Conflitos e expropriação de territórios tradicionais na Amazônia
Brasileira[1]
Conflicts and expropriation
of traditional territories in the Brazilian Amazon
Solange Maria Gayoso da COSTA
https://orcid.org/0000-0002-5542-3663
Universidade
Federal do Pará, Faculdade de Serviço Social,
Programa
de Pós-graduação em Serviço Social, Belém, PA, Brasil.
e-mail: solgayoso@ufpa.br
Marcel Theodoor HAZEU
https://orcid.org/0000-0003-4106-0678
Universidade
Federal do Pará, Faculdade de Serviço Social,
Programa
de Pós-graduação em Serviço Social, Belém, PA, Brasil
e-mail:
celzeu@gmail.com
Larissa Marinho da COSTA
https://orcid.org/0000-0001-9397-1524
Universidade
Federal do Pará, Faculdade de Serviço Social,
Programa
de Pós-graduação em Serviço Social, Belém, PA, Brasil
e-mail:
lmc.larissa2@gmail.com
Resumo: Analisa os
conflitos e processos de expropriação enfrentados na região amazônica,
destacando as estratégias de resistência dos povos locais contra a apropriação
e despossessão de seus bens e modos de vida. Como metodologia utilizou-se da
revisão bibliográfica do tipo Revisão Sistemática da Literatura, também se
utilizou de materiais audiovisuais que apresentaram relatos de lideranças de
movimentos sociais e comunidades tradicionais, sendo identificados e classificados
em: fortalecimento da identidade; mobilizações, organização/articulação
política; e; uso da contrainformação. O uso de contrainformação, que surgiu
como processo de r-existência identificado, foi em última instância a própria
base de análise deste trabalho que buscou refletir sobre as situações de
conflito e os processos de expropriação vivenciados na região amazônica.
Palavras-chave: Conflitos. Povos Tradicionais. R-existência. Amazônia.
Abstract: This article analyses the conflicts
and expropriation processes in the Amazon region. It highlights the resistance
strategies implemented by local peoples to counter the appropriation and
dispossession of their assets and way of life. The methodology employed was a
systematic literature review, and a review of audiovisual materials that
presented reports from leaders of social movements and traditional communities,
these were identified and classified as: strengthening of identity;
mobilisations, political organisation/links; and; use
of counter-information. The use of counter-information, which emerged as an
identified process of r-existence, was ultimately the basis for the analysis,
which reflects on the conflicts and the processes of expropriation experienced
in the Amazon region.
Keywords: Conflicts. Traditional People.
R-existence. Amazon.
INTRODUÇÃO
O |
presente artigo tem como objetivo refletir sobre as situações
de conflito e os processos de expropriação vivenciados na região amazônica, bem
como as estratégias de r-existência[2]
dos povos locais no enfrentamento da apropriação e despossessão dos bens comuns
e dos seus modos de vida, a partir de publicações e produções audiovisuais
selecionados que formam um conjunto de contrainformação. Compreende-se
contrainformação, no sentido como discute Fadul (1982). Fadul define contrainformação
em seus estudos como um conjunto de ações e práticas de produção e disseminação
de informações que têm o objetivo de questionar e contestar a narrativa
dominante. De acordo com Fadul, a contrainformação não se limita apenas à
crítica às informações veiculadas pelos meios de comunicação tradicionais, mas
envolve também a criação de alternativas comunicacionais que desafiem a
manipulação da informação imposta por estruturas de poder. de assegurar a
difusão de informações sobre a condição da classe fora dos canais controlados
pelo poder dominante, além de aproveitar os espaços que as contradições da
burguesia proporcionam dentro desses canais.
O processo histórico
de territorialização e expansão do capital na Amazônia brasileira é marcado
pela intensificação da exploração do trabalho, pela apropriação dos recursos
naturais e pela expropriação de terras tradicionalmente ocupadas. Nesse
contexto, destacam-se diversas frentes, incluindo os grandes projetos de
integração rodoviária; as obras voltadas à produção de energia, como as
hidrelétricas; os empreendimentos de infraestrutura e logística destinados ao
escoamento da produção mineral e do agronegócio; e mais recentemente, a posição
da região como importante vetor de neutralização do carbono e de oferta de
serviços ambientais.
Os territórios em
disputa, no contexto da acumulação por espoliação, constituem um projeto
político fundamentado na dominação de determinados espaços geográficos e na
habilidade de mobilizar os recursos naturais e humanos desses locais para
objetivos políticos, econômicos e militares (Harvey, 2005). Dentro dessa lógica
de controle territorial, tal domínio se revela como um elemento imprescindível
para a acumulação capitalista.
