Chamada Dossiê Continuidade, ruptura e negociação político-cultural no Ocidente: as relações entre romanos e “bárbaros” na Antiguidade Tardia (séc. III-VIII)

08-01-2025

Na Antiguidade Tardia, em particular nos territórios ocidentais, episódios marcantes da vida política, religiosa e cultural tiveram como protagonistas não apenas os romanos, que há séculos dominavam a bacia do Mediterrâneo, mas, de modo cada vez mais evidente, sociedades ou grupos estrangeiros, os assim denominados “bárbaros”, que estabeleceram com os romanos relações conflituosas, mas também de cooperação, no âmbito de um amplo processo de negociação política e cultural que se encontra na gênese do Medievo. Nesse sentido, a proposta deste dossiê consiste em reunir contribuições acadêmicas acerca das relações entre romanos e “bárbaros” que evidenciem rupturas e continuidades entre ambas as sociedades, com destaque para as diversas modalidades de negociação política e cultural características do período, de maneira que os assim denominados reinos “bárbaros” serão responsáveis por inaugurar uma nova experiência política nos territórios do antigo Império Romano, mas sem que isso signifique uma ruptura completa com a herança latina, muito pelo contrário.

Sob a perspectiva do colonizador em face do colonizado, entre os séculos XVIII e XX, a produção historiográfica europeia reproduziu o discurso dos autores antigos, que sustentavam a ideia de uma “missão civilizatória” de Roma sobre os demais povos do Mediterrâneo, o que justificava a ação imperialista europeia própria do período moderno (Bustamante, 2006, p. 109-110). Essa corrente interpretativa relegou às sociedades não romanas um papel secundário na narrativa histórica, produzindo assim uma hierarquização dos grupos étnicos pautada num critério de maior ou menor grau de “civilização”. Nesse sentido, os parâmetros de interpretação adotados foram aqueles próprios dos autores romanos. Na ausência de problematização, as sociedades não romanas viram cristalizar em torno de si uma imagem eivada de juízos de valor ancorada no emprego acrítico do termo “bárbaro”, que, no fim das contas, exprimia a visão dos romanos sobre o Outro.

Uma das leituras históricas sobre os “bárbaros”, nos séculos finais do Império Romano do Ocidente, que ainda exerce influência na historiografia, é aquela que os considera diretamente responsáveis pela desintegração deste Império (Mendes, 2002, p. 56), como é possível constatar por meio da célebre frase de André Piganiol (1972, p. 466), que conclui L’Émpire Chrétien, uma das suas obras mais influentes: “a civilização romana não morreu de morte natural, ela foi assassinada”.  Nesse caso, os “assassinos” teriam sido os invasores “bárbaros”, reduzidos ao papel de inimigos e destruidores do Império Romano.

A partir da segunda metade do século XX, os estudos pós-coloniais deram ensejo a novas abordagens sobre as sociedades antigas. Criticou-se o conceito de aculturação, bem como a compreensão das sociedades e grupos étnicos como categorias homogêneas. Nessa seara, novos aportes conceituais permitiram compreender diferentes categorias sociais a partir da diversidade e interação em oposição à homogeneidade (Funari; Garraffoni, 2018, p. 250). Além disso, os postulados teóricos construídos para explicar a dinâmica da Antiguidade Tardia possibilitaram análises históricas que vão além da percepção de “decadência”, até então atribuída ao período (Silva, 2001, p. 68).

A respeito dessas novas abordagens, Machado (2015, p. 93-95) apresenta um balanço historiográfico amparado em estudos de etnogênese, dados arqueológicos e releituras de fontes escritas que permite ir além de uma visão simplificadora das “invasões bárbaras”. Dentre as conclusões que obtém, demonstra a necessidade de problematizar vocábulos como “romano”, “franco” e “vândalo”, cujo conteúdo foi construído pelos autores antigos à luz da suposta superioridade romana, exprimindo assim o olhar dos romanos sobre os não romanos.

Por outro lado, do ponto de vista sociopolítico, é possível perceber que, a partir do século III, houve uma tendência progressiva de incorporação dos grupos “bárbaros” às forças do Império Romano, na condição de tropas auxiliares e mesmo de foederati.  Durante o século IV, os líderes desses destacamentos militares passaram a alçar cargos de prestígio na estrutura militar romana, exercendo cada vez mais poder na cena política, num movimento que, em última instância, resultou na consolidação das lideranças “bárbaras” em territórios antes pertencente ao Império, a exemplo do monarca franco Clóvis (Geary, 1999, p. 115). Importa mencionar que a relação entre o poder imperial, a aristocracia romana e as lideranças “bárbaras” não se restringiu ao conflito permanente ou a uma dualidade intransponível, mas comportou também uma constante negociação entre os agentes históricos.

A partir do século V, a formação dos reinos germânicos no antigo território do Império Romano do Ocidente não representou uma ruptura completa com os valores e as instituições romanas. Nesse sentido, cabe ressaltar a ação das realezas recém-fundadas na elaboração de códigos amparados no Direito Romano, porém, adaptados à sua própria realidade, a exemplo da Lei Sálica, no período merovíngio (Silva; Mazetto, 2006, p. 108-109). Dentre outras expressões de continuidade entre o antigo Império Romano e os reinos germânicos, pode-se destacar a adoção do cristianismo niceno, como vemos ocorrer no reino visigodo, no século VI, tornando-se os monarcas, assim como os bispos, os principais artífices da consolidação do cristianismo niceno na sociedade medieval, em formação (Frighetto, 2010, p. 116).

Com base em estudos de caso que busquem reavaliar a participação dos “bárbaros” nos eventos históricos característicos do período tardo-antigo, apresentamos à comunidade acadêmica a presente chamada, a fim de que os interessados possam submeter à revista suas contribuições.

Me. Anderson Leonardo Vaz Stein

Doutorando em História pelo PPGHis (Ufes)

Prazo de submissão dos originais: 04 de agosto de 2025