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Novo Arcabou�o Fiscal: regime fiscal sustent�vel para o capital e destrutivo para o trabalho

 

New Fiscal Framework: a tax regime that sustains capital and destroys labour

 

Osmar Gomes de ALENCAR J�NIOR*

Descri��o: �cone

Descri��o gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0001-9389-2949

 

INTRODU��O

 

V

ivenciamos um per�odo hist�rico de crise profunda no modo de produ��o capitalista, em que a lei de tend�ncia decrescente da taxa de lucro se faz presente e com mais vigor nos pa�ses do centro, acirrando as disputas intercapitalistas e imperialistas em escala planet�ria.

 

A rea��o do capital imperialista � queda tendencial da taxa de lucro se expressa, nessa conjuntura, nas guerras atualmente em curso por territ�rios e controle de insumos e mat�rias-primas estrat�gicas para a acumula��o capitalista; na superexplora��o do trabalho por meio da amplia��o da jornada de trabalho, intensifica��o do trabalho e rebaixamento dos sal�rios, nos moldes de Marini (2000); no incremento do ex�rcito industrial de reserva; e, principalmente, na acelera��o da rota��o do capital, isto �, na redu��o do prazo de produ��o e circula��o do capital, promovida pelo Estado.

 

Esse movimento de contratend�ncia � lei busca aumentar a massa de lucro e reduzir os efeitos das crises sobre o capital, isto �, as possibilidades de os capitalistas n�o obterem lucro. Nesse sentido, o Estado, atrav�s do fundo p�blico, tem cumprido papel fundamental para acelerar a rota��o do capital e garantir a realiza��o da produ��o e acumula��o de forma ininterrupta. Dentre os v�rios instrumentos de captura privada do fundo p�blico, a d�vida p�blica � um dos principais mecanismos dessa din�mica.

 

Sendo assim, na atual fase do modo de produ��o capitalista, a d�vida p�blica � um dos principais instrumentos de acumula��o privada e respons�vel para compensar a queda da taxa de lucro capitalista. Qualquer altera��o positiva ou negativa na rota��o do capital provoca efeito contr�rio sobre a taxa de lucro, afetando diretamente os interesses da burguesia e de suas fra��es detentoras dos cr�ditos oriundos desse endividamento.

 

Como o Estado n�o � imparcial e utiliza o fundo p�blico para reproduzir o capital e a for�a de trabalho, buscando regular o equil�brio inst�vel entre as classes, mas mantendo a domina��o de classe, a estabilidade macroecon�mica da d�vida p�blica proposta pelo Regime Fiscal Sustent�vel (RFS) ou, como popularmente conhecido, Novo Arcabou�o Fiscal (NAF) serve, prioritariamente, aos interesses de quais classes e fra��es de classe no Brasil? A sustentabilidade da d�vida p�blica baseada apenas no controle da despesa prim�ria beneficiar� a fra��o da burguesia financeira ou a classe trabalhadora no terceiro governo Lula?

 

Para responder aos questionamentos e dialogar com o artigo intitulado O arcabou�o fiscal e as implica��es no financiamento das pol�ticas sociais, apresentado por Evilasio Salvador nessa edi��o da Revista Argumentum, o texto tem como objetivo identificar as classes sociais e fra��es de classe que ser�o priorizadas pela pol�tica fiscal da Uni�o expressa no NAF/RFS.

 

Al�m da introdu��o e das considera��es finais, o artigo apresentar� o papel do Estado, do fundo p�blico e da pol�tica fiscal na atual fase da mundializa��o imperialista neoliberal, para em seguida demonstrar como a pol�tica fiscal, atrav�s do NAF/RFS, pode promover uma invers�o na sua fun��o redistributiva em favor da classe burguesa e de suas fra��es.

 

ESTADO, FUNDO P�BLICO E POL�TICA FISCAL SOB A �GIDE DA IDEOLOGIA NEOLIBERAL

 

Na etapa atual do capitalismo, da mundializa��o imperialista[1], em que o capital portador de juros ou capital financeiro[2] � dominante em todo o planeta, � imprescind�vel conformar um tipo de Estado que assegure a acumula��o financeira, em que o fundo p�blico[3] priorize os interesses de acumula��o da burguesia financeira, principalmente sob a forma de pagamento da d�vida p�blica, em detrimento da classe trabalhadora, em meio a uma longa crise de superprodu��o e superacumula��o.