No que tange ao controle territorial da
Região Amazônica, o Estado brasileiro tem adotado, desde a década de 1950, um
modelo de desenvolvimento pautado por instituições que implantam políticas
governamentais voltadas para garantir a eficácia da expansão e do funcionamento
da economia capitalista global na região.
Porto-Gonçalves (2006b), ao analisar
esse modelo de desenvolvimento, argumenta que se trata de um modelo destrutivo,
pois compromete a autonomia cultural e territorial de cada povo. Esse processo
subverte as relações interpessoais, alterando a dinâmica entre homens e
mulheres, bem como a conexão deles com a natureza. Em vez de favorecer a
coletividade, esse modelo promove a individualização, transformando os
indivíduos em seres desterritorializados. Essa nova configuração social,
marcada pelo capitalismo, é imposta através de técnicas e dispositivos sociais
e políticos que fomentam o desenvolvimento, como a privatização de terras e a
apropriação de recursos de uso comum e tem gerado violentos conflitos e a
expropriação de povos tradicionais de seus territórios tradicionalmente
ocupados.
Para aprofundar e refletir sobre estes
processos de expropriação e r-existência, realizamos uma revisão bibliográfica
usando a metodologia de Revisão Sistemática de Literatura (RSL) acerca das
situações de conflitos socioambientais enfrentados por comunidades
tradicionais, com ênfase na identificação e classificação das diversas
categorias de conflitos e formas de expropriação, assim como na identificação
dos agentes sociais envolvidos. Além disso, para investigar as estratégias de
r-existência, realizamos uma pesquisa em materiais audiovisuais produzidos por
ou que contaram com a participação de lideranças de movimentos sociais e de
comunidades tradicionais, nos quais foram relatados esses processos na
Amazônia.
MATERIAIS E MÉTODOS
Na pesquisa adotou-se a RSL, uma
abordagem de pesquisa bibliográfica que, por meio de um rigoroso protocolo,
estabelece critérios de inclusão e exclusão dos estudos a serem analisados
(De-La-Torre-Ugarte-Guanilo; Takahashi; Bertolozzi, 2011). Para a seleção dos
estudos, foram definidos como critérios de inclusão: a natureza dos trabalhos,
que abrange teses, dissertações e artigos; a relevância temática, focando em
pesquisas que abordem as situações de conflitos e processos de expropriação na
região Amazônica; o recorte temporal de seis anos, entre 2014 e 2019;
publicações em português; o acesso livre e gratuito às publicações, incluindo
teses e dissertações de instituições registradas junto ao CNPq no Diretório de
Pesquisas do Brasil; e a pertinência dos artigos, que devem ter vínculos com o
Serviço Social e relação direta com a temática abordada.
As bases de dados utilizadas para a
busca de publicações eletrônicas disponíveis online em redes virtuais
foram o Portal de Periódicos e o Banco de Teses e Dissertações da CAPES,
abrangendo instituições federais e estaduais. Na seleção dos artigos, foram
priorizadas as revistas com as melhores classificações segundo o Qualis CAPES
da área de Serviço Social (A1, A2 e B1). Os termos de busca ou descritores
empregados na pesquisa bibliográfica incluíram: Movimentos sociais na Amazônia;
Resistência na Amazônia; Lutas pela terra na Amazônia; Resistência das
comunidades tradicionais; e Defesa do território na Amazônia. Como resultado,
foram identificados 68 estudos, dos quais 48 eram artigos, 14 dissertações e 6
teses.
Para a pesquisa em materiais audiovisuais,
desenvolvemos um protocolo de pesquisa voltado para a identificação de vídeos e
podcasts. Os critérios de inclusão
para a seleção de ambos os tipos de mídia foram: relevância para o tema, foco
na Amazônia paraense, acessibilidade gratuita e a presença de depoimentos de
povos e comunidades tradicionais sobre a atuação do Estado e do capital por
meio de grandes empreendimentos.
Identificamos
um total de 16 canais no YouTube que tratam de temas relevantes para a
pesquisa, a saber: Filhos do Quilombo África e Laranjituba, MAB Brasil, MAM
Nacional, Movimento Sem Terra, Movimento Tapajós Vivo, Via Campesina Brasil,
Lailson Azevedo, SELVAGEM - Ciclo de Estudos sobre a Vida, SINTEPP Abaetetuba,
Vozes Latina, Amazônia Real, Marcelo Cruz, Brasil de Fato, CLACSO TV e FASE -
Solidariedade e Educação. Desses canais, foram selecionados 162 vídeos que se
mostraram pertinentes ao tema em questão. Após uma análise minuciosa de todos
os conteúdos, optamos por focar em 101 vídeos que abordam a resistência dos
povos e comunidades tradicionais, destacando suas perspectivas e
posicionamentos.
