Saúde mental em tempos de crise: aumento das situações de sofrimento

mental, erosão da política e reversão conservadora

 

Maria Lúcia T. GARCIA*

 https://orcid.org/0000-0003-2672-9310

 

Fabiola Xavier LEAL**

 https://orcid.org/0000-0003-1309-0909

 

“Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho” (Clarice Lispector).

 

A

Argumentum traz, em seu último número de 2023, um compromisso histórico de publicar periodicamente um debate e produções afetas ao campo da saúde mental. Cumprimos essa promessa, apresentando uma edição na qual a saúde mental se faz presente em todos os textos.

 

E o tema deste número é provocativo. Saúde mental em tempos de crise foi escolhido em um momento em que vivíamos a retração dos casos de COVID-19 por vacinação e, no Brasil, as eleições de 2022, que derrotaram nas urnas a necropolítica do governo Bolsonaro. Tempos de tríplice[1] crise nos dizeres de François Chesnais[2] (social, econômica e ecológica), a questão do sofrimento e adoecimento mental convocam a todas as pessoas a adensarem este debate.

 

Os processos de sofrimento e adoecimento mental são prevalentes no mundo (World Health Organization, 2022). Cerca de uma em cada oito pessoas no mundo vive com algum transtorno mental. A prevalência de diferentes transtornos mentais varia com o sexo e idade. Tanto em homens quanto em mulheres, os transtornos de ansiedade e os transtornos depressivos são os mais comuns. O suicídio afeta as pessoas e suas famílias desde todos os países e contextos, e em todas as idades. Globalmente, pode haver 20 tentativas de suicídio para cada morte, e ainda assim relatos de suicídio por mais de uma em cada 100 mortes (World Health Organization, 2022).

 

O impacto da pandemia sobre nossas vidas foi perturbador e imprevisível e os estudos mostraram o aumento nos níveis de sofrimento em muitos indivíduos, mesmo que temporariamente para alguns (Penninx et al., 2022; World Health Organization, 2022, Inquérito [...], 2022). No primeiro ano da pandemia de COVID-19, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25% (World Health Organization, 2022).

 

Para o Conselho Federal de Enfermagem o aumento nos níveis de estresse e sofrimento psíquico dos brasileiros é uma tendência dos últimos anos e alcançou patamares alarmantes após a crise sanitária (Conselho Federal de Enfermagem, 2022). Mas esse aumento da depressão, por exemplo, foi 2,5 vezes maior entre as mulheres do que entre os homens (Inquérito [...], 2022).

 

Penninx et al. (2022) perguntaram: Qual é a trajetória temporal dos problemas de saúde mental autorreferidos durante a pandemia? Embora os resultados não sejam uniformes, os autores apontaram o aumento dos problemas de saúde mental durante os primeiros meses de pico da pandemia e menor - mas não desapareceram completamente - nos meses subsequentes, quando as taxas de infecção diminuíram e as restrições sociais foram atenuadas (Penninx et al., 2022; Faro et al., 2020). Associações diretas entre os níveis de sintomas de ansiedade e depressão e o número médio de casos diários de COVID-19 foram confirmadas nos dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA. Como a maioria dos estudos de base populacional publicados foram realizados no período inicial em que o número absoluto de indivíduos infectados por SARS-CoV2 ainda era baixo, os impactos na saúde mental descritos em tais estudos são provavelmente devidos a efeitos indiretos e não diretos da SARS- Infecção por CoV-2. No entanto, é possível que, em estudos de longo prazo ou posteriores, estes efeitos diretos e indiretos possam estar mais interligados (Penninx et al., 2022).

 

Para Costa ([2020]), em decorrência do período de distanciamento social, quarentena ou isolamento, perda de renda pela impossibilidade de trabalhar ou perda do trabalho, e alterações na rotina, algumas reações foram comuns, entre elas, o medo de ficar doente e morrer. O impacto da pandemia foi sem precedentes “[...] mais de 81% dos trabalhadores do mundo afetados pelo confinamento “ (Ferguson, 2023, p. 10).

 

Mas a pergunta de Penninx et al. (2022), e as reflexões de Costa ([2020]) são limitadas e limitante ao debate aqui proposto. Não traz uma perspectiva de classe, raça/etnia e gênero.

 

E este é o papel da Argumentum – ofertar um amplo e crítico debate sobre a temática. Ir sempre além. E o texto de abertura deste número, escrito por Iain Ferguson nos lembra isso. Os efeitos da pandemia 

 

[...] não serão experimentados uniformemente em toda a sociedade. Em vez disso, como acontece com todos os outros aspectos desta crise, eles serão moldados pelas divisões e desigualdades da sociedade capitalista neoliberal. Um grande estudo recente sobre os impactos da pandemia na saúde mental concluiu que, embora estejamos todos na mesma tempestade… não estamos todos no mesmo barco (Mental Health Foundation, 2020, não paginado) (Ferguson, 2023, p. 11).