 

A forma de assegurar a acumula��o financeira em meio � tend�ncia decrescente da taxa de lucro[4], passa tamb�m pela contrarreforma do Estado, principalmente por altera��es na estrutura tribut�ria e na composi��o da despesa p�blica; portanto, na forma��o e aloca��o dos recursos do fundo p�blico, com impacto direto nos interesses da burguesia e da classe trabalhadora, e isso foi alcan�ado pelo protagonismo das ideias neoliberais.

 

O neoliberalismo foi uma rea��o �[...] te�rica e pol�tica veemente contra o Estado intervencionista e de Bem-Estar. [...]. Seu prop�sito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro� (Anderson, 1995, p. 10).

 

Do ponto de vista ideol�gico, promoveu a mundializa��o da concorr�ncia e a diminui��o da participa��o do Estado na economia, por meio de pol�ticas macroecon�micas fiscal e monet�ria restritivas, em busca da estabilidade econ�mica e n�o mais do crescimento e do pleno emprego keynesianos.

 

Mas, na pr�tica, a busca neoliberal pela estabilidade, ao utilizar os juros elevados e o super�vit fiscal como principais instrumentos de pol�tica macroecon�mica, al�m do c�mbio flex�vel, produziu uma desacelera��o e, em alguns momentos, queda no crescimento, com repercuss�o negativa na arrecada��o tribut�ria.

 

O decr�scimo na receita p�blica n�o foi acompanhado, na mesma velocidade, pela diminui��o da despesa p�blica, o que provocou d�ficit p�blico e a necessidade de financiamento; portanto, resultou na eleva��o da d�vida p�blica e da participa��o do Estado na economia, ou seja, no inverso do prometido pela ideologia neoliberal.

 

Tal pol�tica macroecon�mica neoliberal gerou crescimento econ�mico p�fio nas �ltimas d�cadas, e em muitas vezes, recess�o econ�mica prolongada e crise econ�mica; assim, provocou maiores riscos para a acumula��o capitalista e a necessidade de maior interven��o do Estado para minimiz�-los, tornando o fundo p�blico um mecanismo estrat�gico para reduzir o tempo de rota��o do capital[5] e aumentar a taxa de lucro, principalmente nos pa�ses perif�ricos, como o Brasil.

 

A estabilidade econ�mica, isto �, a estabilidade monet�ria e a disciplina or�ament�ria passaram a ser prioridade de qualquer governo neoliberal em busca do crescimento econ�mico voltado para assegurar, prioritariamente, os interesses da burguesia, em especial da sua fra��o financeira. Na Am�rica Latina, combinou �[...] a aboli��o da democracia [...], com um programa de governo que promovia a desregula��o, o desemprego massivo, a repress�o sindical, a redistribui��o de renda em favor dos ricos e a privatiza��o de bens p�blicos� (Alencar J�nior, 2021, p. 83).

 

A condu��o para a estabilidade econ�mica neoliberal, por meio do protagonismo da pol�tica monet�ria, aprisionou a pol�tica fiscal, retirou sua finalidade redistributiva e assegurou-lhe o papel coadjuvante de priorizar os recursos p�blicos, via super�vit prim�rio, para a acumula��o financeira.

 

Para garantir esse mecanismo de apropria��o privada do fundo p�blico cada vez maior, o Estado instituiu uma legisla��o que assegurou o equil�brio fiscal do governo, punindo aqueles que n�o cumprissem as metas fiscais estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) institucionalizada no Brasil (Brasil, 2020).

 

A LRF expressa a obrigatoriedade de os governos produzirem super�vits prim�rios � receitas prim�rias superiores �s despesas prim�rias � isto �, os governos passaram a poupar compulsoriamente os recursos arrecadados da popula��o, nas suas mais diversas atividades produtivas ou improdutivas, para efetuarem o pagamento de juros, encargos e amortiza��o da d�vida p�blica, e n�o para o financiamento de pol�ticas p�blicas enquanto pol�ticas sociais capazes de mitigar as contradi��es promovidas pelo modo de produ��o capitalista.