Além
disso, identificamos 6 podcasts relevantes: Banzeiro, Cepedis, Café Regional,
Descoloniza! Ocareté, Programa Tipiti e Vozes de Vale(m). Na primeira fase da
análise, examinamos 71 episódios desses programas. A partir da escuta completa
dos episódios, selecionamos 52, cuja tabulação de dados se tornou uma parte
fundamental deste estudo.
EXPROPRIAÇÃO
DE TERRITÓRIO TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA: APONTAMENTOS NA LITERATURA SOBRE LUTAS
SOCIAIS E PAUTAS REIVINDICATÓRIAS
Uma imagem associada à Amazônia está
ligada ao seu baixo índice populacional, à presença de reservas minerais e à
sua vasta biodiversidade. Desde a década de 1950, essa concepção tem
influenciado as ações do governo na região, que busca ocupar o vazio
demográfico e integrar a Amazônia às áreas industrializadas como estratégia
para seu desenvolvimento.
A abertura de estradas e a ocupação do
que se chamava de vazio demográfico
eram consideradas, em discurso, como essenciais para o controle das fronteiras
– a ideia de integrar para não entregar.
O nacionalismo e o desenvolvimentismo, pilares dos governos brasileiros entre
os anos 1930 e 1960, começando com Vargas e seu Estado Novo e
prosseguindo com Juscelino Kubitschek e sua proposta de 50 anos em 5,
continuaram a influenciar as administrações subsequentes, o que é evidente nas
grandes políticas voltadas para a Amazônia. A criação da nova capital do Brasil
facilitou a ocupação do Centro-Oeste, e a BR-010 se tornou um importante marco
na integração da região Norte aos mercados nacional e internacional. Na mesma
linha de desenvolvimento, os governos autoritários que se sucederam após 1964
também promoveram a criação de importantes rodovias, como a Transamazônica
(BR-230), a Cuiabá-Santarém (BR-163), a Cuiabá-Porto Velho (BR-364) e a
Manaus-Porto Velho (BR-396), que conectavam o Norte ao Centro-Oeste e também às regiões Sudeste e Sul do Brasil.
As demais iniciativas do governo seguem
a mesma linha, agora com a implantação de Programas como o Projeto Rondon
(1967), a Zona Franca de Manaus (ZFM) (1967), o Programa de Integração Nacional
(PIN) I (1970), o Programa de Redistribuição de Terras (PROTERRA) (1971), o PIN
II (1974), o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
(POLAMAZÔNIA) (1976) e o Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do
Brasil (POLONOROESTE) (1986), além dos incentivos fiscais e financeiros
oferecidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e das
atividades produtivas nos setores agropecuário, madeireiro e mineral, compõem o
conjunto das ações governamentais voltadas para a reconquista da região.
A partir de meados da década de 1990, o
Brasil começou a adotar um novo discurso sobre políticas de desenvolvimento
econômico e ordenamento territorial. Introduziu-se o conceito de
desenvolvimento sustentável, que se manifestou na criação de zoneamentos ecológico-econômicos.
Essas iniciativas foram apresentadas por meio de diversos Planos Plurianuais
(PPA), além da Política Nacional de Ordenamento Territorial, da Política
Nacional de Desenvolvimento Regional e do Programa de Aceleração do
Crescimento. Para a Amazônia, foram elaborados o Plano Amazônia Sustentável, o
Plano Regional de Desenvolvimento da Amazônia e o Macrozoneamento
Ecológico-Econômico da Amazônia Legal.
No entanto, as intervenções do governo
mantiveram o processo de ocupação da região, por meio da implantação de eixos
de integração voltados para aumentar a competitividade do agronegócio
brasileiro e a produção de energia para os parques industriais do país.
Assim, a Amazônia sempre foi
considerada uma região periférica de um país também marginalizado, inserida na
dinâmica da economia capitalista global. Ao longo da história, a colonização
resultou em investimentos que desconsideraram as especificidades locais. Os
povos originários foram submetidos a transformações drásticas em seus modos de
vida, enfrentando um uso sistemático da violência, que variou desde a
catequização forçada até o extermínio. A luta social emerge como uma condição
essencial para a existência e a preservação da identidade desses povos.