 

A constatação de que seguimos juntos na tempestade, mas não estamos no mesmo barco embalou um conjunto de produções e reflexões na área da saúde. Essa metáfora foi usada por Minayo e Freire (2020) ao se referirem aos serviços de saúde. Essas autoras nos lembram que sob a mesma tempestade e participando do esforço coletivo contra a COVID-19, as/os profissionais de saúde constatavam que não estavam todos no mesmo barco.

 

A desigualdade determina a forma como cada categoria de trabalhadores da Saúde é atingida pelo novo coronavírus no Brasil. Expostos ao contágio na linha de frente do combate ao novo coronavírus, as/os profissionais, “[...] de forma desproporcional e alarmante, os efeitos da pandemia” (Minayo; Freire, 2020, p. 3555). E esta constatação foi também demonstrada por Leal et al. (2022) que até maio de 2021 identificou 105 assistentes sociais que morreram por COVID-19. Não estávamos no mesmo barco.

 

Essa metáfora do barco é também utilizada por Alexandra Ximenes Silva e Tereza Costa (2023), em seu debate com Ferguson. Silva e Costa (2023), concordando com Ferguson (2023), nos lembram da associação entre a sociabilidade do capital e as suas implicações devastadoras para a classe trabalhadora num contexto de agravamento da crise do capital.

 

E as pessoas que demandarão apoio em termos da saúde, se depararão com serviços de saúde e saúde mental devastados por cortes orçamentários e retrocessos no campo da luta antimanicomial. Essa é uma importante dimensão dos debates e reflexões aqui presentes ao longo de todos os textos.

 

Lima e Oliveira (2023) nos lembram que no nosso país,

 

[...] não podemos estimar os efeitos e os impactos gerados em mulheres negras e usuárias de drogas, cujos filhos podem ser retirados pelo Sistema de Garantia de Direitos à Infância e à Adolescência; em moradores das favelas [...] ou, mais recentemente, no flagelo das crianças e dos adultos ianomanis deixados à própria sorte em face da ação do garimpo ilegal em suas terras na Amazônia (Lima; Oliveira, 2023, p. 41).

 

As autoras ainda alertam que não podemos minimizar a extensão e à importância real desse sofrimento, mas não devemos reduzir este sofrimento a um evento patológico. E Ferguson claramente nos adverte: “[...] lutar por mais e melhores serviços de saúde mental [...] é uma tarefa importante. No entanto, trata-se sobretudo de uma crise coletiva, cujas raízes estão em um sistema que prioriza o lucro sobre a vida” (Ferguson, 2023, p. 12)

 

E este desafio se faz presente no conjunto dos 20 textos que foram aqui publicados. Este número indica a importância do espaço disponibilizado e a necessidade de aprofundamento do debate sobre a Saúde Mental para o Serviço Social e áreas afins. Estes artigos nos desafiam a pensar a Saúde e os fenômenos decorrentes, em tempos ainda mais acirrados de disputas entre a atenção psicossocial e as perspectivas de redução de danos versus a (re)manicomialização e privatização do cuidado, em uma conjuntura ultraneoliberal. Essa polarização apresenta particularidades no contexto do (des)governo Bolsonaro, com retrocessos tanto em termos de perspectivas quanto em termos de configuração das políticas de saúde, saúde mental e sobre drogas.  É, portanto, imersos nessa conjuntura de disputas e, do mesmo modo, evidenciando as lutas da classe trabalhadora para a sustentação dos princípios das lutas antimanicomial e antiproibicionista, que se provoca e se convoca a academia a dar visibilidade e adensar o debate nesse campo. E isto é urgente. Em meio a essa urgência, autoras problematizam a questão das Comunidades Terapêuticas e como essas instituições reforçam e (re) modelam a institucionalização de pessoas a partir de um viés religioso, ferindo os princípios do cuidado em liberdade, tão caro à luta antimanicomial. E, se estamos numa tempestade, sabemos em que barco estamos e quais os recursos que dispomos. E nesse barco, a disputa pelo fundo público tem sido tratada com destaque, considerando que é um dos meios essenciais para se atravessar a tormenta e fazer a disputa justa e ética no campo das políticas públicas. Ou, parafraseando Gilson Carvalho, só entendemos os rumos de uma política pública quando sabemos para onde vai o dinheiro. E somos aqui provocadas a refletir sobre o Fundo Nacional sobre drogas (FUNAD), o Fundo da Saúde, assim como o da Assistência Social, de onde tem surgido os financiamentos que expressam os projetos em disputa.