 

A partir de ent�o, uma ordem na disputa pelos recursos do fundo p�blico no pa�s foi institucionalizada: a prioridade para o pagamento das despesas financeiras em detrimento das n�o financeiras ou prim�rias. Assim, os governos passaram a privilegiar os interesses da burguesia e sua fra��o financeira nacional e internacional e retirar direitos da classe trabalhadora.

 

Desde a aprova��o da LRF em 2020, todos os governos, nas esferas federal, estadual ou municipal, independentemente de seus matizes ideol�gicos, perseguiram e/ou cumpriram a determina��o fiscal legal da institucionalidade neoliberal, o super�vit prim�rio. No entanto, o alcan�aram quase sempre pela via do controle da despesa, e muito pouco pelo caminho da progressividade na arrecada��o da receita. Mesmo ao priorizar os limites para a despesa, o regime fiscal, desde ent�o, n�o previu limites para o gasto financeiro, mas o fez para o gasto prim�rio ou n�o-financeiro.

 

A pr�tica dessa regra fiscal, ao comprimir apenas a despesa prim�ria, uma das partes da despesa p�blica, mudou a composi��o da despesa or�ament�ria governamental em favor daquela que nunca foi limitada, a despesa financeira. Portanto, todas as regras fiscais que sucederam, modificando ou n�o o regime fiscal brasileiro, a partir da LRF, n�o se contrapuseram a essa din�mica fiscal.

 

Mais recentemente, o Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional 95) e o NAF/RFS, aprovados em 2016 e 2022, respectivamente, seguiram a mesma l�gica de busca do super�vit prim�rio por meio da imposi��o de limites exclusivamente para a despesa prim�ria e n�o para a despesa financeira, desacelerando o crescimento da primeira e impulsionando o incremento da segunda.

 

Para evidenciar essa din�mica fiscal, o recente estudo sobre o efeito do NRF na composi��o da despesa federal no per�odo de 2015 a 2022, realizado pelo Observat�rio do Fundo P�blico[6], verificou que a Despesa Financeira (DF) cresceu de forma real 9,72%, enquanto a despesa prim�ria ou Despesa N�o Financeira (DNF) incrementou 6,28% no per�odo analisado. A DNF desacelerou e teve reduzido o crescimento at� 2019, enquanto a DF comportou-se no sentido inverso: acelerou o crescimento at� 2018 e registrou redu��o em 2019 (Brito, 2023).

 

O estudo ainda mostrou que, em rela��o � participa��o da DNF e da DF no gasto or�ament�rio total federal no per�odo anterior � pandemia, houve um �[...] decr�scimo de 0,74% na participa��o da DNF e um crescimento de 2,47% na DF de 2015 a 2019� (Brito, 2023, p. 39). Deste modo, enquanto a DNF desacelerou e teve reduzida sua participa��o, a DF cresceu gradativamente.

 

Outra evid�ncia do impacto dessa din�mica fiscal nas despesas p�blicas da Uni�o, nos per�odos anterior e posterior � implementa��o do NRF, foi o comportamento dos gastos social[7] e financeiro[8], representados pelos somat�rios das despesas nas �reas da educa��o, seguridade social, ci�ncia e tecnologia, direitos da cidadania, comunica��es, gest�o ambiental, desporto e lazer, e cultura; e nos servi�os da d�vida interna e externa, respectivamente.

 

O gasto social cresceu a taxas anuais �[...] de 3,89% e 8,69% nos intervalos de 2015-2016 e 2016-2017, por�m passou a ter redu��es sucessivas de 5,88% e 1,95% nos per�odos 2017-2018 e 2018-2019 [...]� (Brito, 2023, p. 41), acumulando um crescimento de 4,21% no per�odo 2015-2019.