Estudos sobre e depoimentos das comunidades
tradicionais na Amazônia brasileira evidenciam que a terra e o território são
elementos fundamentais para a (re)produção da vida nessa região, com seus usos
e apropriações – tanto materiais quanto imateriais – intimamente ligados às
questões de identidade e pertencimento (Alves, 2017; Gonçalves, 2016;
Nascimento; Hazeu, 2015). A permanência nessas áreas não apenas contribui para
a conservação da natureza, mas também é vital para a própria existência desses
grupos. Portanto, o território carrega significados que transcendem a simples
demarcação de terras (Freitas, 2014; Tavares, 2016).
Nesse sentido, a terra é compreendida
como um elemento essencial à reprodução social e material de povos e
comunidades tradicionais, que lutam pela sua defesa e pela construção de uma
relação harmônica e não predatória com o ambiente (Silva, 2018b; Silva;
Wanderley; Conserva, 2014; Teisserenc, 2016).
Uma das principais formas de desestabilizar os modos de vida
tradicionais é a expropriação de seus territórios, que resulta no deslocamento
constante. Esse processo de expropriação também implica na extração de bens
naturais para abastecer o mercado internacional. Tal abordagem provoca uma
devastação tanto física quanto cultural de grandes grupos, ao impor padrões
eurocêntricos que deslegitimam ou diminuem o valor do conhecimento tradicional
(Cavallo, 2018; Pereira, 2016; Silva, Wanderley, Conserva, 2014; Silva, 2018a;
Soares, 2018).
Nesse contexto de conflitos e luta pela
r-existência, emergem diversas pautas de luta, nas quais as formas
organizativas se destacam: Movimentos sociais, associações, grupos de povos e
comunidades tradicionais, além de sindicatos, desempenham um papel fundamental
como agentes mobilizadores desse processo.
Entre suas principais demandas estão a
defesa do território e das formas de vida tradicionais; o acesso a políticas
públicas e a serviços de qualidade; a demarcação e titulação de terras; o
reconhecimento e a afirmação da identidade territorial; os direitos da
natureza; e a valorização de suas práticas e saberes tradicionais. Essas
reivindicações se entrelaçam como expressões de uma luta coletiva para proteger
e assegurar a permanência de seus territórios e modos de vida, revelando a
complexidade e a interconexão das questões enfrentadas por essas comunidades
(Figura 1).
Figura 1 - Pautas dos povos
tradicionais relacionadas ao território
Fonte:
68 estudos analisados. Elaborado pelos autores (2024).
A Figura 1 evidencia que, dentre os 68
estudos analisados, 36 abordaram a defesa dos territórios e dos modos de vida
das comunidades, enquanto 31 destacaram a necessidade de políticas públicas
eficazes e serviços de qualidade, sublinhando a carência de acesso desses
recursos nas comunidades.
Além disso, 19 estudos ressaltaram a
importância dos direitos relacionados à preservação da natureza, bem como o
reconhecimento e a afirmação da identidade cultural; outros 12 enfatizaram a
valorização dos saberes tradicionais, considerados essenciais na luta dos povos
e comunidades tradicionais. Embora as demais temáticas tenham sido menos
abordadas, elas constituem o panorama dos aspectos relevantes na discussão
deste tema.
Os estudos demonstram que os conflitos
surgem como resultado da expansão da monocultura e da extração mineral,
atividades que exigem uma infraestrutura robusta para viabilizar os
empreendimentos. Esse modelo de desenvolvimento, que começou a se consolidar
durante a ditadura militar e ganhou força na década de 1990 com a ascensão do
neoliberalismo, tem provocado transformações significativas nos territórios
tradicionalmente ocupados, além de impor mudanças drásticas nos modos de vida
das comunidades afetadas (Coutinho, 2016; Damasceno, 2016; Freitas, 2014;
Gonçalves, 2016; Lima, 2015; Mendes, 2016; Santos, 2014; Silva, 2018b). Por
exemplo, as comunidades cuja principal fonte de renda é a pesca enfrentam um
uso predatório dos recursos naturais, comprometendo suas condições de vida e
trabalho e gerando um ciclo de pobreza (Silva; Wanderley; Conserva, 2014).
Nos municípios onde esses
empreendimentos são instalados, a população local frequentemente não é
integrada ao mercado de trabalho das empresas, que, ao perder ou modificar seu
território original, acaba se vendo forçada a aceitar subempregos oferecidos
como uma alternativa ou migrar para as periferias dos centros urbanos. Essa
situação contribui para a pauperização da comunidade (Congilio, 2014;
Nascimento; Hazeu, 2015).
