Chamada de artigos para o dossiê: "Processos de expansão e integração territorial no Mediterrâneo antigo"

23-12-2023

Durante a Antiguidade, diversas sociedades da bacia do Mediterrâneo empreenderam processos de expansão territorial, como foi o caso dos gregos e dos romanos. Esses processos podem ser divididos em dois grupos: migrações e imperialismos. Um único motivo não explica por que grupos humanos saíam de seus lugares de origem em expedições militares e comerciais rumo a territórios às vezes desconhecidos. Dessa forma, uma variedade de fatores, que não pode ser compreendida de maneira isolada, explica, ainda que parcialmente, os fenômenos das migrações e imperialismos antigos.

Tomemos como exemplo o caso grego. A historiografia tentou explicar os movimentos migratórios gregos, ocorridos entre os séculos VIII e VI a.C., dando ênfase às características geográficas da Península Balcânica. O solo impróprio para a agricultura e o clima severo teriam sido fatores que obrigaram os gregos a procurarem áreas mais férteis, impulsionando os movimentos migratórios (Hughes, 1981, p. 127). As pesquisas, no entanto, avançaram e agora sabemos que as migrações gregas foram eventos complexos, resultantes de mudanças internas naquelas sociedades, como o aprimoramento das técnicas de navegação, essenciais para o controle do espaço marítimo. Ao lado do fator “técnica” estava o fator “sagrado”, tendo em vista que, sob a ótica dos gregos, as viagens poderiam não ser bem executadas sem a presença do culto às divindades protetoras e do auxílio de um oráculo (Giebel, 2013, p. 29; Jourdan, 2019, p. 14, 28; Soares, 2020). Assim sendo, este dossiê busca evidenciar os novos debates sobre os motivos e meios pelos quais as sociedades grega e romana expandiram seus limites territoriais.

No âmbito dos estudos concernentes à expansão territorial, destacam-se também as investigações referentes ao contato cultural entre diferentes grupos étnicos. Essa problemática é discutida desde o século XIX, embora hoje não adotemos a mesma visão científica dos precursores desse campo. No século XIX e no início do século XX, os estudiosos interpretavam as interações culturais com base numa dicotomia entre sociedades consideradas civilizadas – gregos e romanos – e sociedades consideradas bárbaras e selvagens. Essa visão é fruto de seu tempo, uma vez que os historiadores foram influenciados pelo contexto do imperialismo europeu, além do fato de considerarem as fontes escritas como detentoras da verdade sobre os acontecimentos do passado, e não como representações de estratos sociais específicos (Abreu; Souza, 2004, p. 206; Lepelley, 2016, p. 421-422; Soria, 2013, p. 711).

Novos olhares acerca das conexões culturais entre gregos, romanos e demais grupos étnicos do Mediterrâneo surgiram a partir da década de 1960, influenciados pelas independências dos países africanos e asiáticos. Os estudos dessa época eram chamados de “descolonizados” por seus adeptos, numa clara tentativa de desvincular suas pesquisas daquelas realizadas anteriormente. No entanto, manteve-se a polarização entre gregos e romanos e as populações com as quais entraram em contato, enfatizando-se as resistências dos nativos contra os invasores (Lima Neto, 2016, p. 118).

Os estudos “pós-coloniais”, por sua vez, demonstram que a "helenização" e a "romanização" devem ser interpretadas não como processos unilaterais, mas como trocas culturais recíprocas. Isso resultou na formação de culturas híbridas e, por consequência, em um mundo mediterrâneo diverso em termos de características identitárias (Funari; Garraffoni, 2018, p. 250; Hingley, 2010, p. 41; Mendes, 1999, p. 307, 313). Essa abordagem redefiniu a narrativa histórica ao reconhecer que não houve uma cultura dominante que se impôs a outras, mas uma série de culturas em interação que deram ensejo a novas realidades. Observa-se uma crescente valorização do protagonismo das comunidades nativas frente às investidas militares e influências culturais dos gregos e romanos, o que é apenas parcialmente evidenciado pelas fontes escritas, que nos legaram a visão dos conquistadores sobre as populações locais. Para uma compreensão mais ampla dos contextos de integração entre duas ou mais sociedades, outras fontes são imprescindíveis, como os registros arqueológicos. Nesse sentido, este dossiê pretende reunir textos nos quais os autores discutam o tema das trocas identitárias no Mediterrâneo antigo, fundamentando-se em fontes de diversas naturezas e ancorando-se nos pressupostos dos estudos pós-coloniais.