 

Enquanto o gasto financeiro federal decresceu 8,88% em 2015-2016, cresceu 5,41% e 25,04% nos intervalos de 2016-2017 e 2017-2018, respectivamente, e tornou a decrescer em 8,64% em 2018-2019. Essa din�mica mostrou a expans�o da DF a partir de 2016, acelerando nos dois primeiros anos da implementa��o da EC 95, para em seguida apresentar crescimento negativo, no primeiro ano do governo Bolsonaro. Mesmo com tal oscila��o no comportamento, o gasto financeiro cresceu 6,45%, acima do gasto social, no per�odo 2015-2019 (Brito, 2023).

 

Os dados apresentados corroboram a tese de que o regime fiscal neoliberal brasileiro, a partir da LRF e aprofundado com o NRF, vem alterando a composi��o da despesa or�ament�ria p�blica brasileira em favor da despesa financeira, atendendo cada vez mais os interesses da burguesia, em especial aos da sua fra��o financeira, em detrimento da classe trabalhadora, independentemente dos diferentes matizes ideol�gicos dos governos.

 

D�VIDA P�BLICA SUSTENT�VEL: O FALSEAMENTO IDEOL�GICO DA APROPRIA��O PRIVADA DO FUNDO P�BLICO NO TERCEIRO GOVERNO LULA

 

A transi��o do governo Bolsonaro para o governo Lula 3 no Brasil foi marcada por um debate sobre a mudan�a no regime fiscal vigente, pois o NRF estabelecido pelo governo Temer n�o atingiu seu objetivo de reduzir ou estabilizar a d�vida p�blica.

 

A sa�da novamente conciliadora do governo Lula foi a institucionaliza��o do NAF/RFS no primeiro semestre de 2023. Assim como no governo Temer, o NAF/RFS instituiu uma nova regra fiscal nacional, constitu�da de mecanismos limitadores quantitativos da despesa prim�ria para combater o d�ficit fiscal e estabilizar a rela��o entre a D�vida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB); isto �, uma pol�tica fiscal para manter a d�vida p�blica sustent�vel (Brasil, 2023).

 

No entanto, para obter sucesso na implementa��o de uma regra fiscal � preciso definir bem as vari�veis a serem limitadas. No caso brasileiro do NAF/RFS, a vari�vel selecionada foi somente a despesa prim�ria. Essa estrat�gia tem como vantagem o fornecimento de uma dire��o no curto prazo para a pol�tica fiscal, simplicidade e transpar�ncia; e como desvantagem, uma �[...] menor liga��o com o objetivo de sustentabilidade fiscal, pois ela controla a despesa, mas n�o leva em conta a receita [...]. Outra desvantagem � que ela pode afetar negativamente a qualidade do gasto� (Giambiagi, 2021, p. 219).

 

Do ponto de vista do ajuste fiscal pelo lado da receita, o NAF/RFS praticamente o desconsiderou, pois somente no final do texto do �3� do Art. 1� da Lei Complementar n� 200/2023 foi sinalizada a possibilidade de recupera��o e gest�o de receitas p�blicas (Brasil, 2023).

 

Corroborando com Giambiagi (2021), uma regra fiscal, como � o caso do NAF/RFS, que busca controlar apenas a despesa � e de forma mais grave, somente parte dela � e despreocupando-se com a receita, n�o tem como objetivo central a sustentabilidade fiscal.

 

Um exemplo disso pode ser visto na contradi��o entre o esfor�o fiscal dos governos em atingir a meta de super�vit fiscal, via redu��o das despesas prim�rias, imposta pelas regras fiscais e a expans�o das ren�ncias tribut�rias, que promovem ao mesmo tempo, a redu��o de receita arrecadada e o aumento do gasto tribut�rio do governo federal, refor�ando a insustentabilidade fiscal. 

 

Segundo Saiki (2023), R$ 5,42 trilh�es de receitas p�blicas foram renunciados pela Uni�o em 12 anos, significando uma m�dia anual de R$ 442 bilh�es no per�odo 2008-2019, e apresentando uma trajet�ria de crescimento, conforme apresentado no Gr�fico 1.

 

Gr�fico 1 - Evolu��o dos gastos tribut�rios da Uni�o, de 2008-2019 (em R$ milh�es, valores deflacionados pelo IGP-DI, jun. 2022)

   Fonte: Saiki (2023).