Os estudos ressaltam as práticas
sociais dos povos e comunidades tradicionais, como a caça, a pesca, o cultivo,
a colheita, a criação de animais, o uso de plantas e ervas medicinais, bem como
as festas, a contação de histórias e a música como elementos constituintes de
suas identidades e estratégias políticas de r-existência. A visibilidade que se
dá a essas práticas é uma ferramenta essencial para fortalecer os saberes
tradicionais, além de evidenciar a necessidade de reivindicação pela permanência
no território (Cascaes, 2017; Gonçalves, 2016; Vieira, 2016).
O reconhecimento dessas identidades é
fundamental, pois reafirma os laços de solidariedade entre os grupos e
evidencia suas limitações, conforme afirma Souza e Brandão (2017). Trata-se de
uma luta para preservar esses usos e costumes, que por muitos anos foram
silenciados pelos governantes e pela lógica capitalista.
APONTAMENTOS
NOS MATERIAIS AUDIOVISUAIS SOBRE LUTAS SOCIAIS E ESTRATÉGIAS DE R-EXISTÊNCIA
Para compreender a luta dos povos
tradicionais na Amazônia, é fundamental reconhecer que os processos de
r-existência devem ser contínuos, uma vez que povos e comunidades tradicionais
batalham pela sua existência e pelos seus modos de vida. Porto-Gonçalves, em
suas obras (2006b, 2017), aborda a luta pela vida, interpretando-a como mais
que resistência a luta dos povos tradicionais é “[...] r-existência, é dizer,
uma forma de existir, uma determinada matriz de racionalidade que age nas
circunstâncias, inclusive reage, a partir de um topoi, enfim, de um lugar
próprio, tanto geográfico como epistêmico” (Porto-Gonçalves, 2006b, p. 165).
Nos materiais de mídia pesquisados
identificamos a presença de empreendimentos/grandes projetos e projetos de
crédito de carbono em territórios tradicionalmente ocupados, que tem provocado
impactos socioambientais graves, são esses: a) Barragens e Usinas
Hidroelétricas (UHE): de Santo Antônio e Jirau, Belo Monte, Tucuruí e São Luiz
do Tapajós; b) Rodovias/Ferrovia/Hidrovia: BR 230, BR-153, Rodovia Liberdade,
Ferro Grão e, Hidrovia Tocatins-Araguaia; c) Mineradoras: Hydro, ALCOA, Alumar,
Imerys Rio Capim e, Belo Sun; d) Portos privados: Porto da Cargill; e) Empresas
de monocultivo: AGROPALMA; f) Empresas de energia elétrica: Norte Energia; g)
Outro: Lixão de Marituba; Complexo Industrial de Marituba.
Tais grandes projetos e projetos de
crédito de carbono mencionados nos materiais audiovisuais pesquisados têm
afetado 26 grupos sociais, desde povos indígenas a comunidades
agroextrativistas, comunidades quilombolas e agricultores assentados: o povo
Caeté, Samauma, comunidade quilombola Moju-miri, comunidade quilombola Cacual,
comunidade quilombola África e Laranjituba, comunidade quilombola São Sebastião
do Burajuja, comunidade quilombola Gibrié de São Lourenço, assentamento
Dalcídio Jurandir, povo Wapichana de Rorraima, povo Huni Kuin, aldeia Xiku
Kurumi, comunidade quilombola Porto da Balsa, povo Tembé, povo Yanomami,
comunidade agroextrativista do Pirocaba, comunidade quilombola Abacatal,
assentamento Roseli Nunes, povo Munduruku, RESEX Chico Mendes, comunidade
quilombola Sítio São João, comunidade quilombola Sítio Cupuaçu, comunidade
quilombola Sítio Conceição, comunidades da ilha do Capim e PAE Lago Grande.
A presença das comunidades quilombolas
e povos indígenas nos materiais audiovisuais é expressiva. Além de dois
assentamentos e duas comunidades agroextrativistas, são dez comunidades
quilombolas e sete povos indígenas que produzem e/ou estão presentes, apropriando-se
dos meios de comunicação, estando no centro de conflitos com as empresas e
empreendimentos acima mencionados. Destacamos
no Quadro 1 trechos de falas dos sujeitos atingidos por cinco empreendimentos.