Apesar de sua relevância, as pesquisas referentes às trocas identitárias representam uma das muitas facetas que podem ser analisadas no que tange à expansão territorial. Cada vez mais temos nos questionado a respeito do papel da espacialidade em contextos migratórios e imperialistas. O espaço não deve ser compreendido apenas em sua forma tradicional, como um local onde ocorrem as relações humanas, mas sim como um elemento ativo que interfere diretamente nas ações de indivíduos e grupos sociais. Dessa forma, as ações moldam a materialidade, ao mesmo tempo que esta última também exerce influência sobre as próprias ações humanas (Santos, 1979, p. 9-10).

Sob essa perspectiva, é de nosso interesse, neste dossiê, analisar o papel exercido pelo espaço físico na configuração do mundo mediterrâneo e compreender de que maneira ele influenciou a expansão territorial, revelando-se ora como aliado dos gregos e romanos, ora como obstáculo em seus movimentos de expansão. Ademais, diversas questões podem ser levantadas tendo como fio condutor a espacialidade. Destacamos o aumento do conhecimento geográfico decorrente das viagens efetuadas pelos antigos; o controle estratégico exercido sobre o espaço, a fim de superar os obstáculos; a exploração de recursos naturais em territórios conquistados; e as diversas formas de ocupação do espaço. Acreditamos, inclusive, que as diferenças geográficas de cada região resultaram em distintas formas de ocupação do espaço. Isso se evidencia na localização de apoikiai e civitates, bem como na construção de elementos de infraestrutura, como portos, pontes, aquedutos, estradas e outros.

A análise das expansões territoriais grega e romana encontra um arcabouço teórico muito útil na concepção de integração, conforme delineado por Guarinello (2010). A interpretação do fenômeno discutido neste dossiê à luz do conceito de integração revela que os contatos entre grupos étnicos distintos não apenas desencadeiam transformações nas estruturas sociais preexistentes, mas também no próprio espaço. Esses contatos, que, na Antiguidade, variavam em natureza e profundidade, moldaram novas realidades, destacando-se a dinâmica complexa e multifacetada das interações entre as sociedades mediterrâneas ao longo do tempo.  Inspirados por essas reflexões, apresentamos a proposta deste dossiê e convidamos aqueles que se interessam pelo tema a submeterem seus artigos.

Prof. Me. Guilherme de Aquino Silva

Doutorando pelo Programa de História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHis/Ufes).

 

REFERÊNCIAS

ABREU E SOUZA, R. Romanização: via de mão dupla? Boletim do CPA, n. 17, p. 197-220, 2004.

FUNARI, P. P. A.; GARRAFFONI, R. S. A aculturação como modelo interpretativo: o estudo de caso da romanização. Heródoto, v. 3, n. 2, p. 246-255, 2018.

GIEBEL, M. O oráculo de Delfos. São Paulo: Odysseus, 2013.

GUARINELLO, N. L. Ordem, integração e fronteiras no Império Romano: um ensaio. Mare Nostrum, v. 1, n. 1, p. 113-127, 2010.

HINGLEY, R. O imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. São Paulo: Annablume, 2010.

HUGHES, J. D. La ecologia en las civilizaciones antiguas. Ciudad de México: Fondo de cultura económica, 1981.

JOURDAN, C. A. Morrer e viver em um mar de “monstros”: o imaginário helênico sobre a morte no mar (séculos VIII - IV a.C.). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

LEPELLEY, C. Os romanos na África ou a África romanizada? Arqueologia, colonização e nacionalismo na África do Norte. Heródoto, v. 1, n. 1, p. 418-437, 2016.

LIMA NETO, B. M. Entre a filosofia e a magia: o caso da estigmatização de Apuleio na África romana (século II d.C.). Curitiba: Prismas, 2016.

MENDES, N. M. Romanização: cultura imperial. Phoînix, v. 5, p. 307-324, 1999.

SANTOS, M. Espaço e sociedade: ensaios. Petrópolis: Vozes, 1979

SOARES, M. G. F. Topofilias e topofobias marinhas na ‘Odisseia’: os nautai como homens da métis, os deuses e as técnicas náuticas no contexto de fundação das apoikiai (séc. X - VII a.C.). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020.

SORIA, V. O conceito de “romanização” e o panorama académico português. In: Arnaud, J. M.; Martins, A.; Neves, C. (ed.). Arqueologia em Portugal: 150 anos. Lisboa: DPI Cromotipo, 2013, p. 711-716.

 

PRAZO DE SUBMISSÃO: Até 06 de maio de 2024.

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