 

Na compara��o entre os anos inicial e final do per�odo analisado, as ren�ncias, al�m de promoverem o rebaixamento da receita or�ament�ria, incrementaram em 49% o gasto tribut�rio federal. Tal medida � incoerente com o contingenciamento de despesas e com a sustentabilidade fiscal pretendida pelo regime fiscal neoliberal.

 

Ainda segundo a autora, o resultado das raz�es entre os indicadores do gasto tribut�rio federal/receita tribut�ria federal e do gasto tribut�rio federal/PIB cresceu no per�odo analisado, de acordo com o Gr�fico 2.

 

Gr�fico 2 - Evolu��o da participa��o dos gastos tribut�rios do governo federal em rela��o � receita tribut�ria e ao PIB, no per�odo de 2008-2019 (em %)

Fonte: Saiki (2023).

O montante do gasto tribut�rio correspondia a 17,38% da receita tribut�ria federal em 2008 e passou para 22,02% em 2019, registrando um crescimento de 26,68% no per�odo 2008-2019 (Saiki, 2023). Isso representou que a ren�ncia de receita geradora do gasto tribut�rio cresceu numa velocidade superior ao incremento da receita tribut�ria, aumentando sua influ�ncia na tend�ncia de desacelera��o e rebaixamento das receitas p�blicas federais, e portanto, no desequil�brio fiscal, isto �, no crescimento do d�ficit e da d�vida p�blica.

 

Em rela��o ao produto interno bruto, o montante do gasto tribut�rio correspondia a 3,82% em 2008 e alcan�ou 4,30% em 2019, acumulando um crescimento de 12,53% no per�odo 2008-2019 (Saiki, 2023). As m�dias nacional e mundial do gasto tribut�rio em rela��o ao PIB eram de 4,07% e 3,8% respectivamente, no per�odo 2008-2019 (Redonda; Haldenwang; Aliu, 2021; Brasil, 2022). Assim, o gasto tribut�rio federal cresceu numa propor��o maior que o PIB, e em uma m�dia superior � mundial; ou seja, um indicativo de que cada vez mais o governo federal compromete a apropria��o da riqueza produzida na forma de arrecada��o tribut�ria, com impacto negativo no dinamismo econ�mico, no incremento de receita e na sustentabilidade fiscal, agravando a situa��o fiscal.

 

O governo federal, ao expandir sua pol�tica de ren�ncia fiscal em contraposi��o ao aprofundamento do ajuste fiscal sobre a despesa prim�ria, comprometeu, em m�dia, 20% da arrecada��o tribut�ria e 4,07% do PIB no per�odo 2008-2019, instituindo uma verdadeira trava na receita p�blica, conforme os dados do Gr�fico 2.

 

Essa pol�tica ren�ncia fiscal travou a receita or�ament�ria, para de forma disfar�ada exigir a compress�o da despesa prim�ria via desfinanciamento das pol�ticas sociais e dos investimentos p�blicos, ao mesmo tempo em que invisibilizou esse mecanismo de trava na receita e de expans�o do gasto tribut�rio. Ao realizar esse movimento, a pol�tica fiscal � usada ideologicamente para escamotear os verdadeiros fatores determinantes do desequil�brio fiscal e convencer a sociedade, principalmente a classe trabalhadora, de que a �nica alternativa para o equil�brio fiscal � o controle da despesa prim�ria, por meio do discurso de que o governo � perdul�rio e ineficiente no gasto p�blico, principalmente naqueles diretamente relacionados aos direitos dos trabalhadores.

 

A utiliza��o ideol�gica da pol�tica fiscal pelos neoliberais imp�e a necessidade permanente de conter a despesa para promover o equil�brio fiscal, e o faz por meio de ajustes fiscais permanentes.

 

Por�m, os ajustes fiscais que imp�em limites apenas na despesa prim�ria, excluindo as ren�ncias tribut�rias, as despesas financeiras e a promo��o da progressividade na arrecada��o tribut�ria, n�o buscam garantir o equil�brio sustent�vel das contas p�blicas, mas promover continuamente o desequil�brio sustent�vel, isto �, propiciar as condi��es necess�rias para a reprodu��o da trava na receita e da conten��o na despesa prim�ria, determinantes para a manuten��o do super�vit prim�rio e a transfer�ncia crescente de recursos or�ament�rios para o pagamento do servi�o da d�vida p�blica federal.