Quadro 1 - Impactos socioambientais provocados por empreendimentos e
grandes projetos na Amazônia – trechos de depoimentos dos povos e comunidades
tradicionais
EIXO |
TRECHOS
DAS FALAS DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS |
UHE
DE BELO MONTE |
Depois que fechou as comportas
começou a matar, nossas matas, apodreceu as nossas plantas, nos contaminaram,
entendeu?! Começamos a perder nossas lavouras, nossas ilhas, margens de
nossas ilhas tão se acabando, entraram três ou quadro homens derrubando
nossas terras, [...] peixe não existe, nós que vivia da pesca, não existe, as
nossas crianças, todos os dias eu trago pessoas contaminada [...]. (Banzeiro, Baiana, ribeirinha,
9/11/2021). |
BR-135 |
A BR 135 invadiu o nosso
território a mais de 50 anos, a gente nunca foi consultado, agora o governo
federal junto com o governo do maranhão quer duplicar a rodovia passando por
cima dos nossos direitos de novo, estamos brigando pelo direito de sermos ouvidos
antes [...]. (Zica Pires, Território Quilombola Santa Rosa dos Pretos, Vozes
que Vale(m), 27/06/2021). |
HYDRO/
ALUNORTE |
Deixamos de pescar, porque a água
tá contaminada, o peixe tá contaminado (...). Agora nós começamos a pescar de
novo, aí veio esse impacto, ai pronto tudo parado [transbordo da bacia de
rejeito da Hydro em 2018], aí ninguém pesca, ninguém põe matapi, tá tudo
parado de novo (Paulo José comunidade Gibrié. MAM Nacional Youtube, Vazamento,
2018) |
CARGILL |
A Cargill a todo
custo tem tentado entrar nos nossos territórios, cooptar moradores, cooptar
lideranças e tentar convencer de que o modelo de projeto dela é o modelo mais
adequado para nossas comunidades. Nós não queremos a Cargill nos nossos
territórios, nós não queremos ser consultados pela Cargill, nós queremos que
o estado faça valer o que nos é assegurado na Convenção 169 [...] (Graziele, moradora da ilha do capim,
Programa Tipiti, 27.11.2021) |
AGROPALMA |
Ele diz que preserva o
meio ambiente, não protege de jeito nenhum, esse rio Acará eu já cheguei,
meti a mão no óleo assim e veio na minha mão (Raimundo Nonato - quilombola da
comunidade Balsa. Brasil
de Fato. Youtube PARÁ, 2022) |
Fonte: Elaborado pelos
autores a partir dos materiais audiovisuais pesquisados (2024)
Os fragmentos destacados no Quadro 1 evidenciam a realidade
contemporânea da região, que se encontra imersa em um contexto de violência
estruturada, impulsionada pela territorialização do capital e pela expropriação
das áreas tradicionalmente habitadas pelas comunidades locais.
Em um quadro que ilustra os impactos dos grandes projetos
na Amazônia Brasileira, elaborado por Costa (2024, p. 43-50), foram
identificados investimentos em quatro categorias de empreendimentos registrados
entre 1879 e 2016: Estradas, Rodovias e Ferrovias; Exploração de Recursos
Florestais e Minerais; Usinas Hidrelétricas; e Portos destinados ao escoamento
de minérios e grãos. Algumas dessas intervenções tiveram repercussões
significativas sobre 41 etnias indígenas, algumas das quais enfrentam um
processo de dizimação (Costa, 2024, p. 38).
A autora também ressalta a multiplicidade dos impactos
gerados, que podem ser classificados nas seguintes categorias: a) Impactos
Sociais: aumento da pobreza e da fome, deterioração da saúde, ausência de
políticas públicas que atendam a demandas específicas, incremento da violência,
ameaças e coações, violação de direitos humanos, carência de saneamento básico,
escassez de oportunidades de emprego e intensificação da exploração sexual; b)
Impactos Ambientais: desmatamento, catástrofes ambientais (como contaminação da
água, do solo e do ar), extração ilegal de madeira, surtos epidemiológicos
relacionados a mosquitos, assoreamento de corpos d'água, alterações no ciclo de
vida da fauna, queimadas, vazamentos em bacias de rejeitos minerais, erosão do
solo e uso indiscriminado de agrotóxicos; c) Impactos Territoriais: ataques a
aldeias, demarcações de terras que não refletem a extensão real dos
territórios, falta de demarcações e grilagem de terras; d) Impactos Culturais:
extermínio/genocídio, fechamento de espaços utilizados para práticas
tradicionais, expansão da urbanização e destruição de vestígios arqueológicos (Costa,
2024, p. 41).