 

O conjunto dos 17 artigos nos convocam a reflexões urgentes. E você, leitora/o da Argumentum é nosso/a interlocutora/o nessa luta. Além disso, este número traz todo um conjunto de aperfeiçoamentos que a Argumentum realizou em 2023 para adequar-se às exigências de indexadores importantes. Chegamos ao último número de 2023 com muitas conquistas a celebrar. Primeiro completamos 14 anos de existência ininterrupta. Segundo, pela primeira vez contamos com financiamento da Fundação de Amparo à pesquisa e inovação do Espírito Santo (Fapes). Terceiro, somamos um conjunto de mais de 1.000 pareceristas e mais de 2.000 autores/as de diferentes áreas do conhecimento. Por fim, a equipe aguerrida da revista (Editores, Comissão, Avaliadores, Bibliotecárias, Bolsistas e Técnico-administrativos) vem assegurando a regularidade e a periodicidade da Argumentum.

 

Desse modo, a Argumentum convida os/as leitores/as a percorrer os textos, descortinar os debates e projetar mudanças nesses cenários que envolvem a saúde mental e suas questões.

 

O que se segue tem múltiplas possibilidades de reflexões, “[...] mas pra quem enxerga. Pra quem não enxerga, não dá pé [...]” (Morais; Corpas, 2013, p. xx), como nos diz sabiamente Bispo do Rosário.

 

Boa leitura.

Referências

 

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM. Brasil vive uma segunda pandemia, agora na Saúde Mental. Notícias, Brasília (DF): Cofen, 13 out. 2023. Disponível: http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html. Acesso em: 23 ago. 2023.

 

COSTA, F. B. A saúde mental em meio à pandemia da COVID-19. Brasília (DF): Secretaria de Saúde do Distrito Federal, [2020].Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/85829/A+sa%C3%BAde+mental+em+meio+%C3%A0+pandemia+COVID-19.pdf. Acesso em: 30 ago. 2023.

 

INQUÉRITO Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia - Covitel. São Paulo: Vital strategies, 2022. Disponível: https://www.vitalstrategies.org/wp-content/uploads/Covitel-Inque%CC%81rito-Telefo%CC%82nico-de-Fatores-de-Risco-para-Doenc%CC%A7as-Cro%CC%82nicas-na%CC%83o-Transmissi%CC%81veis-em-Tempos-de-Pandemia.pdf. Acesso em: 14 set. 2023.

 

FARO, A. et al. COVID-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud psicol., Campinas, n. 37, 2020;37:e200074, 2020. Doi: 10.1590/1982-0275202037e200074. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/dkxZ6QwHRPhZLsR3z8m7hvF. Acesso em: 10 set. 2023.

 

FERGUSON, I. Capitalismo, coronavírus e sofrimento mental. Argumentum, v. 15, n. 3, p. 10-30, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/42525.

 

LEAL, F.X. et al. A morte por COVID-19 bate à porta das/os assistentes sociais no Brasil. Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 22, n. 1, p. 194-211, jan./jun. 2022.

 

LIMA, R. C.C.; OLIVEIRA, J.R.M. “O que aconteceu com você?” ao invés de “O que há de errado com você?”: saúde do estudante nas universidades federais brasileiras. Argumentum, Vitória, v. 15, n. 3, p. 40-47, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/42548.

 

MINAYO, M. C. de S.; FREIRE, N. P. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Ciênc saúde coletiva [Internet], Rio de Janeiro, v.25, n. 9, p. 3555–6, set. 2020. Doi: 10.1590/1413-81232020259.13742020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/yFSBrKr7Tvz9Rg4vhCWx6rQ/. Acesso em:  5 set. 2023.

 

MORAIS, F.; CORPAS, F. Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2013.

 

PENNINX, B. W. J. H. et al. How COVID-19 shaped mental health: from infection to pandemic effects. Nat Med, n. 28, p. 2027–2037. 2022. Doi: 10.1038/s41591-022-02028-2. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36192553/. Acesso em: 13 set. 2023.

 

SILVA, A. X.; COSTA, T. C. R. Capitalismo, pandemia e saúde mental: um diálogo com Iain Ferguson. Argumentum, Vitória, v. 15, n. 3, p. 31-39, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/42545.

 

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World mental health report: transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/356119/9789240049338-eng.pdf?sequence=1. Acesso em: 25 set. 2023.

 



*Assistente Social. Doutora em Psicologia Professora titular do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. (Ufes, Vitória, Brasil). Av. Fernando Ferrari, n° 514, Goiabeiras, Vitória (ES), CEP.: 29075-910. Grupo de estudo, pesquisa e extensão - Análises Políticas Saúde, Saúde Mental e sobre drogas. E-mail: lucia-garcia@uol.com.br.

 

**Assistente Social, doutora em Política Social. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. (Ufes, Vitória, Brasil). Av. Fernando Ferrari, n° 514, Goiabeiras, Vitória (ES), CEP.: 29075-910. Coordenadora do Grupo de estudo, pesquisa e extensão - Análises Políticas Saúde, Saúde Mental e sobre drogas. E-mail: fabiola.leal@ufes.br.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

 

[1] Termo cunhado por Chesnais em texto publicado no site da Boitempo em 31 out. 2022. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/10/31/francois-chesnais-1934-2022/. Acesso em: 3 set. 2022.

[2] Que nos deixou em outubro de 2022.