 

Essa pr�tica equivocada de ajuste fiscal pela via da despesa, institu�da pelo NAF/RFS, repete o mesmo erro da EC 95, � pr�-c�clica e potencializar�, por um lado, o prolongamento da recess�o econ�mica, da tend�ncia � redu��o da receita e do d�ficit fiscal, e, por outro, a necessidade de financiamento do d�ficit p�blico, mais contrata��o de d�vida e amplia��o pagamento do seu servi�o junto aos credores nacionais e internacionais. Nesse sentido corroboro com os argumentos de que

 

o NAF/NRF n�o � antic�clico em um momento de desacelera��o da economia, mas apenas modera a redu��o da taxa de crescimento do gasto p�blico quando a economia freia e perde velocidade. Como veremos, isso � problem�tico na conjuntura atual de desacelera��o da economia, o que pode gerar uma espiral de baixo crescimento e, com o tempo, impor um teto n�o s� ao crescimento econ�mico, mas � popularidade do presidente, al�m de enfraquecer a unidade da coaliz�o social que elegeu Lula (Bastos, 2023, p. 4).

 

E, tamb�m, de que o regime fiscal sustent�vel

 

[...] teria efeito pol�tico semelhante � Lei do Teto de Gastos: conter o investimento p�blico, e induzir novas leis e emendas constitucionais de corte neoliberal que atacam a promessa social desenvolvimentista da Constitui��o Federal de 1988 e dos programas do Partido dos Trabalhadores, como a pol�tica de valoriza��o real do sal�rio-m�nimo, o piso m�nimo de remunera��o da Previd�ncia Social ou os pisos constitucionais da sa�de e da educa��o (Bastos; Deccache; Alves J�nior, 2023, p. 27).

 

Esses argumentos s�o reafirmados pela tese defendida por Evilasio Salvador no artigo O arcabou�o fiscal e as implica��es no financiamento das pol�ticas sociais, publicado nessa edi��o da Revista Argumentum, de que o NAF/RFS est� inserido em um cen�rio de ajuste fiscal permanente imposto � economia brasileira desde os anos 1990. E de que,

 

[...] ainda que mais flex�vel no ajuste fiscal quando comparado � EC 95, segue a pol�tica de austeridade ao impor entraves permanentes para o crescimento dos gastos p�blicos sociais no �mbito da Uni�o, como o impedimento de acompanhar a varia��o das receitas governamentais. Tudo isso, para viabilizar a retomada de resultados prim�rios positivos, a fim de garantir a sustentabilidade da d�vida p�blica e a captura do fundo p�blico para o pagamento de juros e encargos para os rentistas (Salvador, 2024, p. 16).

 

Em s�ntese, trata-se de um regime que n�o visa a sustentabilidade fiscal, isto �, a estabiliza��o da d�vida bruta do governo em rela��o ao PIB, mas controlar a parte maior da despesa, fazendo com que ela cres�a numa propor��o menor que o incremento da receita, poupando recursos para transferir o maior volume de receitas para o pagamento do servi�o da d�vida p�blica.

 

Esta situa��o reflete a ordem de prioridade institucionalizada desde a LRF, e continuamente reafirmada pelos governos posteriores, inclusive nos governos Lula: a de que a despesa financeira � intoc�vel, mesmo que a austeridade fiscal custe milhares de vidas, conforme ocorrido no per�odo da pandemia de COVID-19.

           

CONSIDERA��ES FINAIS

 

Na atual fase do capitalismo, da mundializa��o imperialista, o fundo p�blico neoliberal cumpre uma fun��o estrat�gica em tempo de crise: ao mesmo tempo, acelera a rota��o do capital por meio do incremento das despesas p�blicas com o setor privado e desacelera ou trava a receita p�blica por meio das ren�ncias tribut�rias.