Para enfrentar o histórico processo de acumulação por
espoliação da Região Amazônica, surgiram processos de r-existência, como o
fortalecimento da identidade, mobilizações e organização/articulação política e
o uso da contrainformação (Quadro 2).
Quadro 2 - Estratégias de r-existência
dos povos e comunidades tradicionais no enfrentamento de processos de
expropriação em defesa dos seus territórios
EIXO
ESTRATÉGICO |
AÇÕES
|
Fortalecimento da
identidade |
Autodemarcação do
território e plano de uso e gestão territorial; Encontros para a
articulação; Investimento na agroecologia e da soberania alimentar, plantar sem
veneno/agrotóxico, doação de alimentos; Manter a natureza preservada; Manter seus
modos de vida através da roça, a fabricação da farinha, festas religiosas,
medicina tradicional, mutirões (trabalhos coletivos); Manutenção da cultura
tradicional com música, dança, poesia, artesanato e mística; Prática
da oralidade como socialização dos saberes ancestrais; Projeto de
fortalecimento da economia tradicional; Reflorestar áreas desmatadas; Retirar
da natureza somente o necessário para sobrevivência. |
Organização/Articulação
política |
Articulação/aliança
dos povos da floresta e da cidade; Campanha de sensibilização da comunidade; Organização
política através de movimento social, associação de moradores, Federações e
Coletivos; Parceria com igreja católica, MPF, MPE, Defensoria Pública do
Estado do Pará, Universidade, FASE e a MALUMGO; Organização de Pautas
políticas e de direitos sociais para negociação junto aos governos e
empresas; Participação de representantes dos movimentos sociais em Audiências
Públicas e debates públicos; Realização de assembleias populares para
reivindicação de direitos territoriais (reconhecimento de territórios
tradicionais, terras indígenas e criação de assentamentos rurais);
Mobilização; Ocupações de barragens e de ruas; Protesto; Resistência popular;
Manifestação; Greve; Mobilização e organização comunitária para elaboração de
Protocolos de Consulta Livre, Prévia e Informada segundo a Convenção 169 da
OIT. |
Uso da
contrainformação |
Cartas denunciando as
violações de direitos; Denúncias por meio de veículos de comunicação, vídeos,
redes sociais e outros materiais audiovisuais; Encontros, congressos, cursos,
oficinas de formação e informação; produção de cartografia social de uso e apropriação
de territórios. |
Fonte:
Elaborado pelos autores a partir dos vídeos e podcast selecionados para estudo (2024).
Os povos e as comunidades tradicionais
têm lutado por serviços públicos e políticas públicas de qualidade, contra
ameaças de empreendimentos; contra a grilagem de terras, as queimadas, as
violações de direitos; por emprego e renda; pela reforma agrária; por regularização
fundiária e principalmente para a permanência em seus territórios exercendo
suas tradicionalidades.
A organização e as lutas dos povos e
comunidades tradicionais estão intrinsecamente ligadas à denúncia da violência
e à destruição de seus territórios, ações estas promovidas tanto pelo capital
quanto pelo Estado. Essas entidades renovam continuamente suas estratégias de
apropriação territorial, intensificando o processo de espoliação da natureza e
dos corpos humanos associados a esses territórios. Nesse contexto de avanço da
reestruturação produtiva e do protagonismo de povos e comunidades tradicionais
emergiram diversas estratégias de r-existência. Essas iniciativas resultaram na
formação de significativas experiências de mobilização, que perduram há
décadas, evidenciando a resiliência e a capacidade organizativa desses povos em
face das adversidades.
CONCLUSÕES
A Amazônia, na sua imensa diversidade,
é também um cenário de conflitos socioambientais e territoriais, mediante a
expansão dos grandes empreendimentos. Os dados de pesquisa reforçam que, diante
de um contexto de expropriação, de violação de direitos e de tendência de
avanço da territorialização do capital, a r-existência surge em todas as
comunidades de diversas formas, como expressão da sua própria
sociobiodiversidade. Frente à exploração que no sistema capitalista é
apreendida como normal, há a r-existência também como normal (Scott,2011).
Os resultados apresentados ilustram as
tensões e os conflitos vividos nos territórios como parte da tendência do
avanço dos interesses do capital na região. Tal movimento de territorialização
do capital tem resultado na produção e no aprofundamento das desigualdades
sociais, pois os grupos diretamente afetados pela instalação de grandes
projetos, empresas, obras de infraestrutura e logística,
monocultivo/agronegócio, estariam desprovidos do necessário para a reprodução
de seus modos de vida, ou seja, para sua reprodução enquanto grupos sociais
específicos, gerando processos produtores de desigualdades.
