moldado formas de ser, de entender, de propor soluções aos problemas. Nesse sentido, os entendimentos veiculados sobre a pandemia e seus impactos na saúde mental não são nem um pouco neutros. Ferguson (2023) nos motiva a pensar como o entendimento construído sobre o sofrimento mental e a pandemia tem sido moldado pela relação entre doença e capacidade produtiva, percepção respaldada pelo modelo biomédico.

 

O capitalismo contemporâneo é mundializado e apresenta as formas mais bárbaras de produção e reprodução social, evidenciadas no contexto de crise do capital e associadas pela pandemia da COVID-19 quando sobressai a intensificação do trabalho aprofundada com a superexploração no capitalismo, acirrando expressões da questão social com o crescimento do desemprego, da informalização, da precarização do trabalho e das medidas regressivas de direitos. Portanto refletir e definir abordagens sobre o sofrimento humano carece relacionar a determinação social da saúde mental.

 

Referências

 

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Alessandra Ximenes da SILVA

Professora Associada. Doutora em Serviço Social. Docente do Departamento de Serviço Social e da Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Coordenadora da Pós-graduação em Serviço Social da UEPB. Coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Política de Saúde e Serviço Social (NUPEPSS).

 

Cristina Ribeiro da COSTA

Professora Doutora. Doutora em Serviço Social. Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Política de Saúde e Serviço Social.

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* Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora Associada do Departamento de Serviço Social e da Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. (UEPB, Campina Grande, Brasil). Rua Baraúnas, n° 351, Bairro Universitário, Campina Grande (PB), CEP.: 58429-500. E-mail: alesximenes@servidor.uepb.edu.br.

 

** Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. (UEPB, Campina Grande, Brasil). Rua Baraúnas, n° 351, Bairro Universitário, Campina Grande (PB), CEP.: 58429-500. E-mail: terezadacosta@servidor.uepb.edu.br.

 

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