 

Esse movimento duplo se expressa no RFS/NAF, nos limites impostos � despesa prim�ria e n�o � despesa financeira e � ren�ncia de receita, tendo como consequ�ncia a produ��o do desequil�brio sustent�vel para a manuten��o do super�vit prim�rio, desviando cada vez mais recursos p�blicos para o pagamento do servi�o da d�vida p�blica federal.

 

Assim, a busca pela sustentabilidade da d�vida p�blica baseada no controle da despesa prim�ria conduz ao falseamento ideol�gico da apropria��o privada do fundo p�blico, a prioridade no atendimento dos interesses da burguesia, em especial a sua fra��o financeira, tornando o regime fiscal (RFS/NAF) sustent�vel para o capital e destrutivo para o trabalho, no terceiro governo Lula.

 

REFER�NCIAS

 

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Osmar Gomes de ALENCAR J�NIOR

Graduado em Ci�ncias Econ�micas e Doutor em Pol�ticas P�blicas. Professor Associado do curso de Ci�ncias Econ�micas da Universidade Federal do Delta do Parna�ba (UFDPar) e do Programa de P�s-Gradua��o em Pol�ticas P�blicas da UFPI. Coordenador do Observat�rio do Fundo P�blico na UFDPar e do GT Estado e Pol�ticas P�blicas da Sociedade Brasileira de Economia Pol�tica (SEP); l�der do Grupo de Pesquisa Observat�rio do Fundo P�blico e pesquisador do Grupo de Estudos de Hegemonia e Lutas na Am�rica Latina (GEHLAL) e do FOHPS n�cleo de estudos e pesquisas sobre Fundo P�blico, Or�amento, Hegemonia e Pol�tica Social. Atualmente Pr�-Reitor de Planejamento da UFDPar.

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* Economista. Doutor em Pol�ticas P�blicas. Professor Associado do curso de Ci�ncias Econ�micas da Universidade Federal do Delta do Parna�ba (UFDPar, Parna�ba, Brasil). Av. S�o Sebasti�o, n� 2819, Nossa Sra. de F�tima, Parna�ba (PI), CEP. 64202-020. Professor do Programa de P�s-Gradua��o em Pol�ticas P�blicas da Universidade Federal do Piau�. (UFPI, Teresina, Brasil). Campus Universit�rio Ministro Petr�nio Portella, Ininga, Teresina (PI), CEP. 64049-550. E-mail: jrosmar@ufdpar.edu.br.

 

 � A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra est� licenciada sob os termos da Licen�a Creative Commons Atribui��o 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante n�o pode revogar estes direitos desde que voc� respeite os termos da licen�a.

[1] Para mais detalhes, ver Alencar J�nior (2021).

[2] Quando o dinheiro efetua de forma aut�noma movimentos puramente t�cnicos no processo de circula��o de um capital em particular e nada mais faz al�m disso, ou quando �s suas demais fun��es se associam as de emprestar, de tomar emprestado e de negociar com cr�dito, essa forma capital transforma-se em capital financeiro (Marx, 2008).

[3] Toda a capacidade do Estado de arrecadar ou n�o recursos para o financiamento das pol�ticas p�blicas (Alencar J�nior, 2021).

[4] A busca por aumento de lucro via aumento do capital constante em rela��o ao capital vari�vel, por meio do crescimento na composi��o org�nica do capital, tem por consequ�ncia a �[...] queda gradual na taxa geral de lucro, desde que n�o varie a taxa de mais-valia ou o grau de explora��o do trabalho pelo capital� (Marx, 2008, p. 282).

[5] � o tempo de produ��o e circula��o do capital; este varia na raz�o inversa da taxa de lucro desde que a taxa de mais valia, jornada de trabalho e a composi��o do capital n�o se altere (Marx, 2008).

[6] N�cleo de estudo, pesquisa e extens�o do curso de Ci�ncias Econ�micas da Universidade Federal do Delta do Parna�ba (UFDPar) e grupo de pesquisa vinculado ao CNPQ.

[7] Gastos que representam os interesses da classe trabalhadora na forma de pol�ticas sociais.

[8] Despesas que representam os interesses da classe burguesa, especialmente os da fra��o financeira.