A pesquisa nos mecanismos audiovisuais
indicou que os projetos de morte são representados por Barragens e Usinas
Hidroelétricas (UHE); Rodovias/Ferrovia/Hidrovia; Mineradoras; Portos privados
e; monocultivo/agronegócio, que tencionam as articulações e mobilizações
políticas por povos e comunidades tradicionais. Os rios, fonte da vida, são
barrados e transformados em lagos sem vida, as plantações e florestas, fontes
de alimentos, viram cavações e bacias de rejeitos da mineração, desertos verdes
de monoculturas e as praias e trapiches, a conexão com o rio para pescar e
banhar, viraram cercas e portos para exportação de natureza em forma de commodities. Mas, em vez de desaparecer,
as comunidades como a natureza, existem e resistem.
Além de existir com seus modos de vida
em permanente interação com a natureza e as ameaças e objetos estranhos,
processos de r-existência identificados no material pesquisado foram
categorizados como processos de fortalecimento da identidade, mobilizações,
organização/articulação política, reivindicação da efetivação dos direitos
estabelecidos legalmente e o uso da contrainformação.
O uso de contrainformação, que surgiu
como processo de r-existência identificado, foi em última instância a própria
base de análise deste trabalho que buscou refletir sobre as situações de
conflito e os processos de expropriação vivenciados na região amazônica, bem
como as estratégias de r-existência dos povos locais no enfrentamento da
apropriação e despossessão dos bens comuns e dos seus modos de vida.
São as pesquisas e publicações
acadêmicas analisadas neste estudo que geraram estas conclusões que se
contrapõem aos discursos oficiais e estudos que acompanham (e apoiam) o avanço
do capital na Amazônia. De forma mais radical, a contrainformação é produzida
pelos próprios povos e comunidades tradicionais que defendem seus territórios
através meios audiovisuais próprios ou nos quais são protagonistas. É neles que
os filtros coloniais que ainda perpassam grande parte da produção acadêmica e
que dominam as publicações oficiais são eliminados e a realidade se apresenta
na sua dinâmica violenta e bela ao mesmo tempo, denunciando as invasões e
revelando outros mundos possíveis e existentes.
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Solange Maria Gayoso
da COSTA Trabalhou na concepção, no delineamento e na redação do artigo.
Assistente Social. Atriz de teatro. Doutora em Ciências
Socioambientais. Professora associada III da Faculdade de Serviço Social e do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPA. Coordena o Grupo de
Estudos e Pesquisa Sociedade, Território e Resistência na Amazônia (GESTERRA).
Membro das redes de pesquisadoras/es do Projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia e da rede AMAZONICIDADES.
Marcel Theodoor HAZEU
Trabalhou na redação e na revisão crítica do artigo.
Doutor em Ciências Socioambientais. Professor adjunto II da
Faculdade de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
UFPA. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Sociedade, Território e
Resistência na Amazônia (GESTERRA).
Larissa Marinho da COSTA Trabalhou
na análise e na interpretação dos dados.
Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS). Bacharela em Serviço
Social. Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade, Território e Resistência na
Amazônia (GESTERRA). Tem experiência com os temas: Movimento Social; Habitação;
Resistência; Lutas Sociais, Território; Amazônia; Políticas Sociais.
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Editoras responsáveis
Ana Targina Ferraz –
Editora-chefe
Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora Temática
Submetido
em: 18/8/2024.
Aceito em: 8/10/2024.
Este
é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution,
que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições
desde que o trabalho original seja corretamente citado. |
[1] Os resultados aqui apresentados compõem um
conjunto maior de atividades previstos na pesquisa intitulada Os
efeitos da destinação de terras na produção das desigualdades sociais na
Amazônia aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), código: 409820/2018-0, período de execução:
março de 2019 a fevereiro de 2025. Aprovação por Comitê de Ética e
consentimento para participação CAAE:
30751420.7.0000.0018.
[2] O debate surge das análises de Porto-Gonçalves (2006a) sobre as lutas pela natureza, onde argumenta que a r-existência é muito mais que reagir a uma ação, refere-se a outra racionalidade, é uma forma de existir. Valter Cruz (2011) acrescenta que se trata de uma maneira de resistir a dominação econômica, política e cultural, se trata de afirmar a sua sobrevivência, logo, “[...] não só lutam para resistir contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas populações, mas também por uma determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por diferenciados modos de sentir, agir e pensar” (Cruz, 2011, p. 151).