A CARTA DA “ESCRAVA” ESPERANÇA GARCIA E A FORMAÇÃO DO CÂNON LITERÁRIO AFRO-BRASILEIRO: UMA NARRATIVA DOS ESCRAVIZADOS NO BRASIL
Resumo
A Carta de 6 de setembro de 1770, de Esperança Garcia, foi endereçada ao Governador da Capitania de São José do Piauí (MOTT,1985,2010), Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, uma“inusitada reclamação”(MOURA,2004) por se tratar de uma“escrava”que se dirige à principal autoridade do Piauí colonial setecentista. Do ponto de vista literário e texto defundação, a Carta de Esperança representa para a literatura afro-brasileira, o mesmo que a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) representa para o cânon euro-ocidental na literatura brasileira. A epístola em estudo foi escrita dezenove anos antes da Revolução Francesa. Écertamente um dos registros escritos mais antigos da escravidão no Brasil, escrito pelopróprio escravizado, no nosso caso uma mulher negra, brasileira e cativa, Esperança. O que confere à narrativa epistolar citada acima o status da escritura de uma gênese, ou seja, deformação do cânon na literatura afro-brasileira. Do ponto de vista literário, pretende-se classificar a Carta de Esperança como ‘crônica’social da escravidão,que assume a forma da narrativa dos/as escravizados/as e relat o autobiográfico de experiência pessoal e coletiva d oafrodescendente neste país,considerando-se o caráter multifacetado dacrônica “como expressão literária híbrida, ou múltipla” (MOISÉS, 1974, p. 133). No estudo, atenta-se paraa função social da Carta em estudo como petição jurídica, que denuncia maus tratos e reivindica direitos em favor de si própria, de Esperança,dos familiares e amigas escravizadas. Os estratagemas do discurso literário ganham ênfase no corpus da narrativa de escravidão e relato autobiográfico. No processo de construção da epístola, a narradora/protagonista e cativa forja em espiral a dinâmica de narrar por dentro dos episódios vivenciados por ela mesma e escravizados/as da Fazenda Algodões. O discurso literário se constitui de elementos como eloquência, dramaticidade, metáforas onomatopaicas, imagens de dor, comoção; narrativa de “sororidade” (HOOKS, 2018) entre mulheres negras no cativeiro; herança da tradição oral africana.Elementos dessa natureza atestam a Carta como escrita fundadora de uma tradição literária afro-brasileira, aportada na narrativa autobiográfica que traduz a experiência pessoal e coletiva dos afrodescendentes no exíliodiaspórico. O manuscrito de Esperança faz desmoronar os estereótipos raciais, a ideiaenganosa ou a falácia acerca da “submissão natural” do negro escravizado, propagado pelodiscurso colonialista e a História oficiosa. Além disso, a Carta lança por terra o falso mito da convivência pacífica ou da“democraci aracial”, apregoada em Casa-grande&senzala(2005), de Gilberto Freyre. Nesse sentido,como nos referimos em linhas anteriores,o nome de Esperança significa a resistência do/a escravizado/a no Piauí e a autoria do texto criador de uma tradição literária afro-brasileira, que teria dado origem às narrativas autobiográficas escritas por elas e eles mesmos, mulheres e homens negros no nosso país. Esse fato se deve ao teor da sua escritura persuasiva, reivindicatória e ao mesmo tempo comovedora; “não apenas de
luta, mas também de dor [...]” (HOOKS,2018,p.59). E ainda a refutação aos abusos do cativeiro e a coragem que ela,
Esperança, na condição de escravizada, tivera ao denunciar maus tratos, torturas físicas e proibições às suas convicções religiosas e outros tipos de arbitrariedades praticadas por Antônio Vieira do Couto, o administrador das fazendas da Inspeção de Nazaré, pertencentes à Coroa de Portugal,contraela, a autora da denúncia, os filhos desta, o esposo e parceiras, suas colegas tambémsubalternizadas pelo regime de escravidão. No que diz respeito à história de EsperançaGarcia, enquanto crônica da escravidão na Capitania de São José do Piauí, em especial, na Inspeção de Nazaré, atenta-se para o ponto de vista do testemunho ocular de uma mulher,que vivencia a experiência da brutalidade, violência e humilhação da escravatura. Emsituações tão desfavoráveis para uma mulher negra e cativa, especula-se ainda acerca daresposta ou silêncio do Governador da Capitania perante a denúncia formulada pela Carta de Esperança contra AntônioVieira do Couto, procurador da Inspeção de Nazaré. Conforme uma cartas em assinatura e de autoria desconhecida,escrito na mesma época, provavelmente por um funcionário da administração governamental, Esperança teria fugido inúmeras vezes.O destino, o lugar, os lugares ou paradeiro da fugitiva, nas vezes em que andara refugiada, até hoje continuam uma incógnita.Não há registro documental da existência de uma rede de comunicação solidária entre os escravizados, trilhas de fuga ou lugares ocultos que davam guarida aos fugitivos.Nossa investigação apontará certamente caminhos para a especulação e a compreensão da epistemda narrativa dos escravizados/as, dos fatos históricos da escravidão, da crônica social dos subalternizados pela mão de obra cativa nas fazendas doFisco Real no Piauí setecentista e escravocrata, registrados pela Carta autobiográfica das dezessete linhas escritas por Esperança Garcia.
Palavras-chave:EsperançaGarcia.Carta.NarrativadosEscravizados. Brasil.